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Marx e o Reino da Conscincia
Antnio Gramsci
1918
Nosso MarxSomos marxistas? Existem marxistas? Somente tu, estupidez, s eterna. Essa questo
provavelmente ressuscitar estes dias, por ocasio do centenrio, e consumir rios de tinta de
estultice. A v quinquilharia e o bizantinismo so heranas imarcescveis dos homens. Marx no
escreveu um catecismo, no um messias que tenha deixado uma fieira de parbolas carregadas de
imperativos categricos, de normas indiscutveis, absolutas, fora das categorias do tempo e do
espao. Seu nico imperativo categrico, sua nica norma : "Proletrios do mundo inteiro, uni-
vos." Portanto, a discriminao entre marxistas e no marxistas teria de consistir no dever daorganizao e da propaganda, no dever de organizar-se e associar-se. Isto muito e, ao mesmo
tempo, muito pouco: quem no seria marxista? E, sem dvida, assim so as coisas: todos so um
pouco marxistas sem o saber. Marx foi grande e sua ao foi fecunda no porque tenha inventado a
partir do nada, no por haver engendrado com sua fantasia uma original viso da histria, mas
porque com ele o fragmentrio, o irrealizado, o imaturo, se fez maturidade, sistema, conscincia.
Sua conscincia pessoal pode converter-se na de todos, e j de muitos; por isso Marx no apenas
um cientista, mas tambm um homem de ao; grande e fecundo na ao da mesma forma que no
pensamento, e seus livros transformaram o mundo, assim como transformaram o pensamento.
Marx significa a entrada da inteligncia na histria da humanidade, significa o reino da conscincia.
Sua obra surge precisamente no mesmo perodo em que se desenvolve a grande batalha entre
Thomas Carlyle e Herbert Spencer relativa funo do homem na histria.
Carlyle: o heri, a grande individualidade, mstica sntese de uma comunho espiritual, que conduz
os destinos da humanidade para margens desconhecidas, evanescentes no quimrico pas da
perfeio e da santidade.
Spencer: a natureza, a evoluo, abstrao mecnica inanimada. O homem: tomo de um organismo
natural que obedece a uma lei abstrata como tal, mas que se faz concreta historicamente nos
indivduos: a utilidade imediata.
Marx situa-se na histria com a slida postura de um gigante: no um mstico nem um metafsico
positivista um historiador, um intrprete dos documentos do passado, e de todos os documentos,
no apenas de uma parte deles.
Este era o defeito intrnseco das investigaes relativas aos acontecimentos humanos: o no
examinar e no levar em considerao mais do que uma parte dos documentos. E essa parte era
escolhida no pela vontade histrica, mas pelo preconceito partidrio, que continua a ser isso ainda
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que inconscientemente e de boa f. As investigaes no tinham como objetivo a verdade, a
exatido a reconstruo integral da vida do passado, mas a acentuao de uma determinada
atividade, a valorao de uma tese apriorstica. A histria era domnio exclusivo das idias. O
homem considerava-se como esprito, como conscincia pura. Dessa concepo derivavam duas
conseqncias errneas: as idias acentuadas eram freqentemente arbitrrias, fictcias. E os fatosaos quais era dada importncia eram anedotas, no histria. Se apesar de tudo, foi escrita histria,
no real sentido da palavra, isso deveu-se intuio genial de alguns indivduos, no a uma atividade
cientfica sistemtica e consciente.
Com Marx a histria continua sendo domnio das idias, do esprito, da atividade consciente dos
indivduos isolados ou associados. Mas as idias, o esprito, se realizam, perdem sua arbitrariedade,
no so mais fictcias abstraes religiosas ou sociolgicas. A substncia que adquirem est na
economia, na atividade prtica, nos sistemas e nas relaes de produo e de troca. A histria comoacontecimento pura atividade prtica (econmica e moral). uma idia se realiza no quando
logicamente coerente com a verdade pura, com a humanidade pura (a qual no existe a no ser
como programa, como finalidade tica geral para os homens), mas quando encontra na realidade
econmica justificao, instrumento para afirmar-se. Para conhecer com exatido quais so os
objetivos histricos de um pas, de uma sociedade, de um grupo, o que importa antes de tudo
conhecer quais so os sistemas e as relaes de produo e de troca daquele pas, daquela
sociedade. Sem este conhecimento perfeitamente possvel redigir monografias parciais,
dissertaes teis para a histria da cultura, e sero captados reflexos secundrios, conseqncias
distantes; mas no ser feita histria, a atividade prtica no ficar explcita com toda sua slida
compacticidade.
Caem os dolos de seus altares e as divindades vem como se dissipam as nuvens de incenso
doloroso. O homem adquire conscincia da realidade objetiva, se apodera do segredo que
impulsiona a sucesso real dos acontecimentos. O homem conhece-se a si mesmo, sabe quanto pode
valer sua vontade individual e como pode chegar a ser potente se, obedecendo, disciplinando-se de
acordo com a necessidade, acaba dominando a realidade mesma, identificando-a com seus fins.
Quem conhece a si mesmo? No o homem em geral, mas aquele que sofre o jugo da necessidade.
A busca da substncia histrica, o ato de fix-la no sistema e nas relaes de produo e de troca,
permite descobrir que a sociedade dos homens est dividida em duas classes. A classe que possui o
instrumento de produo necessariamente j conhece a si mesma, tem conscincia, ainda que seja
confusa e fragmentria, de sua potncia e de sua misso. Tem fins individuais e os realiza atravs de
sua organizao, friamente, objetivamente, sem se preocupar se o seu caminho est calado com
corpos extenuados pela fome ou com os cadveres dos campos de batalha.
A compreenso da real causalidade histrica tem valor de revelao para a outra classe, converte-se
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em princpio de ordem para o ilimitado rebanho sem pastor. A grei obtm conscincia de si mesma,
da tarefa que tem de realizar atualmente para que a outra classe se afirme, toma conscincia de que
seus fins individuais ficaro em mera arbitrariedade, em pura palavra, em veleidade vazia e enftica
enquanto no disponha dos instrumentos, enquanto a veleidade no se converta em vontade.
Voluntarismo? Essa palavra no significa nada, se se utiliza no sentido de arbitrariedade. Do pontode vista marxista, vontade significa conscincia da finalidade, o que quer dizer, por sua vez, noo
exata da potncia que se tem e dos meios para express-la na ao. Significa, portanto, em primeiro
lugar, distino, identificao da classe, vida poltica independente da de outra classe, organizao
compacta e disciplinada para os fins especficos prprios, sem desvios nem vacilaes. Significa
impulso retilneo at chegar ao objetivo mximo, sem excurses pelos verdes prados da cordial
fraternidade, enternecidos pelas verdes ervazinhas e pelas suaves declaraes de estima e amor.
Mas a expresso "do ponto de vista marxista" suprflua, e at pode produzir equvocos inundaesmeramente verbais. Marxistas, de um ponto de vista marxista... todas expresses desgastadas como
moedas que tenham passado por excessivas mos.
Karl Marx para ns mestre de vida espiritual e moral, no pastor com bculo. estimulador das
preguias mentais, o que desperta as boas energias dormidas e que se deve despertar para a boa
batalha. um exemplo de trabalho intenso e tenaz para conseguir a clara honradez das idias, a
slida cultura necessria para no falar vagamente de abstraes. bloco monoltico de
humanidade que sabe e pensa, que no tem papas na lngua para falar, nem pe a mo no corao
para sentir, mas que constri silogismos de ferro que aferram a realidade em sua essncia e a
dominam, que penetram nos crebros, dissolvem as sedimentaes do preconceito e a idia fixa e
robustecem o carter moral
Karl Marx no para ns nem a criana que geme no bero, nem o barbudo terror dos sacristos.
No nenhum dos episdios anedticos de sua biografa, nenhum gesto brilhante ou grosseiro de
sua exterior animalidade humana. um vasto e sereno crebro que pensa um momento singular da
laboriosa, secular, busca que realiza a humanidade por conseguir conscincia de seu ser sua
mudana, para captar o ritmo misterioso da histria e dissipar seu mistrio para ser mais forte no
fazer e no pensar. uma parcela necessria e integrante do nosso esprito, que no seria o que se
Marx no tivesse vivido, pensado, arrancado chispas de luz com o choque de suas paixes e de suas
idias, de suas misrias e de seus ideais.
Glorificando a Karl Marx no centenrio de seu nascimento, o proletariado glorifica a si mesmo,
glorifica sua fora consciente, o dinamismo de sua agressividade conquistadora que vai
desquiciando o domnio do privilgio e se prepara para a luta final que coroar todos os esforos e
todos os sacrifcios.