MARGENS SILENCIOSAS: A ESCRITURA DA MULHER NA LITERATURA INDIANA CONTEMPORÂNEA
por
ANNA BEATRIZ DA SILVEIRA PAULA Departamento de Ciência da Literatura
Tese de Doutorado em Ciência da Literatura - Semiologia apresentada ao Conselho dos Cursos de Pós- Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Helena Parente Cunha
U F R J
1º semestre de 2006
DEFESA DE TESE
PAULA, Anna Beatriz da Silveira. Margens silenciosas: a escritura da mulher na literatura indiana contemporânea. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. 185 fls. mimeo. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura - Semiologia.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________ Professora Doutora Helena Parente Cunha
Orientadora
________________________________________________________ Professora Doutora Angela Maria Fabiana Mendes
________________________________________________________ Professora Doutora Beatriz Resende
________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Mattos Portella
________________________________________________________ Professora Doutora Rosa Gens
________________________________________________________ Professora Doutora Angélica Soares
________________________________________________________ Professora Doutora Elódia Xavier
Defendida a Tese:
Conceito:
Em / /2006
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................... 8
2. PÓS-MODERNIDADE E PÓS-COLONIALISMO: CHOQUE DE IMPÉRIOS .................................................................. 29
2.1- Modernidade: identidade e crises ................................................ 29
2.1.1- Modernidades e soberania ..................................................... 29 2.1.2- Soberania, nação, povo, identidade ..................................... 34 2.1.3- Colonialismo e soberania ..................................................... 38
2.2- Pós-modernidade e pós-colonialismo: anti-cânone, outras crises ............................................................... 41
2.3- A Índia pós-colonial ........................................................................ 48
3. O CORPO BIOPOLÍTICO DA SOCIEDADE INDIANA ................... 55
3.1- Corpo público ................................................................................... 59
3.1.1- Línguas e dialetos ................................................................. 62 3.1.2- Corpo religioso ....................................................................... 75
3.2- As Escrituras dos corpos: produtividade e valor dos afetos .......... 92
4. ARUNDATHI ROY – CÂNONES E RUPTURAS ................................ 109
4.1- Problematizações do cânone .......................................................... 111
4.2- O deus das pequenas coisas – ícone da transgressão ................... 121
5. O DEUS QUE CORRE PELAS ÁGUAS ............................................... 131
5.1- Limites e margens ......................................................................... 136
5.1.1- Cronologia e memória .......................................................... 139 5.1.2- Disciplina e controle ............................................................. 143
5.2- As leis do amor e a desordem amorosa ......................................... 147
5.3- Silêncio e silenciamento .................................................................. 154
6. CONCLUSÃO ......................................................................................... 165
7. BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 178
S INO PS E
Reflexões sobre a condição da escritura e inscritura da mulher na literatura indiana contemporânea. Caracterização da historiografia literária da Índia. Identificação dos resultados da descolonização nos discursos pós-modernistas e pós-coloniais da literatura indiana de língua inglesa.
1. INTRODUÇÃO
Certamente que, em termos puramente práticos, tudo pode começar com a
chegada de uma criança estrangeira. Outra maneira possível seria começar pela
chegada de uma cultura estrangeira. Ou de uma religião, quem sabe, de uma
ideologia...
Acontecimentos suscitam relatos, comentários, interpretações discursos.
Alguns, cercados de solenidade, como letra de lei. Outros, de atenção e silêncio,
traduzindo inquietações, lutas, feridas, dominações transgressões. Todos,
tratando de identidades e seus jogos de diferenças, suas dobras e marcas.
Eis um lugar Kerala, Índia apresentando-se por meio de dupla
referência: em primeiro lugar, a história, a realidade, a teia social; depois, a
ficção que, ao se apropriar delas, conduz a uma experiência interpretativa de
diferenças.
Agosto de 2004. Um grupo de mulheres indianas resolve, por conta
própria, dar fim a sucessivos casos de estupros aos quais a polícia da região não
dava atenção. Mataram os suspeitos. Cinco foram identificadas e presas pela
polícia local. Ao invés de se aquietarem e aceitarem o ocorrido, cerca de 400
mulheres cercaram a delegacia e obrigaram os policiais a liberarem as cinco
detidas o que foi feito imediatamente (Veja em anexo). Aquilo que seria um
caso de absurda barbárie assume um caráter bastante específico diante do
contexto sócio-cultural no qual ocorreu, a ponto de receber apoio de diversas
autoridades e até de intelectuais da Índia. Outro absurdo? Nem tanto. Pode-se
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pensar que, na Índia, o estupro seria causado pela mulher, não encarada como
vítima, mas como provocadora da violência, especialmente se estivesse
desacompanhada de um homem da família ou marido e em espaço público no
momento do crime. Assim sendo, a força policial pouco interfere nesse tipo de
acontecimento, marginalizando a própria queixosa caso esta se apresente a uma
delegacia solicitando providências. Até mesmo a família dessas jovens, crianças
ou senhoras, age com preconceito nesses casos.
O que moveu, então, tais mulheres? É evidente que algo mudou tanto que
elas não tiveram receio suficiente que as fizesse aceitar aquela situação
insustentável como mais uma forma de carma. Transgrediram as leis, a religião
e os costumes de forma a garantirem respeito e justiça até então destinados quase
que exclusivamente aos homens.
Enfim, assiste-se às transformações culturais mais profundas já ocorridas
na Índia desde a sua Idade Média, período em que o hinduísmo tornou-se a
religião dominante no país. Trata-se de um questionamento das tradições que
compõem até mesmo a estrutura econômica da Índia já que atinge a própria
concepção das castas, visto que esse movimento feminista tem açambarcado a
luta por igualdade social, principalmente no que se refere à casta dos intocáveis.
Portanto, a mulher indiana não se insurge sozinha; ela acompanha uma série de
insurreições em todo o território indiano, desde os grandes centros como Mumbai
(Bombaim) e Nova Déli até as distantes planícies desérticas do Rajastão.
No entanto, tal movimento não é isolado já que se insere num conjunto de
transformações relativas às sociedades modernas no final do século XX, e ao
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processo de fragmentação das concepções culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, as quais, no passado, forneceram a base
para que os indivíduos se localizassem socialmente.
Até mesmo a idéia, que temos de nós próprios enquanto sujeitos
integrados, está sendo atingida por essas transformações. É aquilo para o qual
Stuart Hall aponta como “crise de identidade”, resultante de uma sensação de
deslocamento ou de descentração que o indivíduo tem em relação ao social, mas
também em relação a si próprio. O crítico cultural Kobena Mercer acrescenta
que, “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando
algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza” (1)
Analisados em conjunto, esses processos de mudança significam uma
transformação bastante ampla e intensa daquilo que se tinha como uma
concepção essencialista ou fixa de identidade. Resvala, inclusive, naquilo que,
desde o Iluminismo, é tido como essencial do ser humano e fundamental a nossa
existência.
Stuart Hall (Hall, 1987), ao discutir essa questão, distingue três
concepções de identidade, a saber: a) sujeito do Iluminismo; b) sujeito
sociológico, e c) sujeito pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado na visão do homem como um
indivíduo totalmente centrado, unificado, racional, consciente e capaz de agir.
Esse núcleo interior do ser era a sua identidade, pois surgia quando indivíduo
nascia, mas acompanhava seu desenvolvimento, mantendo-se o mesmo em
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essência: o eu exterior correspondia, então, ao eu interior.
Como a denominação de sujeito sociológico sugere, a concepção de que
havia um eu autônomo e auto-suficiente não atendia mais ao que o mundo
moderno e complexo demandava. A identidade passou a ser compreendida como
um processo resultante da interação do sujeito com outras pessoas, importantes
para ele já que lhe serviam de mediadoras entre ele e a cultura da sociedade em
que estavam inseridos. G. H. Mead, C. H. Cooley e os interacionistas simbólicos
foram os expoentes da sociologia que elaboraram tal concepção “interativa” da
identidade e do eu. Para eles, o indivíduo teria sim um eu interior, chamado de
“real”, só que em permanente diálogo com os ambientes culturais e as
identidades por eles fornecidas.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de projetar a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que são internalizados seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que são ocupados no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (2)
Porém, o que se observa agora é que o sujeito, os mundos culturais e o
processo de identidade em si não são mais os mesmos. O sujeito tornou-se
fragmentado, e composto de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou
não-resolvidas. Proporcionalmente, as identidades fornecidas pelos mundos
culturais entraram em crise por conta das mudanças estruturais e institucionais.
E o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Disso
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resulta o sujeito pós-moderno, desprovido de uma identidade fixa, essencial ou
permanente.
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro dos indivíduos há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que suas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se existe a idéia de uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque se constrói uma cômoda estória sobre o indivíduo ou uma confortadora “narrativa do eu”. (veja Hall, 1990) (3)
Vive-se, por conseguinte, numa época em que uma ampla gama de
representações culturais significativas são dispostas aos indivíduos, os quais,
ainda que temporariamente, estabelecem, com elas, alguma identificação. O
resultado é um angustiante processo de múltiplas identidades possíveis que toma
o lugar de uma identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente.
Não se pode descartar, também, o papel que a globalização como uma
fase da Pós-Modernidade exerce na questão da identidade. Como Marx disse
sobre a Modernidade:
[...] é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém- formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar... (4)
Fica, então, estabelecida a principal diferença entre as sociedades
“tradicionais” e as “modernas: estas têm como característica a mudança
2. PÓS-MODERNIDADE E PÓS-COLONIALISMO:
CHOQUE DE IMPÉRIOS
2.1- Modernidade: identidade e crises
2.1.1- Modernidades e soberania
Estudar a Pós-Modernidade, seus caminhos e impasses, suas produções
culturais – entre elas, o trabalho de Arundathi Roy, feminino, ex-cêntrico,
multimidiático requer a recuperação de alguns aspectos fundamentais da
modernidade, notadamente a maneira como ela se configura nas sociedades
européias, destacando que, se o horizonte pós-moderno se constrói por crises e
rupturas, essas também já estão presentes no período que o antecedeu.
Existem diferentes concepções temporais quanto ao que se consideraria o
início do moderno. O Humanismo, o Renascimento e o Iluminismo, enquanto
marcações historiográficas da do percurso da Razão desde o início até seu
apogeu, constituem ciclos evolutivos da modernidade e contribuíram, cada um a
seu modo, para a formação do Estado-Nação.
Foi o Estado-Nação que traduziu o projeto político da Modernidade, ao
instituir a igualdade como um dos seus principios básicos. Igualdade esta
explicada pela razão, pela lógica da superioridade racial e pelo poder de que a
tecnologia e a ciência como um todo dotou o homem. Definitivamente, a
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humanidade encontrava-se liberta da ignorância e da submissão ao transcendente
vividos na Idade Média.
Porém, o que interessa ao estudo que começo a desenvolver, é que essa
Modernidade não se restringiu ao território europeu. Lá ela exerce uma
revolução coerente com o que se viveu, na quase totalidade do continente, no
período histórico anterior. Mas o que ocorreu quando através do Colonialismo a
concepção do moderno chegou a outras partes do mundo?
Tal conflito, inicialmente interno, atinge escala global após a descoberta
da América e o início do domínio europeu sobre o resto do mundo: ao descobrir
seu “lado de fora”, a Europa constrói sua imagem de centro da civilização – o
eurocentrismo nascente. Se, por um lado, o humanismo do primeiro momento
configura uma noção revolucionária de igualdade humana, singularidade,
cooperação e abundância que, com a descoberta de outras populações e territórios
deveria se alastrar, por outro, o europeu percebe a possibilidade e a necessidade
de sujeitar outros povos à sua dominação. Assim, o eurocentrismo surge como
reação à noção de uma natural igualdade entre os homens – visão essa que
deveria/poderia ser ampliada pela descoberta de outras terras.
No século XVII, a modernidade em crise se instalara: fogueiras da
Inquisição, guerras civis na França, na Inglaterra, na Alemanha, massacre e
escravização das populações nativas das Américas. Na segunda metade do
século, o absolutismo monárquico parece ter conseguido impedir o curso da
liberdade, ao mesmo tempo que o colonialismo, depois da fase de pilhagem da
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riqueza das colônias, toma a forma de exclusividades comerciais, modos estáveis
de produção e tráfico de escravos africanos.
Mas a solução parcial da crise vai aparecer no terceiro momento da
modernidade, através da formação do Estado moderno e da construção do
conceito de soberania. Hegel fornece as bases filosófico-políticas para esse novo
momento: ao transformar a imanência humana em imanência e poder do Estado
e o ser analógico da tradição medieval no ser dialético; ao justificar,
filosoficamente, a idéia da existência de povos menores – numa negação do
desejo não-europeu – e, finalmente, ao relacionar o Estado com o todo ético, por
ser essencial para a marcha de Deus pelo mundo.
Para que a caminhada divina tome forma através do Estado, é necessário
um aparelho político transcendente. A proposta de Thomas Hobbes quanto à
existência de um governante soberano definitivo, um Deus na terra, fornece o
aparato teórico de que se carecia.
A lógica hobbesiana propõe, inicialmente, a hipótese da guerra civil como
estado original da sociedade humana. Então, para sobreviver aos perigos da
guerra, e ultrapassá-los, os homens precisam fazer um acordo, um pacto,
atribuindo a um líder o direito absoluto de agir, o poder absoluto para fazer tudo:
eis a justificativa para que a autonomia humana seja transferida a um soberano
acima de todos, que os governa, e para o qual convergem todos os desejos
isolados.
Dessa forma, a soberania é definida por transcendência e representação:
de um lado, o soberano recebe todo o poder, não por um vínculo teológico
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externo, mas pelo pacto resultante das relações humanas; de outro, o pacto em si,
transformando o soberano em representante de todos, legitima seu poder, a ponto
de sustentá-lo como absoluto. O soberano institui a lei sem o consentimento dos
súditos – e pode fazê-lo porque deles recebeu autorização, através do acordo
anterior. Aí está a noção de soberania em seu estado puro: o subjugar é
conseqüência natural do que foi consentido em troca de proteção, da
sobrevivência, da paz. Esta, a primeira solução política da modernidade: o
Estado reflete a imagem de seu “tutor” designado por escolha e adoção pactual.
A teoria hobbesiana da soberania serviu ao absolutismo monárquico, mas
pôde ser aplicada a diversas formas de governo: monarquia, oligarquia,
democracia. No “Contrato Social” de Rousseau, por exemplo, tem-se que as
vontades individuais precisam ser sublimadas para dar lugar a uma vontade geral,
comunitária.
Outro elemento essencial sustenta a autoridade soberana: o
desenvolvimento capitalista e a noção de mercado como fundamento da
estratificação e da reprodução social. De um modo geral, os pesquisadores pós-
colonialistas apontam que a grande diferença do eurocentrismo – em relação a
outros etnocentrismos residiu no fato de sua evolução caminhar ao lado do
Capitalismo. O transcendental político do Estado Moderno é calcado no
transcendental econômico, na proporção em que, ao promover o bem-estar dos
indivíduos e torná-lo coincidente com o interesse público, o Estado reduz as
funções sociais a uma medida de valor.
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Um Estado, mais forte economicamente, é, também, superior aos outros e
pode se impor/sobrepor a eles – a soberania é um poder de polícia: subordina
singularidades, vontades individuais à vontade geral pelo estatuto da burocracia.
Mais ainda: na longa transição da sociedade medieval para a moderna, o
esquema hierárquico de graus de poder é substituído pelo aparato da disciplina e
da especialização de funções, próprio da dinâmica burocrática.
Mas reafirmo que essa longa transição não se deu de maneira uniforme.
Em se tratando do Oriente, a chegada desse novo pensamento tomou rumos
diferentes – correspondentes aos diferentes modelos colonizatórios e aos
diferentes países colonizados. Denunciado por Edward Said, o Oriente, através
do orientalismo, foi uma construção elaborada pelo colonizador e importada ao
mundo colonizado já sob o estigma da exclusão. Na verdade, o projeto colonial
se baseou, justamente, na premissa de que tais povos seriam inferiores pelo fato
de não se equipararem aos europeus dentro do que estes consideravam padrão de
civilização.
Retomando a questão da Modernidade, destaco uma questão fundamental,
também apontada por Canclini em relação à América Latina, mas que se adequa,
perfeitamente, às discussões concernentes à Índia: a diferença entre modernidade
e modernização. A modernização realmente vem ocorrendo, a passos lentos é
bem verdade, naquele país. Porém, a Modernidade se instaurou numa parte
muito pequena do território, já que o país apresenta tamanha fragmentação
cultural, política e econômica que alguns espaços ainda estão imersos numa
3. O CORPO BIOPOLÍTICO DA SOCIEDADE INDIANA
O grande e fascinante Oriente marcou a história do imaginário humano de
diferentes formas, todas, porém, sedutoras e enigmáticas, resultantes da
compreensão das diferenças culturais, religiosas e filosóficas em relação aos
povos do Ocidente. Enquanto o Oriente Médio e a tradição islâmica marcaram a
Europa com o sangue das Cruzadas, fixando no discurso eurocêntrico uma
concepção violenta e agressiva dessa cultura, a Índia foi construída de maneira
bastante diversa: a idéia de receptividade, os sabores das especiarias, os trajes
femininos que tanto ocultam e que por isso seduzem e a passividade do povo
diante de uma Lei que tudo justifica e a tudo dá sentido (as Leis do carma e do
darma) determinaram uma concepção receptiva dessa nação.
Desde a chegada à Calicute, em Kerala quando da descoberta do
Caminho Marítimo para as Índias até meados do século XX, quando da luta
pela Independência do país, a Índia não foi descrita pelos seus, mas pelos outros.
Foi, notadamente, a partir de Gandhi, que a “outra” Índia começou a ser
conhecida mundialmente: a terra do abandono, das doenças, da miséria, da seca,
da fome. A Índia tribal e nômade A Índia da vilas de povo gentil, absolutamente
religioso, analfabeto e sem dentes, de uma ingenuidade assustadoramente
manipulável. Foi a Índia excluída da Modernidade que o Mahatma adotou,
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denunciou e pela qual lutou, utilizando suas características como uma alternativa
política para toda a Nação.
Enquanto isso, a Índia de Nehru também existia: moderna, letrada,
presente nas grandes capitais e negociando com o Ocidente de igual para igual,
até mesmo no idioma falado e na incorporação de costumes e tradições do
colonizador britânico.
Tal ambigüidade é o legado do Colonialismo. Essas duas esferas,
somadas às intensas variantes culturais forjadas através de uma História que
começou com as invasões arianas ao vale do rio Hindo, séculos antes de Cristo,
formam a Índia contemporânea. É esta Índia que se pode encontrar nas atuais
produções artísticas indianas. Assim, para entender as narrativas, e em especial o
romance de Roy, é imprescindível que se desconstrua a Índia imaginária –
imaginária enquanto correspondente a uma criação (Imaginary homelands,
Salman Rushdie) e se conheça um subcontinente plural e polifônico, para o
qual autores e autoras têm projetado alternativas em seus textos. É o que Vinay
Dharvadker aponta em suas reflexões acerca da Índia contemporânea presentes
em Cosmopolitan Geographies new locations in literature and culture, (sem
tradução para o português) de onde extraio o seguinte:
Embora a vila rural seja o último alvo de expropriação, tanto do colonialismo quanto do neocolonialismo, a cidade continua a ser o local onde o poder está concentrado e o capital é acumulado e desenvolvido. (...) O “trabalho sujo”da globalização, de fato, é feito não tanto em largas escalas nacionais como nos pequenos sítios de cidades selecionadas e nos interiores, os setores urbanos e rurais onde a matéria bruta, o trabalho, a produção econômica, a distribuição em redes, a infra-estrutura e os consumidores podem ser quantificados, localizados e explorados. Não foi, portanto, por acidente que tanto da literatura indiana do século vinte, especialmente a ficção, projetou-se em dois eixos de transformação: o eixo temporal, da subserviência da
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colonização até a libertação, que conduz para a mortandade da Divisão e para as falhas da independência; e o eixo espacial, da vila para a cidade, dentro do qual tantas narrativas do antes, do durante e do depois da descolonização estão atualmente desenvolvidas. (1)
A questão posta nesse caso é a convivência entre a modernidade, em
evolução nos grandes centros urbanos, e o que se vive na maior parte da Índia,
uma economia próxima da implementada na época medieval. Para que essa
situação fique mais evidente, cito a jornalista indiana Gita Mehta, quando esta
descreve com precisão a realidade daquele país, tanto que é válida a extensão do
excerto:
É um escândalo! exclamou a intelectual francesa com uma paixão disponível somente para ocidentais dinâmicos. (...)
Você sabe o que essa gente do vídeo está fazendo? insistiu ela, irada, e senti que algo de ruim estava para acontecer. Fizeram filmes com rituais religiosos! Imagine ligar um aparelho para ver seu sacerdote entoar as preces enquanto você se prosterna diante da televisão!
Fiquei olhando para ela, incrédula mas aliviada. Ela agitou a manga de musselina bordada na minha direção, ofendida com minha estupidez obstinada. Pense só! As pessoas estão adorando os vídeos!
Qual é o problema?, pensei comigo. Adorando vídeos? Faça o favor. Estamos na Índia. Aqui adoramos aparelhos de ar-condicionado, computadores, caixas registradoras e carros de boi, num ritual anual denominado Adoração das Armas.
Há milênios os indianos acreditam que o homem se distingue dos outros animais devido a sua capacidade de fabricar ferramentas. Honrando nossos implementos, estamos honrando o engenho humano, e a Adoração das Armas se iniciou com os guerreiros que homenageavam suas armas, os instrumentos de seu ofício. Na Índia moderna as pessoas ainda penduram guirlandas nas máquinas de suas diferentes atividades, esperando uma reação auspiciosa. Na verdade, qualquer reação serve; por isso, no dia de Adoração as Armas, oferecem-se às máquinas cocos pintados com corante vermelho, acompanhados de tantos bastões de incenso que os cocos desaparecem em meio a nuvens de fumaça perfumada. (2)
Pode-se imaginar essa cena num país com a seguinte estatística: em cinco
anos, de 5 mil indianos trabalhando com computação passou-se a 250 mil,
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exportando 1 bilhão de dólares em material eletrônico por ano. Não é à toa que a
autora afirma que o verdadeiro escândalo era que 400 milhões de indianos ainda
não tivessem máquinas para adorar. (3)
São, por conseguinte, as diferenças, econômicas, sociais, culturais e
lingüísticas os obstáculos com que qualquer estudioso de literatura indiana se
defronta; obstáculos esses que têm se tornado cada vez mais transponíveis em
função de grandes centros acadêmicos pelo mundo se abrirem a pesquisas de
literaturas ex-cêntricas (Linda Hutcheon).
É evidente que, pela dimensão continental de sua geografia e pela
dimensão milenar de sua história, tratar da cultura indiana exige uma atitude
humilde de reconhecimento de limitações. Afinal, aprofundar o estudo em tais
direções comporia, por si, uma extensa pesquisa. Contudo, para compreender a
importância de O deus das pequenas coisas é preciso contextualizar a obra no
corpus literário em que ela se encontra, ou seja: um romance de literatura
indiana de língua inglesa contemporânea. Portanto, é preciso ser breve, não
omisso, diante do que é fundamental para entender as problematizações
propostas por Arundhati Roy em seu texto, que são, verdadeiramente, dilemas do
cotidiano dos indianos e indianas, cujos corpos são definidos pelas diferenças
relativas ao corpo físico da Índia Histórias, religiões, línguas e fronteiras.
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3.1- Corpo público
A Índia é uma enorme península de quase dois milhões de milhas
quadradas, vinte vezes maior que a Grã-Bretanha; com mais habitantes que as
Américas do Norte e Sul juntas. Tem seu início definido por historiadores,
dentre eles Will Durant, como algo em torno de 2900 a.C. (Mohenjo-daro).
Quando os arianos invadiram a região do Hindo, já encontraram a civilização
dravídica, bastante avançada para a época, na região sul, e os nagas, ao norte.
Desse contato, surgiu o protótipo da divisão das castas, criado pelos arianos com
o objetivo de manter suas características raciais, separar esses três grupos
conforme a cor da pele (a primitiva palavra indiana para casta era varna, cor),
assegurando a manutenção dos traços raciais: de um lado, os de nariz aquilinos,
e, de outro, os de nariz chato. Então, o sistema de castas não existia nos tempos
védicos.
Somente quando as ocupações se tornam bastante especializadas e
hereditárias, algo entre 1000 e 500 a.C., é que se acentuam as castas enquanto um
sistema de estratificação social. No alto ficaram os xátiras (correspondentes aos
militares que, como os césares, ministravam até mesmo os rituais religiosos),
pois se tratava de um período de intensas disputas e guerras, a ponto de ser
chamado de Idade “Heróica”.
Conforme a paz começa a predominar, o poder dos xátiras é contestado.
Will Durant descreve bem o período no trecho de Nossa herança oriental:
Mas a guerra cedeu lugar à paz, e como a religião crescesse em importância e complexidade de ritual, e requeresse hábeis
4. ARUNDATHI ROY CÂNONES E RUPTURAS
A partir dos anos 80, um número significativo de mulheres indianas começou a
receber reconhecimento nacional e internacional quando sua poética começou a
envolver a temática e a prática de ação social, dentre elas Arundathi Roy, Anita Desai e
Chitra Divakaruni. O comum entre elas está na opção pela revisão da história de seu
país e de seus movimentos, através da literatura. Assim, a autoria feminina indiana de
língua inglesa nos permite vislumbrar como a mulher indiana constrói – ou tenta
construir – uma nova representação de si mesma. Gayatri Spivak reitera o fato de o
discurso do feminino ter relativizado as representações cêntricas, porém ela aponta, em
seu texto Quem reivindica alteridade?, para o seguinte:
A diaspórica pós-colonial pode levar vantagem (o mais das vezes sem saber, devo acrescentar) da tendência em combinar as duas narrativas na metrópole. Assim, essa informante freqüentemente inocente, identificada e bem-vinda como agente de uma história alternativa, pode ser o lugar de um quiasma, ou seja, do cruzamento de uma dupla contradição: em casa, a representação do sistema de produção da burguesia nacional; fora dela, a tendência a representar o neocolonialismo pela semiótica da “colonização interna”. (1)
Fawzia Afzal-Khan, em Cultural imperialism and the indo-english novel,
aponta para uma situação bastante interessante em que se encontram os escritores
e escritoras indianos: a opção pela abordagem mítica ou realista. Isso remete à
experiência do Colonialismo, que trouxe um conflito para o ato de representar a
Índia, o qual se estende até o momento presente. Contudo, não fosse a presença
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britânica, o país não teria dado seu salto na modernidade, ainda que
relutantemente, já em pleno século XIX.
Em 1853, Marx, numa série de artigos para o New York Daily Tribune,
embora reconheça a brutalidade da introdução da civilização britânica na Índia,
afirma:
Por mais repulsivo que seja para o sentimento humano testemunhar a destruição e o sofrimento causados pelos ingleses, não devemos esquecer que essas idílicas comunidades aldeãs, por inofensivas que pareçam, tinham sólidos alicerces no despotismo oriental, e restringiam a mente humana, norteando-a da forma mais estreita, fazendo dela um instrumento dócil de superstição, escravizando-a debaixo da autoridade tradicional e privando-a de toda grandeza e das energias históricas. (...) A sociedade indiana não tem História, pelo menos nenhuma história conhecida. O que chamamos de sua História é apenas a narração de sucessivos intrusos que fundaram seus impérios na base passiva dessa sociedade dócil e imutável. (...) A Inglaterra tem de cumprir dupla missão na Índia, uma destrutiva, a outra regenerativa – a eliminação da antiga sociedade asiática e o lançamento dos alicerces materiais da sociedade ocidental na Ásia. (2)
Pode-se, realmente, comprovar a existência de duas estratégias distintas:
uma, baseada no resgate de uma era de “bem-aventurança” pré-colonial através
da valorização do mítico – como o que é feito por Divakaruni – ; e outra, na
exploração daquilo que o país oferece em seu cotidiano mais real e, por isso,
mais doloroso. Esta é a opção adotada por Arundhati Roy, especialmente em sua
obra O deus das pequenas coisas (de agora em diante citado como DPC).
111
4.1- Problematizações do cânone
Eu, daqui em diante, me declaro uma república móvel e independente. Sou uma cidadã da Terra. Não possuo qualquer território. Não tenho qualquer bandeira. Sou do sexo feminino, mas não tenho nada contra eunucos. Minhas políticas são simples. Eu quero assinar qualquer tratado de não proliferação nuclear, ou aliança de boicote a testes nucleares, que esteja por aí. Imigrantes são bem vindos. Você pode me ajudar a desenhar nossa bandeira. Meu mundo morreu. E eu escrevo para chorar seu passamento. (3)
Essa é Arundhati Roy. Não há como dissociar a pessoa, a escritora e a
ativista política. Uma mulher apaixonada pela transgressão, por romper
quaisquer barreiras. A começar por aquilo que a identificaria enquanto um
rótulo. Na fala citada acima, a autora se define por instâncias enunciativas, quais
sejam: a desterritorialização que conduz à planetarização; a marca de gênero,
que é eliminada pela neutralização do falocentrismo contida na palavra “eunuco”;
a prática política, que convoca o poder contra-revolucionário da multidão; e uma
escrita, que presume uma memória discursiva e uma história de transgressão.
Como fazer a Índia ter sentido? Como viver na Índia pode ter sentido? A
noção de memória discursiva pode ser definida como um “interdiscurso”, ou seja,
algo que fala antes, que tem relação com o já passado ou dito, mas que continua
afetando o presente em sua qualidade de “esquecimento”. Não há como esquecer
os invasores muçulmanos, ou a colonização britânica. Mas também não há como
não ver a Índia que surge, altamente tecnológica. Bhabha chama esse conflito de
“esquecer para lembrar”. Trata-se de uma outra relação com o passado, que,
embora guarde experiências trágicas, é traduzido como válido diante da
superação, graças à sustentação numa essência de ser: a resiliência se dá a partir
112
da lembrança do que efetivamente somos enquanto pessoas, povos e culturas. Se
os escritos de Roy apontam, inicialmente, para uma ambigüidade relativa à Índia,
ao mesmo tempo independente e com fortes traços colonialistas, num nível mais
profundo de análise, expandem a questão, situando a Índia como um microcosmo
planetário. É significativo o fato de Roy, depois de seu primeiro e único
romance, ter-se dedicado à escrita de artigos sobre problemáticas mundiais.
Assim é que tudo o que acontece em seu país é analisado sob a ótica da
exploração, do mau uso do poder e da necessidade de luta contra o Império.
Basta observar os títulos de suas obras: The Greater Common Good, An
Ordinary Person’s guide to empire, The cost of living, The Chequebook:
Conversations with Arundhati Roy, Public Power in the Age of Empire, Power
Politics, Algebra of Infinite Justice e War Talk.
Em todos esses textos, vê-se, claramente, o uso de um discurso contra-
hegemônico, explorado de forma mais ou menos agressiva, conforme o quadro
sócio-histórico analisado. Esses marcadores de linguagem que apontei como
traços de agressividade são acentos apreciativos (Bakhtin) indicadores da
urgência em fazer sentido e em atribuir sentido, não só à Índia, mas também ao
mundo e às subjetividades que nele se inserem. É como a própria autora afirma
Eu penso que ficção, para mim, tem sido sempre uma forma de dar sentido ao
mundo como o conheço. (4)
E a principal forma de fazer sentido adotada por Roy é a prática política.
Esta transcorre em três níveis de ruptura: com o passado colonial; com as
representações centristas relativas ao Imperialismo (baseado na já superada
113
divisão econômica do globo em três mundos), e com as diferentes estratégias de
controle do neo-colonialismo. Cito, mais uma vez, o artigo “The end of
imagination”, em que essa atitude de ruptura está clara:
Índia e Paquistão têm bombas nucleares agora e se sentem totalmente no direito de tê-las. Logo outros terão também. Israel, Irã, Iraque, Arábia Saudita, Noruega, Nepal (Eu estou tentando ser eclética aqui), Dinamarca, Alemanha, Butão, México, Líbano, Sri Lanka, Burma, Bósnia, Cingapura, Coréa do Norte, Suécia, Coréa do Sul, Vietnã, Cuba, Afeganistão, Urzbequistão… e porque não? Todo país no mundo tem um motivo especial. Todos têm fronteiras e crenças.
E quando todos os nossos cilos forem estilhaçados por bombas brilhantes e nossas barrigas estiverem vazias nós poderemos negociar bombas por comida. E quando a tecnologia nuclear chegar ao mercado, quando ficar verdadeiramente competitiva e os preços caírem, não apenas governos, mas qualquer um que puder pagar por ela poderá ter seu próprio arsenal particular homens de negócios, terroristas, talvez até uma rica escritora de ocasião (como eu). Nosso planeta se cobrirá de lindos mísseis. Haverá uma nova ordem mundial. A ditadura da elite “pró-nuc”.
Mas vamos parar para dar crédito a quem o merece. A quem temos que agradecer por tudo isso? Ao homem que fez isso acontecer? O Mestre do Universo. Senhoras e senhores, os Estados Unidos da América! Subam aqui, amigos, fiquem de pé e recebam os aplausos. Obrigada por estarem fazendo isso com o mundo. Obrigada por fazerem a diferença. Obrigada por nos mostrarem o caminho. Obrigada por mudarem o real sentido da vida. Tudo o que posso dizer para todo homem, mulher e criança sensível na Índia, e além, um pouco adiante no Paquistão, é: tomem como pessoal. (5)
Essas manifestações políticas implicam o agir da multidão, conforme
concebem Hardt e Negri,
As forças criadoras da multidão (…) são capazes também de construir, independentemente, um Contra-império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais.
(…) Mediante tais esforços (…) a multidão terá de inventar novas formas democráticas e novos poderes constituintes. (6)
Um outro aspecto do investimento político da autora é a forma como a
questão do gênero é tratada. Os Estudos Culturais têm trazido grandes
5. O DEUS QUE CORRE PELAS ÁGUAS
Apesar de o enredo de DPC centrar-se nos gêmeos Rahel e Estaphen, a
história é, na verdade, a história de Ammu. O foco narrativo toma os olhos de
Rahel e, a partir dela, narra a tragédia que destrói a família e os separa. Mas, o
processo narrativo se dá igualmente de forma cindida, conquanto recortes
temporais sejam mesclados: a história da família de Ammu; Ammu ainda
solteira em Ayemenem; Ammu divorciada, tendo retornado a Ayemenem,
quando ocorre a tragédia; Ammu morta e os gêmeos separados; o retorno de
Rahel a Ayemenem para encontrar Estaphen des-devolvido.
Eis o começo que a obra fornece: “Que tudo começou quando as Leis do
Amor foram promulgadas. As leis que determinam quem deve ser amado, e
como. E quanto” (DPC, p. 43) Um casamento para fugir da família e do tédio de
uma cidade pequena levou Ammu a uma vida conjugal marcada pelo alcoolismo
do marido. Tentando garantir as aparências e o status que o casamento lhe
proporcionava, Ammu sustentou a relação e suportou até mesmo a sugestão do
marido para que ela se tornasse amante do gerente da plantação de chá em que
ele trabalhava isso somente para lhe garantir o emprego ameaçado pelo
alcoolismo. A separação aconteceu quando as agressões físicas chegaram aos
gêmeos. O retorno à casa paterna só trouxe a Ammu mais consciência do quão
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sozinha estava no mundo, e mais, o quanto ela e os dois filhos estavam à mercê
de uma estrutura social e familiar que reforçava a exclusão pelo desamor.
Baby Koshama é a personificação desse desamor que se reveste de inveja,
dissimulação, vingança e maldade. Ela é a personagem que mais se aproxima de
um antagonismo clássico já que, segundo suas próprias palavras, teria cabido a
ela o papel de mostrar a Ammu, Rahel e Estha os “seus devidos lugares” na
família. Dessa forma, Baby Koshama desmerece as crianças, enquanto frutos de
um casamento desfeito, e agride Ammu através dos gêmeos ou incitando o
personagem Chako (irmão de Ammu) contra ela.
A vinda de Sophie Mol e de sua mãe Margareth a Ayemenem é mais uma
oportunidade para achacar Ammu e seus filhos diante da “perfeição”
representada pela ex-mulher e filha ocidentais de Chako. Destaco a sutileza e a
perspicácia com que a autora explora esse conflito ocorrido no terreno feminino.
Chako não é discriminado pelo divórcio – e muito menos Sophie e Margareth –
por se tratar de um ramo masculino que, embora mal sucedido como seu pai e
outros homens de sua família, tem a primazia legitimada pelo social.
É neste momento tão delicado para toda família que o romance entre
Ammu e Velutha vem à tona. A reação é explosiva: trancam Ammu em seu
quarto para averiguarem a situação e tomarem providências em relação a
Velutha. É neste ponto que a personagem Baby Koshama assume um papel
fundamental na trama, como podemos verificar no trecho a seguir:
Por cima do alarido, Kochu Maria gritou a história de Vellya Paapen para Baby Koshamma. Baby Koshamma percebeu de imediato o imenso potencial da situação, mas imediatamente ungiu seus pensamentos com óleos untuosos. Ela desabrochou. Percebeu que era o Caminho de Deus para punir Ammu por seus pecados e ao mesmo
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tempo vingar-se da humilhação que ela (Baby Koshamma) tinha sofrido nas mãos de Velutha e dos homens da manifestação, os insultos de Modalali Mariakutty, o sacudir da bandeira à força. Ela desfraldou as velas imediatamente. Um navio de bondade singrando um mar de pecado. (...)
“Deve ser verdade”, disse baixo. “Ela é bem capaz disso. E ele também. Vellya Paapen não ia mentir sobre uma coisa dessas.”
Depois de uma repreensão de Ammu, os gêmeos resolvem fugir da casa –
uma atitude comum à infância – para uma ilha onde, numa casa abandonada,
Estaphen e Rahel construíram uma espécie de refúgio. Sophie Mol resolve
acompanhá-los. O que ninguém sabia é que esta não era capaz de nadar e,
quando o barco em que estão as três crianças vira, por conta da turbulência
gerada por uma tempestade, os gêmeos chegam até a outra margem, mas Sophie
desaparece. Tendo uma relativa consciência do que aconteceu, os sobreviventes
buscam abrigo na casa abandonada – “Coração das trevas” – enquanto a família
entra em desespero, acreditando estarem os três primos desaparecidos. Baby
Koshama vai até a polícia e insinua que Velutha havia tentado estuprar Ammu e,
por não conseguir, ele, talvez, tivesse raptado as crianças. A polícia, então,
amplia o incidente e, quando Velutha é encontrado com os gêmeos, dormindo no
“Coração das Trevas”, é espancado diante das crianças e já segue, praticamente
morto, para a delegacia. As crianças são levadas também, mas em vez de Ammu,
são recebidos por Baby Koshama
Baby Koshamma terá todo o processo na mão, uma vez que, trancada no
quarto, Ammu nada pode fazer para proteger seus filhos e defender a si e
Velutha. A relação dos dois é explorada por Baby Koshamma, que consegue,
assim, separar de uma vez Ammu de toda a sua família. Manipulando as
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crianças, especialmente Estaphen – que é o escolhido por ela para reconhecer
Velutha, totalmente desfigurado e jogado ao chão da delegacia , ela se vinga da
beleza de Ammu, do fato de ela ter tido os homens que quis, fazendo o menino
mentir para a polícia, garantindo a definitiva condenação de Velutha, que morre
na mesma noite em que Estha prestara o depoimento.
A morte de Velutha é impactante, sobretudo se analisarmos a busca das
crianças por uma figura paterna que os amasse. Senão, revejamos a reflexão
diante do Capitão Von Trapp quando os gêmeos assistiam ao filme A noviça
rebelde no cinema de Cochim:
E então, nas cabeças de certos gêmeos bivitelinos presentes na platéia do Cine Abhilash, surgiram algumas perguntas, que exigiam respostas, i.e.:
(a) Será que o Capitão Von Papo de Trapo sacudia a perna? Não sacudia.
(b)Será que o Capitão Von Papo de Trapo soprava bolhas de saliva? Será? Com toda a certeza não soprava.
Será que ele gorgolejava? Não.
Oh, capitão Von Trapp, capitão Von Trapp, será que poderia amar aquele menino com a laranja na platéia cheia de cheiros?
Ele tinha acabado de segurar na mão o sôo-soo do Homem do Refrescodelaranja Refrescodelimão, mas será que você ainda podia amá-lo?
E a irmã gêmea dele? Dobrada para cima com o chafariz preso por um Amor-em-Tóquio? Podia amá-la também?
O capitão Von Trapp também tinha algumas perguntas.
(a)São crianças brancas e limpas?
Não. (Mas Sophie Mol é.)
(b) Fazem bolhas de saliva?
Fazem. (Mas Sophie Mol não faz.)
135
(c)Sacodem as pernas? Como funcionários?
Sim. (Mas Sophie Mol não.)
Algum deles, ou ambos, já seguraram o sôo-soo de estranhos?
N... Nsim. (Mas Sophie Mol não.)
“Então desculpe”, disse o capitão Von Papo de Trapo. “Está fora de cogitação. Não posso amar esses dois. Não posso ser o Baba deles. Ah, não.”
O capitão Papo de Trapo não podia. (DPC, p. 114)
São cindidos, então, os gêmeos e todos os membros da família: Estha é
mandado para o pai e visto por todos – principalmente por Margareth – como o
“culpado” da morte de Sophie. Ammu é expulsa de casa e jamais consegue
reaver os filhos, pois mal conseguia sobreviver. E Rahel, sustentada por Chako,
cresce sem carinho e atenção. Depois da morte da mãe (aos 31 anos), Rahel
ainda adolescente, assume mais fortemente uma postura transgressora que a
levará a expulsões dos colégios em que estudou.
Os gêmeos se transformam em seres esvaziados no sentido do vazio que
um faz em relação ao outro. Como o narrador aponta no início da obra, eles
haviam nascido com uma única alma siamesa; e o vazio da alma estava no olhar
de um e no silêncio do outro. Ambos arrastaram pela vida as marcas da trágica
separação. Suas trajetórias são narradas de maneira breve e sucinta, como que
para justificar uma não-vida; um hiato entre a infância e o que estavam por
viver, 23 anos depois.
6. CONCLUSÃO
Como finalizar a análise de uma obra como O deus das pequenas coisas?
Definitivamente, essa parece ser uma tarefa quase impossível. Cada página, cada
parágrafo ou linha guarda em si uma inesgotável fonte de significados, onde
emoções e informações se intercambiam numa multiplicidade surpreendente. No
entanto, é preciso retomar os objetivos que o próprio livro forneceu como
guiança para as investigações a que me propus realizar quanto à literatura indiana
contemporânea.
A começar pelo título deste estudo, o silenciamento das margens foi e é
resultado de um conjunto de fatores de relevância histórica. Margens silenciosas,
porque silenciadas. Silenciamento este, característico das relações de poder
estipuladas pela civilização em si: domínio do mais forte, predomínio do social,
poder do macho. O princípio apolíneo civilizador (Marcuse), que subjulgou os
primeiros modelos de sociedade matriarcal, foi o mal necessário à configuração
do mundo como nos é hoje. A mesma virilidade, que libertou o homem da
ignorância, tornou-o escravo das aparências: cor, sexo, raça, altura, largura,
diâmetro, comprimento... Critérios de exclusão, definidores de fronteiras
interpessoais e territoriais.
Foi a crença nesses critérios que fortaleceu e sustentou os cânones
enquanto estruturas ideológicas de poder, além de reduzir a identidade, fosse ela
166
individual ou nacional, a modelos e convenções. Coube às diferentes fases da
Modernidade, aqui interpretada como um projeto burguês, a tarefa de disseminar
pelo globo esses ideais canônicos. Mas a Modernidade entrou em crise.
Deus está morto, Nietzche também, e eu não estou me sentindo muito
bem.(1) Essa fala de Jair Ferreira dos Santos traduz ironicamente o sentimento
atual de grande parte da humanidade: o mal-estar. Percepção de muitos
pensadores de nosso tempo – de Freud a Zygmunt Bauman – tal sensação parece
ser crônica na medida em que se trata do sintoma dos reais distúrbios que nos
vêm afligindo desde o momento em que a Modernidade entrou em crise. Estes
chamados “tempos de metamorfose” (Manuel Antonio de Castro), marcados
pela fragmentação e a relativização de paradigmas em todos os sistemas da
sociedade ocidental e de parte da oriental, denunciam a grave crise de
representação que se manifesta na esfera social, assim como no campo das artes.
Literariamente, podemos verificar tal processo nas contundentes vozes
que buscam reconhecimento. Mulheres, homossexuais, comunidades diaspóricas
e pensadores periféricos, entre outros, reivindicam identidade e reconhecimento
através da autoria. Acontece, assim, um movimento de revisão de posições
sociais através das obras literárias, especialmente no que diz respeito àqueles
contextos pós-coloniais.
A construção do eixo centro-periferia, é sabido, foi enfatizada nas
movimentações colonialistas, empreendidas por diferentes países a partir do
século XVII e ganhou força no século XIX, sendo ainda sustentada no período de
descolonização. Como sustenta Edward Said, entre outros, a relação entre centro
167
e periferia, dominador e dominado, nunca foi pacífica; houve constantes
movimentos de resistência, desde a Irlanda até a Índia. Isso, não impediu,
porém, que toda uma rede de signos fosse construída ao longo do período
colonial, garantindo um sistema de exclusão pela diferenciação que marcou tanto
Ocidente quanto Oriente. Nesse sentido, Edward Said afirma que durante o
Imperialismo – mais especificamente o britânico –
[...] todo o contato entre os europeus e seus “outros”, iniciado, sistematicamente, quinhentos anos atrás, a única idéia que quase não variou foi a de que existe um “nós” e um “eles”, cada qual muito bem definido, claro, intocavelmente auto-evidente. Como discuto em Orientalism, a divisão remonta à concepção grega sobre os bárbaros, mas, independentemente de quem tenha criado esse tipo de pensamento “identitário”, no século XIX ele havia se tornado a marca registrada das culturas imperialistas, e também daquelas que tentavam resistir à penetração européia. (2)
E foi justamente com o intuito de questionar tal pensamento identitário
que Said revisou o termo “orientalismo”. Para o autor, o orientalismo seria uma
representação baseada no olhar eurocêntrico que, por sua vez, estaria calcado na
compreensão monolítica do oriental e de sua cultura, além de criar toda uma
caracterização exótica. No entanto, as idéias de Said não se caracterizaram
apenas por uma correção terminológica; mais que isso, sua escrita representou a
transformação dos conceitos norteadores das pesquisas do Oriente Médio, da
Índia e do Paquistão, por exemplo. Como ele mesmo reitera em outra obra,
Cultura e Imperialismo, tal mudança não provocou, infelizmente, o fim das
representações imperialistas. Neste livro, aliás, ele mostrará como essas
representações continuam povoando o imaginário ocidental já que ainda
168
seríamos seres divididos em nações. E na medida em que há nações centrais e
periféricas, o eixo se sustenta, as representações são mantidas.
Compartilhando dessa visão, Linda Hutcheon, ao analisar a Pós-
Modernidade, aponta exatamente para o fato de este movimento não trazer a
periferia para o centro. O que existe é uma constante relativização do centro em
termos de cultura, economia, etc. O centro,como afirma a autora,
[...] pode não permanecer, mas ainda é uma atraente ficção de ordem e unidade que a arte e as teorias pós-modernas continuam a explorar e subverter. (...) O ex-cêntrico. O off-centro: inevitavelmente identificado com o centro ao qual aspira, mas que lhe é negado. Esse é o paradoxo do pós-moderno, e muitas vezes suas imagens são tão divergentes quanto o pode sugerir essa linguagem de descentralização.(3)
O que fica claro, portanto, é que a Pós-Modernidade propõe uma
oscilação de posições que reflete o grau em que a subjetividade deverá ser
considerada em relação à representação. Afinal, como nos apontam diversos
teóricos, o que se vive é uma grande crise de representação.
As discussões pós-coloniais enriqueceram ainda mais o questionamento
da relação centro e periferia. E um dos autores que propõe interessantes análises
da semiose do discurso colonial e pós-colonial é Homi Bhabha. Em Nation and
narration, ele, assim como Said, revê a questão da grandes narrativas que
serviram como discursos imperialistas. O ponto central abordado por Bhabha
nesta obra diz respeito à ambivalência presente no próprio conceito de nação,
algo que interferirá sobremaneira no momento de representar essa nação
historicamente e narrativamente. Aliás, Bhaba compreende nação e narrativa
como a mesma coisa já que as nações se manteriam como tal a partir de sua
169
representação narrativa. Nessa perspectiva, a nação teria como característica
representacional básica o fator tempo, dividido em duas esferas: o tempo da
tradição e o tempo presente. Assim, há uma grande problemática quando se
pensa numa literatura nacional, pois existiria uma dificuldade natural em
representar ambos os tempos. É o que o autor chama de “esquecendo para
lembrar”, conceito que ele assim explica:
As pessoas não são simplesmente eventos históricos ou partes de um corpo político patriótico. Elas são também uma complexa estratégia retórica de referencialidade social em que a reivindicação por representação provoca uma crise no processo de significação e endereçamento discursivo. Nós, então, temos um território cultural contestado onde as pessoas devem ser pensadas num duplo tempo; as pessoas são os “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, dando ao discurso uma autoridade que é baseada no pré-dito ou na história (ou fato) original constituída. As pessoas são também os “sujeitos” de um processo de significação que deve apagar qualquer original ou primeira presença de nação-pessoa para demonstrar os prodígios, princípios vivos das pessoas como aquele processo contínuo pelo qual a vida nacional é redimida e significativa como um processo repetitivo e reprodutivo. (4)
Vemos, assim, que Homi Bhabha não nutre sentimentos especificamente
nacionalistas. Muito ao contrário, sua visão é a de que se deve ter uma
compreensão sociológica de tudo aquilo que envolve a representação da nação,
da cultura local e dos indivíduos, tudo calcado na ambivalência do conceito de
nação. É esta ambivalência central em sua postura que servirá para a
denominação de “dissemiNation”, título do principal texto do livro em questão,
vista por Bhabha como uma leitura das margens da nação moderna.
Muito próximo a este pensamento é o de Gayatri C. Spivak. Ela também
tem a percepção de que há inúmeros fatores sociológicos a serem considerados
quando analisamos a autoria da representação e a representação em si. Por este
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RESUMO
A proposta deste trabalho é analisar a representação literária e social da mulher indiana na contemporariedade de seu país, considerando a luta que essas mulheres desempenham contra cânones milenares na busca pelo reconhecimento de sua cidadania. Um recorte foi feito a partir da autoria de Arundhati Roy, na obra O deus das pequenas coisas que a evidencia como uma autêntica autora híbrida. O pós-colonialismo indiano é tratado por ela numa dimensão humana, o que contribui para uma visão ampla dos processos de transculturação ocorridos bem como para a compreensão da Índia contemporânea.