-
3
Pr-Reitoria de Ps-Graduao e Pesquisa
Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Psicologia
A SOCIOEDUCAO NA PERCEPO DO AGENTE
SOCIOEDUCADOR: UM ESTUDO NO DISTRITO FEDERAL
Braslia - DF
2015
Autora: Mrcia Marques Vieira
Orientadora: Prof. Dr. Maria Aparecida Penso
-
MRCIA MARQUES VIEIRA
A SOCIOEDUCAO NA PERCEPO DO AGENTE SOCIOEDUCADOR: UM
ESTUDO NO DISTRITO FEDERAL
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao Stricto Sensu em Psicologia da
Universidade Catlica de Braslia, como
requisito para obteno do Ttulo de Mestre
em Psicologia.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Aparecida
Penso.
Braslia
2015
-
Projeto de qualificao de autoria de Mrcia Marques Vieira, intitulado A
SOCIOEDUCAO NA PERCEPO DO AGENTE SOCIOEDUCADOR: UM ESTUDO
NO DISTRITO FEDERAL, apresentado como requisito parcial para obteno do grau de
Mestre em Psicologia da Universidade Catlica de Braslia, em _____/_____/_____,
defendido e aprovado pela banca examinadora abaixo assinada:
_______________________________________________
Prof. Dr. Maria Aparecida Penso
Ps-Graduao Stricto Sensu em Psicologia UCB Orientadora
_______________________________________________
Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros
Ps-Graduao Stricto Sensu em Psicologia UCB Examinador Interno
_______________________________________________
Prof. Dr. Sandra Eni Pereira
Examinadora Externa
_______________________________________________
Prof. Dr. Cludia Fukuda
Ps-Graduao Stricto Sensu em Psicologia UCB Suplente
Braslia
2015
-
RESUMO
VIEIRA, Mrcia Marques. A socioeducao na percepo do agente socioeducador: um
estudo no Distrito Federal. 2015. 50 f. Projeto de Qualificao (Mestrado em Psicologia) Universidade Catlica de Braslia, Braslia, 2015.
Este estudo busca identificar a percepo que o socioeducador, na funo de
Atendente de Reintegrao Social ATRS tem sobre o sistema socioeducativo no que se refere ao funcionamento institucional, ao trabalho realizado nas unidades de internao do
Distrito Federal, s relaes cotidianas estabelecidas, bem como compreenso deste trabalho
junto aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internao. O
referencial terico a psicossociologia e a criminologia crtica. A metodologia utilizada a
qualitativa com a participao de seis profissionais que exercem a funo de ATRS no
sistema socioeducativo no Distrito Federal.
Palavras-chave: Socioeducao. Socioeducador. ATRS. Unidades de Internao.
-
ABSTRACT
VIEIRA, Mrcia Marques. The socioeducation in the perception of socioeducador agent: a
study in the Distrito Federal. 2015. 50 p. Qualification Project (Masters degree in psychology) Universidade Catlica de Braslia, Braslia, 2015.
This study seeks to identify the perception that the socioeducador in Attendant
function of Social Reintegration - ATRS has on the socio-educational system with respect to
institutional operation, to work at inpatient units of the Distrito Federal, established daily
relationships and the understanding of this work with teens in compliance with inpatient
measure. The theoretical framework is the social psychosociology and critical criminology .
The methodology is qualitative with the participation of six professionals engaged in the
ATRS function in socio-educational system in the Distrito Federal.
Keywords: Socioeducation . Socioeducador . ATRS . Inpatient Units.
-
Sumrio
1. INTRODUO .............................................................................................................................. 6
2. OBJETIVOS ................................................................................................................................. 11
2.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................................................. 11
2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS ..................................................................................................... 11
3. REFERENCIAL TERICO ............................................................................................................. 12
3.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: processos de poder, instituies, organizaes e os
atravessamentos nas relaes sociais ................................................................................................ 12
3.1.2 Instituies e organizaes: demarcaes teis ao estudo ...................................................... 16
3.1.3 Criminologia da Reao Social: um contraponto ao sistema penal tradicional ....................... 19
3.2 DA SITUAO IRREGULAR SOCIOEDUCAO: reminiscncias histricas sobre a
institucionalizao da infncia e juventude pobres no Brasil urbano ................................................ 21
4. CONTEXTUALIZAO DA SOCIOEDUCAO NO BRASIL COM DESTAQUE ............. 28
____PARA O DISTRITO FEDERAL .................................................................................................. 28
5. O SOCIOEDUCADOR E O UNIVERSO DE SEU TRABALHO: estudos relacionados ao
cotidiano profissional, s diretrizes institucionais e s contradies da prtica .................................... 32
6. MTODO ...................................................................................................................................... 36
6.1 CENRIO DA COLETA DE DADOS...................................................................................... 36
6.2 PARTICIPANTES ...................................................................................................................... 37
6.2.1 Critrios de Incluso................................................................................................................. 37
6.2.2 Critrios de Excluso ............................................................................................................... 37
6.3 INSTRUMENTOS ...................................................................................................................... 38
6.4 RECURSOS ................................................................................................................................ 38
6.5 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS ....................................................................... 38
6.6 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DOS DADOS ................................................................... 39
7. CRONOGRAMA .......................................................................................................................... 40
8. REFERNCIAS ............................................................................................................................ 41
9. ANEXOS ....................................................................................................................................... 45
9.1 ANEXO A ................................................................................................................................... 45
9.2 ANEXO B ................................................................................................................................... 47
-
6
1. INTRODUO
O projeto de pesquisa em epgrafe buscar investigar como o socioeducador, na
funo de Atendente de Reintegrao Social ATRS-, percebe o sistema, a instituio
socioeducativa e o seu trabalho no contexto de execuo de medida de internao no Distrito
Federal. Este profissional corresponde ao cargo existente na estrutura funcional da
administrao pblica responsvel pela execuo das medidas socioeducativas no DF,
atualmente a Secretaria da Criana e que em outros lugares do pas, estados e municpios,
identificado como agente, agente de apoio tcnico, monitor, educador, socioeducador.
O estudo proposto visar registrar a percepo destes profissionais, nas dimenses
institucional e laboral. A primeira no que refere configurao atual do sistema
socioeducativo do Distrito Federal considerando as diretrizes, as legislaes e as tendncias
organizacionais que amparam o trabalho. A segunda, simultaneamente, investigar a dinmica
de funcionamento e as relaes de trabalho estabelecidas, contemplando indagaes acerca da
compreenso do papel de ATRS, a preparao para exerc-lo, o significado social que
atribuem profisso, bem como o entrelaamento destes aspectos no cotidiano com os
adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internao.
Meu interesse por este objeto de estudo decorre da minha trajetria profissional que
por vinte anos lidei com processos de trabalho em gesto de recursos humanos, nos
segmentos de indstria e de servios, analisando estruturas de cargos, mensurando valores
relativos destas, trabalhando para atender aos objetivos e interesses corporativos.
A partir de 2012, passei a atuar na gesto de polticas pblicas no Ministrio da
Educao, em programas de educao integral e de promoo da sade, preveno de doenas
e agravos voltados para crianas e adolescentes das escolas pblicas brasileiras. Estas
polticas trazem como diretrizes a promoo dos direitos humanos e tais vivncias
possibilitaram desdobramentos e o meu posterior egresso no sistema socioeducativo do
Distrito Federal, no ano de 2013, assumindo o trabalho de gerenciamento de unidades de
atendimento a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa restritiva de liberdade.
Este trabalho provocou inquietudes ao constatar que os processos de trabalho realizados
nestas unidades ainda esto em construo de princpios bsicos, que necessitam ser
integrados e pensados de forma interdisciplinar e intersetorial a fim de aumentarem as
chances de sucesso na incluso de adolescentes em situao de risco pessoal e social.
-
7
A configurao atual do sistema socioeducativo que normatiza a execuo de medidas,
delimita parmetros de gesto e de atuao profissional resultado de um percurso jurdico-
legal e social que demarca o posicionamento do Brasil no trato com a questo da
responsabilizao penal juvenil conforme preconizado pelo Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo SINASE (BRASIL, 2006).
O SINASE, institudo em 2006, regulamentado pela Lei 12.594, (BRASIL, 2012)
constitui um aparato legal que normatiza a execuo das medidas socioeducativas aplicadas
ao adolescente a quem atribudo o ato infracional, sendo institudo como um desdobramento
das disposies do Estatuto da Criana e do Adolescente ECA (BRASIL, 1990). Tal
normatizao configura a organizao e o funcionamento das unidades socioeducativas onde
se d o cumprimento das medidas, orienta as competncias, planos e programas de
atendimento, comporta nas disposies gerais, a estrutura de recursos humanos e sinaliza, em
nvel macro, as atribuies das equipes responsveis pelo trabalho com os adolescentes.
Ao instituir o ECA, em 1990, o pas regulamenta o texto constitucional, do artigo 227
que j estabeleceu a Doutrina da Proteo Integral dos Direitos da Criana e do Adolescente
inaugurando um novo paradigma legal acerca da matria. O conjunto de fundamentos e
princpios concebidos pela Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas -ONU- em
1989 e promulgado pelo Brasil em 1990, acompanha e endossa outras iniciativas de igual
teor tais como: regras mnimas para a administrao da justia da infncia e da juventude,
Beijing maio de 1984, diretrizes para a preveno da delinquncia juvenil, Riad dezembro
de 1990, regras mnimas para elaborao de medidas no privativas de liberdade, Tquio
resoluo n 45/110 de 14/12/1990 e ainda outra resoluo para a proteo de jovens
privados de liberdade, resoluo 45/113 de abril de 1991, todas essas designadas pela ONU
entre 1984 e 1991, formando a Doutrina supracitada (SARAIVA, 2010).
Portanto, conforme aponta Saraiva, (2012) o estatuto traz para os campos social e
jurdico os termos criana e adolescente inaugurando outro referencial destes sujeitos como
titulares de direitos e de algumas obrigaes, reconhecidamente como pessoas em
desenvolvimento. A Doutrina de Proteo Integral carrega no seu bojo conceitos, mtodos e
normas que evocam os direitos fundamentais, os direitos humanos associados ao pblico que
dela objeto: crianas e adolescentes. Com o pressuposto de que a finalidade do Estado seja
resguardar a dignidade humana, o ECA se funda a partir de trs pilares do Sistema de
Garantia de Direitos: preveno primria que diz do acesso s polticas pblicas de base,
dentre elas, sade, educao e assistncia social; preveno secundria dispondo das medidas
protetivas, quando a criana ou o adolescente so vitimados, estando em situao de violao
-
8
de direitos; e preveno terciria, associada s medidas socioeducativas, quando o adolescente
o vitimador, acompanhadas do devido processo legal, regulamentada pelo SINASE
(SARAIVA, 2012).
As instituies socioeducativas tm sido objeto de interesse de estudos por parte de
pesquisadores que ora investigam os aspectos institucionais a partir da execuo de medidas
(COSTA; SOUZA, 2012), ora, questes relacionadas aos adolescentes e suas famlias
(PENSO; SUDBRACK, 2004), ora, as prticas pedaggicas nas unidades de internao
(MONTE; SAMPAIO, 2012). H tambm o estudo relacionado avaliao de indicadores da
formao dos operadores do SINASE no DF (SOUZA, 2012), dentre outras iniciativas que
indagam, descrevem, buscam dados e informaes juntos aos atores, analisam e interpretam
luz dos referenciais escolhidos para apoiar o desenvolvimento dos trabalhos.
Nestes contextos so identificadas relaes de poder que atravessam todas outras em
que se verifica o investimento em cumprir o que preconizam o ECA e o SINASE, no entanto,
os estudos apontam, respectivamente, para as contradies entre os propsitos e a efetivao
desses, os processos privilegiam a segurana em detrimento da ao educativa (COSTA;
SOUZA, 2012), dissociam os adolescentes de suas famlias (PENSO, SUDBRACK, 2004) e
constata que as relaes entre socioeducadores e adolescentes so coercitivas, punitivas e
autoritrias (MONTE; SAMPAIO, 2012), assim como a participao na formao profissional
de metodologia ativa, por meio de dramatizao de situaes-problema enfrenta resistncia
por parte de alguns socioeducadores (SOUZA, 2012), pois demandam cursos de defesa
pessoal.
O sistema socioeducativo considera todos profissionais que lidam com adolescentes
em cumprimento de medida, inclusive os ATRS, como educadores sociais, podendo ocupar a
posio de assistente social, enfermeiro, pedagogo, professor, psiclogo, gestor do sistema,
cabendo a todos a misso de atuar sob os princpios estabelecidos pelo SINASE (BRASIL,
2006).
Os profissionais encarregados do trabalho declarado pelo SINASE atuam em situaes
diferenciadas de acordo com a natureza das medidas socioeducativas. As no privativas de
liberdade, caracterizadas por advertncia, reparao de dano, prestao de servios
comunidade e liberdade assistida; e tambm aquelas restritivas e privativas de liberdade, que
so o arranjo da submisso do adolescente sentenciado em situao de semiliberdade ou
internao provisria, internao condicionadas gravidade do ato, avaliada pelo juiz que o
sentencia (SARAIVA, 2010).
-
9
Qualquer que seja a medida imposta papel do profissional trabalhar a fim de
promover a reintegrao social do adolescente conduzindo-o ao reconhecimento do ato
cometido a ser reparado, acompanhada da garantia de seus direitos individuais e sociais
(BRASIL, 2006).
Na experincia vivenciada no Distrito Federal em ambiente socioeducativo de
internao o ATRS o profissional de maior nmero na estrutura funcional, trabalha em
regime de escala por tempo integral, mantm permanente contato com o adolescente em
cumprimento desta medida, acompanhando-o em seus movimentos e demandas dentro e fora
da unidade nos horrios de refeio, de escola, visitas, banho de sol, atendimento de sade
seja na enfermaria da unidade ou fora dela, audincias dentre outras atividades.
Na perspectiva das aes educativas junto ao adolescente sentenciado por ato
infracional, Costa (1991) aponta como imprescindvel o reconhecimento, por parte do
educador, de que o ofcio de lidar com este jovem, requer uma presena solidria e
construtiva, alm de preparo tcnico e emocional para atuar nas situaes mais diversas que o
cotidiano impe. Ainda segundo Costa (1991) este profissional que lida permanentemente
com o adolescente em situao social e pessoal difcil ocupa um lugar de enorme desafio,
visto que este guarda atribuies contraditrias em si mesmas, algumas, de cunho
pedaggico-educativo e outras de segurana e vigilncia.
A moderna legislao brasileira que normatiza a execuo de medidas socioeducativas
em nvel nacional prope o atendimento ao adolescente em cumprimento de medida como
uma prtica formadora e integradora. esperado do educador, no desempenho de suas
funes, o reconhecimento dos direitos humanos como a base para as relaes sociais e este
fundamento deve orientar as aes para alm de um parmetro jurdico. Deve compreender
as atitudes do adolescente no contexto histrico e comunitrio situando o ato infracional
cometido em meio vulnerabilidade originada na estrutura social (BRASIL, 2014).
no contexto histrico de recentes mudanas conceituais e de gesto do Estado
brasileiro que o sistema socioeducativo vem se organizando e trabalhando no sentido de
buscar garantir os direitos fundamentais dos adolescentes que se encontram em situao de
vulnerabilidade social. Compreender a percepo dos ATRS sobre o sistema socioeducativo
no Distrito Federal, o seu trabalho nas unidades de internao com os adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa pode possibilitar apontar os avanos bem como
eventuais ajustes desta poltica pblica implantada em toda abrangncia do territrio distrital.
Dar a voz a estes atores tem o propsito de conhecer o seu universo, suas opinies,
percepes, dificuldades e ainda construir reflexes e sentidos acerca do sistema.
-
10
A fundamentao terica deste estudo se pautar pelos pressupostos da
psicossociologia que orienta suas pesquisas e prticas sociais nos campos das relaes
institucionais, dos grupos de trabalhos, das relaes de poder, dos desconhecimentos que
permeiam o universo social e psquico (ENRIQUEZ, 2001). De acordo com Barus-Michel
(2004) os grupos de trabalho so organizados em torno de um projeto a ser realizado com
base em diretrizes que os vinculam a valores, regras, meios de funcionamento que conjugados
formam uma estrutura designada instituio. Um ordenamento de prticas e atividades norteia
os grupos movidos por princpios e por eixos da ao coletiva, sendo o que determina os
parmetros macro de instituio, condicionantes para se compreender o grupo. A instituio
caracteriza o grupo na sua experincia e histria operando com ou sem o conhecimento de
seus membros por meio de intermedirios que negam os objetivos institucionais iniciais para
seguir outros, descolados do momento de fundao (HESS, 2005).
Outra abordagem a apoiar a construo deste trabalho a criminologia crtica, de
inspirao materialista-histrica desenvolvida dentre outros, por Barata (2011) e
contextualizada por Batista (1998) que propem considerar os aspectos econmicos e
polticos dos comportamentos socialmente negativos opondo-se criminologia positivista, de
posicionamento liberal que traz uma explicao patolgica da criminalidade e do criminoso
como diferente, partindo de um parmetro biopsicolgico para explicar os comportamentos
desviantes dando relevo criminalidade como um dado ontolgico pr-constitudo reao
social e ao direito penal (BARATA, 2011).
-
11
2. OBJETIVOS
2.1 OBJETIVO GERAL
Identificar como os Atendentes de Reintegrao Social ATRS - percebem o sistema
e a instituio socioeducativa, bem como seu trabalho no contexto de medida socioeducativa
nas unidades de internao do Distrito Federal.
2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS
a) Conhecer como os ATRS percebem o funcionamento do sistema socioeducativo atual
no Distrito Federal;
b) Verificar a compreenso que o ATRS tem do funcionamento da unidade
socioeducativa em que trabalha;
c) Identificar como o ATRS compreende o seu trabalho com adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa de internao;
d) Verificar como ocorrem as relaes entre os ATRS e desses com os demais
profissionais do sistema socioeducativo (especialistas, administrativos, gestores).
-
12
3. REFERENCIAL TERICO
Visando contemplar os objetivos propostos neste estudo, sero considerados alguns
conceitos que se relacionem diretamente com o objeto escolhido, a exemplo das relaes de
poder, dos aspectos institucionais envolvendo os profissionais, alm das questes da
criminologia, sua relao com a percepo que os ATRS tm da responsabilidade penal
juvenil e os desdobramentos a partir da execuo de medida socioeducativa de internao.
3.1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS: processos de poder, instituies, organizaes e os
atravessamentos nas relaes sociais
A discusso conceitual sobre as relaes de poder, as instituies e prticas advindas
da dinmica do funcionamento dessas instncias se pautar nas contribuies de Foucault e de
psicossocilogos entre os quais: Amado, Barus-Michel, Enriquez, Hess, Lvy, assim sendo,
os elementos estruturais do estudo sero trazidos ora a partir de um vis histrico e filosfico,
ora pelas pesquisas e prticas sociais investigadas nos campos das relaes institucionais.
3.1.1 Relaes de poder e contextos socioeducativos
O pensamento de Foucault corresponde ao contexto proposto nesta pesquisa uma vez
que ao longo de sua obra props a reflexo acerca das instituies e sobretudo, de suas
prticas quando aponta os mecanismos disciplinares de controle, ressaltando as tecnologias e
as relaes de poder para alm das estruturas do Estado bem como dos muros institucionais.
Ao elucidar as proposies foucaultianas Lemos, Cardoso Junior e Alvarez (2013)
discorrem sobre a sociedade disciplinar marca presente tanto nas instituies fechadas no
exerccio funcional de barrar as comunicaes e o mal praticado, quanto outro plo, o
panoptismo, um dispositivo que estabelece coeres sutis, de governo do corpo social, de
sujeio de pessoas que tornam o exerccio do poder mais eficaz e rpido. Para Foucault o
panoptismo mais que uma arquitetura inovadora tornando-se uma cartografia da
modernidade. Neste sentido a disciplina configura-se como uma tecnologia que exerce a
modulao de mltiplos corpos e como uma relao de poder atualizvel de acordo com os
espaos (prises, escolas, hospitais, quarteis) sendo de longo alcance e de poder propagado
-
13
(LEMOS; CARDOSO JNIOR; ALVAREZ, 2013) elucidando Foucault na sua obra de
Vigiar e Punir, (2009).
Outro aspecto aqui considerado a contestao de Foucault acerca das relaes de
poder como privilgio central do Estado, enquanto entidade nica ou uma alma absoluta. A
modulao dos corpos se efetiva nos nveis micro e macro para alm das aes estatais, posto
que existem variadas formas de modelagem imbricadas, no sintetizadas. A direo das
condutas e o controle dos corpos so exercidos por diversas figuras de autoridade ora
professor, ora o chefe, pais, irmo mais velho, o terapeuta no estando restrita a instituio ou
organizao nicas, ilustrando as relaes de poder na sua mobilidade em detrimento de uma
rigidez (FOUCAULT, 2009).
Nas suas anlises gerais e parciais acerca da natureza do poder Enriquez, (2007)
afirma a existncia de uma estrutura de poder aplicvel s diferentes reas das relaes
sociais, alm do que ele se revela como a base essencial da vida em sociedade. Para o autor
um conceito complexo carregado de representaes contraditrias, prprias das mltiplas
realidades humanas, sendo impossvel sua apreenso total o que exige abord-lo de diversos
modos. Os grupos sociais so atravessados por relaes de poder acompanhadas de conflitos
de foras e, pretender um entendimento coletivo sobre o poder exigiria um investimento
intenso na comunicao sobre as relaes dos sujeitos entre si e entre os grupos, o que faz
com que o debate sobre este tema nos ambientes sociais seja superficial, levemente tocado.
O autor prossegue dizendo do empenho contemporneo em elucidar esse conceito,
simplificando-o, retirando o seu carter emocional e conflituoso, colocando-o como elemento
comum das cincias sociais, destitudo do real lugar que ocupa nas sociedades. Essa inteno
reduziria a complexidade do termo ao mesmo tempo em que faria da realidade uma sucesso
de acontecimentos previsveis e de relacionamentos estveis, permanecendo latentes os
contedos da comunicao, sem palavras nem manifestos. Ao equiparar o sentido do poder a
outras palavras como autoridade, comando, influncia ou mistur-los como similares, faz
ampliar o equvoco, sugerindo ser possvel o domnio do processo do poder e mais, uma
interveno bem sucedida sobre as suas tcnicas (ENRIQUEZ, 2007).
O poder se faz acompanhar por um trao inerente: o consentimento. O consentimento
por adeso, de reconhecimento da lei, com a anuncia do sujeito em renunciar aos prprios
desejos para fazer parte da civilizao e isso implica na relao ambgua em relao ao poder:
ora pleiteado, ora temido. A interdio da lei no se d sem conflitos, alis, deixa resqucios
no psiquismo, tanto que seu oposto, a transgresso, permanece sublimada, recalcada ou
sintomtica, conforme alude o autor, o poder suplica por ser transgredido, um indicativo de
-
14
que no h estabilidade, tampouco previsibilidade no campo das relaes sociais
(ENRIQUEZ, 2007).
O poder demarca relacionamentos entre as pessoas no nvel informal e nas relaes
sociais no mbito formal trazendo consigo toda carga de ambivalncias, sendo ao mesmo
tempo cobiado, sofrido e compreendido como repressor e libertador. Ele se configura em
estado latente de interveno de uns sujeitos sobre outros sendo produto do jogo de
interaes, do jogo de foras, sempre instvel, passvel de ser deposto e vencido. Tal
instabilidade do poder se mostra pela insubmisso potencial de alguns combatida pelos
detentores que recorrem aos meios da persuaso, da seduo, da legislao, do hbito, da
fora, de toda sorte de manipulaes institucionalizadas aplicando aos que so o objeto deste,
os meios a que devem submeter-se voluntariamente ou contra a vontade (BARUS-MICHEL;
ENRIQUEZ, 2005).
Para que seja mantido, continuam os autores, Barus-Michel e Enriquez, (2005) o poder
h de permanentemente ser conquistado, reiterado dada a sua caracterstica de instabilidade.
Deter o poder equivale a obter privilgios, vantagens materiais e psicolgicas que
transcendem necessidade vital e mant-lo, utilizando dos meios, inerente a quem no abre
mo de conserv-lo, atribuindo-se uma fora do carter, um dom exclusivo ou at mesmo um
atributo extra-humano.
As aes coletivas demandam o poder, pois ao organiz-las e execut-las so
estabelecidas prioridades mediante uma diviso do trabalho, com a distribuio de atribuies
hierarquizadas, das mais s menos importantes, interdependentes e subordinadas gerando de
relaes de poder. Situando o poder na realidade imediata dos sujeitos os autores Barus-
Michel e Enriquez, (2005) apontam as instituies e as organizaes como os lugares
privilegiados para o seu exerccio, afinal para iniciarem seus propsitos e permanecerem,
ainda que falsificados posteriormente, faz-se necessrio integrar seus membros e para tanto h
de ter uma voz de ordem, mesmo que arbitrria, que legitime e autorize o funcionamento e a
dinmica de trabalho.
Os efeitos das relaes de poder revelam as dimenses psicolgica e imaginria por se
inscrever no psiquismo desde o nascimento e se pautar na fora de um pedido, de uma crena
endereada aos que a elas devem se submeter, reclamam a confiana e este apelo manifesto
no discurso. Este sim o recurso mais importante do poder, pois fixa um sentido no
ordenamento, na tomada de decises e na criao de expectativas por momentos melhores e
tambm, com menos xito, pode este discurso, provocar angstia, ser ameaador e fazer
parecer que o nico dispositivo. O controle do poder status difcil de se manter afinal os
-
15
submetidos podem ser levados por outros discursos que tenham outras promessas de outros
melhores dias (BARUS-MICHEL; ENRIQUEZ, 2005).
No nvel macro de investigao, este estudo parte do princpio que toda instituio
expresso invisvel da organizao, a exemplo da judiciria que se materializa nas sanes
aplicadas, nas prises e no contexto que aqui interessa, nas unidades de execuo das medidas
socioeducativas. A instituio se funda em doutrinas que consagram o lugar de saber no
contestado, tem fora de lei e delineia as regras da vida e os comportamentos dos sujeitos. Ela
se mostra a partir de uma pessoa central seja por meio do juiz, do promotor, do professor, do
diretor, do mdico, do cacique, a questo do poder sempre est posta na tela (BARUS-
MICHEL; ENRIQUEZ, 2005).
As instituies comportam estruturas hierrquicas com diviso de trabalho e
estabelecimento das relaes de poder, peculiaridades da vida coletiva, em que so expressas
variveis como autoridade, dominao, influncia e seus opostos: subordinao, submisso,
obedincia indo mais alm, a rebelio e a resistncia (BARUS-MICHEL, 2004).
A construo de um mundo, a realizao de um trabalho so as finalidades do poder
que se legitima sob o foco dos propsitos institucionais e, se deve ser atendido pelas pessoas
a ele submetido, em funo dos resultados buscados, mesmo que tericos. No entanto, os
autores Barus-Michel e Enriquez, (2005) desdobram o poder na sua faceta mortfera qual
est associado, pois comumente disfara sua opresso, represso e violncia submetendo
indivduos a atrocidades do genocdio, etnocdio, escravatura, maus-tratos. Nas situaes
cotidianas os indivduos submetidos so explorados, exigidos como mquinas,
impossibilitados de serem sujeitos e proprietrios do prprio destino, esvaziados em uma
existncia sem sentido, apenas desbotada e repetitiva.
Os detentores do poder o exercem por meio do domnio e controle das pessoas que
executam as ordens, sendo marcada uma separao instituda entre esses e aquelas. O portador
do poder busca impedir as subverses contra a ordem estabelecida e os submetidos muitas
vezes, para serem reconhecidos na sua alteridade, lutam, contestam contra este, a fim de fazer
valer seus anseios e desejos. O poder submete pelo controle da palavra de quem fala sobre
quem ouve e quando a palavra falha no se hesita em exercer represso por meio da fora. Ele
aprecia a uniformidade e a repetio mesmo que isso conduza a resultados absurdos, pois tem
proximidade com a grandiosidade ou mesmo com a perverso, que coloca os seres como
objeto. sempre manifesto de onipotncia que dribla o sentimento de impotncia
reafirmando-se mais e mais, desejando ser nico, pleno e dominante, ainda que sobre a
negao do outro (BARUS-MICHEL; ENRIQUEZ, 2005).
-
16
No ambiente socioeducativo de internao de adolescentes o poder se manifesta em
todos os nveis relacionais atravessando o cotidiano dos profissionais. As formas como o
poder se instaura neste contexto podero ser identificadas e contextualizadas na medida em
que forem ouvidas as pessoas e construdos os sentidos dos discursos a serem captados ao
longo do processo de pesquisa.
3.1.2 Instituies e organizaes: demarcaes teis ao estudo
A psicossociologia concebe o seu campo de atuao na apreenso do complexo
emaranhado do psiquismo com a vida social por meio de pesquisas e intervenes pautadas na
democracia e na emancipao de sujeitos (AMADO, 2005) sendo considerada adequada para
dialogar com o contexto que ser abordado neste estudo. Nesta perspectiva a psicossociologia
considera as instituies como estruturas que definem e subordinam as relaes sociais
codificando-as em contratos, regras e prticas fazendo com que sejam reconhecidas por todos
(BARUS-MICHEL, 2004). A psicossociologia prope considerar a dialtica entre institudo-
instituinte, como permanente embate entre o que existe e busca manter com o que subverte e
fora mudanas.
O termo instituio tem sentidos variados e se aplica em realidades distintas, o que
exige demarcar as concepes que sero descritas nesta pesquisa. Uma contempla o institudo
e outra o instituinte. A primeira ideia remete forma social estabelecida, a segunda aos
processos em que a sociedade se organiza. O autor discorre sobre estas representaes
situando que no mundo moderno, desde que so tratadas as questes relacionadas s
instituies so seguidos dois grandes campos de conhecimento, o sociolgico e o jurdico.
Para o autor as instituies so entendidas como fenmenos sociais, impessoais e coletivos
que se caracterizam pela perenidade e continuidade, alm de serem um ordenamento que
supera o indivduo e os grupos garantindo uma unidade social. Assim sendo abrangem regras,
valores, normas de conduta servindo aos processos de aprendizagem e de socializao dos
grupos organizados. O institudo social se firma nos contextos de natureza corporativa e
consequentemente, personalizados, enquanto ente vivo (HESS, 2005).
O surgimento de uma instituio, continua o autor, pressupe que h um trabalho a ser
realizado, nesse sentido o instituinte delimitado como o que vem instaurar as diretrizes
concebidas na fundao. Em contrapartida o institudo falsifica o princpio primeiro criador da
instituio, pois dos atores sociais escapa o esprito que fundamenta a instituio, negando
seus objetivos iniciais, seguindo objetivos prprios. Hess (2005) delimita neste contexto o
-
17
princpio de falsificao, com a confluncia do pensamento de outros psicossocilogos,
considerando qualquer ideia, previso ou inveno que ao configurar-se como forma social,
institucionalizando-se, est condenada a perder seus ideais iniciais, a perder o seu sentido.
Na busca de realizar um trabalho promovendo impactos, presume-se a existncia de
parmetros fixos, prprios das instituies que renem regras, valores, direitos e deveres
estabelecidos a todos permitindo o intercmbio e ajustes de concesses. Elas tm sustentaes
de realidades transcendentes, intangveis e invisveis como a lei, a justia, o poder, o saber,
vinculadas a representaes materiais e simblicas, a exemplo dos tribunais, dos edifcios
sede, dos brases como as bandeiras, os dias de celebrao que marcam a revivescncia de
fatos histricos e inaugurais que ocupam o imaginrio social. As instituies se elevam aos
indivduos sendo representadas por personagens: juzes, clrigos, catedrticos,
superintendentes; a estes conferido um estatuto distinto, maior que a pessoa que ocupa o
lugar designado (LVY 2001).
Lvy (2001) diferencia as instituies das organizaes nomeando essas ltimas
estruturas destinadas a transformaes e mudanas decorrentes de contextos ora coletivos, ora
individuais. Podem ser compreendidas como um sistema social e cultural que se firma em
torno de um projeto de ao reunindo pessoas e grupos em um ambiente relacional e de
trabalho. A rigor, toda organizao traz em si um componente institucional, um amlgama
genuno e invisvel que liga as pessoas, sobretudo quando se trata de estruturas vinculadas
existncia primordial da sociedade, s questes de vida e morte, que se interagem com o
imaginrio coletivo, dentre as quais: fora da lei (tribunais), segurana pblica (polcia),
educao (escola), sade (hospital), orientao religiosa (igrejas e congregaes), famlia
(casamento, relaes conjugais) todas so hierarquizadas e normativas.
Confundir instituio com organizao, por vezes, ato ideolgico intencional, pois
forar sujeitos a uma identificao compacta em relao organizao pode faz-los aderir s
regras e normas estabelecidas sem que percebam ou mesmo contestem, afinal questionar ou
protestar contra a organizao percebido como um risco tanto para quem o faz quanto para a
organizao que possa vir a ser alvo de crticas. Estes dois conceitos, instituio e organizao
so facilmente confundveis dada a superao ideolgica exigida por corresponderem a
realidades distintas, mas complementares (LVY, 2001).
A percepo do ATRS sobre a instituio socioeducativa ser o objeto de investigao
nesta pesquisa alm de registrar como nomeiam o institudo e o instituinte, ou seja, a
formalidade do projeto de reinsero de adolescentes em situao de vulnerabilidade social e
-
18
as reais oportunidades para efetivar o projetado, considerando os processos de trabalho
inerentes funo.
Tangencialmente, outras contribuies tericas que remetem s instituies
semelhantes s unidades de internao de adolescentes, tais como abrigos, orfanatos,
penitencirias, prises, sero consideradas neste estudo. Goffman (2007) aborda esses
estabelecimentos como instituies totais, onde a vida do sujeito internado fica restrita ao
lugar, o que impacta na ruptura com o mundo externo. O indivduo passa por um processo de
aculturamento, no qual toda concepo de si mesmo e de sua cultura modificado em um
processo de mortificao. Segundo o autor, aps o sujeito passar certo tempo em uma dessas
instituies, quando tenta voltar ao mundo e se reinserir, perceber que teve perdas quase
irrecuperveis e ter dificuldade de se adentrar novamente na sociedade (GOFFMAN, 2007).
Os tempos modernos, lentamente, rompem com a prtica dos suplcios dos corpos,
comum desde a Idade Mdia, aplicados pelos carrascos aos condenados que, indiretamente,
em crimes e delitos, ofendiam o monarca e por isso eram punidos. Longos foram os tempos
entre os espetculos pblicos de execuo das penas at a formalizao das prises nos
moldes conhecidos atualmente (FOUCAULT, 2009).
O autor considera estes ambientes como locais de execuo judicial de indivduos
sentenciados e simultaneamente, como espao de observao onde se exerce poder e se
produz saber. Ele critica a eficcia do encarceramento de pessoas e aponta motivos para o seu
fracasso, pois a privao de liberdade, no seu propsito ideolgico de reduzir crimes,
contribui para a produo da delinquncia especificada como poltica e economicamente
menos perigosa e at mesmo como um tipo de desvio utilizvel. A priso cria o delinquente
centralmente controlado, marginalizado e patologizado. A criminalidade condenada pelo
sistema penal, cumprida em ambientes prisionais, representa o desvio de ilegalidade para
conexes de lucro e de poderes ilcitos praticados em nome de outros interesses
(FOUCAULT, 2009).
A privao da liberdade na configurao de prises, cadeias, unidades de internao
foi sendo estruturada sobre o discurso de humanizar as punies, alm de punir melhor, sendo
tais locais considerados equipamentos sociais privilegiados para a transformao de
indivduos. Foucault (2009) aponta que essa retrica inicial foi desdobrada na sistematizao
social e institucional do poder de punir onde os internos so colocados para cumprirem pena
por atos julgados e para serem observados.
Por sua vez, Goffman, estudioso das situaes cotidianas, dos problemas
intercomunitrios considerava a vida social transpassada de cenas e de interaes, essas
-
19
ltimas, consistindo na influncia recproca dos sujeitos em relao as suas aes mediante a
presena fsica. As instituies denominadas por ele como totais trazem caractersticas de
serem mais fechadas do que outras, alm do que representam simbolicamente uma barra de
relao com o mundo externo. Elas cumprem um papel de proteo da sociedade contra atos
desviantes deliberados, no entanto, a qualidade de vida das pessoas que permanecem em
situao de confinamento no objeto de preocupao por parte de quem as designa a estar l
(GOFFMAN, 2007).
A vida cotidiana comum e a dos locais de pessoas confinadas se distinguem sob
muitos aspectos a comear que nestes ltimos, as atividades corriqueiras so realizadas no
mesmo ambiente, coordenadas pelas mesmas figuras de autoridade, com as mesmas pessoas,
obrigadas a fazer as mesmas coisas, em rgidos horrios e regras, voltadas a atender aos
objetivos do local. Esse pragmatismo de rotina imposta cria duas categorias de grupos: os
controlados e os controladores, respectivamente, os internados e os funcionrios dos
estabelecimentos, onde cada qual concebe o outro sob esteretipos e conceitos prprios
(GOFFMAN, 2007). As concepes formadas pelas pessoas que vivem temporariamente ou
trabalham permanentemente nestes ambientes austeros so alvo de conflitos e em alguns
casos de permanente tenso, a exemplo do que narraram os monitores das unidades de
internao do estado de So Paulo (TAVARES, 2008).
A configurao atual do sistema socioeducativo no Distrito Federal deve propiciar
uma concepo dos socioeducadores ATRS acerca dos adolescentes que so acompanhados
cotidianamente nas unidades de internao. Compreender a interao desses atores no
ambiente de restrio de liberdade buscar afirmar se h uma tendncia de integrao social
conforme preconizado no SINASE ou se a formulao inicial vem sofrendo desvios
ideolgicos, de prticas coercitivas e punitivas ou ainda se vem produzindo outros caminhos
ainda no nomeados.
3.1.3 Criminologia da Reao Social: um contraponto ao sistema penal tradicional
A criminologia no sculo XX tem grandes recortes epistemolgicos conforme aponta
Batista (1998) ao citar Lola Aniyar de Castro, criminloga e militante pelos direitos humanos
na Venezuela. A criminologia sociolgica estadunidense da Escola de Chicago, vinculada
prtica penal tradicional, se organizou com estudos e experincias, ancorada no mote da
formao de quadros na luta contra o crime, a partir do incremento da delinquncia juvenil,
-
20
resultante da industrializao e da formao de reas suburbanas. A ruptura com esta escola
adveio nos anos quarenta, ratificada nos anos setenta, quando, pela ao de tericos e ativistas
interacionistas, criticada a atuao do controle social das sociedades. Essa iniciativa de
crtica criminologia tradicional se expande para a Europa, nos pases baixos e Inglaterra, por
meio de grupos politizados, que propuseram a redefinio do objeto da criminologia como,
que ao invs de defender a ordem e deveria proteger os direitos humanos.
A oposio ao sistema penal doutrinrio toma corpo com a atuao de grupos que
refutam a anlise do crime dissociada do contexto social. Novas concepes acerca da
criminologia so desenvolvidas tal como nomeia Lola Anyiar de Castro, citada por Batista
(1998), um conjunto formando a Criminologia da Reao Social que contempla as teorias da
rotulao (Becker e outros), do estigma (Goffman), do esteretipo (Chapman) e da
criminologia crtica (Barata, Taylor, Walter e Yong) (BATISTA 1998, p. 44).
A criminologia crtica toma por base epistemolgica o etiquetamento do sistema
penal, caracterizado pela seletividade dos rgos de controle social formal do Estado,
empregada s minorias, pobres, negros, imigrantes. Esta teoria rompe com a sociologia
criminal liberal propondo uma mudana de paradigma, partindo dos princpios da rotulao,
do labelling approach, demonstrando o conflito social, explicando os processos de
criminalizao das classes subalternas, historicamente a clientela do sistema penal
(BATISTA, 1998). Prope ainda considerar os aspectos econmicos e polticos dos
comportamentos socialmente negativos e da criminalizao em oposio criminologia
positivista, de posicionamento liberal que traz uma explicao patolgica da criminalidade e
do criminoso como diferente, partindo de um parmetro biopsicolgico para explicar os
comportamentos desviantes dando relevo criminalidade como um dado ontolgico pr-
constitudo reao social e ao direito penal (BARATA, 2011).
Passos e Penso, (2009) apontam no estudo realizado sobre o papel da comunidade na
aplicao e execuo da justia penal que, apesar de se ter registros de importantes pesquisas
que abordam certa ascenso epistemolgica da criminologia crtica, este indicador ainda no
representa transformao da prtica. H um domnio ideolgico da dogmtica penal de cunho
positivista entre os operadores do sistema penal e do senso comum permanecendo quase
intocada a percepo da sociedade acerca da criminalidade versus criminoso versus direito
penal e se revela como longo processo, marcado por avanos e retrocessos e que vo para
alm de divergncias tericas.
Ao buscar compreender o que o ATRS pensa sobre o trabalho que realiza junto aos
adolescentes e a responsabilidade penal a eles imputada, ser investigado se o profissional
-
21
considera os aspectos histricos, sociais e econmicos como determinantes ou condicionantes
para a prtica de ato infracional ou acredita em traos individuais que definem a atuao do
adolescente. So questes a serem apuradas neste estudo.
3.2 DA SITUAO IRREGULAR SOCIOEDUCAO: reminiscncias histricas
sobre a institucionalizao da infncia e juventude pobres no Brasil urbano
Aqueles que no podem recordar seu passado esto condenados a repeti-lo. Este
aforismo atribudo ao filsofo espanhol George Santayana adequado ao contexto deste
estudo considerando que o Brasil tem um recente passado de internao de adolescentes e
jovens em instituies que inicialmente traziam em seus propsitos intenes de garantir o
desenvolvimento destes, mas a histria confirma o fracasso das iniciativas.
As aes consideradas como polticas sociais tiveram no Brasil desde os tempos de
colnia at incio do sculo XX, sob a gide da Igreja Catlica e da filantropia estando quase
ausentes na estrutura do Estado (MARCLIO, 2006). A poltica para a infncia pobre na
Repblica Velha tem as marcas do abandono, da represso e do paternalismo, prprios de um
contexto poltico oligrquico em que prevalecia a concepo liberal de no interveno estatal
nas questes sociais (FALEIROS, 2009).
Ao retomar algumas passagens histricas do contexto social, econmico, poltico e
jurdico do Brasil do sculo XX e incio do XXI, autores como Marclio (2006), Faleiros
(2009), Vogel (2009) e Saraiva (2010) apresentam-nos fragmentos de um passado prximo do
cenrio que antecedeu configurao atual do Estado no trato da questo da
responsabilizao penal juvenil. O incio do sculo tem a marca da desigualdade social e
revela no censo de 1920 a famlia brasileira com um perfil numeroso, com mdia de sete
pessoas, pais e cinco filhos, permeado de grande carncia de recursos, com impactos
nefastos para a infncia. Condies indigentes levam crianas a esmolar, trabalhar como
vendedores na rua, ajudantes nas obras e fbricas, alm de sofrer sanes da polcia que
apreende os vagabundos e os encaminha ao juiz de rfos (FALEIROS, 2009).
Do abandono moral e material da infncia, tamponado com iniciativas
assistencialistas como a Roda e as Casas dos Expostos, abrigos, orfanatos e Santas Casas,
Misericrdia emerge tambm a viso repressiva sobre delitos praticados por menores com a
criao de internatos, a escola de reforma, colnias correcionais para reabilitao
profissional dos vadios, capoeiras, meninos viciosos (Faleiros, 2009, p. 39). Estes
-
22
estabelecimentos, alguns do Estado, outros mantidos por organizaes religiosas, mediante
subvenes de particulares e tambm estatais, tornam-se alvo de crticas por enclausurar
crianas desprovidas de instruo, higiene, vesturio em condies aviltantes (FALEIROS,
2009).
Ao final dos anos vinte do sculo XX (1927), foi regulamentada a assistncia e
proteo dos menores abandonados e delinquentes com a promulgao do Cdigo de
Menores, de inspirao higienista e disciplinar, que preconizou a vigilncia da sade da
criana e das nutrizes mediante inspeo mdica, bem como a interveno do Estado sobre o
abandono de infantes sendo estabelecida a suspenso ou perda do ptrio poder. Ainda
segundo Faleiros, (2009) este cenrio considerado por estudiosos e pessoas ligadas matria
da infncia e juventude, o momento da inveno do menor e a incluso da criana no
contexto jurdico e na proteo do Estado.
Na era Vargas que data de 1930 a 1954 adotada a estratgia de financiamento da
iniciativa privada na construo de edifcios para o recolhimento de crianas, sobre o apelo da
proteo da infncia que privilegia a preservao da raa, pois a criana futuro; e a
manuteno da ordem. O servio de acolhimento do menor com a distribuio de verbas a
particulares sistematizado em clculo per capita ficando as instituies pblicas ao ocaso da
gesto do Estado (FALEIROS, 2009).
Ao discorrer sobre a infncia pobre do Brasil urbano nos tempos de Getlio, Faleiros
(2009) retoma a criao do Servio de Assistncia ao Menor SAM -, em 1941, ligado ao
Ministrio da Justia, aos juizados de menores, executado por entidades particulares que
deveriam abrigar os menores investigados e encaminhados promovendo o ajustamento social
dos mesmos. Durante o seu ostensivo funcionamento, articulado com as delegacias de
menores, o SAM impulsionou a coibio de crianas e jovens suspeitos que andavam pelas
ruas do Distrito Federal (Rio de Janeiro) e So Paulo (FALEIROS, 2009).
Aps a era Vargas, sucedida por dois governos democrticos: de Juscelino Kubitschek
e Joo Goulart (1956 a 1964), o Brasil vivenciou um ciclo econmico intenso sem, no
entanto, impactar na melhoria dos indicadores sociais que ainda apresentavam altas taxas de
mortalidade infantil (110 por mil habitantes) e um percentual de 49% de analfabetos na
populao acima de quinze anos (FALEIROS, 2009).
A relao entre governo e iniciativa privada na gesto dos locais de internao de
menores fica estremecida aps inspees em unidades do Rio de Janeiro onde foram
constatadas uma srie de irregularidades. Faleiros (2009) discorre ainda neste contexto sobre
verbas repassadas no aplicadas, estruturas prediais inadequadas, superlotao, condies
-
23
inspitas de higiene e alimentao, explorao do trabalho do menor sem contrapartida. Neste
contexto, tornam-se explcitas e contundentes as crticas ao SAM, por parte de representantes
do governo, do judicirio, da imprensa e da sociedade em geral que consideravam o sistema
como fbrica de delinquentes, escola do crime, desumano, ineficaz e perverso. Muitos
foram os desdobramentos polticos para que fosse proposta e efetivada a extino do SAM
que fora sucedido pela Fundao Nacional de Bem Estar do Menor FUNABEM-, em
dezembro de 1964, centralizada, ligada diretamente Presidncia da Repblica, o pas j
estava sob o domnio das foras armadas (FALEIROS, 2009).
Vogel (2009) ratifica as constataes acima descritas em seus estudos sobre o clima
social e institucional de veementes crticas aos resultados e mtodos do SAM, poca do
incio do governo militar no Brasil, 1964. Data de 1955 a elaborao de propostas por outras
prticas e mudanas estruturais neste sistema, alm do que, o fim do SAM tambm se deveu
ao cenrio de conflitos burocrticos e processuais entre agncias estaduais de atendimento e
juizados de menores com policiais, em funo da falta de uma poltica que estabelecesse
diretrizes e de uma legislao que definisse a especificidade de atuao das instncias do
Estado, j que o Cdigo de Menores de 1927, vigente, no contemplava as atribuies de cada
campo.
A criao da Fundao Nacional do Bem-estar do Menor FUNABEM, substituta do
SAM, trouxe nos seus propsitos ser o reverso do sistema anterior na formulao e
implementao de uma poltica altura do nome que carregava. O peso institucional que
recebe superior ao SAM ao se reportar diretamente Presidncia da Repblica. Constituiu-
se um Conselho Nacional composto por representantes do Executivo, nas figuras de
ministrios, e por autarquias, entidades de classes, instituies religiosas, pessoas de notrio
saber, na rea da infncia e juventude, alm de considerar a participao da sociedade como
imprescindvel para o enfrentamento do problema do menor (VOGEL, 2009).
As competncias atribudas FUNABEM, como registra o autor, so de dimenses
macro, pautadas na qualificao institucional, com parmetros de levantamentos situacionais,
diagnstico nacional da situao, articulao pblico-privado, formao e aperfeioamento
tcnico de profissionais, fiscalizao do cumprimento de seus propsitos e dos convnios
firmados alm do suporte tcnico e ideolgico a difundir junto aos estados, municpios e
entidades envolvidas (VOGEL, 2009).
A Fundao recebeu dotao oramentria federal alm de um dote inicial que
somados garantiram sua autonomia financeira por uma dcada. Aliado ao dote a FUNABEM
teve tambm o legado, o acervo do sistema anterior, tanto o patrimnio fsico, destrudo,
-
24
decadente, quanto a herana simblica de ms lembranas das aes praticadas pelo SAM e a
incredulidade da opinio pblica de que a nova instituio representasse novo paradigma para
a questo do menor (VOGEL, 2009).
Simultaneamente a este cenrio de novas proposies para o menor marginalizado o
pas, conforme registra Vogel (2009), da segunda metade dos anos sessenta aos anos oitenta,
ou seja, nos anos do regime militar, emergem questes sociais peculiares e o que at ento era
tratado como caso de polcia torna-se caso de poltica. A industrializao em larga
escala, seguida da urbanizao desenfreada, da aglomerao de massas de pessoas nas
periferias das grandes cidades, decorrente da estimulada migrao pela busca de melhores
condies de vida, marcam o incremento da pobreza, pois o mercado de trabalho no absorve
toda a mo-de-obra que se revela mais numerosa que as oportunidades e menos qualificada do
que as exigncias.
Surgem grupos sociais marginais assim caracterizados ora por no terem meios de
suprirem a si prprios, ora por no terem acesso s iniciativas sociais implementadas pelo
governo, (VOGEL, 2009). Conforme o censo de 1970, na poca, o universo da populao de
crianas e adolescentes, de zero a dezenove anos, representava 52,93% e um tero desta,
estava em condies de no participao no consumo de bens materiais e culturais apontando
novo ciclo de excluso e indigncia no Brasil.
A preocupao com a expanso da populao infanto-juvenil marginalizada era antes
de tudo, uma questo da ordem social, seguida de prejuzos econmicos, pois nesta condio
no se era til nem gerava riqueza, alm do que esses irregulares poderiam ser cooptados
por foras contrrias ao regime (VOGEL, 2009).
Se a criao da FUNABEM tinha nos seus propsitos prticas distintas do SAM como
romper com a lgica da internao, reconhecendo seus prejuzos em debilitar a famlia,
onerar o Estado alm de ser inadequado como soluo, encarcerar um tero da populao? Os
gestores da Fundao buscaram a resposta na Declarao dos Direitos da Criana, aprovada
pela Assembleia das Naes Unidas em 1959 e adotaram o discurso do bem-estar do menor
pautado no suprimento das necessidades bsicas, na defesa do menor contra o abandono, a
crueldade, a corrupo ou explorao e na reintegrao no ambiente familiar (VOGEL,
2009).
A gesto da Fundao, continua Vogel (2009), revela-se complexa considerando a
dimenso do problema, proporcional ao tamanho do pas, acompanhada de poucos recursos,
fez-se necessrio definir prioridades, privilegiar aes preventivas e educativas e
descentralizar a execuo dos trabalhos. A FUNABEM funcionava centralizada no nvel
-
25
Federal, caracterizava-se como rgo deliberativo normativo, responsvel pelo repasse de
recursos e de diretrizes tcnicas, no que tange metodologia de atendimento. Para aplicao
dos recursos e gesto dos estabelecimentos de atendimento ao menor a Unio parte para a
sensibilizao dos governos estaduais visando a criao das Fundaes Estaduais do Bem-
Estar do Menor FEBEMs.
A adeso dos estados com a implementao das FEBEMs trazia implicaes outras,
alm da aplicao de recursos, fez-se necessrio uma aderncia ao discurso, ideologia,
doutrina e tcnicas que correspondiam ao know how a ser repassado e absorvido pelas
instituies envolvidas. Toda esta construo saneadora anti SAM, mediada pelo discurso
salvacionista da famlia e da juventude brasileiras, resulta numa armadilha em que a Fundao
tratou de criar para si prpria. A rigor, a herana do sistema anterior com base na internao
manteve sua influncia com o domnio de grupos interessados neste modelo que articulavam
aes para sua permanncia (VOGEL, 2009).
Vogel, 2009 encerra suas constataes acerca da primeira dcada de existncia da
FUNABEM ressaltando o esprito scio-poltico em que transcorreram os fatos e atos. Se por
um lado foi deflagrada uma ideologia acerca da questo do menor com o lema Brasil jovem:
a base do futuro sem fronteiras, por outro, o objeto a execuo que revelou contradies. A
gesto do Estado com o regime militar tinha como meta o enquadramento da Nao e o pas
viveu no perodo de 1964 a 1985 sob a imposio de restries s liberdades civis, polticas e
de expresso do pensamento e embalados pelo bordo extra-oficial pautado no
desenvolvimento com segurana nacional: Brasil, ame-o ou deixe-o (VOGEL, 2009, p.
302). As contradies dos mtodos e prticas da Fundao, inicialmente, no vieram a pblico
e a avaliao da gesto concluiu que a primeira dcada de existncia fora um perodo exitoso
de funcionamento graas Revoluo que tornou a FUNABEM possvel.1
O enaltecimento da FUNABEM feito a ela mesma por seus dirigentes no perdurou,
dada a evidncia de que a instituio frustrou nos seus propsitos. Em 1976 foi instaurada
uma Comisso Parlamentar de Inqurito chamada a CPI do Menor que apurou e encontrou o
mesmo cenrio de outrora e em relatrio apontou para o crescimento da marginalizao, para
a vulnerabilidade pessoal e social de um tero dos jovens brasileiros, sobretudo das grandes
cidades que na poca abrigavam em torno de 60% de toda populao (VOGEL, 2009).
O cenrio jurdico-social instituiu a Doutrina da Situao Irregular, referencial que
serviu ao Cdigo de Menores de 1979 e ao imaginrio social caracterizando o menor pela
condio social, econmica e familiar desfavorvel e a criana, como de condio regular a 1 Trecho do Editorial da FUNABEM na comemorao do 10 ano (VOGEL, 2009, p. 304)
-
26
quem os direitos eram assegurados. Neste esprito social estabelecida a existncia de duas
infncias, uma para as crianas bem nascidas e outra para as de situao irregular, ditas
incapazes, enquadradas juridicamente de forma imprecisa em situao de risco ou perigo
moral e material ou ainda em circunstncias especialmente difceis, conferindo-lhes a
condio de objeto, passveis de interveno coercitiva do Estado (SARAIVA, 2010, p. 24).
Esta caracterizao relaciona o menor, indistintamente entre crianas e adolescentes
infratoras, com as que demandam polticas de assistncia, consagrando a apreenso e
judicializao dos problemas sociais, bem como a inveno do menor abandonado e da
delinquncia juvenil (SARAVAIA, 2010).
Neste contexto, o Juiz de Menores assumia funes que transcendiam s questes
judiciais, transitando por polticas pblicas assistencialistas, atuando como pai de famlia,
exercendo o papel de patronato do Estado com ampla discricionariedade de poder impondo,
tanto aos autores de delito quanto aos abandonados ou carentes de recursos materiais a
privao de liberdade por tempo indeterminado. Decises consideradas protetivas,
independentes do ato cometido, justificadas por estes estarem em situao irregular
(SARAIVA, 2010).
Nos anos oitenta novos ares pairavam sobre o Brasil, o processo de redemocratizao
paulatinamente ganhava fora. As circunstncias econmicas e sociais eram desfavorveis
maioria da populao com inflao descontrolada, forte concentrao de renda entre as
classes, baixos salrios, altos ndices de mortalidade infantil, de crianas fora escola e
envolvidas no trabalho informal.
A presso pela democracia e por melhores condies de vida ganha dimenses que
chegam s ruas com manifestaes populares, partidrias e presses sociais. O movimento
avana para as capitais por eleies diretas para presidente, fatos iniciados em 1985, mas que,
seguros pelo governo militar, tornaram-se possveis apenas em 1989. Neste nterim, em 1985,
ocorre a eleio indireta para um presidente civil, que governou at a posse do presidente
eleito por voto direto, ocorrida em 1990 (FALEIROS, 2009).
Os direitos da criana e do adolescente so colocados em debate com a mobilizao de
entidades de direitos humanos, ONGs, a Pastoral do Menor alm do Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua, (RJ) repercutindo as discusses internacionais sobre a matria.
(FALEIROS, 2009). No processo de elaborao do texto Constitucional instituda a
Comisso Nacional Criana Constituinte que, mobilizando a sociedade, obtm o nmero de
assinaturas para ter a emenda dos direitos da criana e do adolescente em debate. Os
desdobramentos avanam na articulao junto aos deputados para a criao da Frente
-
27
Parlamentar pelos mesmos direitos, difundindo pelo pas os fruns de Defesa da Criana e do
Adolescente-DCA. Este movimento culminou com a publicao na Constituio, artigo 227 e
a instituio da Doutrina de Proteo Integral dos Direitos da Criana (FALEIROS, 2009).
Este breve retrospecto acerca de como o Brasil lidou com a questo da
responsabilizao penal juvenil e o que se prope fazer no sentido de promover a incluso
social das geraes de vulnerveis, historicamente excluda e clientela do sistema penal,
sinaliza um legado e um projeto. O primeiro traz a herana de dois sistemas SAM e
FUNABEM originrios e executados em contextos estatais de restrio de liberdade civil e
de direitos polticos, existentes na era Vargas e na ditadura militar, com resultados que no
confirmaram os seus intentos. O segundo com o ECA e o SINASE, um projeto de sociedade,
idealizados em um cenrio de democracia, acompanhados da retrica de promoo da
cidadania que desde promulgados vm se firmando e se afirmando por meio de outras
polticas pblicas e sociais a serem integradas e integradoras.
A Doutrina de Proteo Integral constitui o Sistema de Garantia de Direitos que
contempla os princpios e diretrizes da Poltica de Ateno a Crianas e Adolescentes com
aes promovidas pelo Poder Pblico - Unio, estados, Distrito Federal e municpios , os
trs Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio e pela sociedade civil por meio dos eixos
promoo, defesa e controle social. O Sistema de Garantia de Direitos comporta outros
subsistemas a exemplo do SINASE que dialoga com outros subsistemas tais como a Sade
SUS Educao, Assistncia Social, Justia e Segurana Pblica (BRASIL, 2006).
No concernente ao adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas
iniciativas em alguns estados e no Distrito Federal vm-se buscando a efetividade do Sistema
de Garantia de Direitos para esta populao. No subsistema Sade, por exemplo, a Poltica
Nacional de Ateno Integral Sade do Adolescente em Regime de Internao PNAISARI
do Ministrio da Sade, que desde 2004 vem definindo e redefinindo, por meio de Portarias,
os princpios e as diretrizes de ateno sade de adolescentes que se encontrem nesta
situao, busca garantir o acesso destes rede pblica do SUS. As portarias publicadas
estabelecem os critrios para que os estados e o Distrito Federal faam a adeso Poltica,
mediante repasse de recursos financeiros e a elaborao/implementao do Plano Operativo
Estadual POE - com previso da atuao de equipes de sade nas unidades socioeducativas,
bem como do trabalho em rede articulado entre as Secretarias da Sade e da Criana,
responsvel pela execuo das medidas na perspectiva da incompletude institucional
(PENSO; OCAMPOS; LORDELO, 2012).
-
28
No subsistema da Justia ao adolescente autor de ato infracional resguardado o
devido processo legal sendo julgado por tribunais especficos, responsabilizando-o pelo ato,
atribuindo a ele sano compatvel, distinta das aplicadas pelo sistema dos adultos
(SARAIVA, 2010).
No campo educacional a escolarizao dos adolescentes em regime de internao
tambm recebe diretrizes do governo federal e segundo o levantamento da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidncia da Repblica -SDH/PR- entre 2011 e 2012 houve um
incremento de 42,4% no nmero de matrculas somando 15.116 adolescentes, vinculados a
235 escolas (BRASIL, 2014).
A poltica de Assistncia Social executada pelos Centros de Referncia Especializados
CREAS-, conforme documento da SDH/PR, atende aos adolescentes em cumprimento de
medidas socioeducativas em meio aberto, no constando registros dos Centros de Referncia
Especializados em Assistncia Social em meio fechado (BRASIL, 2014).
Os dispositivos de proteo e de garantia de direitos de adolescentes privados de
liberdade vm sendo estruturados nos estados e no Distrito Federal. A efetividade das
iniciativas demandam estudos no sentido de verificar se resguardam os interessados e se
promovem a emancipao deles no sentido da socioeducao na abrangncia do termo e da
Poltica.
4. CONTEXTUALIZAO DA SOCIOEDUCAO NO BRASIL COM DESTAQUE
PARA O DISTRITO FEDERAL
Publicaes de dados e de informaes relacionados socioeducao realizada nos
estados brasileiros e no Distrito Federal visam servir de suporte para a compreenso
situacional, aprimoramento e qualificao desta poltica pblica no cenrio macro do pas e
mais especificamente nos contextos dos territrios estaduais e distrital.
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica SDH/RP - divulgou
em 2014 um levantamento anual dos/das adolescentes em cumprimento de medidas
socioeducativas, consistindo de um instrumento de apoio e de uma base quantitativa para
anlises e consideraes (BRASIL, 2014). No ano de 2013, a Secretaria da Criana,
responsvel pela gesto e execuo das medidas socioeducativas no Distrito Federal, elaborou
o Projeto Poltico Pedaggico das medidas como parte do plano de atendimento
-
29
socioeducativo conforme preconizado no SINASE servindo neste estudo como outra base de
dados para apreciaes da socioeducao no contexto distrital (DISTRITO FEDERAL, 2013).
Os dados nacionais apurados, obtidos junto aos estados e Distrito Federal,
contemplaram informaes sociodemogrficas da populao estudada (comparativo do
nmero de adolescentes em restrio de liberdade entre os anos de 2008 e 2012, proporo de
adolescentes nesta situao, a cada 10 mil habitantes entre doze e vinte e um anos, o gnero e
faixa etria), tipificao dos atos infracionais, lcus institucional da socioeducao nos
estados, alm de dados ampliados como formao continuada dos servidores, a realizao de
estudos e/ou pesquisas estaduais/distrital, existncia de ouvidoria, de planos estaduais/distrital
de atendimento socioeducativo e polticas setoriais como educao e assistncia social
(BRASIL, 2014).
No Distrito Federal o Projeto Poltico Pedaggico incluiu os marcos legais, o
diagnstico da medida de internao, o perfil dos adolescentes em cumprimento de medidas,
os recursos materiais e humanos disponveis (DISTRITO FEDERAL, 2013).
Os parmetros bsicos do levantamento da SDH/PR partiram do Censo Demogrfico
de 2007 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE que registrou a
populao total do Brasil em 190.755.799 pessoas e a populao de doze a vinte e um anos
com 21.265.930 adolescentes. Outra fonte para elaborao dos parmetros foi o Censo do
Sistema nico da Assistncia Social de 2012, elaborado pelo Ministrio do Desenvolvimento
Social MDS que apurou um total de 18.672 adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa privativa de liberdade (BRASIL, 2014). A comparao do nmero total de
adolescentes no Brasil com a populao destes em cumprimento de medida privativa de
liberdade apontou para um percentual de 0,01%, indicador que significa uma pequena parcela
do todo e, segundo o documento, deve ser foco das polticas pblicas a fim de obter solues,
garantir os direitos e contemplar estes adolescentes no atendimento socioeducativo de
qualidade (BRASIL, 2014).
No concernente medida socioeducativa internao o levantamento da SDH/PR revela
em nmeros absolutos 15.975 adolescentes em 2010, 17.677 em 2011 e 18.672 em 2012.
Essas taxas de privao de liberdade apontam um aumento de 9,6% entre os anos de 2010 a
2011 e outro incremento de 5,3% entre 2011 e 2012, sendo este ltimo indicador um
decrscimo na taxa ascendente de internao comparado aos anos anteriores (2008 e 2009).
Estes dados nacionais ainda confirmam que a internao a medida mais aplicada em relao
semiliberdade (BRASIL, 2014).
-
30
A proporo de adolescentes em cumprimento de medida restritiva e privativa de
liberdade a cada dez mil habitantes entre doze e vinte e um anos revela que o Distrito Federal
ocupa a quarta posio em relao aos estados brasileiros com 20,5 adolescentes estando em
melhor colocao apenas se comparado a So Paulo com (37,2), Acre (25,9) e Esprito Santo
com (23,5) adolescentes. Outros estados como Rio de Janeiro com taxa de (19,0)
adolescentes, Minas Gerais (6,2) e Gois (5,6) neste levantamento ocupam respectivamente as
quinta, dcima primeira e dcima quarta posies de adolescentes em situao de restrio e
privao de liberdade. No que se refere ao gnero 95% dos socioeducandos so do sexo
masculino e 5% so do sexo feminino e a grande maioria de internados (78%) tinham em
2012 entre dezesseis e vinte e um anos (BRASIL, 2014).
No cenrio do Distrito Federal o levantamento relacionado medida socioeducativa de
internao, indica para o ano de 2010, 673 adolescentes, em 2011 com 716 adolescentes2.
Essas taxas revelaram um aumento de 6,4% entre os anos de 2010 a 2011 alm de
confirmarem a referncia nacional de que a internao a medida mais aplicada em relao
semiliberdade (BRASIL, 2014).
relevante extrair deste levantamento da SDH/PR que apenas sete estados (25,9%)
dispem de Ouvidoria, espao para reclamao por direitos sociais, e o Distrito Federal no se
encontra entre eles. H treze estados mais o Distrito Federal (51,8%) que informaram possuir
o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo, outros doze (44,4%) que at o ano de 2012
ainda no havia apresentado seus planos e um estado (3,7%) que no respondeu. Quanto
formao/ capacitao de servidores e gestores h cinco estados (18,5%) que no oferecem
nenhum tipo aos seus quadros funcionais. O Distrito Federal, junto a outros vinte estados
(77,7%) informaram dispor de algum de tipo formao nas reas de sade, socioeducao,
pedagogia, segurana ou outras temticas e um estado (3,7%) no respondeu. Dos vinte e seis
estados mais o Distrito Federal apenas treze (48,1%) das unidades federativas afirmaram ter
estudos/pesquisas sobre o atendimento socioeducativo. O Distrito Federal no faz parte do
grupo de treze estados que realizam estudos/pesquisas (BRASIL, 2014).
A localizao institucional de execuo das medidas socioeducativas nos estados e no
Distrito Federal distinta entre eles sendo que doze estados (44,4%) tem como referncia a
Secretaria de Assistncia Social e Cidadania, outros sete, (26%) adotam a Secretaria de
Justia e Segurana Pblica, quatro unidades federativas (14,8%) realizam na Secretaria do
2 Foi desconsiderada a taxa do Distrito Federal de 2012 por ter apresentado um dado inconsistente quando registrou 367 adolescentes, sugerindo reduo de 51,3% da internao o que empiricamente no se
confirmou (Nota da autora).
-
31
Trabalho, o Distrito Federal e Pernambuco (7,4%) tm a Secretaria da Criana e do
Adolescente e outros dois Alagoas e Rio de Janeiro - (7,4%) executam a medida de
internao nas Secretarias de Promoo da Paz e da Educao, respectivamente (BRASIL,
2014). O lcus institucional um dos indicadores que aponta para as diferentes configuraes
que os estados brasileiros empregam no funcionamento do sistema socioeducativo local,
sendo o documento do SINASE um parmetro, mas no um padro para execuo das
medidas socioeducativas.
Outros dados como a tipificao dos atos infracionais, distribuio de unidades de
atendimento por regio, nmero de bitos e causa das mortes por estado esto disponveis no
levantamento da SDH/PR e no sero discorridos neste estudo uma vez que o foco deste
privilegia outras informaes.
No Distrito Federal, conforme registrado no Projeto Poltico Pedaggico j citado, os
recursos humanos disponveis para o atendimento s unidades de internao em maro de
2013 somavam 1.258 servidores distribudos em 905 ATRS (71,9%), 43 assistentes sociais
(3,4%), 45 psiclogos (3,6%), 29 pedagogos (2,3%), 98 tcnicos administrativos (7,8%), 19
motoristas (1,5%) e 119 servidores em outras funes operacionais (9,5%) como auxiliar
operacional em servio social e auxiliar de cozinha. Deste universo de 1258 funcionrios 39
deles (3,1%) ocupavam posies de gesto das unidades socioeducativas de internao
(DISTRITO FEDERAL, 2013).
A estrutura fsica das unidades de internao no Distrito Federal, em 2013, consistia
de quatro das quais: Unidade de Atendimento Inicial, Unidade de Internao do Plano Piloto,
anteriormente denominada CAJE (Centro de Atendimento Juvenil Especializado) que nesta
data encontrava-se em processo de desmobilizao de seu funcionamento decorrente de
precariedade, insalubridade e superlotao, sendo objeto de denncias por iniciativa de
conselhos de direitos e outras entidades associadas ao sistema de garantia de direitos da
populao internada3. Outras unidades de internao a compor a estrutura do DF em 2013 so
a de Planaltina, a do Recanto das Emas e de So Sebastio. O documento ainda ressalta que as
unidades somavam 537 vagas e em setembro de 2012, acolhiam 710 adolescentes o que
representava 32,3% acima capacidade operativa instalada (DISTRITO FEDERAL, 2013). Em
2014 outras duas unidades foram inauguradas das quais, uma em So Sebastio e outra em
Recanto das Emas alm de estar em construo uma em Brazlndia com previso de iniciar as
3 Desativao e demolio confirmadas maro em 2014 (Nota da autora).
-
32
atividades em 2015, somando sete unidades de internao no Distrito Federal em operao
(DISTRITO FEDERAL, 2014).
A Secretaria da Criana registrou ainda neste documento a necessidade de adequao
ao SINASE no que se refere aos recursos materiais para as unidades socioeducativas, tais
como mobilirio, equipamentos de informtica, manuteno de equipamentos e materiais de
expediente (DISTRITO FEDERAL, 2013).
5. O SOCIOEDUCADOR E O UNIVERSO DE SEU TRABALHO: estudos
relacionados ao cotidiano profissional, s diretrizes institucionais e s contradies
da prtica
Alguns estudos que tiveram o socioeducador de unidades de internao de
adolescentes como alvo de suas abordagens revelaram dados e informaes acerca do
cotidiano conflituoso inerente profisso e dos aspectos ocupacionais que a envolvem
(TAVARES, 2008) alm de outros elementos como anlises das prticas pedaggicas e
moralidade (MONTE; SAMPAIO, 2012) e o olhar de socioeducadores sobre a efetivao da
Doutrina de Proteo Integral (FERRO; ZAPPE; DIAS, 2012). Apesar de terem sido
realizados em contextos diferentes - So Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul - estes
estudos so exemplos que apresentaram nos seus resultados dificuldades comuns narradas
pelos socioeducadores na execuo da medida socioeducativa de internao. Contradies
institucionais entre o proposto e o realizado, o desconhecimento ou o conhecimento parcial da
legislao ECA e SINASE por parte dos profissionais, contribui para o descumprimento
de suas diretrizes; as prticas de trabalho impedem a emancipao dos adolescentes
reforando as relaes entre socioeducadores e adolescentes no nvel de coero, punio e
autoritarismo; a fragilidade do processo socioeducativo em promover o envolvimento
familiar; alm da escassa ou descontnua formao profissional oferecida aos profissionais
envolvidos com os adolescentes, todos esses indicadores, conflituosamente imbricados, esto
presentes nestes estudos e apont-los pode permitir conhecer melhor o fenmeno estudado
verificando o alcance da poltica pblica em relao aos propsitos que a instituiu.
A abordagem realizada em So Paulo parte de um cenrio urbano da maior e mais
populosa cidade brasileira, onde ainda hoje, esto em funcionamento complexos de
internao, distribudos por unidades, com ocupao maior que a capacidade de instalao,
que acolhem adolescentes categorizados por grau infracional, que vai desde diferentes
graus, primrio mdio e grave, primrio grave e reincidentes graves (TAVARES,
-
33
2008 p. 16). Ao longo de toda narrativa obtida junto aos monitores e coordenadores de
planto foi registrado um clima de tenso, de permanentes conflitos interpessoais e
institucionais, sentimentos de desamparo decorrentes das condies de trabalho, do medo e
apreenso que se estendem para os extramuros (TAVARES, 2008).
Situado em um cenrio ainda de FEBEM, realizado por iniciativa do sindicato da
categoria que demandou Delegacia Regional do Trabalho de So Paulo - DRT/SP - uma
investigao sobre os processos de adoecimento dos trabalhadores este estudo fez-se
necessrio considerando que 60% dos diagnsticos apontaram problemas de sade mental
como a maior incidncia dos afastamentos pelo Instituto Nacional de Seguridade Social -
INSS e 65% dos atendimentos feitos pelo Centro de Referncia de Sade do Trabalho - CRST
- aos profissionais de unidades de internao de So Paulo indicavam os quadros de
transtornos mentais como motivao principal de adoecimento (TAVARES, 2008).
Trata-se do trabalhador que convive diretamente com o adolescente no ptio da
unidade por at doze horas dirias, com a misso de proteg-lo, de governar limites,
administrar incessantes pedidos o que exige do monitor certa "disponibilidade afetiva" no
manejo dirio. A preferncia era por escalas noturnas, ficando os horrios diurnos e
vespertinos para os recm-contratados escalados a estar com o adolescente por mais tempo,
ou seja, trabalhar noite configura um tipo de prmio (TAVARES, 2008).
A insero do monitor no sistema requer um treinamento que o habilite a lidar com o
adolescente infrator, etapa realizada de forma breve, em torno de trs dias, insuficientes para o
entendimento e aplicao do Estatuto da Criana e do Adolescente - ECA. A formao
profissional ocorrida de forma eventual, descontnua e despertava pouco interesse dos
monitores principalmente dos veteranos que afirmavam que a "verdadeira capacitao do
monitor se faz no dia-a-dia, no ptio" (TAVARES, 2008 p. 24) no reconhecendo em cursos
contedos que contribuam para o suporte e melhoria de seu trabalho.
A falta de clareza sobre a funo do profissional fez-se recorrente, abrindo margem
para dvidas, tenses e conflitos entre os trabalhadores e destes com os adolescentes. Uma
fonte de tenso no cotidiano do monitor a responsabilidade de acompanhar o adolescente em
atividades externas como ir ao atendimento de sade, s audincias judiciais, s mudanas de
unidade ou idas a velrio. considerada situao de risco tanto para o profissional, quanto
para o menino exigindo do primeiro "certa dose de coragem e de f em Deus" (TAVARES,
2008 p. 30).
A estrutura institucional recebeu crticas dos monitores ao avaliarem a ausncia de
planejamento do trabalho, de discusso relacionada aos conflitos cotidianos, inclusive sobre
-
34
as rebelies, apontaram a instituio como "autoritria", sem canais de comunicao, rgida
nas relaes hierrquicas, considerada corporativista, omissa e clientelista, com
favorecimentos de uns em detrimento de outros (TAVARES, 2008).
Recomendaes foram feitas de modo que instituio caberia a melhoria dos espaos
fsicos, o tratamento de situaes que o adolescente fica mais vulnervel na situao de
seguro, quando do isolamento deste por ato inaceitvel s representaes vigentes entre os
adolescentes, o estabelecimento de programa de sade ocupacional e a criao de condies
laborais que possibilitem aos profissionais o acesso sade, cidadania e dignidade
(TAVARES, 2008).
Em uma abordagem acadmica, outro estudo envolvendo socioeducadores, realizado
em Pernambuco e divulgado em 2012, trata de investigar as prticas pedaggicas e
concepes morais circulantes em uma unidade de internao de adolescentes. Ao observar o
cotidiano institucional, entrevistar socioeducadores e adolescentes em uma unidade os
pesquisadores buscaram verificar como estes atores sociais avaliavam a instituio, quais
eram os seus julgamentos morais, as concepes de justia e de leis que cada qual detinha
(MONTE; SAMPAIO, 2012).
Foi observado que tanto os socioeducadores quanto os adolescentes concebem a
instituio e a medida socioeducativa como mecanismo de sustentao da lei, o que, segundo
os pesquisadores, refora a heteronomia entre os jovens. A justia e as leis so entendidas por
eles como referenciais para a manuteno da ordem social e do cumprimento de normas no
sendo reconhecidos como dispositivos de garantia de direitos individuais. A primeira vista
apenas como instituio concreta que decreta a internao e a segunda como meio de punio
ou castigo (MONTE; SAMPAIO, 2012).
O modelo pedaggico vigente na unidade pesquisada revelou que as aes so
pautadas na disciplina, na hierarquia relacional, na punio alm da incredulidade quanto ao
alcance dos propsitos institucionais de reintegrar os adolescentes em situao de privao de
liberdade, reproduzindo o modelo prisional (MONTE; SAMPAIO, 2012).
Na investigao realizada no Rio Grande do Sul buscou-se verificar a efetividade da
Doutrina de Proteo Integral na execuo de medida socioeducativa em uma unidade de
internao a partir do olhar dos socioeducadores, onde 54,1% dos participantes eram agentes
socioeducadores. O estudo considerou questes relacionadas execuo da medida de
internao como: se o socioeducador se mantm presente nos momentos educativos e
coercitivos; se consideravam o envolvimento familiar e comunitrio; se a unidade previa
aes de segurana que reguardasse as vidas dos trabalhadores e dos adolescentes. Ao apurar
-
35
os dados e informaes obtidos os pesquisadores constataram a no existncia de consenso
entre os socioeducadores em relao s questes propostas. Isso, segundo os autores, permitiu
afirmar que a execuo da medida ocorre sem seguir o preconizado no ECA na totalidade,
alm da existncia de grande distncia entre a realidade imediata da unidade e o previsto nas
diretrizes legais havendo muito a ser feito a fim de que o sistema atenda as suas finalidades
(FERRO; ZAPPE; DIAS, 2012).
Os estudos apresentados oferecem aos interessados pela matria da socioeducao, em
especfico execuo de medidas de internao, um panorama do quanto ainda necessrio
avanar no sentido de qualificar o sistema para o cumprimento dos seus propsitos seja no
nvel de estrutura, de espaos e ambientes, seja no nvel implicao dos atores envolvidos ou
ainda no plano de um projeto de sociedade que valorize o papel do socioeducador e nele
reconhea uma possibilidade de contribuir para melhoria de vida de adolescentes e jovens.
-
36
6. MTODO
A opo metodolgica de pesquisa a qualitativa, no propsito de captar elementos de
uma realidade a ser revelada, descoberta e interpretada sob perspectivas diversas,
identificando e nomeando as interaes a serem estabelecidas entre os sujeitos envolvidos no
processo. A apreenso parcial dos fatos sociais extrados do cenrio socioeducativo de
internao seguir contextualizao recursiva, em um movimento no linear, contnuo e
contraditrio, a conjugar particularidades e generalidades. Conforme sustenta Demo (2001) o
processo exige o posicionamento implicado de quem pesquisa na modalidade qualitativa,
comunicando-se com os participantes, visando como produto desta comunicao a anlise do
contedo relatado, o registro e reflexes acerca do contexto pesquisado.
Propiciar um clima de espontaneidade recproca poder dar o tom de autenticidade e
assim produzir envolvimento, fazer emergir as argumentaes, reflexes, emoes, contedos
no-verbais valorizando a interlocuo como instrumento na investigao dos fenmenos
sociais (GONZLEZ REY, 2005).
6.1 CENRIO DA COLETA DE DADOS
Os d