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TESTEMUNHOS, MEMÓRIA E NARRATIVAS: A HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO

Igor Salomão TeIxeIra

Depto História/UFRGS [email protected]

INTRODUÇÃO:

Este trabalho é uma pequena reflexão sobre questões de ordem teórico-metodológicaquenorteiamoprojetodepesquisaOs Tempos da Santidade: Processos de canonização e relatos hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV) que desenvolvemosnaUFRGSdesdedezembrode2011.Oprincipalobjetivodesteprojetoéaplicareanalisaroslimitesepossibilidadesdoconceitodetempo da santidade que elaboramoscomoresultadodatesededoutoradoquedefendemosnaqueleano.Oconceitoabordaaconstruçãocoletivadasantidadedehomensemulheresdemodoretroativo,ouseja,partedadatadacanonizaçãoparaadatadamorte.Nestesentido,oresultadodointervalotemporalentrecanonizaçãoemortenosforneceaquiloquechamamoscomootemponoqualasantidadefoiconstruídaemtornoearespeitodeumcandidatoasanto.(TEIXEIRA,2012)

Nacomunicaçãoqueoraapresentamos,cujotítuloéTestemunhos, memória e narrativas: a história e historiografia dos processos de canonizaçãonossoobjetivoconsiste em problematizar as características do que chamamamos de processos decanonização realizados na IdadeMédia.Além disso, tratamos das implicações dessaquestãoempesquisasrealizadasnoBrasilsobreatemática.

PEqUENA HISTÓRIA E CARACTERíSTICAS DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO NA IDADE MéDIA

Emlinhasgerais,umprocessodecanonizaçãoéumordenamentopontifícioparaainvestigaçãodesupostosfeitosexcepcionaisoumilagresqueestãosendoatribuídosa

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homem(s)e/oumulher(s).EssainvestigaçãoéumfenômenoquesurgiunaIdadeMédiae que, principalmente a partir do séculoXII, assumiu uma característica inquisitorialconcomitanteaodesenvolvimentodouniversodo“direito”noOcidenteapósaredescobertadoCódigo de Justinianoe,também,daestruturaçãodoCódigo de Direito Canônico.

Um processo de canonização é, então, uma investigação, uma inquisição.Contemporâneo à normatização da confissão auricular obrigatória; à chamada “santainquisição”oua“inquisiçãocontraheresias”eaodesenvolvimentodasescolasdeleis,comoafaculdadedeBolonha.Aprincipalcaracterísticadesteprocessoéquenoconjuntodetestemunhasinterrogadasdificilmenteencontraremosalgumaqueestejaaliforçadae/ouameaçadadetortura.Aocontrário.Aquelequeparticipadoprocesso,emgeral,“querfalar”.(TEIXEIRA,2011ae2009) Para o período entre a segunda metade do século XIII e primeira metade doséculoXIV–compreendidononossoprojetodepesquisa–osinterrogatórioseoregistrodosmesmosassumiamumaformacadavezmaisrecorrente:opapaordenaaaberturado processo, nomeia notários e encarregados da causa de canonização; solicita que ainvestigaçãosejadiligenteeoficialsobrefama publicadavidaemilagresdo(a)suposto(a)santo(a).Écomumqueasperguntassobremilagressejamdirecionadasparacuras.E,nestesentido,osinquisidoresdeveminterrogarsobretodasascircunstânciasdoperíodoecaracterísticasdadoençaedoperíodopós-cura.Terminadososinterrogatóriososnotáriosregistramematasquesãoenviadasàscomissõespontíficiase,porfim,submetidasàsanálisesdopapa.Este,segueounãoasdecisões,ouseja,édesuaresponsabilidadedecidirpela canonizaçãoounão.Existindodúvidas, geralmente, hánovos inquéritos. (LETT,2008) Apontamosaquiumelementoimportante:os interrogatórios.Acanonizaçãosóaconteceapósamorte,ouseja,quandoosinterrogadossãointerrogadosháumintervalotemporalentreoacontecimentonarradoeanarrativadoacontecimento.Sendoassim,osnotárioseinquisidoreslidamcomoquepoderíamoschamarde“tempodatestemunha”.Ou seja, sua idade, distanciamento ou proximidade sobre a temática interrogada, seconheciaounãoapessoaalvodainvestigaçãoetc.Alémdisso,temosacessoapenasaoquefoiregistradopelosnotários.Issonosimpõeumalimitaçãoquepareceóbvia,masnãopodesernegligenciada:nãopodemostomarosdepoimentoscomoumregistrofieldaquiloquefoidito.

Naquele período também tornou-se corriqueira a participação direta deencarregadosdeescreveranarrativaoficial sobrea santidade.Osautoresdasvita em muitoscasosforaminterrogadose/outiveramacessoàsataseissoétãomaiscomumsetratamosdeprocessosrelacionadosamembrosdeOrdensreligiosas,comodominicanosefranciscanos,porexemplo.AcompilaçãohagiográficamaisfamosadaIdadeMédia,a

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Legenda áurea,éumconjuntodenarrativasheterogêneassobremuitossantosmártiresdoiníciodocristianismoedepouquíssimossantosdeseutempo,ouseja,doséculoXIII.(VAUCHEZ,1986:27-56)

Umdoscasos,anarrativasobrePedro Mártir,éapropriadamentedefinidaporAlainBoureaucomouma“pátinahagiográfica”.Segundoohistoriadorfrancês,paracomporahistóriadePedrodeVerona,JacopodeVarazzeutilizouumadiversidadedocumentalquefoioracopiadaoraadaptadapelaspenasdeseuautor/compilador.(BOUREAU,2005:359-366)Ahagiografiaconcebidanessassituaçõese/ouapartirdessacaracterísticadeproximidadee/ousimultaneidadeemrelaçãoaoprocessodecanonizaçãoé,portanto,aliteralizaçãodeumabiografia,atransformaçãodatrajetóriadealguémquenasceu,viveuemorreuesobrequemsãoatribuídosfeitosextraordinários,nãorealizáveisportodososseres.1

Éimportanteressaltarqueasantidadeéumfenômenoqueextrapola,emuito,esteuniversooficial.Ouseja,hámúltiplosregistrosdecultosprestadosahomensemulheresnasmais diferentes regiões que sequer foram alvos daquele tipo de investigação quedescrevemos.Trataremos,noentanto,apenasdasoficiais.Estaé,inclusive,aconclusãodeAndréVaucheznaprincipaltesedefendidaatéomomentosobreouniversodasantidadenaIdadeMédiaapósainstituiçãodosprocessosdecanoniação.(VAUCHEZ,1988)

Pequena historiografia sobre processos de canonização na Idade Média: da história total à microhistória?

Vamosdestacaraquiduastendênciassobreprocessosdecanonização.Uma,dadécada de 1980 e outra do início do séculoXXI.AndréVauchez, é, semdúvida, umdosprincipaismotivadoresdaspesquisassobreprocessosdecanonização.Istoporcausade sua tese sobre a santidade nos séculos finais da IdadeMédia. Segundo este texto,épossível considerarque a instituiçãodosprocessosde canonização“racionalizou”aquestão da atribuição de santidade sem excluir o surgimento e fixação de cultos nãooficiais.Oautorconcluiu,então,queháumasantidadeoficial,aquelareconhecidapelopapado,easantidadelocal.

As características gerais desta tese consistem em um levantamento de fôlegosobreosinquéritosocorridosentreosséculosXI-XV.Oautorapresentalistasequadrosquerevelam,porexemplo,questõesdegênero,decargoe/oufunçãoreligiosa,demandasautorizadas,demandasnãoautorizadas,modificaçõesnarelaçãoentreofieleossantos.

1 Poderíamoscitaraquiinúmerostrabalhosqueconsideramesseprocesso.DestacamosorecentetextodeNérideBarrosAlmeida(ALMEIDA,2011:127-157)eumexercíciodecomparaçãoquedesenvolvemosemco-autoriacomCarolinaCoelhoFortes,notexto:“Ocorponaliteraturahagiográficadominicana:daLegenda áurea à Ystoria sancti Thome de Aquino(1290-1323)”.Cf.TEIXEIRAeFORTES,2009:205-224)

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Emoutras palavras, de acordo comVauchez, a utilização dos processos fez diminuirnúmerodesantosreconhecidospelospontífices.Comoreconhecimentocadavezmais“restrito”demilagres,asantidadepassariaaseratestadamaispelavidavirtuosaenãopelosfeitosextraordinários.(VAUCHEZ,1988) Esta tesepossuiméritospelo fatode considerar a santidadena longaduração.Porém,algunselementosdevemserquestionados.Porexemplo:Vauchezestabeleceumcritériotemporaldedivisãodasantidadeemrelaçãoaopapado.Paraoautor,temos:

Tabela 1: A Santidade e os Processos de Canonização segundo André Vauchez

PERÍODOS

PROCESSOS ORDENADOS

PELO PAPADO CANONIZAÇÕES EFETUADAS1198-1268 47 23

1268-1304 2 1

1305-1378 12 7

1379-1431 10 5

TOTAL 71 35

Fonte: VAUCHEZ, 1988: 71

Os“períodos”nãocompreendemintervalosdetempohomogêneos.Oralongos,oracurtos.Eacabamproduzindouma“média”relativamenteproporcional:48,93%noprimeiro,50%nosegundo,58,33%noterceiroe50%noquarto.Sesomarmostodososprocessosordenados(71)erealizarmosumamédiasimplespelototaldecanonizações(35)teremospoucomaisde49%entreautorizaçõesecanonizações.Issoseriasuficienteparaoargumentosobrearacionalizaçãosobreasantidadeapartirdosprocessos?

ÉimportanteressaltarqueemtodososnossostrabalhosanterioresrealizamosasanálisesconsiderandoestequadropropostoporAndréVauchez,masiniciamosnopresenteprojetotambémumacríticaquantitativaequalitativasobre(resultadosincipientesparaconclusões). Porém, podemos destacar dois trabalhos realizados aqui no Brasil queavaliamcriticamenteaspectosdatesegeraldeAndréVauchez.Trata-sedadissertaçãodeThiagoAzevedoPorto(PORTO,2008)eotextodeCarolinaCoelhoFortes(FORTES,2008:81-90).Noprimeirocaso,oautorsegueaconclusãosobreasantidadeoficialealocaleanalisaoscasosdeDomingosdeGusmãoeDomingosdeSilos.Nosegundo,aautoraanalisaespecificamenteaquestãodos“modelosdesantidade”naobradeVaucheze,principalmente,o“masculino”.

Cercade20anosapósadefesadatesedeAndréVauchez,DidierLettapresentouum“ensaiodehistóriasocial”apartirdeumúnicoprocessodecanonização.Estaposturaoutendênciaconsideraosprocessosdecanonizaçãodeformapormenorizada,ouseja,

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comofontes“seriais”.(LETT,2008)2Trata-sedautilizaçãodosprocessosdecanonizaçãocomo documentação jurídica e que, por isso, podem auxiliar na explicação sobre associedadesnasquaisaconteceram.

Podemos destacar duas obras: a coletiva, organizada por Gábor Klaniczay,Processos de Canonização na Idade Média: aspectos jurídicos e religiosos(KLANICZAY,2004)eateseUm processo de canonização na Idade Média. Ensaio de história social: Nicolas de Tolentino, 1325, deDidier Lett. (LETT, 2008) Essas obras direcionam osquestionamentos para, por exemplo, as redes de contato entre elites locais e/ou eliteseclesiásticascomacúriapontíficia,diferençassociaisedegêneronotratamentodadoaoregistrodapalavranasatas.Fazendoumparalelo,consideraroprocessodecanonizaçãodestaformaéinserirempossibilidadesdeanálisescomoasfeitasporCarloGinzburg,EmmanuelLeRoyLadurieeGiovanniLevi.

Aoanalisaroinquéritode1325sobreasantidadedeNicolasdeTolentino,Lettteveacessoàspeçasoriginaiseatasdosinquéritos.Istopermitiuoautordesenvolverométododefinidopelomesmocomo“tempodapalavra”.Ouseja,apartirdodetalhamentoetamanhodosdepoimentosanotadospelosnotários,Lettconcluiuquehomensnobrestiverammaisatençãoemsuasdeclarações,aocontráriodoqueaconteceriacommulheresleigas,porexemplo.AlgopróximofoidesenvolvidoporAndreaRobiglioemrelaçãoaodepoimentodeBartolomeudeCápuanoprocessode1319paraacanonizaçãodeTomásdeAquino.(ROBIGLIO,2008)Outrotipodeanálisesobreosprocessospodeserencontradonos trabalhos deAlain Boureau. Este autor analisou os processos de canonização dofinaldoséculoXIIIeiníciodoséculoXIVeconcluiuque,pelaformadetratamentoeimportânciacontextual,ademonologiafoiumproblemateológico-doutrinárioimportantenaqueleperíodo.(BOUREAU,2004) Essasduastendênciastêmumacaracterísticacomum:aconsideraçãodasantidadecomo fenômeno coletivo construído.Neste sentido, os autores abordam tanto como asantidadeéconstruída(funcionamentodosprocessos,tradiçõesliterárias,locaisdeculto)quanto, parafraseandoDidier Lett, como a sociedade é construída.Nossa perspectivaestámaispróximadestesegundoaspecto.Ouseja,ao trabalharmoscomprocessosdecanonização,nossointeresseestámaisrelacionadoàsparticipaçõesdehomens,mulheresecrianças;clérigose leigos;ricosepobres.Interessasabersea investigaçãofuncionadamesmaformaesobamesmarigidezindepentementedegrausdeproximidadeentrePapa,OrdensReligiosas,Reinosetc.Porissoaimportânciadasreflexõesquefazemosaqui:comoprocederaanálisesqueconsideramo“tempodapalavra”?Comoestabelecer“grausdeproximidade”?

2 Atesefoidefendidaem2006.

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PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO COMO FONTE E A PESqUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAl NO BRASIl

Para responder às perguntas elaboradas anteriormente precisamos consideraras formas de acesso à documentação. Essa questão é importantíssima. É fato que ainternettemauxiliadoemuitonasnossasatividades,masnemtudoestáonline.3Éfatoqueos intercâmbiosacadêmicosentrepesquisadoresbrasileirose instituições/arquivosextrangeirostambémaumentou,masnemtodomundotemacessoàsoportunidades.Éimportanteressaltarque,noBrasil,opredomínioéemestudossobreashagiografias.ParatantodestacamosostrabalhosproduzidoseorientadospelasprofessorasAndréiaFrazãodaSilva(SILVA,2008a/b,2004e2002)eNérideBarrosAlmeida(ALMEIDA,2011)4,alémdoimpulsopromovidoapartirdapublicaçãonoBrasildaprimeiratraduçãoparaoportuguêsdaLegenda áurea.(JACOPODEVARAZZE,2003)

Emrelaçãoaosprocessosdecanonização,realizamosumabuscanaPlataformaLattes do CNPq. A partir da expressão “processo de canonização na Idade Média”apareceram 18 resultados (incluindo orientadores, membros de bancas, que nãonecessariamente pesquisam a documentação). Produção esta, então, que podemosconsiderarincipiente.Perguntamos:éporfaltadedocumentação?

Especificamente,aprincipalcompilaçãodemateriaisdestegêneroestádisponívelemdiversossites.Trata-sedosActa sanctorum.Esforçodoschamadosbolandistasparaacompilaçãoetratamentodedocumentaçãorelacionadaàsantidade.Masnemtudoestápublicadonestacompilação.SobreTomásdeAquino,porexemplo,temosacessoapenasaoinquéritode1319.(ACTASANCTORUM,1668:655-747)Oinquéritode1321nãoconstanoconjuntode textospublicadosnaquelacompilação.Trata-se,noentanto,umsantoquefoimembrodeumaOrdemreligiosa,adospregadoresoudosdominicanos.AsOrdens têm geralmente projetos de publicação de fontes sobre sua história e issoinclui os processos de canonização. Caso de Tomás deAquino (FONTESVITAE S.THOMEDEAQUINO,1931,v.1e2),DomingosdeGusmão(SANTODOMINGODEGUSMÁNVISTOPORSUSCONTEMPORÁNEOS,1947:267-323)eClaradeAssis5,porexemplo.

Essasquestõespautamasnossaspreocupações.Aoestabelecerum“projetodeiniciaçãocientífica”comopartedapesquisaOs Tempos da Santidade,comoselecionaras fontes para o trabalho inicial a ser elaborado pelo bolsista? A documentação

3 Cf.asreflexõesdeAndréiaCristinaL.FrazãodaSilvaeLeilaRodriguesdaSilvaem(SILVAeSILVA,2007:134-147)4 CfoutrostextosdestaautoraemSOUZA,1998,2002.5 Cfosite:http://www.procasp.org.br/fontes.php?cfonte=2Nestelinkpode-seacessaras«fontesclaria-nas»eas«fontesfranciscanas».Dentreelas,bulasdecanonização,processosdecanonizaçãoehagio-grafias.

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predominantemente está em latim. Mas o projeto de iniciação científica pode exigirqueoalunodomine leitura e interpretaçãode textoem latime,porvezes,odomíniodepaleografia?Se a resposta fossepositiva, convenhamosqueoprojetonão seria deiniciação à pesquisa. Mas como fazer? Usar traduções? Se sim, como fazer para aanálisedeferramentascomoado“tempodapalavra”?Nesteaspecto,acreditamosqueotempo da santidadepodeamenizardificuldadeseinstrumentalizaroidealnecessáriodeproblematizaçãoàpesquisahistórica.

Outraferramentaqueauxiliaéaperspectivacomparada.Emoutrasoportunidadesrealizamos exercícios de história comparada para processos de canonização, como oscasosdosinquéritosde1319e1321sobreTomásdeAquinoemrelaçãoaoinquéritode1325paraacanonizaçãodeNicolasdeTolentino.(TEIXEIRA,2011b:01-11)Alémdisso,comomesmotipodeperspectivacomparadaanalisamosaconstituiçãoda“identidade”dossantosdominicanos,considerandoprocessosehagiografiasdeDomingosdeGusmão,PedroMártireTomásdeAquino.Nesteúltimotrabalho,especificamente,acomparaçãopossibilitouconcluirqueatesedefendidaporCarolinaFortessobrearelaçãodosfradespregadoreseosestudoséapropriada,porém,dopontodevista“literário-hagiográfico”estaidentidadedemoroucercadeumséculoparaserconstituída.(TEIXEIRA,2012b)6

Nestepontochegamos,então,aumobstáculoepistemológicoemrelaçãoàsduastendênciasapresentadasnotópicoanterior.AndréVauchezabordaasantidadecomoumfenômenonalongaduração(1198-1431).DidierLett,aocontrário,consideraumprocessoemseucontextodeprodução(1325).OsprincipaisproblemasquedetectamosnatesedeAndréVauchez estão relacionados à temporalidade na qual o autor pensou os santos:“santosmuitoantigos”e“santidaderecente”.Porsantidaderecente,Vauchezconsiderouossantosque,apartirdoséculoXIII,passaramasercanonizadosemumamédiatemporalmenorouiguala60anos.Ossantosmuitoantigos,médiaigualousuperiora100anos.Essa definição de santidade recente inclui santos como que chamamos de tempo da santidade muito distintos. Ou seja, se considerarmos somente os santos oriundos deOrdensMendicantescanonizadosentreosséculosXIIIeXIVostempos da santidade variamde01amaisde100anos.Emoutraspalavras,acategoriaelaboradaporVauchez,ao considerar os processos em uma “média”, no nosso entendimento, pode anular asespecificidadesdecadaprocesso.

Em relação à tese deDidier Lett, considerar um único processo pode levar àdescontextualizaçãodadocumentação.Istoé:considerarapenasoprocessodeDidierLettpodelevaraumaleiturasupervalorizadadeaspectosdoprocesso,seufuncionamento,registro,escolhadetestemunhas,porexemplo.EssaquestãotambémpodeserconsideradaparaatesedeLettnamedidaemqueoautornãoanalisouoconjuntodadocumentação

6 Partedessasreflexõestambémpoderãoseracessadasnotexto:“Entre1274e1323:QualasantidadedeTomásdeAquinoparaosFradesDominicano?”Cf:TEIXEIRA,2011c.

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referenteàsantidadedeNicolasdeTolentino,ouseja,alémdoinquéritode1325,ode1357.

Por issodefendemosoconceitode tempo da santidade.Entendemosqueesteconceitopossibilitaoolharespecíficosobrecadaprocessoe,aomesmotempo,aconstruçãodecategoriascomparáveis:gênero,temposdistintos,tempospróximos,regiões,cargose/oufunçõesdoscandidatosasanto.Consideramosdoisprocessos:DomingosdeGusmãoeClaradeAssis.Oprimeiropossuiumtempodesantidadede13anos(canonizadoem1234,processorealizadoem1233,mortoem1221);osegundo,2anos(canonizadaem1255,processoem1253,mortanomesmoano).ParacanonizarofundadordaOrdemdosPregadoresforaminterrogadas36pessoas.Alémdisso,outras“trezentastestemunhas”forammencionadasaofinaldasatas,porém,semidentificaçãodenomeseorigens.ParaClara,20pessoas,16mulheres.

Seconsiderarmosoreferidotrabalhodeiniciaçãocientíficaapartirdastraduçõesdisponíveis,aideiade“contar”aspalavrasdeveserdescartada.7Porém,otrabalhopodediscutirquestõescomo:asperguntaseramasmesmasparahomensemulheres?Quaisasdiferençasnofuncionamentodeumprocessosobreumcandidatoasantoemrelaçãoao de uma candidata?A diferença no tempo de santidade pode explicar o porquê?Éimprescindível a análise da documentação dos pontífices. Podemos, então, perguntar:qualaparticipaçãodospapas?

Porexemplo,ClaradeAssisfoi“pauta”dedoispapas.Um,autorizouaaberturadoprocesso,ooutrocanonizou(InocêncioIVeAlexandreIV,respectivamente).TomásdeAquinofoi“pauta”deumúnicopapa:JoãoXXII.Papaestequecanonizououtrosdoissantos,asaber,TomásdeCantiloupeeLuisdeAnjou.Porém,estestiveramseusprocessosrealizadosem1307e1308,ouseja,nopontificadodeCelestinoV,antesdeJoãoXXII.Alémdisso,seconsiderarmosostempos da santidade deTomásdeCantiloupeeLuisdeAnjoutemos:38e20anos,respectivamente.OdeTomás,49.

Estesdadospermitemperguntartambém:porqueospapaspriorizamacausadeum santo e não de outros? Se considerarmos o tempo intermediário de autorização ecanonização,podemos,ainda,perguntar:quaisinteressesteriaumpapaparaautorizarecanonizarumsantoemseupontificado?FoiestaperguntaquerespondemosnatesededoutoradosobreasantidadedeTomásdeAquino.DefendemosqueoPapafoioprincipalinteressadonestacanonizaçãoporcausadosquestionamentosenfrentadosnocontextodaquerelasobreapobrezaradicaldeCristo.(TEIXEIRA,2011a)

Adocumentaçãopapalestáfartamentedisponibilizada.Oqueéinteressante,poisotrabalhodeiniciaçãocientíficatambémpassapeloprocessodecomparaçãodediferentes

7 EstetemaseráabordadonotrabalhoHombres y mujeres en los procesos de canonización: palabra y poder en la Edad Media,queseráapresentadonasXIIJornadasdelaSociedadArgentinadeEstudiosMe-dievales(SAEMED),emsetembrode2012.

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ediçõesedefiniçãodecritériosparaautilizaçãodasediçõesdisponíveis.Nestesentidodestacamosoportaldocumenta catholica omnia.8ParaabuladecanonizaçãodeClaradeAssisencontramosversõesemcincoidiomas.9

CONSIDERAÇõES FINAIS:

Apartirdoquefoiapresentadopodemosfazeralgumasafirmações:definitivamente,os processos de canonização podem e devem ser explorados pelos medievalistasbrasileirosinteressadosnãoapenasemproblematizararelaçãoentreassociedadeseosagradonaIdadeMédia.Osrecentesestudossobreouniversojurídicotambémpodemser “alimentados” por abordagens sobre o funcionamento processual naquele períodoconsiderando esse tipo de documentação. Entretanto, o pesquisador brasileiro precisateremmenteasexigênciaseespecificidadessobreotrabalho:investimentoemestudossobrelínguaelinguagem;acessoaosmeiosdedivulgaçãoecirculaçãodadocumentação,realizaracríticadatradiçãomanuscrita,oqueincluiconsideraroestadodaspeçasquetememmãos.

A partir disso, é importantíssimo conhecer métodos e reconhecer os limitesque a documentação impõempara a realização do trabalho.Emoutras palavras: se aperspectivadahistóriaéaelaboraçãodeproblemas,esse(re)conhecimentoimplicaementenderqueadocumentaçãoimpõelimitesàproblematização.Paratanto,apresentamostrêspossibilidadesdeabordagem.

Aprimeiraconsisteemumtipodeanálisedosprocessosdecanonizaçãonalongaduração.PropostaestadesenvolvidaporAndréVauchezequeéreferênciaatéhojeparaos estudos sobre santidade oficial na IdadeMédia.A segunda, a tese deDidier Lett,consideraumúnicoprocessodecanonizaçãoemseucontextodefuncionamento.Paraoautor,oinquérito,cruzadocomoutrasfontesdoperíodo,permitemperceberaconstruçãodasociedade.Segundooautor,épossívelperceberqueahomensreligiosose/ounobresédadamaiorimportâncianomomentodoregistrodosdepoimentos.Issosecomparadososdepoimentosdestescomosdeleigosemgeralemulheres.

A terceira, que consisite na perspectiva do tempo da santidade, considera asespecificidades dos processos de canonização e permite a elaboração de ferramentasde comparação. Essas ferramentas, no nosso entendimento, viabilizam uma melhorcompreensão tanto do funcionamento jurídico dos inquéritos quanto da construção

8 Cf:http://www.documentacatholicaomnia.eu/.9 Cfaversãoemportuguêsem:http://www.documentacatholicaomnia.eu/01p/1255-09-26,_SS_Alexan-der_IV,_Bulla_’Clara_Claris_Praeclara’,_PT.pdf.Consultadoemagostode2012.

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da sociedade, como afirmou Didier Lett. Continuamos desenvolvendo a pesquisa etrabalhandonaelaboraçãoeproduçãodosresultados.10

REFERêNCIAS BIBlIOGRáFICAS:

DOCUMENTAÇÃO:

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JACOPODEVARAZZE.Legenda Áurea: Vidas de Santos.CoordenaçãodeTradução:HilárioFrancoJúnior.SãoPaulo:CiadasLetras,2003.

SANTO DOMINGO DE GUZMÁN VISTO POR SUS CONTEMPORÁNEOS.Esquema biográfico,introducciones,versiónynotasdelosPadresFr.MiguelGelabert,O.P.,Fr.JoséMaríaMilagro,O.P..IntroducciónGeneralporelPadreFr.JoséMaríadeGarganta,O.P.Madrid:BAC,MCMXLVII.

BIBlIOGRAFIA CITADA:

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BOUREAU,A.Satan hérétique: Naissance de la démonologie dans l’occident médiéval

10 Nesteaspecto,nãopodemosdeixardeagradecerosfinanciamentosdaFAPERGScomumabolsadeNesteaspecto,nãopodemosdeixardeagradecerosfinanciamentosdaFAPERGScomumabolsadeiniciaçãocientíficaedaPró-ReitoriadePós-GraduaçãodaUFRGScomaconcessãodeauxíliofinanceiroparauma“missãocurtanoexterior”(edital02/2012).

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