introduÇÃo · para o período entre a segunda metade do século xiii e primeira metade do século...

13
648 TESTEMUNHOS, MEMÓRIA E NARRATIVAS: A HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO IGOR SALOMÃO TEIXEIRA Depto História/UFRGS [email protected] INTRODUÇÃO: Este trabalho é uma pequena reflexão sobre questões de ordem teórico- metodológica que norteiam o projeto de pesquisa Os Tempos da Santidade: Processos de canonização e relatos hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV) que desenvolvemos na UFRGS desde dezembro de 2011. O principal objetivo deste projeto é aplicar e analisar os limites e possibilidades do conceito de tempo da santidade que elaboramos como resultado da tese de doutorado que defendemos naquele ano. O conceito aborda a construção coletiva da santidade de homens e mulheres de modo retroativo, ou seja, parte da data da canonização para a data da morte. Neste sentido, o resultado do intervalo temporal entre canonização e morte nos fornece aquilo que chamamos como o tempo no qual a santidade foi construída em torno e a respeito de um candidato a santo. (TEIXEIRA, 2012) Na comunicação que ora apresentamos, cujo título é Testemunhos, memória e narrativas: a história e historiografia dos processos de canonização nosso objetivo consiste em problematizar as características do que chamamamos de processos de canonização realizados na Idade Média. Além disso, tratamos das implicações dessa questão em pesquisas realizadas no Brasil sobre a temática. PEQUENA HISTÓRIA E CARACTERÍSTICAS DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO NA IDADE MÉDIA Em linhas gerais, um processo de canonização é um ordenamento pontifício para a investigação de supostos feitos excepcionais ou milagres que estão sendo atribuídos a

Upload: buithuan

Post on 02-Dec-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

648

TESTEMUNHOS, MEMÓRIA E NARRATIVAS: A HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO

Igor Salomão TeIxeIra

Depto História/UFRGS [email protected]

INTRODUÇÃO:

Este trabalho é uma pequena reflexão sobre questões de ordem teórico-metodológicaquenorteiamoprojetodepesquisaOs Tempos da Santidade: Processos de canonização e relatos hagiográficos dos santos mendicantes (séculos XIII e XIV) que desenvolvemosnaUFRGSdesdedezembrode2011.Oprincipalobjetivodesteprojetoéaplicareanalisaroslimitesepossibilidadesdoconceitodetempo da santidade que elaboramoscomoresultadodatesededoutoradoquedefendemosnaqueleano.Oconceitoabordaaconstruçãocoletivadasantidadedehomensemulheresdemodoretroativo,ouseja,partedadatadacanonizaçãoparaadatadamorte.Nestesentido,oresultadodointervalotemporalentrecanonizaçãoemortenosforneceaquiloquechamamoscomootemponoqualasantidadefoiconstruídaemtornoearespeitodeumcandidatoasanto.(TEIXEIRA,2012)

Nacomunicaçãoqueoraapresentamos,cujotítuloéTestemunhos, memória e narrativas: a história e historiografia dos processos de canonizaçãonossoobjetivoconsiste em problematizar as características do que chamamamos de processos decanonização realizados na IdadeMédia.Além disso, tratamos das implicações dessaquestãoempesquisasrealizadasnoBrasilsobreatemática.

PEqUENA HISTÓRIA E CARACTERíSTICAS DOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO NA IDADE MéDIA

Emlinhasgerais,umprocessodecanonizaçãoéumordenamentopontifícioparaainvestigaçãodesupostosfeitosexcepcionaisoumilagresqueestãosendoatribuídosa

648 649

homem(s)e/oumulher(s).EssainvestigaçãoéumfenômenoquesurgiunaIdadeMédiae que, principalmente a partir do séculoXII, assumiu uma característica inquisitorialconcomitanteaodesenvolvimentodouniversodo“direito”noOcidenteapósaredescobertadoCódigo de Justinianoe,também,daestruturaçãodoCódigo de Direito Canônico.

Um processo de canonização é, então, uma investigação, uma inquisição.Contemporâneo à normatização da confissão auricular obrigatória; à chamada “santainquisição”oua“inquisiçãocontraheresias”eaodesenvolvimentodasescolasdeleis,comoafaculdadedeBolonha.Aprincipalcaracterísticadesteprocessoéquenoconjuntodetestemunhasinterrogadasdificilmenteencontraremosalgumaqueestejaaliforçadae/ouameaçadadetortura.Aocontrário.Aquelequeparticipadoprocesso,emgeral,“querfalar”.(TEIXEIRA,2011ae2009) Para o período entre a segunda metade do século XIII e primeira metade doséculoXIV–compreendidononossoprojetodepesquisa–osinterrogatórioseoregistrodosmesmosassumiamumaformacadavezmaisrecorrente:opapaordenaaaberturado processo, nomeia notários e encarregados da causa de canonização; solicita que ainvestigaçãosejadiligenteeoficialsobrefama publicadavidaemilagresdo(a)suposto(a)santo(a).Écomumqueasperguntassobremilagressejamdirecionadasparacuras.E,nestesentido,osinquisidoresdeveminterrogarsobretodasascircunstânciasdoperíodoecaracterísticasdadoençaedoperíodopós-cura.Terminadososinterrogatóriososnotáriosregistramematasquesãoenviadasàscomissõespontíficiase,porfim,submetidasàsanálisesdopapa.Este,segueounãoasdecisões,ouseja,édesuaresponsabilidadedecidirpela canonizaçãoounão.Existindodúvidas, geralmente, hánovos inquéritos. (LETT,2008) Apontamosaquiumelementoimportante:os interrogatórios.Acanonizaçãosóaconteceapósamorte,ouseja,quandoosinterrogadossãointerrogadosháumintervalotemporalentreoacontecimentonarradoeanarrativadoacontecimento.Sendoassim,osnotárioseinquisidoreslidamcomoquepoderíamoschamarde“tempodatestemunha”.Ou seja, sua idade, distanciamento ou proximidade sobre a temática interrogada, seconheciaounãoapessoaalvodainvestigaçãoetc.Alémdisso,temosacessoapenasaoquefoiregistradopelosnotários.Issonosimpõeumalimitaçãoquepareceóbvia,masnãopodesernegligenciada:nãopodemostomarosdepoimentoscomoumregistrofieldaquiloquefoidito.

Naquele período também tornou-se corriqueira a participação direta deencarregadosdeescreveranarrativaoficial sobrea santidade.Osautoresdasvita em muitoscasosforaminterrogadose/outiveramacessoàsataseissoétãomaiscomumsetratamosdeprocessosrelacionadosamembrosdeOrdensreligiosas,comodominicanosefranciscanos,porexemplo.AcompilaçãohagiográficamaisfamosadaIdadeMédia,a

650

Legenda áurea,éumconjuntodenarrativasheterogêneassobremuitossantosmártiresdoiníciodocristianismoedepouquíssimossantosdeseutempo,ouseja,doséculoXIII.(VAUCHEZ,1986:27-56)

Umdoscasos,anarrativasobrePedro Mártir,éapropriadamentedefinidaporAlainBoureaucomouma“pátinahagiográfica”.Segundoohistoriadorfrancês,paracomporahistóriadePedrodeVerona,JacopodeVarazzeutilizouumadiversidadedocumentalquefoioracopiadaoraadaptadapelaspenasdeseuautor/compilador.(BOUREAU,2005:359-366)Ahagiografiaconcebidanessassituaçõese/ouapartirdessacaracterísticadeproximidadee/ousimultaneidadeemrelaçãoaoprocessodecanonizaçãoé,portanto,aliteralizaçãodeumabiografia,atransformaçãodatrajetóriadealguémquenasceu,viveuemorreuesobrequemsãoatribuídosfeitosextraordinários,nãorealizáveisportodososseres.1

Éimportanteressaltarqueasantidadeéumfenômenoqueextrapola,emuito,esteuniversooficial.Ouseja,hámúltiplosregistrosdecultosprestadosahomensemulheresnasmais diferentes regiões que sequer foram alvos daquele tipo de investigação quedescrevemos.Trataremos,noentanto,apenasdasoficiais.Estaé,inclusive,aconclusãodeAndréVaucheznaprincipaltesedefendidaatéomomentosobreouniversodasantidadenaIdadeMédiaapósainstituiçãodosprocessosdecanoniação.(VAUCHEZ,1988)

Pequena historiografia sobre processos de canonização na Idade Média: da história total à microhistória?

Vamosdestacaraquiduastendênciassobreprocessosdecanonização.Uma,dadécada de 1980 e outra do início do séculoXXI.AndréVauchez, é, semdúvida, umdosprincipaismotivadoresdaspesquisassobreprocessosdecanonização.Istoporcausade sua tese sobre a santidade nos séculos finais da IdadeMédia. Segundo este texto,épossível considerarque a instituiçãodosprocessosde canonização“racionalizou”aquestão da atribuição de santidade sem excluir o surgimento e fixação de cultos nãooficiais.Oautorconcluiu,então,queháumasantidadeoficial,aquelareconhecidapelopapado,easantidadelocal.

As características gerais desta tese consistem em um levantamento de fôlegosobreosinquéritosocorridosentreosséculosXI-XV.Oautorapresentalistasequadrosquerevelam,porexemplo,questõesdegênero,decargoe/oufunçãoreligiosa,demandasautorizadas,demandasnãoautorizadas,modificaçõesnarelaçãoentreofieleossantos.

1 Poderíamoscitaraquiinúmerostrabalhosqueconsideramesseprocesso.DestacamosorecentetextodeNérideBarrosAlmeida(ALMEIDA,2011:127-157)eumexercíciodecomparaçãoquedesenvolvemosemco-autoriacomCarolinaCoelhoFortes,notexto:“Ocorponaliteraturahagiográficadominicana:daLegenda áurea à Ystoria sancti Thome de Aquino(1290-1323)”.Cf.TEIXEIRAeFORTES,2009:205-224)

650 651

Emoutras palavras, de acordo comVauchez, a utilização dos processos fez diminuirnúmerodesantosreconhecidospelospontífices.Comoreconhecimentocadavezmais“restrito”demilagres,asantidadepassariaaseratestadamaispelavidavirtuosaenãopelosfeitosextraordinários.(VAUCHEZ,1988) Esta tesepossuiméritospelo fatode considerar a santidadena longaduração.Porém,algunselementosdevemserquestionados.Porexemplo:Vauchezestabeleceumcritériotemporaldedivisãodasantidadeemrelaçãoaopapado.Paraoautor,temos:

Tabela 1: A Santidade e os Processos de Canonização segundo André Vauchez

PERÍODOS

PROCESSOS ORDENADOS

PELO PAPADO CANONIZAÇÕES EFETUADAS1198-1268 47 23

1268-1304 2 1

1305-1378 12 7

1379-1431 10 5

TOTAL 71 35

Fonte: VAUCHEZ, 1988: 71

Os“períodos”nãocompreendemintervalosdetempohomogêneos.Oralongos,oracurtos.Eacabamproduzindouma“média”relativamenteproporcional:48,93%noprimeiro,50%nosegundo,58,33%noterceiroe50%noquarto.Sesomarmostodososprocessosordenados(71)erealizarmosumamédiasimplespelototaldecanonizações(35)teremospoucomaisde49%entreautorizaçõesecanonizações.Issoseriasuficienteparaoargumentosobrearacionalizaçãosobreasantidadeapartirdosprocessos?

ÉimportanteressaltarqueemtodososnossostrabalhosanterioresrealizamosasanálisesconsiderandoestequadropropostoporAndréVauchez,masiniciamosnopresenteprojetotambémumacríticaquantitativaequalitativasobre(resultadosincipientesparaconclusões). Porém, podemos destacar dois trabalhos realizados aqui no Brasil queavaliamcriticamenteaspectosdatesegeraldeAndréVauchez.Trata-sedadissertaçãodeThiagoAzevedoPorto(PORTO,2008)eotextodeCarolinaCoelhoFortes(FORTES,2008:81-90).Noprimeirocaso,oautorsegueaconclusãosobreasantidadeoficialealocaleanalisaoscasosdeDomingosdeGusmãoeDomingosdeSilos.Nosegundo,aautoraanalisaespecificamenteaquestãodos“modelosdesantidade”naobradeVaucheze,principalmente,o“masculino”.

Cercade20anosapósadefesadatesedeAndréVauchez,DidierLettapresentouum“ensaiodehistóriasocial”apartirdeumúnicoprocessodecanonização.Estaposturaoutendênciaconsideraosprocessosdecanonizaçãodeformapormenorizada,ouseja,

652

comofontes“seriais”.(LETT,2008)2Trata-sedautilizaçãodosprocessosdecanonizaçãocomo documentação jurídica e que, por isso, podem auxiliar na explicação sobre associedadesnasquaisaconteceram.

Podemos destacar duas obras: a coletiva, organizada por Gábor Klaniczay,Processos de Canonização na Idade Média: aspectos jurídicos e religiosos(KLANICZAY,2004)eateseUm processo de canonização na Idade Média. Ensaio de história social: Nicolas de Tolentino, 1325, deDidier Lett. (LETT, 2008) Essas obras direcionam osquestionamentos para, por exemplo, as redes de contato entre elites locais e/ou eliteseclesiásticascomacúriapontíficia,diferençassociaisedegêneronotratamentodadoaoregistrodapalavranasatas.Fazendoumparalelo,consideraroprocessodecanonizaçãodestaformaéinserirempossibilidadesdeanálisescomoasfeitasporCarloGinzburg,EmmanuelLeRoyLadurieeGiovanniLevi.

Aoanalisaroinquéritode1325sobreasantidadedeNicolasdeTolentino,Lettteveacessoàspeçasoriginaiseatasdosinquéritos.Istopermitiuoautordesenvolverométododefinidopelomesmocomo“tempodapalavra”.Ouseja,apartirdodetalhamentoetamanhodosdepoimentosanotadospelosnotários,Lettconcluiuquehomensnobrestiverammaisatençãoemsuasdeclarações,aocontráriodoqueaconteceriacommulheresleigas,porexemplo.AlgopróximofoidesenvolvidoporAndreaRobiglioemrelaçãoaodepoimentodeBartolomeudeCápuanoprocessode1319paraacanonizaçãodeTomásdeAquino.(ROBIGLIO,2008)Outrotipodeanálisesobreosprocessospodeserencontradonos trabalhos deAlain Boureau. Este autor analisou os processos de canonização dofinaldoséculoXIIIeiníciodoséculoXIVeconcluiuque,pelaformadetratamentoeimportânciacontextual,ademonologiafoiumproblemateológico-doutrinárioimportantenaqueleperíodo.(BOUREAU,2004) Essasduastendênciastêmumacaracterísticacomum:aconsideraçãodasantidadecomo fenômeno coletivo construído.Neste sentido, os autores abordam tanto como asantidadeéconstruída(funcionamentodosprocessos,tradiçõesliterárias,locaisdeculto)quanto, parafraseandoDidier Lett, como a sociedade é construída.Nossa perspectivaestámaispróximadestesegundoaspecto.Ouseja,ao trabalharmoscomprocessosdecanonização,nossointeresseestámaisrelacionadoàsparticipaçõesdehomens,mulheresecrianças;clérigose leigos;ricosepobres.Interessasabersea investigaçãofuncionadamesmaformaesobamesmarigidezindepentementedegrausdeproximidadeentrePapa,OrdensReligiosas,Reinosetc.Porissoaimportânciadasreflexõesquefazemosaqui:comoprocederaanálisesqueconsideramo“tempodapalavra”?Comoestabelecer“grausdeproximidade”?

2 Atesefoidefendidaem2006.

652 653

PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO COMO FONTE E A PESqUISA EM HISTÓRIA MEDIEVAl NO BRASIl

Para responder às perguntas elaboradas anteriormente precisamos consideraras formas de acesso à documentação. Essa questão é importantíssima. É fato que ainternettemauxiliadoemuitonasnossasatividades,masnemtudoestáonline.3Éfatoqueos intercâmbiosacadêmicosentrepesquisadoresbrasileirose instituições/arquivosextrangeirostambémaumentou,masnemtodomundotemacessoàsoportunidades.Éimportanteressaltarque,noBrasil,opredomínioéemestudossobreashagiografias.ParatantodestacamosostrabalhosproduzidoseorientadospelasprofessorasAndréiaFrazãodaSilva(SILVA,2008a/b,2004e2002)eNérideBarrosAlmeida(ALMEIDA,2011)4,alémdoimpulsopromovidoapartirdapublicaçãonoBrasildaprimeiratraduçãoparaoportuguêsdaLegenda áurea.(JACOPODEVARAZZE,2003)

Emrelaçãoaosprocessosdecanonização,realizamosumabuscanaPlataformaLattes do CNPq. A partir da expressão “processo de canonização na Idade Média”apareceram 18 resultados (incluindo orientadores, membros de bancas, que nãonecessariamente pesquisam a documentação). Produção esta, então, que podemosconsiderarincipiente.Perguntamos:éporfaltadedocumentação?

Especificamente,aprincipalcompilaçãodemateriaisdestegêneroestádisponívelemdiversossites.Trata-sedosActa sanctorum.Esforçodoschamadosbolandistasparaacompilaçãoetratamentodedocumentaçãorelacionadaàsantidade.Masnemtudoestápublicadonestacompilação.SobreTomásdeAquino,porexemplo,temosacessoapenasaoinquéritode1319.(ACTASANCTORUM,1668:655-747)Oinquéritode1321nãoconstanoconjuntode textospublicadosnaquelacompilação.Trata-se,noentanto,umsantoquefoimembrodeumaOrdemreligiosa,adospregadoresoudosdominicanos.AsOrdens têm geralmente projetos de publicação de fontes sobre sua história e issoinclui os processos de canonização. Caso de Tomás deAquino (FONTESVITAE S.THOMEDEAQUINO,1931,v.1e2),DomingosdeGusmão(SANTODOMINGODEGUSMÁNVISTOPORSUSCONTEMPORÁNEOS,1947:267-323)eClaradeAssis5,porexemplo.

Essasquestõespautamasnossaspreocupações.Aoestabelecerum“projetodeiniciaçãocientífica”comopartedapesquisaOs Tempos da Santidade,comoselecionaras fontes para o trabalho inicial a ser elaborado pelo bolsista? A documentação

3 Cf.asreflexõesdeAndréiaCristinaL.FrazãodaSilvaeLeilaRodriguesdaSilvaem(SILVAeSILVA,2007:134-147)4 CfoutrostextosdestaautoraemSOUZA,1998,2002.5 Cfosite:http://www.procasp.org.br/fontes.php?cfonte=2Nestelinkpode-seacessaras«fontesclaria-nas»eas«fontesfranciscanas».Dentreelas,bulasdecanonização,processosdecanonizaçãoehagio-grafias.

654

predominantemente está em latim. Mas o projeto de iniciação científica pode exigirqueoalunodomine leitura e interpretaçãode textoem latime,porvezes,odomíniodepaleografia?Se a resposta fossepositiva, convenhamosqueoprojetonão seria deiniciação à pesquisa. Mas como fazer? Usar traduções? Se sim, como fazer para aanálisedeferramentascomoado“tempodapalavra”?Nesteaspecto,acreditamosqueotempo da santidadepodeamenizardificuldadeseinstrumentalizaroidealnecessáriodeproblematizaçãoàpesquisahistórica.

Outraferramentaqueauxiliaéaperspectivacomparada.Emoutrasoportunidadesrealizamos exercícios de história comparada para processos de canonização, como oscasosdosinquéritosde1319e1321sobreTomásdeAquinoemrelaçãoaoinquéritode1325paraacanonizaçãodeNicolasdeTolentino.(TEIXEIRA,2011b:01-11)Alémdisso,comomesmotipodeperspectivacomparadaanalisamosaconstituiçãoda“identidade”dossantosdominicanos,considerandoprocessosehagiografiasdeDomingosdeGusmão,PedroMártireTomásdeAquino.Nesteúltimotrabalho,especificamente,acomparaçãopossibilitouconcluirqueatesedefendidaporCarolinaFortessobrearelaçãodosfradespregadoreseosestudoséapropriada,porém,dopontodevista“literário-hagiográfico”estaidentidadedemoroucercadeumséculoparaserconstituída.(TEIXEIRA,2012b)6

Nestepontochegamos,então,aumobstáculoepistemológicoemrelaçãoàsduastendênciasapresentadasnotópicoanterior.AndréVauchezabordaasantidadecomoumfenômenonalongaduração(1198-1431).DidierLett,aocontrário,consideraumprocessoemseucontextodeprodução(1325).OsprincipaisproblemasquedetectamosnatesedeAndréVauchez estão relacionados à temporalidade na qual o autor pensou os santos:“santosmuitoantigos”e“santidaderecente”.Porsantidaderecente,Vauchezconsiderouossantosque,apartirdoséculoXIII,passaramasercanonizadosemumamédiatemporalmenorouiguala60anos.Ossantosmuitoantigos,médiaigualousuperiora100anos.Essa definição de santidade recente inclui santos como que chamamos de tempo da santidade muito distintos. Ou seja, se considerarmos somente os santos oriundos deOrdensMendicantescanonizadosentreosséculosXIIIeXIVostempos da santidade variamde01amaisde100anos.Emoutraspalavras,acategoriaelaboradaporVauchez,ao considerar os processos em uma “média”, no nosso entendimento, pode anular asespecificidadesdecadaprocesso.

Em relação à tese deDidier Lett, considerar um único processo pode levar àdescontextualizaçãodadocumentação.Istoé:considerarapenasoprocessodeDidierLettpodelevaraumaleiturasupervalorizadadeaspectosdoprocesso,seufuncionamento,registro,escolhadetestemunhas,porexemplo.EssaquestãotambémpodeserconsideradaparaatesedeLettnamedidaemqueoautornãoanalisouoconjuntodadocumentação

6 Partedessasreflexõestambémpoderãoseracessadasnotexto:“Entre1274e1323:QualasantidadedeTomásdeAquinoparaosFradesDominicano?”Cf:TEIXEIRA,2011c.

654 655

referenteàsantidadedeNicolasdeTolentino,ouseja,alémdoinquéritode1325,ode1357.

Por issodefendemosoconceitode tempo da santidade.Entendemosqueesteconceitopossibilitaoolharespecíficosobrecadaprocessoe,aomesmotempo,aconstruçãodecategoriascomparáveis:gênero,temposdistintos,tempospróximos,regiões,cargose/oufunçõesdoscandidatosasanto.Consideramosdoisprocessos:DomingosdeGusmãoeClaradeAssis.Oprimeiropossuiumtempodesantidadede13anos(canonizadoem1234,processorealizadoem1233,mortoem1221);osegundo,2anos(canonizadaem1255,processoem1253,mortanomesmoano).ParacanonizarofundadordaOrdemdosPregadoresforaminterrogadas36pessoas.Alémdisso,outras“trezentastestemunhas”forammencionadasaofinaldasatas,porém,semidentificaçãodenomeseorigens.ParaClara,20pessoas,16mulheres.

Seconsiderarmosoreferidotrabalhodeiniciaçãocientíficaapartirdastraduçõesdisponíveis,aideiade“contar”aspalavrasdeveserdescartada.7Porém,otrabalhopodediscutirquestõescomo:asperguntaseramasmesmasparahomensemulheres?Quaisasdiferençasnofuncionamentodeumprocessosobreumcandidatoasantoemrelaçãoao de uma candidata?A diferença no tempo de santidade pode explicar o porquê?Éimprescindível a análise da documentação dos pontífices. Podemos, então, perguntar:qualaparticipaçãodospapas?

Porexemplo,ClaradeAssisfoi“pauta”dedoispapas.Um,autorizouaaberturadoprocesso,ooutrocanonizou(InocêncioIVeAlexandreIV,respectivamente).TomásdeAquinofoi“pauta”deumúnicopapa:JoãoXXII.Papaestequecanonizououtrosdoissantos,asaber,TomásdeCantiloupeeLuisdeAnjou.Porém,estestiveramseusprocessosrealizadosem1307e1308,ouseja,nopontificadodeCelestinoV,antesdeJoãoXXII.Alémdisso,seconsiderarmosostempos da santidade deTomásdeCantiloupeeLuisdeAnjoutemos:38e20anos,respectivamente.OdeTomás,49.

Estesdadospermitemperguntartambém:porqueospapaspriorizamacausadeum santo e não de outros? Se considerarmos o tempo intermediário de autorização ecanonização,podemos,ainda,perguntar:quaisinteressesteriaumpapaparaautorizarecanonizarumsantoemseupontificado?FoiestaperguntaquerespondemosnatesededoutoradosobreasantidadedeTomásdeAquino.DefendemosqueoPapafoioprincipalinteressadonestacanonizaçãoporcausadosquestionamentosenfrentadosnocontextodaquerelasobreapobrezaradicaldeCristo.(TEIXEIRA,2011a)

Adocumentaçãopapalestáfartamentedisponibilizada.Oqueéinteressante,poisotrabalhodeiniciaçãocientíficatambémpassapeloprocessodecomparaçãodediferentes

7 EstetemaseráabordadonotrabalhoHombres y mujeres en los procesos de canonización: palabra y poder en la Edad Media,queseráapresentadonasXIIJornadasdelaSociedadArgentinadeEstudiosMe-dievales(SAEMED),emsetembrode2012.

656

ediçõesedefiniçãodecritériosparaautilizaçãodasediçõesdisponíveis.Nestesentidodestacamosoportaldocumenta catholica omnia.8ParaabuladecanonizaçãodeClaradeAssisencontramosversõesemcincoidiomas.9

CONSIDERAÇõES FINAIS:

Apartirdoquefoiapresentadopodemosfazeralgumasafirmações:definitivamente,os processos de canonização podem e devem ser explorados pelos medievalistasbrasileirosinteressadosnãoapenasemproblematizararelaçãoentreassociedadeseosagradonaIdadeMédia.Osrecentesestudossobreouniversojurídicotambémpodemser “alimentados” por abordagens sobre o funcionamento processual naquele períodoconsiderando esse tipo de documentação. Entretanto, o pesquisador brasileiro precisateremmenteasexigênciaseespecificidadessobreotrabalho:investimentoemestudossobrelínguaelinguagem;acessoaosmeiosdedivulgaçãoecirculaçãodadocumentação,realizaracríticadatradiçãomanuscrita,oqueincluiconsideraroestadodaspeçasquetememmãos.

A partir disso, é importantíssimo conhecer métodos e reconhecer os limitesque a documentação impõempara a realização do trabalho.Emoutras palavras: se aperspectivadahistóriaéaelaboraçãodeproblemas,esse(re)conhecimentoimplicaementenderqueadocumentaçãoimpõelimitesàproblematização.Paratanto,apresentamostrêspossibilidadesdeabordagem.

Aprimeiraconsisteemumtipodeanálisedosprocessosdecanonizaçãonalongaduração.PropostaestadesenvolvidaporAndréVauchezequeéreferênciaatéhojeparaos estudos sobre santidade oficial na IdadeMédia.A segunda, a tese deDidier Lett,consideraumúnicoprocessodecanonizaçãoemseucontextodefuncionamento.Paraoautor,oinquérito,cruzadocomoutrasfontesdoperíodo,permitemperceberaconstruçãodasociedade.Segundooautor,épossívelperceberqueahomensreligiosose/ounobresédadamaiorimportâncianomomentodoregistrodosdepoimentos.Issosecomparadososdepoimentosdestescomosdeleigosemgeralemulheres.

A terceira, que consisite na perspectiva do tempo da santidade, considera asespecificidades dos processos de canonização e permite a elaboração de ferramentasde comparação. Essas ferramentas, no nosso entendimento, viabilizam uma melhorcompreensão tanto do funcionamento jurídico dos inquéritos quanto da construção

8 Cf:http://www.documentacatholicaomnia.eu/.9 Cfaversãoemportuguêsem:http://www.documentacatholicaomnia.eu/01p/1255-09-26,_SS_Alexan-der_IV,_Bulla_’Clara_Claris_Praeclara’,_PT.pdf.Consultadoemagostode2012.

656 657

da sociedade, como afirmou Didier Lett. Continuamos desenvolvendo a pesquisa etrabalhandonaelaboraçãoeproduçãodosresultados.10

REFERêNCIAS BIBlIOGRáFICAS:

DOCUMENTAÇÃO:

ACTA SANCTORUM.DE SANCTI THOMA AQVINATE: Doctore Angélico Ordinis Praedicatorum.In:Acta Sanctorum. Martii.TomusI.AIoanneBollandS.I.colligifelicitcœptaAGodefridoHenschenioetDaniellePaperbrocchioeiusdemsocietatisIessuauctadigesta&illustrata.Antuperpiæ,apudIacobumMeursium.AnnoMDCLXVIII.pp.655-747.

FONTES VITAE S. THOMAE AQUINATIS (FVTA).Apud:Revue Thomiste,v.1,pp.409-510,1931.

FONTES VITAE S. THOMAE AQUINATIS (FVTA).Apud:Revue Thomiste,v.2,pp.664-669,1931.

JACOPODEVARAZZE.Legenda Áurea: Vidas de Santos.CoordenaçãodeTradução:HilárioFrancoJúnior.SãoPaulo:CiadasLetras,2003.

SANTO DOMINGO DE GUZMÁN VISTO POR SUS CONTEMPORÁNEOS.Esquema biográfico,introducciones,versiónynotasdelosPadresFr.MiguelGelabert,O.P.,Fr.JoséMaríaMilagro,O.P..IntroducciónGeneralporelPadreFr.JoséMaríadeGarganta,O.P.Madrid:BAC,MCMXLVII.

BIBlIOGRAFIA CITADA:

ALMEIDA,N.deB.“Narrativamíticaedimensõesdaunidadepolíticacristã:aVida de Santo Amaro no contexto ibérico de sua literalização (século XV)”. In: IDEM eCANDIDODASILVA,M.(orgs).Poder e construção social na Idade Média: história e historiografia.Goiânia:UFG,2011. pp.127-157.

BOUREAU,A.Satan hérétique: Naissance de la démonologie dans l’occident médiéval

10 Nesteaspecto,nãopodemosdeixardeagradecerosfinanciamentosdaFAPERGScomumabolsadeNesteaspecto,nãopodemosdeixardeagradecerosfinanciamentosdaFAPERGScomumabolsadeiniciaçãocientíficaedaPró-ReitoriadePós-GraduaçãodaUFRGScomaconcessãodeauxíliofinanceiroparauma“missãocurtanoexterior”(edital02/2012).

658

(1280-1330).Paris:OdileJacob,2004.

______. “La patine hagiographique. Saint Pirerr Martyr dans la Légende Dorée’.In:RENARD,E;TRIGALET,M;HERMAND,X etBERTRAND,P. (éds). ScribereSanctorum gesta: Recueil d’études d’hagiographie medieval offert à Guy Phillipart. Turnhout:BREPOLS,2005.pp.359-366.

FORTES,C.C.“SantidadeeGênero:Vauchezeomodelomasculino”.In:SILVA,A.C.L.F.da.(org)Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da Santidade na Idade Média Central.RiodeJaneiro:HPComunicação,2008,pp.81-90.

KLANICZAY,G. (dir.).Procès de canonization au moyen âge: aspects juridiques et religieux.Roma:ÉcoleFrançaisedeRome,2004.

LETT,D.Un procès de canonisation au Moyen Âge. Essai d’histoire sociale : Nicolas de Tolentino, 1325.Paris:PUF,2008.

PORTO,T.deA.AsdiferentesinstânciasdereconhecimentoinstitucionaldasantidadenaIdadeMédia:umestudocomparativodoscasosdeDomingodeSiloseDomingodeGusmão.2008.224f.Dissertação(MestradoemHistóriaComparada)–PPGHC,UFRJ,2008.

ROBIGLIO,A.A.La sopravvivenza e la Gloria: Appunti sulla formazione della prima scuola tomista (sec. XIV).Bolonha:ESD,2008.

SILVA,A.C.L.Frazãoda.Reflexões sobre a hagiografia ibérica medieval: um estudo comparado do Liber Sancti Jacobi e das vidas de santos de Gonzalo de Berceo.Niterói:EdUFF,2008.(a)

______.(org)Hagiografia e História: reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da Santidade na Idade Média Central.RiodeJaneiro:HPComunicação,2008.(b)

______.“Comomorremossantos:reflexõesteóricassobreosestudosdegêneroaplicadosaomedievoocidental”.In:SOUZA,R.L.de.(org.).História: Trabalho, Cultura e Poder.Florianópolis,SC:Anpuh/SC;ProextensãoUFSC,2004.pp.240-243.

_____.“Reflexõesmetodológicassobreaanálisedodiscursoemperspectivahistórica:paternidade,maternidade,santidadeegênero”.Chronos,nº6,pp.194-223,2002.PedroLeopoldo,MG.

SILVA,A.C.L.F.da;SILVA,L.R.da.“OsEstudosMedievaisnoBrasileaInternet:Umaanálisedousodosrecursosvirtuaisnaproduçãomedievalista(1995a2006)”.História, Imagem e Narrativas,v.4,p.134-147,2007.Disponívelem:http://www.historiaimagem.

658 659

com.br/edicao4abril2007/medievinternet.pdf.Consultadoemagostode2012.

SOUZA,N.deA.ACristianizaçãodosmortos:amensagemevangelizadoradaLegendaaureadeJacopodeVarazze.1998,2v.,517f.Tese (Doutorado em História) –FaculdadedeFilosofia,LetraseCiênciasHumanas,UniversidadedeSãoPaulo,1998.

______.“Hipótesessobreanaturezadasantidade:osanto,oheróieamorte”.Signum,SãoPaulo,nº4,2002.pp.11-47.

TEIXEIRA,I.S.eFORTES,C.C.“Ocorponaliteraturahagiográficadominicana:daLegenda áurea à Ystoria sancti Thome de Aquino (1290-1323). In:PEREIRA,N.M.;ALMEIDA,C.CdeeTEIXEIRA,I.S.(Orgs).Reflexões sobre o medievo.SãoLeopoldo:Oikos,2009.pp.205-224.

TEIXEIRA,I.S.Otempodasantidade:reflexõessobreumconceito.Revista Brasileira de História,2012.NOPRELO.(a)

______.“Osestudosnaliteraturahagiográficadominicana:Domingos,PedroeTomás”.In:MATTOS,C.M.F.,TEIXEIRA,I.S.eCRUXEN,E.B.Reflexões sobre o medievo II: Práticas e saberes no Ocidente Medieval. 2012.NOPRELO(b)

______.HagiografiaeProcessodeCanonização:aconstruçãodoTempodaSantidadedeTomásdeAquino(1274-1323).Tese(Doutorado).PortoAlegre,2011.IFCH-UFRGS,PortoAlegre,2011.(a)

______.Análisecomparadadeprocessosdecanonização:TomásdeAquinoeNicolasdeTolentino(1319-1325).In:XXVISimpósioNacionaldeHistória.Anais eletrônicos.SãoPaulo:AssociaçãoNacionaldeHistória,2011.01-11.(b)Disponívelem:http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308161657_ARQUIVO_Analisecomparadadeprocessosdecanon

izacaoTomasdeAquinoeNicolasdeTolentino(1319-1325)TEXTOFINALANPUH2011.pdf. Consultadoemagostode2012.

______. Entre 1274 e 1323: Qual a santidade de Tomás deAquino para os FradesDominicanos?.In:IXEncontroInternacionaldeEstudosMedievais,2011,Cuiabá. IX Encontro Internacional de Estudos Medievais: O Ofício do Historiador. Cuiabá:ABREM,2011.(c)v.1.p.331-340.Disponívelem:http://www.abrem.org.br/.Consultadoemagostode2012.

______.PesquisaemHistóriaMedieval:relatoshagiográficoseprocessosdecanonização.Aedos, v.2, n.2, pp. 71-94, 2009. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9832/5648.Consultadoemagostode2012.

VAUCHEZ,A.La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age: d’après

660

les procès de canonisation et les documents hagiographiques. 2ème éd.Roma:ÉcolefrançaisedeRome,1988.

______.“JacquesdeVorágineetlessaintsduXIIIesiècledanslaLégende dorée”.In:DUNN-LARDEAU,B.(dir.).Legendaaurea:sept siècles de diffusion.Montreal/Paris:Bellarmin/Vrin,1986.pp.27-56.