10
Apresentação
No período de abril a novembro do ano de 2014, foi lançado no site Recanto das Letras, um exercício temático de escrita intitulado Contadores de Histórias. O Intuito primordial do projeto, é incentivar escrita e leitura. Nesses oito meses de Desafio Literário, foram recebidos quarenta de três contos. A presente coletânea é um apanhado com os contos que se destacaram ao longo das quatro propostas temáticas (desafios). Desejamos uma boa leitura.
Atenciosamente: Equipe Contadores de Histórias
11
Atenção
O conteúdo dessa obra pertence exclusivamente a cada autor mencionado por nome e/ou pseudônimo. Qualquer exibição comercial, reprodução, alteração, modificação e criação de obras derivadas baseadas neste Conteúdo (no todo ou em parte) é crime.
12
Páginas Amarelas
Por: J.C Lemos
“Querida Alana,
Talvez isso seja apenas uma ilusão resultante de minha
insanidade, talvez eu realmente esteja insano, mas... há
uma grande possibilidade de que esteja certo (eu quero
estar, e sei que estou). Ele me observa agora, neste exato
momento. Seus olhos são dois poços de piche, vazando um
pus creme, que escorre sobre seus dentes amarelados e
respigam em mim, enquanto se balança na lâmpada do
porão.
Não sei se você irá acreditar em minhas palavras, pois já
fui consumido pela febre da loucura, mas o que estou te
dizendo é a mais pura verdade. Esqueça o que te falei, não
estou louco.
É tudo verdade!
13
Ele respira em mim. Seus chifres pontudos e etéreos roçam
meu cabelo e fazem um arrepio transpassar meu corpo.
Meu medo e pavor estão amplificados enquanto redigo esta
carta, peço que me desculpe pela letra mal desenhada. A
maldita criatura observa o que escrevo, fazendo gestos
obscenos. Não sei se pode entender, mas seu riso estridente
preencheu o ar agora pouco, como um deboche por algo que
eu estivesse fazendo.
Sempre te amei, meu amor. Só tive, tive não, PRECISEI
ficar longe de você. Tudo estava saindo do controle e se
tornando forte demais para suportar. Nunca possuí
coragem suficiente para te contar, mas agora você irá
saber toda a verdade.
Perdoe-me por te fazer sofrer.”
As lágrimas escorriam lentamente pela face de Alana,
enquanto uma profusão de sentimentos aflorava um
sobrepondo-se ao outro. Pensou nos últimos momentos que
passou com Josiah, e o choro derramou-se em uma torrente
aparentemente infinita. O porão escuro e cheirando a mofo
era iluminado pela luz da lâmpada pendurada acima da
14
escrivaninha. O silêncio soturno e gelado se enrolava ao
redor ao seu redor, amplificando os sentimentos, trazendo
um frio incomodo.
Abraçou-se com a carta em mãos, ainda derramando
lágrimas e sentindo-se a pior pessoa do mundo. As pernas
fraquejavam levando-a ao chão, onde permaneceu.
Procurando respostas para perguntas sem soluções,
buscando no âmago de seu ser, algo que pudesse consolá-la,
trazendo cor para seu monocromático luto.
No fundo, sabia que aquelas palavras eram mentiras e
incoerências faladas por um homem que havia perdido a
sanidade. Sentia cada vez mais que Josiah se afastava,
afundando em um pântano profundo, onde não mais poderia
ser achado.
E ela soube exatamente o momento em que isso aconteceu.
Sentada ao chão frio, ainda eram vívidas as lembranças dos
momentos em que tentou convencê-lo a buscar ajuda, a se
internar, a procurar um especialista. Qualquer coisa que o
tirasse da situação crítica que se encaminhava para um
quadro irreversível. Soube que havia perdido o jogo no
15
momento em que ele deixara de ir a sua casa. Sabia que não
teria mais volta, e que era apenas uma questão de tempo até
tudo se resolver, sem nenhuma maneira bonita de terminar.
Pensava em tudo isso enquanto segurava as folhas
amassadas, preenchidas com uma caligrafia estranha e
garranchada. Uma semana havia se passado desde o enterro,
e a casa seria vendida. Ele já não tinha mais família, e a
pessoa mais próxima era ela, que cuidou para que tudo fosse
ajeitado.
A arrumação já havia sido feita nos cômodos superiores,
tirando todos os pertences de Josiah, sobrando apenas
alguns móveis. O porão foi deixado por último. Recolheu as
ferramentas, pequenas bugigangas, acessórios, pastas e os
colocou em caixas, incluindo os livros que ele tanto tinha
apego. Esses livros, ela iria guarda-los para si.
Sua arrumação havia sido interrompida pela carta na velha
escrivaninha de madeira.
O tímido clarão do dia ainda adentrava o porão escuro,
direto pelas pequenas janelas embaçadas ao redor do local.
Alana permaneceu por um bom tempo, apenas chorando,
sentindo tudo que poderia sentir e sofrendo por tudo que
16
poderia sofrer. O tempo passou e minutos pareciam horas.
Cada segundo mais infindável do que o outro. E duraram, até
então ela decidir que terminaria o que começou, pondo um
ponto final na loucura.
Levantou-se e arrastou o banquinho para perto da mesa.
Colocou as folhas em cima da madeira desgastada, esfregou
os olhos com a costa da mão, e respirou fundo, tentando,
ineficazmente, se recompor. Fungou por alguns segundos, e
ainda chorosa, retornou a leitura.
“Tudo começou na naquela noite gélida em que fomos ao
cinema. Assim que te deixei em sua casa, parti para a
minha, mas não contava...”
***
– Adorei o cinema hoje! – seu corpo ainda fumegava devido
ao calor intenso ao qual havia sido submetida. – Tudo bem
que não vimos o filme, mas valeu a pena. – concluiu com um
sorriso pervertido no rosto.
17
– Não conte para sua mãe. – Josiah piscou e lançou seu
olhar mais arrebatador.
– Pode ficar tranquilo, – se atirou para cima dele, dando-lhe
um beijo demorado. – vou manter em segredo. – Abriu a
porta do carro e correu, com os flocos de neve alojando-se
nas dobras de seu casaco.
Com um sorriso bobo e apaixonado, ele aguardou até que
Alana entrasse. Retribuiu o aceno que recebeu, engrenou o
carro e saiu.
A nevasca noturna cobriu a cidade com uma manta branca e
infinita. De casas a árvores, não havia uma sem a alva
decoração. A vida fugia do frio como o diabo foge da cruz,
por esse motivo, as ruas encontravam-se em um estado
petrificado de silêncio. Os únicos sons audíveis eram dos
carros que deslizavam pelas estradas de gelo, soturnos e
discretos.
Josiah singrou por ruas melancólicas, cortando através da
cidade e seguindo em direção à rodovia que atravessava pela
floresta. Os últimos resquícios de vida ficaram para trás
quando deixou a civilização. Não havia carros e nem
18
iluminação na estrada. A noite era escura, e ninguém poderia
saber quais horrores ela guardava.
Pensamentos borbulhavam em sua cabeça. O calor do sexo
ainda era tenro e suculento entre as pernas, entorpecendo os
sentidos e o deixando em um estado de estupor. Era mais
uma vez um sexo selvagem e apaixonado. Dois anos de
namoro e a chama da paixão ainda ardia forte e pulsante. O
amor havia tomado conta dele, preenchendo cada lacuna
com o nome de sua amada. Isso tudo seria muito assustador,
se não sentisse um reciprocidade em relação a ela. O cupido
agiu de forma equilibrada, arrebatando ambos com a mesma
intensidade.
Forte e inesperada foi a pancada que o tirou de seus
devaneios.
O pneu do carro cantou quando o freio foi acionado,
fazendo-o deslizar pela pista, chocando-se com um
amontoado de neve que se aglomerava no acostamento.
Ainda atordoado, saiu do carro, pegou uma pequena lanterna
no porta-luvas e a ligou. Bamboleou trocando as pernas
enquanto corria desajeitadamente. O que havia atropelado?
19
Não fazia a menor ideia. A nevasca gelada soprava fortes
ventos em direção a seu rosto, que assumia uma coloração
avermelhada.
Respirava ofegante quando chegou ao trapo jogado na
estrada.
A luz incidiu sobre o corpo estatelado ao chão, e pode então
perceber que era uma mulher.
– Senhora? – sacudia-a, sem receber uma resposta.
Não acreditava que aquilo havia acabado de acontecer. Não
naquele dia, nem naquela hora. Sentiu uma pontada de
tristeza e desespero, sem saber o que fazer. A adrenalina
corria forte por suas veias, ao modo de que suas mãos
balançavam o corpo da mulher, tentando de todas as formas
acordá-la.
Ela tossiu, e ele respirou aliviado.
– A senhora está bem? – era uma idosa, com um rosto
sulcado e marcado por doenças. Tinha um olhar febril e
embaçado. Mexia a boca balbuciando frases inaudíveis. –
20
Não estou te ouvindo, o que foi? – Aproximou o ouvido da
boca da mulher e pode escutar as fracas e quase etéreas
palavras.
– Finalmente estou livre... – sussurros que se perdiam com o
vento. – a morte é a liberdade, não deixe que ele te vença.
– A senhora está bem? – notou o sangue escorrendo pelo
chão, gotejando embaixo da cabeça. A concussão estava
causando delírios. Percebeu que ela segurava um livro entre
os braços. – Vou chamar uma ambulância! – tentou se
levantar, mas a mão da velhinha o segurou.
– Não quero uma ambulância. – sua voz saia sofrida, mas
agora era audível. – Leve-o com você. – estendeu o livro em
sua direção. Durante um momento, ele hesitou. Os flocos de
neve passavam em rajadas a sua frente. A escuridão fechava-
se em volta do facho de luz, e o frio penetrava em cada osso
de seu corpo. Já não conseguia sentir seus movimentos e
percebeu que o cabo de metal da lanterna grudava
suavemente em suas mãos. Não queria perder mais tempo
naquele gelo insuportável. Pegou o livro e a viu sorrir. – Vá
com ele agora, não tenho nada mais a tratar com você! –
gritou ainda sorrindo, e daquele jeito continuou, enquanto a
21
vida de esvaía com o vento, sendo carregada pela morte
gélida em forma de brisa.
Josiah não entendeu o que havia acontecido. Olhou para o
livro que tinha em mãos, iluminando-o com a lanterna. Era
velho e amarelado, as folhas amassadas se apertavam umas
as outras, algumas marcadas com orelhas.
No fundo, sabia que estava tendo uma atitude incomum e
irracional. Uma mulher morta a sua frente, atropelada por
seu próprio carro, mas tinha os olhos incapazes de se
desviarem do exemplar em mãos.
Algo se mexeu nos arbustos e o tirou de seu devaneio. Olhou
apreensivo para o local. Sabia que havia animais selvagens
vivendo por ali, e não estava propício a ser atacado por
nenhum deles.
Fez o que tinha que fazer.
Não demorou muito para que chegassem. Contou sua
história e devido aos fatos e provas, não houve problemas.
Prestou depoimento e foi liberado no mesmo dia.
22
Não sabia o porquê, mas não mencionou o livro.
Quando deixou a delegacia, a madrugada já avançava dando
indícios de uma alvorada. Chegou em casa cansado e dormiu
logo em seguida, se perdendo em pesadelos.
Acordou ouvindo barulhos pesados na escada. Levantou-se
morgado, pestanejando enquanto caminhava. Ainda usava a
roupa da noite anterior. Chegando a escada, encontrou o
livro que a senhora havia lhe dado, jogado aos degraus.
Olhou desinteressado, buscando na memória se em algum
momento havia trago o objeto para casa. O sono falou mais
alto, então desistiu de tentar se lembrar. Colocou o livro na
escrivaninha ao lado da cama, e voltou a dormir, sem mais
interrupções.
***
“Era ali, que eu deveria ter jogado aquela porcaria fora.
Me livrado daquilo de uma vez por todas!
Não dei atenção para aquilo por alguns dias, mas em uma
certa noite, o encontrei jogado em cima de minha cama.
Sabia que não havia sido eu o responsável por aquilo, mas
23
ignorei no momento. Minha cabeça não estava muito boa já
naquela época.
Os pesadelos já haviam começado.
Mas infelizmente, naquela noite resolvi dar atenção ao
maldito objeto. A princípio era apenas um livro com
ensinamentos medicinais, mas só para mascarar. O
conteúdo real era algo inimaginável. As letras eram
ilegíveis em alguns trechos, mas qualquer um em sã
consciência seria capaz de entender as imagens.
Encantamentos que remontam a milhares de anos,
invocações demoníacas, simpatias e rituais. Tudo que você
precisa para se tornar um demônio bem sucedido.
Estava assustado e vidrado com tudo aquilo que via,
quando fui despertado pelos sons que vinham da sala. Desci
as escadas com muita cautela, e percebi um vulto correndo
para trás do sofá. Confesso que o medo me invadiu de tal
forma, que permaneci estático por um bom tempo, fazendo
uma ligação etérea entre o que havia lido/visto e o que
estava acontecendo. Tomei coragem e avancei.
Nada.
24
Aparentemente, era apenas minha cabeça me pregando
peças.
Quando virei, a coisa estava em cima da mesa. Sorrindo
para mim.
Olhos negros, corpo pequeno e atrofiado. Seus chifres eram
pontudos e curvados para trás. O rabo balançava de forma
eufórica. Mas o pior de tudo era o sorriso.
Eu senti medo, repulsa e o pavor mais extremo que poderia
sentir. E senti também a morte. Não aguentei aquilo e
desmaiei ali mesmo.
Acordei algum tempo depois, e a criatura se assentava
sobre mim. Um liquido gosmento vazava de seus olhos,
pingando em minha camisa. Eu gritei e corri.
Olhei para trás e o vi com seu sorriso maligno no rosto, me
perseguindo, se divertindo com o que estava acontecendo.
Entrei no quarto e fechei a porta com um estrondo. Quando
virei, ele me fitava, sentando sobre o livro.
Fiz a única coisa que poderia fazer naquele momento;
gritei.
25
Mas não adiantou. O demônio continuou no mesmo lugar, o
relincho de sua risada macabra ecoava em meus ouvidos.
Senti a loucura me invadir enquanto observava a criatura.
Fechei os olhos e fiquei ali, apenas esperando acordar de
um maldito pesadelo.
O que não aconteceu.
Então usei minha segunda opção, que foi sair de casa. Corri
pela rua como um louco, tentando ir o mais longe que podia
e quando olhei para trás, novamente a criatura me seguia,
bamboleando e gargalhando. Descobri que nada que eu
fizesse iria me afastar, então parei, e chorando, voltei.
Não dormi a partir daquele dia.
Minhas noites eram atormentadas demais. Sempre que o
sono chegava a mim, o monstrinho fazia alguma coisa para
me deixar acordado. Ou simplesmente sentava-se e um
lugar visível e ficava me encarando, escancarando aqueles
dentes amarelos. Percebi que ele não podia me tocar, mas
não era necessário. Só a presença havia levado quase toda
minha sanidade.
26
Eu não conseguia juntar forças para te falar. Não pense em
mim como um louco, eu te rogo. Alguma força, não sei
dizer, me impedia. Tentei buscar ajuda no maldito livro,
mas só encontrei desolação.
Nele eu encontrei algo sobre essa peste...”
O som de algo caindo tirou Alana de sua imersão. Olhou
desconfiada para o livro ao chão, levantou-se e o pegou. A
capa velha e amarelada continha letras estranhas.
Sentia pena enquanto lia a mensagem de seu amado, pois viu
que seu caso era algo sério e realmente irreversível. Não se
lembrava de ele ter alguma vez mencionado um acidente de
carro. E nem mesmo seu carro apresentava ter sofrido algum
impacto.
Mas as semelhanças com a descrição da carta levaram-na a
perceber que o livro que segurava era idêntico ao descrito
nas entrelinhas. Jogou o objeto no chão e se afastou. Pegou
os papéis em cima da escrivaninha e subiu as escadas
correndo, deixando todas as caixas para trás.
27
A luz invadiu seus olhos e a fez piscar algumas vezes. Fechou
a porta do porão e correu para a saída.
Do lado de fora, ofegante e amedrontada, segurou a carta
com firmeza, desamassando-a e voltando a ler.
“Há um trecho que diz que ele é um demônio perseguidor.
Não quero entrar em detalhes, pois não quero que você
perca seu sono. Quero apenas que você saiba, que isso tudo
é real. Assim como bem, o mal também existe. O que tem
que saber é que a magia está no livro e em quem o toca. A
única saída para escapar de seu tormento é a morte.
Quando a velha morreu, fui eu quem tocou o livro, e a
maldição veio para mim.
Então, por favor, não toque nesse maldito livro, eu te peço
meu amor, não chegue perto dessa maldição! Eu o escondi
em um lugar onde provavelmente nunca mais será
encontrado, mas caso você chegue a ver algo parecido, fuja!
Não estou suportando mais esse bafo quente e esses olhos
maculados em cima de mim. O fim espreita a minha volta, e
eu estou pronto para abraça-lo. Talvez eu vá para o
inferno, mas o tormento será melhor do que esse no qual
tenho vivido.
28
Escrevo essa carta como uma despedida e um pedido de
desculpas. Vivemos tão pouco tempo juntos, e eu sinto muito
por ter feito tão pouca diferença em sua vida. Saiba que eu
te amo e sempre te amarei.
Para sempre seu,
Josiah.”
Com a torrente do choro mais intensificada do que antes,
Alana deixou que os piores sentimentos a invadissem. Jogou-
se no gramado do quintal e ali ficou.
Um dos homens do transporte, que terminava de arrumar os
móveis no caminhão, aproximou-se dela.
– Está tudo bem, senhorita?
– Sim. – respondeu entre fungadas e soluços.
O homem sentiu-se desconfortável.
– Terminamos de acomodá-los, estamos saindo agora.
Amanhã voltaremos para buscar resto. Meus pêsames pela
29
perda. – Afastou-se rapidamente e entrou no caminhão, que
partiu deixando Alana sozinha, perdida em seus lamentos.
Até que, escutou o som da porta da frente sendo aberta.
Sabia que não havia mais ninguém ali, mas ainda assim pode
ver uma pequena criatura passeando dentro da casa.
O demônio passou despreocupadamente, voltando logo em
seguida. Fitou Alana o olhando em estado de choque, e lhe
lançou seu melhor sorriso. Afinal de contas, a festa não havia
acabado.
O Texto de JC Lemos ficou em segundo lugar no Primeiro Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
<http://www.recantodasletras.com.br/autores/jeefflemos >
30
Lembranças de um Infinito Particular
Por: Iago Algodão
Cheguei ao aeroporto de Dublin por volta das dez horas da
noite. Estava exausto e desiludido. Queria muito ter chegado
de trem, como nas histórias clássicas do velho continente,
mas tive de me contentar com um voo a partir de Lisboa. De
qualquer forma, era a realização de um grande sonho, que
aos poucos se concretizava, e apesar de algum combate
interno, passei a minimizar o drama por conta do tipo de
transporte. Fazia muito frio e eu esperava por isso. Aliás,
esperar era uma condição, um estado para o qual sempre
estive bem disposto. Esperei meses para curar o trauma de
ver os meus pais enterrados depois de um acidente de carro,
esperei anos até ser acolhido por uma nova família, esperei a
vida toda até fugir de onde eu vivia. Nunca suportei a vida
em Portugal depois da morte dos meus únicos familiares -
meus pais. Esperei pela formação universitária e na primeira
oportunidade, deixei de esperar. Fiz as malas, sem grande
cuidado, e parti para a terra dos duendes, um lugar que eu
idealizava a cada leitura de um conto de Joyce. A viagem fora
curta, não chegara a três horas, mas havia uma pressão a
31
esmagar o meu corpo, fazendo-me sentir cada corrente de
sangue que circulava por entre as minhas veias, uma
sensação que me fez sentir o cansaço do mundo, talvez, o
cansaço da minha própria história. Esta viagem foi a minha
primeira vitória, a minha primeira resposta ao fatalismo do
destino e talvez por isso tive de brigar com ele para fazer
valer a minha vontade. Depois do desembarque, segui de
ônibus até o centro da cidade. O tilintar das moedas na
máquina onde comprei o bilhete ecoaram como um brinde
aos meus ouvidos. Nunca me senti tão feliz por gastar alguns
centavos.
Desci do ônibus no centro da cidade, acompanhado de um
pequeno mapa que fiz à mão. Estava certo do caminho que
deveria seguir para o hostel onde dormiria, uma travessa da
badalada rua O´Connel. Era suposto ser simples, mas como
as minhas habilidades geográficas não são das melhores,
perdi-me. Pedi ajuda a um transeunte, a minha primeira
conversa com um local. Era um homem alto, barbudo e
bastante magro. Tinha aspecto de quem voltava de um bar
ou de uma balada, bêbado. Disse-me com algum sacrifício
em interpretar o meu mapa que eu deveria seguir adiante e
virar na primeira travessa à esquerda. Agradecido, já seguia
o meu caminho quando o estranho virou-se para mim e
32
gritou com uma voz rouca, quase engasgada “Você não será
bem-vindo”. Por um instante tive raiva dele, mas foi muito
breve. A seguir tive pena, do seu estado alcoólico, da sua
imoralidade e completa ausência de sensibilidade.
Concentrei-me no fato de que ele me ajudara a perceber
onde estava e avancei alguns passos, com o vento a bater frio
e sereno na cara. O bêbado indicara com precisão a
localização do hostel, era de se esperar agora que não
acertasse no restante de suas premonições. A larga e clássica
porta bronca do lugar onde dormiria causou-me novamente
lembrança das tantas referências irlandesas que eu tinha. O
meu sonho ia se tornando cada vez mais real e minha vida
mais feliz. Fui atendido por uma simpática irlandesa, cabelos
vermelhos cacheados, olhos verdes, branca como a espuma
de uma banheira da sétima arte. Confirmou a minha reserva
e encaminhou-me para o quarto onde passaria a
noite. Apenas uma noite. No dia seguinte eu partiria para a
pequenina cidade de Galway, onde ficaria os próximos seis
meses a estudar inglês e desfrutar da cultura local. Estava
ansioso para conhecer, sobretudo, o famoso pub The king´s
head, cujas noites festivas eram motivo de agradáveis
comentários em todos os guias de viagens.
33
O quarto que reservei tinha seis camas e nenhuma delas
estava ocupada quando entrei pela primeira vez. Achei
estranho e pensei que poderia estar com sorte. Na verdade,
antes de vir passei por grande debate reflexivo se deveria
ficar num quarto sozinho ou se me arriscaria a dividir o
espaço com mais gente. Por fim, julguei ser uma excelente
ideia conhecer outras pessoas logo na minha primeira
parada e assim optei por economizar alguns euros. Agora,
encontrar o quarto totalmente vazio soava um bocado
frustrante. Talvez outras pessoas aparecessem ao longo da
noite, vindas dos mais diversos cantos do mundo e dispostas
a me contarem histórias incríveis. No fundo, era o que eu
esperava. O quarto em si não era muito amplo. Três beliches,
dois virados um para o outro e o terceiro a fazer a ligação
entre os outros dois. As roupas de cama eram brancas e
pareciam muito limpas. Na parede havia algumas
rachaduras, nada grave, e podia se observar algum bolor. O
banheiro privado também não era muito convidativo, mofo,
cheiro de sujeira e uma pia bem pequena, regada a pó. O
espelho cheio de manchas negras completava o cenário.
Havia uma janela razoavelmente grande, com vistas para
uma espécie de quintal. Fios, túneis de exaustão e alguns
varais era o que se podia verificar naquela escuridão. Ao
menos havia aquecimento no quarto, o que me deixava
34
bastante mais tranquilo. Encostei a mala junto do beliche
mais próximo da porta, tirei uma roupa limpa e fui para o
banho. O chuveiro tinha uma espécie de cronômetro, algo
bastante irritante. O jato de água não durava mais que um
minuto e meio e, assim, de vez em quando era preciso
suportar o frio que se sucedia a água quentinha que recobria
o corpo naquelas baixíssimas temperaturas. Ao terminar,
estava pronto para uma breve saída, queria jantar.
Ao passar pela recepção, a garota que me recebeu perguntou
o que achei do quarto. Disse que era ótimo e que estava
satisfeito. Pedi alguma sugestão para um jantar simples e ela
me recomendou um fast food chamado Apache. Prossegui
para lá, um pequeno restaurante às margens do rio Liffey. O
vento estava cada vez mais intenso e gelado, mas não resisti
parar por um momento e apreciar as águas negras, assim
como a cerveja local, que escoavam pela ribeira daquela
cidade. Poucas pessoas estavam na rua e naquele instante me
parecia que a tão aclamada alma boêmia dos cidadãos de
Dublin não coincidia com a vida real. Entrei no Apache,
quando imaginei que já estava a congelar. Pedi batatas e uma
espécie de “wrap” mexicano. Os atendentes com forte
sotaque estrangeiro foram muito acolhedores. O preço era
razoável e a quantidade de batatas surpreendente. Tudo
35
estava muito bom. Fiquei numa mesa junto à janela,
observando as poucas pessoas que percorriam a Bachelor´s
Walk. Quando satisfeito, deixei a bandeja junto à lixeira e fui
saindo vagarosamente, não sem colocar meu cachecol e as
luvas. Enquanto o fazia, o entregador do restaurante estava a
chegar. Empurrou a porta, mirou-me nos olhos e disse-me
“Você não será bem-vindo aqui”. Arrepiei-me todo e
praticamente inconsciente, passei por ele e bati a porta. Do
lado de fora, parei por um segundo, atordoado, sem saber
muito bem para que lado seguir. Em menos de quatro horas
no país dos meus sonhos, já me havia deparado com as mais
intrigantes pessoas que cruzaram a minha vida, desde
sempre.
A caminhada de volta ao hostel foi bastante insegura. Tenho
mesmo a impressão de que não enxerguei nada. Nem sei
bem como consegui chegar. Era provável estar evidente em
meu rosto esta sensação de pânico, porque tão logo cheguei,
o recepcionista, agora um rapaz, veio até mim perguntar se
tudo corria bem. Disse que sim, afirmei apenas estar cansado
e subi as escadas até o quarto. Aquela frase “Você não será
bem-vindo aqui” não parava de ressoar em minha cabeça.
Quis acreditar que era só uma brincadeira, talvez um dito
popular para o dia 16 de novembro, dia em que
36
desembarquei. Mas me consumia todas as forças, aquela
mensagem. As palavras têm este poder de num simples
conjunto, fazerem-nos emendar uma reflexão sem fim,
perdida, exaustiva e aterradora. Por um momento, desejei
ser surdo. Deitei sem nem sequer tirar os tênis, mas não
conseguia resgatar o sono que me tomara conta na viagem. O
quarto permanecia vazio, no entanto, notei alguma coisa em
cima de uma das camas. Levantei-me e aproximei-me do
beliche próximo do meu, lá estava um envelope vermelho.
Não havia nada escrito na parte externa. Abri-o e encontrei
uma carta, uma longa carta.
Você não será bem-vindo aqui. Por mais que se esconda,
todos saberão a partir do mais descuidado olhar quem você
é. O teu mistério e a tua dor só pertencem a ti e a mais
ninguém. Quando lavou as mãos do sangue que derramou
por todo o lado, sabia que já não havia volta. Os seus erros
não se calaram no silêncio que você assumiu. A tua redenção
não se legitima com a história que inventou para si próprio.
As melhores e mais profundas viagens que fazemos não são
aquelas que dependem de algum meio de transporte, mas
sim, aquelas que nos permitem invadir o que há dentro de
nós mesmos, que nos faz mergulhar em aspectos nossos que
nem imaginamos existir. O recomeço para existir exige uma
37
verdade, autoridade, serenidade. Não fica para trás o que não
está resolvido. Persegue-te, incomoda-te e acompanha-te a
cada passo. Estremece na voz de estranhos, sangra na
corrente de rios, se despedaça com a queda das folhas,
esfarela-se na tua face junto ao vento frio. A história que
narramos de nós mesmos só exerce sentido quando nos
preparamos para lidar com a realidade. Realidade que
advém de um passado, culmina num presente e liberta num
futuro. Não é porque não se assume que se deixa de existir. A
tua jornada se perde a cada fantasia inventada, a cada linha
escrita por cima de um texto já digitado. Não há erros sem
correção, mas há verdades sem realidade. Não se permita
enganar mais uma vez, em outro lugar, outra viagem física.
Revele-se, assuma-se, reconte a tua história a partir de uma
realidade. Existe a realidade? Existe a tua voz? E a voz dos
estranhos? Afinal, você não será bem-vindo aqui. Não se
esqueça.
Terminei a leitura com lágrimas nos olhos, sem suportar o
peso do meu próprio corpo, vendo as paredes se desmanchar
e jatos de sangue a escorrer a partir do ralo do banheiro. A
realidade corrompia outra vez os meus sonhos, os meus
desejos, a minha verdade. Ajoelhado, estendia as mãos para
os meus pais, via-os com clareza à minha frente, mas não os
38
podia sentir. Há muito que tudo que sinto é imaginação, é
abstrato. Mas não é o abstrato um direito de sentimento?
Minha existência é um delírio. Gritei desesperadamente
outra vez, ciente de que jamais haveria um recomeço. Não
acredito em erros seguidos de correção. Meus ombros não
aguentam o peso do mundo, do meu mundo. Quando
arrombaram a porta do meu quarto, já era tarde. Ao rio
vermelho do ralo do banheiro, já se havia juntado o meu
sangue. Corte profundo num coração que nunca soube amar.
Um carro, um freio friamente adulterado, uma curva, alta
velocidade, estrondo e um ponto final - para muitas
realidades.
&&&&&&
O Texto de Iago Algodão ficou em terceiro lugar no Primeiro Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
<http://www.recantodasletras.com.br/autores/freiresle >
39
Asas de Sangue
Por: Eliane Verica
Recém casados, diziam as letras brancas pintadas no vidro
do carro, pela porta entreaberta curiosos espiavam a cena da
tragédia. Sobre uma poça de sangue jazia o corpo do noivo,
uma cratera na sua cabeça revelava a arma do crime. Um
martelo ensanguentado ao lado do cadáver. A parede branca
manchada por pequenos pontos vermelhos, desenhando um
céu noturno, um longo caminho de estrelas em direção ao
infinito... Um buraco negro no centro da via láctea.
- Eu só queria voltar a ver as borboletas coloridas em
revoada sobre a terra lodosa nas tardes quentes.
...
A mulher de baixa estatura, cabelos negros e finos caídos
sobre os ombros, trajada com um vestido de noiva manchado
com o sangue vermelho escuro da vitima, fitava a câmera no
40
canto da sala, contava quantas vezes a luzinha vermelha
piscava e vagava em seus pensamentos
- Então, foi isso que aconteceu? – a policial buscava por
respostas... A mulher, por perguntas. Continuou em seu
silêncio infinito procurando as razões para tanta coisa estar
acontecendo em sua vida.
A policial retirou algumas fotos do crime da pasta amarela
sobre a mesa e espalhou sobre a mesa branca.
- Você fez isso?
A mulher desviou os olhos grandes e escuros da câmera e
parou sobre as fotos, sem nenhuma reação aparente apenas
sinalizou que sim com a cabeça, encarou a sua interrogadora
imperiosamente,
- Você quer saber por quê?
- É para isso que estou aqui.
- Mas é uma longa história.
Preparou o gravador sobre a mesa.
41
- Pode começar.
- Era na primavera, eu acho – sua voz calma era livre de
qualquer tipo de sentimentos – no rio perto de onde eu
morava, centenas de borboletas faziam uma revoada sobre as
flores nativas, voavam de um lado para o outro, pareciam
brilhar no sol, coloridas fazendo do dia uma tela dessas que a
gente compra pra pendurar na parede. Eu tinha só 12 anos.
Meus pais não eram pais para mim, não tinham nenhum
afeto. Nada. Mais tarde descobri o motivo de tanta frieza,
mas naquele tempo eu apenas queria dançar com as
borboletas no lago.
- Morávamos em uma cidade muito pequena, as casas eram
distante umas das outras, quilômetros de distancia, víamos
nossos vizinhos apenas nas rezas. E foi em uma que eu
encontrei com meu destino cruel. Ele tinha mais ou menos a
minha idade, mas era maior, cabelos castanhos escuros,
sardas no rosto e grandes olhos amarelos. Aproximou-se
lentamente e me entregou um embrulho, dentre uma caixa
de madeira, e dentro uma borboleta presa por pequenas
agulhas, com as asas abertas e sem o corpo.
- Seus grandes olhos brilhantes me diziam que era a coisa
mais linda do mundo, que eu iria gostar. Porém os meus
42
viram morte e dor, a maior das crueldades, aquela que priva
a beleza de existir e ser livre... E a confina para seu próprio
prazer... Sufoca e mata para que seus olhos possam se deitar
sobre a beleza morta e inerte.
- Não pude fazer nada além de encará-lo com um misto de
espanto e nojo e rejeitar o presente.
- Como uma criança quando vê uma comida que não gosta
em seu prato, olhar de repúdio... Ele tinha me observado,
sabia que eu gostava de borboletas, mas minha inocência
infantil não me permitiu perceber isso.
- Como se a vida fosse uma eterna brincadeira, corria com os
afazeres da casa, e eram muitos, para ver as borboletas no
entardecer, era o que fazia meu dia valer à pena, mas nesse
dia algo a mais me aguardava.
- O sol já estava quase na linha do horizonte quando eles
apareceram, grandes olhos amarelos e outros dois, um
moreno do cabelo queimado e o outro quase loiro de um olho
furado, tinham o semblante assustador.
43
- Sabia quem eram? Seus nomes? – o rosto da interrogadora
era duro como pedra, como exigia sua profissão.
- Não. Tinha visto o caolho algumas vezes, mas o outro,
nunca. Tentei fugir, mas me seguiram, me cercaram, e o
moreno me perguntou se eu me achava melhor que o amigo
dele para rejeitá-lo, eu estava com tanto medo que não
consegui dizer uma palavra, então ele me bateu, me deu um
soco no rosto. Eu caí, então me deu muitos chutes no
estomago, até eu ficar sem ar, então... O caolho segurou
meus braços enquanto o outro rasgava minha roupa... Ele...
Ele segurou minhas pernas e trocou olhares com o amigo...
De olhos amarelos, ele veio... Acho que a senhora já sabe o
que aconteceu?
- Ele a violentou.
A tensão transpareceu em seu rosto como uma sombra
pousando em sua face. Apenas sinalizou que sim com a
cabeça.
- Você prestou queixa da violência?
44
A sombra permaneceu. Porém um sorriso de sarcasmo
aparecia no canto de sua boca.
- A senhora não pode imaginar o que houve depois. Vejo em
filmes, que as vitimas de estupro desmaiam pela dor, pelo
trauma, mas não perdi os sentidos em nenhum segundo, e
acho que era o que eu mais queria. Eu era virgem...
Praticamente me arrastei até a casa chorando. Minha “mãe”
me perguntou, me pressionou, mas apenas me banhei e fui
me deitar. Quando meu pai chegou bem tarde da noite, me
acordou na pancada. Contei a ele...
- E ele chamou a policia?
- Não. Me chamou de vagabunda, disse que sendo filha de
quem eu era só podia ser uma prostituta mesmo, e me
trancou no porão da casa. Era um lugar escuro e muito sujo,
sempre soube que existia, e que se fizesse algo errado seria
trancada lá. Lembrava dele quando era muito pequena, tinha
relação com a minha mãe de verdade. Permaneci lá por, mais
ou menos, uma semana, sendo tratada como bicho, comida e
água empurrados por um buraco.
45
- Quando saí, a luz do sol pareceu uma nova esperança,
continuei minha vida apesar de tudo, fui proibida de voltar
ao rio
- Mas nunca esqueci as borboletas... Era pra onde me
refugiava quando os problemas me afrontavam... E eram
muitos.
- Eles voltaram
- A violentaram novamente?
- Não... Mas meu pai os contratou pra trabalharem nas
nossas terras. Ele sabia. Mesmo assim contratou os três, me
obrigando a conviver com eles, fazer-lhes favores deixar que
me desrespeitassem, me tocassem...
- Seu pai a violentou?
- Não. Nunca, sempre dizia que tinha nojo de mim, mas
tarde soube que era por causa de minha mãe, mas naquela
época não fazia ideia. Ela amava outro homem... Ele a
manteve presa no porão por anos depois que eu nasci. Acho
46
que sou filha desse homem que ela amava. Até que ela
morreu.
- Enfim, fugi daquela casa aos 16 anos, consegui restabelecer
minha vida, mas as lembranças nunca me abandonaram,
foram anos tomando remédios de todos os tipos, tentativas
falhas de amenizar uma dor que estava alojada em minha
alma você sabe como é?
- Sei... Os olhos da policial ficaram turvos enquanto ela
tentava segurar a emoção.
- Há alguns anos conheci esse rapaz... Ele era perfeito. Achei
que finalmente não estaria mais sozinha nesse mundo,
namoramos por um tempo e decidimos nos juntar em
matrimonio... Eu estava apaixonada... Não sei como não
pude reconhecer aqueles malditos olhos amarelos.
- Era o garoto que a violentou quando criança?
- Sim. Ele me perseguiu, eu acho. Armou um cenário para me
atrair. Não sei. Mas quando entramos na casa... As paredes
repletas de quadros de borboletas espetadas... Ele só podia
47
ser um psicopata – a moça interrompeu o relato num choro
compulsivo...
-Não era eu! Minha raiva foi tanta, senti que tudo voltaria a
ser como antes... Não podia permitir... Eu estava me
defendendo... A senhora entende?
- Olha, não sei se você sabe, mas eu tenho uma clinica
psicológica para mulheres que foram abusadas.
- Sei, vi sua foto no jornal... Foi por causa do que houve com
você. Por isso exigi que me interrogasse.
A policial mudou o olhar, suas mãos estavam úmidas,
punhos cerrados... Depois de uma longa pausa continuou:
- Parece ruim agora, mas tudo vai ficar bem.
A moça baixou a cabeça e chorou... Chorava e soluçava com o
rosto sobre os braços. Ergueu os olhos molhados:
- Sabe, é muito difícil passar pelo que eu passei... Só a
lembrança me sufoca... Como se não pudesse respirar –
baixou os olhos e começou a puxar o ar com força.
48
A policial desligou o gravador e sugeriu que saíssem para
tomar um ar.
Do lado de fora tudo parecia inebriado pela luz do sol, o dia
estava pálido e bem quente, o corpo da moça foi invadido por
uma forte náusea e seu mundo rodou... Ela caiu sobre os
joelhos e o choro voltou, entre soluços transparecia seu
desespero:
- Não sei como fui fazer uma coisa dessas... Não sei mesmo...
Mas imagina a senhora no meu lugar... Todas aquelas
borboletas na parede... Eu... Eu não consegui me controlar e
todas as lembranças me voltaram na cabeça. Consegui
reconhecer seus olhos... Malditos olhos amarelos.
A policial se abaixou, comovida com a situação, colocou as
mãos nas costas da moça, o vestido branco esparramado na
grama verde:
- Olha, acho que você precisa de um tempo, vou ter que
verificar os dados que me passou. Precisa ir para casa trocar
essa roupa e pensar um pouco. Amanha bem cedo você volta
aqui. Ta bem?
49
A moça olhou para o chão, mediu as palavras:
- Isso não é contra os procedimentos?
- Vou buscar um copo d’água, você fica bem aqui – piscou
um olho e entrou pela porta da delegacia.
Um sorriso vazou pelo canto da boca da noiva
ensanguentada.
...
Em frente ao computador, a policial permanecia atônita... As
provas iam contra os fatos. Não havia fazenda, e o
cadáver... Um rapaz qualquer com uma coleção de
borboletas.
Em outro canto do mundo, agora com os cabelos curtos e
vermelhos, a moça organizava sobre a estante de mogno
brilhante, diversos objetos colecionáveis, seus troféus. Entre
as moedas de bronze e os selos antigos posicionou
cuidadosamente a borboleta de sangue na moldura. Com os
pés descalços na madeira do piso rústico dirigiu-se ao
notebook sobre a cama, várias fotos de um senhor robusto de
50
barba longa com sua grande paixão, uma coleção de discos
de vinil. Estava na hora de inventar uma boa história.
O Texto de Eliane Verica ficou em segundo lugar no Primeiro Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal da autora
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/elianeverica >
51
O Poder dos Astros
Por: TT Albuquerque
A enorme sombra se projetou sobre as águas límpidas do
oceano pontuado por montanhas alvas que flutuavam
levadas pelas mãos secretas das correntes. A nau brilhante
que impavidamente fazia pouco caso da gravidade avançava
morosamente com suas flâmulas e estandartes coloridos
deixando atrás de si redemoinhos de fumos negros que
recendiam a óleo minado das rochas. Homens envergando
pesadas cotas polidas que rebrilham com a luz pálida do
inverno faziam vigília no convés de cedro envernizado que
rangia queixoso das constantes fustigadas que Bóreas lhe
lançava. As sentinelas deixavam escapar nuvens de vapor ao
fim de cada respiração e pequenos tremores faziam os anéis
de metal de suas vestimentas tinirem como címbalos
desafinados, mas elas não procuravam o abrigo no interior
do Flagelo dos Infiéis, a nau do vizir Almir Bin Ademir,
conhecido como “Almir: o Inquieto”, pois assim como sua
sanha por conhecimento era vasta, o seu retaliar perante atos
que desabonavam os fiéis era duro.
52
Nascido em uma próspera família de comerciantes de óleos
minerais, o agora idoso legislador galgou searas ladeadas de
perigos e traições até se tornar o segundo homem mais
poderoso do Império Persa, sua influência só era menor que
a do próprio Imperador. Almir se destacou entre os homens
de sua geração por possuir um espírito questionador e
prático, o qual lhe fez seguir o caminho das letras e das
ciências, trazendo glórias ao Império, fazendo a sua
sagacidade e erudição serem comparadas as do Grande
Salomão.
A inquietude que sentia ao desconhecer os segredos do
mundo o fazia se lançar em empreitadas como a atual, a qual
apesar de não aprovada pelo Imperador, foi levada a cabo,
pois alguma coisa na alma do homem dizia que algo não
andava bem com o mundo além das areias andarilhas dos
desertos. Algo que escapava de sua percepção e pesquisa.
Para sanar a questão Almir seguiu até as bordas do mundo
em busca das lendárias cidades do ocidente. Cidades
perdidas no pó da história. Lugares além-mar celebrados em
tomos centenários como moradas de demônios, djins e
ghouls.
53
O sábio idoso fumava seu narguilé de jade enquanto
divagava sobre medos obscuros na alcova forrada por finas
tapeçarias com imagens intricadas de batalhas míticas. O
recinto era a materialização da suntuosidade do império,
estantes do mais negro ébano se curvavam ante o peso de
tratados científicos finamente encadernados.
O vizir foi arrancado do vale de incertezas e teorias o qual
seu pensamento vislumbrava quando batidas na porta
ecoaram acompanhadas de uma voz rouca e máscula pelo
quarto.
- Meu senhor, o erudito Gabriel roga por uma entrevista.
Deixando de lado o intrincado cachimbo, o vizir se aprumou.
- Deixa-o entrar Mohamed e que mais ninguém o siga.
As portas rangeram ao se moverem nas dobradiças de bronze
permitindo a entrada de um rapaz de compleição frágil,
madeixas da cor do trigo, pele alva, voz suave e trajando
roupas modestas, a verdadeira antítese do homem deitado
com sua pele azeviche, barba espessa e com salpicos de
54
prata.
- Que Jesus o abençoe, Excelência. Espero que estejas bem.
O idoso sorriu ante o cumprimento. Um sorriso reprovador.
- Estou bem Gabriel e pelo que posso constatar a mania de
professar sua fé aos servos de Alá ainda não o abandonou. O
rapaz meio encabulado tentou expor sua visão.
- Penso que jamais perderei essa “mania” Excelência. Como
cristão é meu dever.
O sorriso na face do idoso se alargou e gesticulando para que
o cristão se sentasse.
- Quem dera todo fiel fosse tão observador da fé no Islã
quanto tu és da tua, Gabriel. Mas como bem sabe, a
tripulação é composta por homens sem muita luz do
conhecimento e não conscientes de que tememos o mesmo
Deus e por culpa dos ímpios do passado e sua maldita torre,
O nomeamos de formas distintas. Essa falta de ilustração
deles poderá te trazer algum “acidente” durante nossa
viagem.
55
A face do rapaz se contorceu com a idéia e confuso ele
perguntou.
- E o que devo fazer Excelência? Fingir ser o que não sou?
Isso me parece um pecado hediondo.
O sorriso de Almir mudou para um de pura benevolência,
como o de um avô ante seu neto mais querido.
- Faça o que todo fiel deve fazer com os assuntos da fé: ore,
jejue e sirva nosso Senhor e Sua Obra. Para isso não
necessitas da aprovação de homem algum ou tentar
convencer qualquer outro a fazer o mesmo da forma que
acreditas ser a correta.
Gabriel concordou com um aceno de cabeça, vendo isso, o
vizir mudou o rumo da conversa.
- Agora diga o que deseja, pois acredito que não veio até
mim para discutir teologia.
O jovem retirou das dobras de suas vestes um aparelho de
leitura e o estendeu na direção do idoso.
- Perdão Excelência, realmente não vim roubar vosso tempo
com esse assunto. A tradução está completa e como Vossa
Excelência ordenou, trouxe-a logo que terminei o processo.
56
O vizir tomou o pequeno aparelho e olhando atentamente o
visor brilhante, elogiou o jovem tradutor.
-Realmente você é um gênio Gabriel. Poucos são os homens
no Império capazes de traduzir essa antiga língua com a
rapidez e competência que demonstras. Eu não consegui
amar essa língua bárbara como tu amas e acabei por apenas
arranhar uma pequena parcela de seu entendimento. Agora
me deixa só para que eu leia a tradução.
O jovem se ergueu e após uma reverência, deixou a alcova
do legislador.
Novamente só, o homem passou o tempo lendo as linhas
que rolavam na tela do aparelho e só terminou a tarefa
quando a noite lançou seu manto negro pontuado de luz
sobre o mundo. A face do vizir parecia roubar as sombras do
próprio Abismo para si e um brilho sinistro emanava dos
profundos olhos cinza. Ele pousou o aparelho sobre as
almofadas e novamente levou aos lábios a piteira do
narguilé. Entre anéis de fumaça, deixou escapar uma frase
preocupada.
-Um pedido de socorro. Mas por que eles precisariam de
ajuda?
57
Ignorando as divagações do sábio vizir, a nau continuou sua
lenta caminhada pelas águas que espelhavam o céu noturno
de inverno.
***
A manhã tocou o metal reluzente das armaduras das vigias
postadas sobre o tombadilho. Na distância uma curiosa
silhueta lentamente se formava no horizonte. Após semanas
de viagem a expedição do vizir finalmente se aproximava de
seu objetivo. Uma terra cujo nome se perdeu nas areias da
ampulheta, onde os filhos de Adão já não são senhores.
A cada jarda vencida, a silhueta dessa terra mítica se despia
mais e mais das brumas que lhe defendiam dos olhos das
vigias enregeladas, até que a sombra da calma nau deixou de
escurecer as águas do oceano para cobrir as praias desertas e
então continuar sua viagem sobre densas florestas recobertas
pelo véu de neve soprado pelo céu.
Algumas horas depois, os olhos das sentinelas foram
invadidos por uma visão fantástica, uma muralha de
proporções ciclópicas, que ocupava o horizonte até quase se
perder de vista. Sua sombra acabou por engolir a figura do
Flagelo que se tornou ínfimo ante sua magnitude.
58
Vestindo um pesado manto de pele de urso, o vizir
observava a fantástica construção junto do jovem erudito
- Veja Gabriel! Como vos disse, encontraríamos as ruínas. Os
antigos mapas estavam certos!
Maravilhado com a visão, o rapaz apenas sorriu e não
percebeu a chegada de Mohamed, o comandante da guarda
pessoal do legislador, que envergando uma pesada armadura
fazia o tombadilho estalar ainda mais queixosamente do que
o comum.
- Excelência, o pelotão de reconhecimento está preparado
para desembarcar. Aguardo apenas o vosso comando para
iniciar a operação.
Os sulcos da face idosa ficaram ainda mais pronunciados
devido ao sorriso que se esforçava em escapar de sob a barba
do vizir, e apontando para uma fenda no paredão, ordenou.
-Pois vá agora. Entre por aquela parte danificada da
estrutura e retorne em duas horas. Você tem minha
permissão para usar da força. Que Alá lhe sorria.
O soldado ouvindo a ordem fez uma pequena mesura e se
virou para partir, mas sua saída foi interrompida pela voz do
vizir.
59
- Espere Mohamed. Leve ele contigo.
As faces do rapazote e do guerreiro eram pura surpresa.
Gaguejando, o linguista perguntou.
- Mas por que devo ir Excelência? Não sou um soldado,
apenas irei atrapalhar a equipe do comandante.
Apertando o pesado manto contra seu corpo castigado pelo
frio, o idoso olhou de forma dura para o rapaz.
- Por que assim eu desejo. Você será útil na busca, pois é o
único que domina completamente a língua que era falada
nessas ruínas. Agora parta. Já perdemos tempo demais com
sua falta de respeito para com minha autoridade.
Vencido, Gabriel após uma saudação de despedida, apenas
seguiu o homem de armadura convés abaixo.
Sozinho sobre a proa do Flagelo, Almir observava os céus de
forma preocupada e questionava-se.
- Estarei errado? Será apenas uma coincidência?
Os céus de cor plúmbea apenas despejaram seus flocos
gelados como resposta.
***
60
Após um som pesado de metal movendo, o Flagelo se abriu e
de seu interior como um ovo sendo cuspido das entranhas de
uma ave, despencou uma embarcação menor. O Vento do
Deserto, uma embarcação de combate, armada com as mais
mortíferas maquinações do engenho bélico imperial.
Velozmente ela mergulhou na fenda da muralha, se
perdendo dos olhos das vigias.
No interior do Vento, o pelotão especial do vizir fazia os
últimos preparativos da missão. Sentado ao lado de
Mohamed na ponte de comando, Gabriel rezava para todos
os santos que conhecia pedindo ajuda enquanto a
embarcação fazia evoluções no interior da muralha para
evitar os obstáculos no caminho. O comandante sorria se
divertindo com a preocupação do rapaz.
- Calma cristão, naveguei em lugares muito piores e ainda
estou aqui. Em alguns segundos estaremos do outro lado e aí
sim, você poderá ficar preocupado.
O linguista olhou horrorizado para o homem ao seu lado e
em um tom de voz cheio de medo, perguntou.
- Por quê?! O que há lá?!
61
Gargalhando à custa do rapaz, Mohamed levou a nave até a
luz invernal que se pronunciava no outro lado da fissura e lá,
foram recebidos por quilômetros de ruínas arrasadas,
cobertas pelo pó dos séculos e a neve mui alva despejada dos
céus da tarde silenciosa.
Como um pássaro carniceiro, a embarcação deu voltas no ar
procurando uma área livre para lançar seus tripulantes em
terra. O veículo pairou como uma mosca varejeira sobre os
resquícios de uma praça e abrindo uma comporta lateral,
permitiu a saída do pequeno pelotão com quatro soldados
mecanizados. Eles foram içados até o chão recoberto pela
neve profunda através de poderosos guindastes e ao
palmilharem o solo intocado durante séculos com seus pés
de aço, debandaram tal qual insetos flagrados. Mohamed,
observando a movimentação de seus subordinados,
perguntou ao linguista.
- E então? Tens noção sobre qual coisa o vizir anseia
encontrar nessa ruína?
Ainda pálido graças à viagem, o tradutor tentou tomar para
si uma postura mais centrada e menos vexatória.
- Peça aos seus homens que procurem qualquer inscrição
com a palavra “shelter” ou “army”. Pelo que pude colher do
62
vizir, o que ele procura provavelmente se achará em algum
lugar relacionado a essas palavras.
Usando o comunicador, Mohamed instruiu seus homens a
seguirem a diretriz sugerida pelo rapaz. Uma hora escorreu
pelo vão da ampulheta antes de uma mensagem ser enviada
pelo soldado Azis, o comandante em solo. Um homem de
meia idade, truculento e afeito ao linguista.
-Não encontramos. Repito. Não encontramos qualquer
inscrição que se encaixe no requerido. Não seria melhor nos
informar o significado dessas palavras Comandante? Ou o
cristão não deseja repartir seu conhecimento com os servos
de Alá?
O piloto olhou de maneira divertida para Gabriel,
debochando de seu pouco desenvolvido espírito prático,
esperando uma resposta do jovem que no momento
ostentava uma expressão contrariada.
- Diga ao seu subordinado que procure alguma construção
militar ou abrigo para civis.
O militar repassou a informação para a equipe em solo e
novamente Azis enviou uma mensagem.
63
- Perdemos tempo por nada Comandante, se o garoto tivesse
tido o bom senso de nos dizer o que queria antes, já
poderíamos estar adiantados na missão! Encontramos uma
entrada meio demolida de um abrigo contra bombas logo ao
chegarmos ao solo!
Mais sério, o piloto instruiu seus homens.
-Prossigam a missão adentrando o local. Liguem os
emissores visuais.
****
Quando as correntes foram lançadas para puxar as máquinas
de guerra até a segurança do bólido de destruição, se
lançaram ao hangar. Eles encontraram Aziz já desembarcado
de sua armadura mecanizada. O soldado trazia um
intrincado objeto metálico semelhante a uma arma em suas
mãos e jogados sobre o tombadilho ao seu lado, estavam um
livreto embolorado e os ossos da bocarra do tubarão visto
nas imagens.
Gabriel não dando atenção às demais coisas ou ao homem,
se lançou sobre o livreto e feliz traduziu em sua mente parte
do texto. Perdido na tarefa, não notou a aproximação do
64
Comandante, que tomando de suas mãos o objeto, passou a o
avaliar.
- O que é isso Azis?
Cercado pelos demais soldados analisando a coisa em suas
mãos, Azis deu de ombros.
- Não faço idéia Comandante, estava no corpo encontrado.
Pensei que o cristão poderia nos dizer se é algo útil.
Olhando com descrédito para o jovem, Mohamed estendeu o
livro em sua direção.
- Pode?
Um sorriso triunfante invadiu a face do tradutor e pousando
seus punhos na cintura em uma postura desafiante, ele quase
gritou de tão cheio de si.
- Sim! Eu posso!
***
As portas da alcova do vizir se abriram ruidosamente e a
figura de Gabriel invadiu o recinto. O jovem parecia exausto,
desde seu retorno ao Flagelo que o linguista não descansara,
65
pois a tradução do livro encontrado nas ruínas da cidade
arrasada foi posta como assunto prioritário. Ele carregava
um aparelho de leitura em suas mãos.
-Excelência, eis a tradução do documento encontrado. Penso
que ficarás decepcionado com seu teor.
Deitado sobre os montes multicoloridos de almofadas, o vizir
gesticulou para o jovem sentar-se enquanto expelia nuvens
azuladas de fumo por suas narinas.
-Tua dedicação e capacidade não serão esquecidas Gabriel.
Será meu secretário particular ao retornarmos a capital, mas
por que pensas que ficarei desapontado?
O ar cansado do rapaz desapareceu por alguns instantes por
trás de seu sorriso de alegria.
-Vossa Excelência é muito generoso, mas ouça, apesar de
termos encontrado os estranhos restos animais ao lado da
múmia que guardava o livro e eles parecerem pertencer a
criaturas descritas no mesmo, o texto me pareceu uma
fantasia demente.
Após a permissão do vizir o tradutor começou a ler:
66
”Jamais poderíamos imaginar que nós, o Grande Império
Britânico, nos veríamos prostrados ante um inimigo
estrangeiro. Um inimigo que anos atrás era parte de nossa
economia e cultura.
O primeiro relato acerca do inimigo surgiu entre os navios
baleeiros que aportavam em nossa capital. A maioria das
embarcações retornava aos portos, parcialmente
destruídas e com massivas baixas na tripulação. Os poucos
sobreviventes remontavam histórias fantasiosas que na
época eram tidas como meras bravatas insanas.
Os relatos eram desconexos em sua maioria, a única coisa
em comum entre os mesmos era o traje dos inimigos:
pesados escafandros de linhas curiosas, quase alienígenas,
que apesar do grande tamanho e estimado peso, permitiam
seus usuários se moverem como estivessem envergando
roupas leves de verão.
O caos se instalou em todo o império, indústrias de óleo de
baleia e pesqueira tiveram suas atividades paralisadas,
gerando um medonho desabastecimento dos viveres
marinhos e aumentando o seu custo de forma absurda.
Relatos semelhantes aos observados nos portos da capital
67
começaram a surgir provenientes das colônias e após
poucos meses algumas delas deixaram de enviar notícias. A
Rainha, ciente da gravidade da situação enviou toda a
armada para averiguar o que poderia ter ocorrido e em
caso de necessidade tomar medidas contra o possível
inimigo.
Nenhuma das embarcações retornou.
Em menos de três meses o mar tornou-se um ambiente
proibido aos homens. As pequenas embarcações de
pescadores eram atacadas ao se afastarem da costa. Cada
vez mais a distância segura entre a costa britânica e o mar
aberto diminuía tornando proibitiva a prática da pesca. O
império ficou literalmente ilhado ante as forças nebulosas
que passaram a dominar os mares ingleses.
Mas o inimigo não se conteve em nos humilhar negando
acesso aos mares, e invadiu o solo sagrado de nossa terra.
No início, apenas pequenos vilarejos costeiros foram
atacados pelos exércitos de escafandristas estrangeiros que
dizimavam as populações com selvageria inumana em
ações pontuais. Lentamente os ataques tornaram-se mais
68
contumazes, forçando o povo a abandonar seus lares e
correrem procurando abrigo no interior do país.
Cheios de um espírito combativo, nossos militares se
jogaram em direção ao litoral, mas foram chacinados pelas
forças inimigas. Arma alguma parecia ser capaz de ferir os
invasores, mesmo a artilharia pesada se mostrava inútil.
As baixas militares e de terreno foram enormes, nem
mesmo a briosa Brigada Ligeira, com seus destemidos e
celebrados tropeiros, foi capaz de fazer frente aos soldados
de armaduras azeviches.
Tudo parecia perdido até que durante um dia de
tempestade a chama da esperança queimou no coração do
povo inglês por uma vez mais! Um dos invasores foi
fulminado por um raio enviado pela providencia divina e
tombou abatido. Os seus companheiros ao verem tal cena,
debandaram em fuga rumo ao mar sem se preocupar em
resgatar o caído. E foi nesse instante que tivemos o maior
de todos os assombros. Ao tentarem retirar o capacete do
soldado, um jato de água marinha foi expelido e o insólito
se desnudou ante seus olhos. Dentro da armadura não
69
havia um homem, mas sim um peixe. Uma maldita
sardinha.
Para tentar entender a situação, o “corpo” foi levado para a
Academia Real de Ciências e Engenharia. Após uma
minuciosa análise, ficou sendo do conhecimento público que
os atacantes na verdade eram peixes que utilizando uma
avançada tecnologia, pilotavam as poderosas armaduras
cujo metal dava indícios de ter sido moldado a frio e até o
momento era inédito na tabela periódica. As assombrosas
máquinas propelidas por um avançado sistema bio-elétrico
serviam como aquários móveis para os animais que presos
por eletrodos pilotavam as mesmas para atacar o Império.
O mecanismo foi nomeado de Lito-Fato.
Munidos desse espécime e dos conhecimentos adquiridos
através dele, nossos melhores cientistas criaram armas que
podiam combater os inimigos que desde então ficaram
conhecidos como Lito-Escafandristas pelos eruditos e Shell-
Fishs pelo povo.
Uma nova arma foi distribuída entre as fileiras: A mochila
de arco voltaico. Um genial armamento que consistia em
uma bobina elétrica carregada por esforço mecânico, capaz
70
de disparar uma forte descarga semelhante a um
raio. Munidos dessa nova tecnologia uma nova brigada foi
criada a partir dos remanescentes da Brigada Ligeira: A
Brigada Voltaica.
Foram estrondosas as vitórias sobre os Lito-Escafandristas
graças ao avançado armamento usado pelas tropas de
nossa nação, mas estas foram breves, pois novos tipos de
inimigos se apresentaram. Em um esforço de guerra
jamais visto antes pela humanidade, foi erigida a Grande
Muralha de Londres, uma maravilha da engenharia
composta por aço, rocha e sangue. Em apenas um inverno,
a muralha foi erguida e ao raiar da primavera, com o
recomeço dos ataques, nossa pátria teve como sobreviver
ante as hordas marinhas.
Em cada trecho da muralha foram instalados gigantescos
arcos voltaicos e canhões em trilhos que se moviam ante a
necessidade de se concentrar as defesas em algum ponto
onde os atacantes se concentrassem. Por dois anos a grande
muralha e os bravos homens e mulheres da Brigada
Voltaica conseguiram manter a segurança do povo, mas
ainda assim a situação era desesperadora, pois a
população confinada precisava de viveres e estes cada dia
71
mais se escasseavam. Como produzir alimentos no espaço
restrito e poluído da capital?
A cada dia a fome se tornava mais endêmica na cidade e
revoltas populares. Uma guerra civil eclodiu e durante
quatro meses o pior inimigo foi o nosso próprio povo. A
insuflação só teve termino quando a Real Academia de
Engenharia Militar tornou pública a criação de um modelo
de autômato baseado na tecnologia dos Shell Fishs que
seriam responsáveis pela produção de alimentos fora dos
muros da capital. A alegria popular foi tamanha que os
revoltosos largaram as armas e novamente o povo
britânico se uniu contra seu inimigo figadal dos mares.
Mas como transportar para fora das muralhas os
autômatos (que popularmente passaram a ser conhecidos
como Dick devido ao seu peculiar formato cilíndrico) para
fora das muralhas sem permitir a entrada das legiões
assassinas?
Muitas propostas foram apresentadas, mas todas se
mostraram infelizes na sua eficácia. Apenas quando um
imigrante forçado (o governo passou a usar esse termo
para designar as pessoas que ficaram presas em nosso país
72
graças à crise) apresentou um revolucionário projeto de
aeronave que serviria como cargueiro e nave de guerra que
o problema ruiu.
Assim foi criada a Primeira Brigada Aérea da Coroa e
usando da sua mobilidade e poder, a crise alimentar foi
remediada.
Fazendas foram restauradas, a produção se tornou recorde
e com o uso das aeronaves (chamadas de Thunder Clouds
graças aos seus canhões voltaicos e de suas bombas) a maré
da guerra mudou em favor da Inglaterra.
Até o fim do inverno seguinte nossa nação conseguiu se
estabilizar e entrar em contato com o restante do mundo e
para nosso pesar, descobrimos que a maiorias das nações
haviam sucumbido sob o julgo dos demônios marinhos.
Poucos países ainda existiam além-mar e sua maioria se
localizava no oriente médio, entre as areias causticas do
Saara.
Um breve período de bonança recobriu nosso país, mas
assim que a neve derreteu, nosso pesar recomeçou.
73
Enormes tubarões brancos com dezenas de metros e
munidos com pesadas armaduras irromperam velozmente
nos campos de guerra com suas duplas fileiras de patas
mecânicas no formato de braços humanos. Seu poder e
velocidade faziam com que mesmo os Dicks fossem
destruídos por suas presas metálicas.
Nossas forças terrestres foram dizimadas e mesmo nosso
poderio aéreo se mostrou ineficaz ante os tubarões-
máquina. Em poucos dias eles chegaram até a Grande
Muralha deixando a morte e a desolação por onde
passavam. A situação mais uma vez se tornou
desesperadora, pois as investidas dos monstros (apelidados
de Armed Sharks) eram constantes e quase impossíveis de
serem contidas
Utilizando os conceitos criados para a construção dos arcos
voltaicos e de antigos conceitos acerca de armas de fogo
repetidoras, eficientes metralhadoras de Disparo de Arco
foram criadas. Essas maravilhas do engenho humano eram
capazes de criar verdadeiras barreiras de chumbo
eletricamente carregadas e propelidas na velocidade do
som magneticamente pelas pesadas armas, foram capazes
74
de equilibrar a guerra e dar novo fôlego a nossa combalida
nação.
Novamente passamos os áridos meses gelados nos
preparando para a chegada da primavera e o reinicio dos
ataques de nosso inimigo insólito. Novos modelos de Dicks
armados com Metralhadoras de Arco e um sistema de auto
detonação foram fabricados e barricadas móveis foram
instaladas na Grande Muralha. Londres não dormiu uma
só noite durante a última estação de paz e frio ocupada no
esforço de guerra. Ao raiar do primeiro lume do degelo,
estávamos preparados para vencer... Assim pensamos.
Os malditos invasores conspurcaram novamente o solo de
nossa nação com um novo engenho de guerra, uma criatura
monstruosa que somente o mais visionário dos homens
poderia vislumbrar. Como behemoths marinhos, titânicos
cachalotes albinos saíram do seio do oceano rastejando
lentamente sobre infindáveis fileiras de patas de metal.
As bestas se mostraram imunes às nossas armas e usando
de poderosos canhões de água marinha capazes de retalhar
aço e rochas com sua pressão quase sobrenatural,
arrasaram os postos avançados das forças de defesa e
75
lentamente mergulharam nas sombras projetadas pela
muralha escudo.
Neste mesmo instante em que escrevo essas linhas, elas
forçam sua entrada na capital e em breve as hordas de
tubarões, peixes-espadas e escafandristas com cérebros de
sardinhas retalharão os corpos do povo inglês. Todos os
cidadãos de Londres se muniram com os engenhos de
guerra e aguardam a batalha derradeira.
Meu nome é Alex Stonehill, sou professor por profissão e
jornalista por paixão. Espero um dia poder ler este relato
aos meus netos e que eles possam fazer o mesmo para os
seus. Este é o décimo terceiro dia do mês de agosto do ano
de 1845 de Nosso Senhor.
Deus salve a rainha!”
Ao terminar a leitura, o rapaz ficou em silêncio, esperando
algum comentário do vizir, mas ele estava perdido em
divagações. Após um longo tempo, Gabriel tentou expor
novamente sua visão sobre o documento.
- Como disse para Vossa Excelência, o relato é fantasioso
demais e...
76
Os olhos do idoso emanavam uma chama selvagem,
pareciam os de um demente. Isso deixou o linguista
assombrado. O vizir correu até um armário e ao retornar
carregava um volume bizarro. Um tomo de aparência
milenar, encadernado em couro escuro e mal cheiroso. O
legislador pousou a coisa sobre a mesa e sem entender o
motivo, o rapazote se afastou até as costas estarem
firmemente coladas no respaldar. Olhando para o livro, cheio
de temor, Gabriel escutava a voz excitada do vizir.
-Esse tomo fala sobre demônios e espíritos que vivem desde
antes do homem existir. Coisas presas sobre as ondas por
medo dos vapores lançados pelas estrelas. Essas criaturas só
podem escapar de sua prisão no abismo quando uma
configuração certa dos astros cessa o poder carcereiro o qual
lhes domina. Baseado neste texto recuperado das ruínas,
posso afirmar que em breve o horror será solto sobre o
mundo por mais uma vez!
O tradutor olhou para a figura do idoso com puro medo. Ele
temia pela sanidade do vizir.
77
-Mas Excelência, não acha que possa estar presumindo
coisas? É apenas um texto de fantasia, uma fábula sinistra.
Um esgar de desdém invadiu o semblante de Almir e sua voz
pareceu encavernar.
-Não é fabula alguma! A data prevista para o último
alinhamento coincide com outros documentos!
Ligando um aparelho de leitura pousado sobre a mesa, o
vizir atraiu a visão do jovem para uma imagem capturada
pelos soldados. A visão fez o maxilar de Gabriel tombar ante
o horror.
Uma gigantesca pilha de ossos humanos coberta pela neve
cercava uma escultura. O ser retratado era semelhante aos
escafandristas descritos no texto traduzido, apenas sua
cabeça era diferente do descrito. Era uma criatura
semelhante um polvo ou lula disforme.
A imagem trouxe desconforto ao rapaz. O vizir voltou a falar.
- Percebe? Em poucos meses um mal sem par que arrasou o
maior império do ocidente séculos atrás retornará.
78
- O que faremos, Excelência?
Olhando no fundo dos olhos do jovem que mesclava ânsia e
medo, Almir decretou.
-Vamos à guerra e que Alá nos ajude!
Ignorando os medos e sonhos que dominam os tripulantes
da morosa nau em sua marcha rumo ao lar, as estrelas
marchavam para tomar seus assentos e liberar o mal sobre o
mundo.
&&&&&
O Texto de TT Albuquerque ficou em Segundo no Segundo Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/ttalbuquerque >
79
Henrique
Por: Maria Santino
Henrique corria próximo aos trilhos do trem sentindo o peito
disparar, os cães raivosos seguiam em seu encalço e o
menino de calças curtas alcançava o comboio, já em
movimento, atirando-se de uma só vez. O policial estacava
levando o apito metálico aos lábios e o menino ria alto ao ver
o objeto quicar nas mãos do homem e cair dentro de uma
vala. Depois respirava aliviado na certeza de que aquele
alarme não soaria e ele poderia, enfim, examinar o conteúdo
da bolsa que havia furtado.
Os grunhidos distantes dos cães confirmavam que o trem já
estava “a todo vapor”, Henrique buscava sentar-se próximo
de uma abertura para usar o luar e visualizar aquilo que
retirava da bolsa
80
Papéis, alguns cobres, cigarrilhas, uma pequena caixa
metálica, mais papéis...
O menino com cicatriz recém adquirida no queixo e pele
clara, suja de fuligem, atirava longe a maioria dos objetos se
sentindo frustrado em não encontrar nada de valor. Sua
barriga reclamava e ele esbravejava alto:
- Droga de vida! Mas não volto pra lá. Não volto!
Segurando a caixinha ele deslizou com as costas na parede
do vagão e fechou os olhos tentando cochilar antes do trem
chegar ao seu destino (desconhecido para ele). Por breves
momentos ouviu vários clicks soando dentro daquele objeto,
mas não deu muita importância e dormiu.
Era uma jovem mulher que trajava um vestido roxo e
chapéu de lapela negro assim como as luvas. A bolsa se
mantinha firme nas mãos enquanto os olhos detinham-se
no trem que apitava prestes a chegar na estação. O menino
esgueirou-se nas sombras e puxou a bolsa bruscamente. A
mulher se esquivou e ele caiu machucando o queixo no chão,
porém, quando um oficial se aproximou de ambos, a bolsa
81
estranhamente foi entregue e o pequeno ladrão que partiu
em disparada enquanto a mulher gritava e apontava.
- Ladrão! Ladrão! Atrás dele! Atrás dele!
*****
Henrique acordou assustado, ouvia os latidos dos cães
ecoando e ficou feliz de tudo ser apenas um sonho. Olhou a
caixa em suas mãos e franziu o cenho ao ouvir aqueles
barulhos, agitou-o próximo ao ouvido atirando-o no chão
após uma lâmina machucar seu dedo.
A caixinha caiu desdobrando-se e ganhando uma nova
forma. Houve uma pirueta, uma luz azul fluorescente,
engrenagens que romperam de lá para cá e em pouco tempo
o objeto se tornava algo circular como um relógio, porém,
sem ponteiros. A luzinha azul traspassava um buraquinho
bem no centro. Henrique estudou aquilo mais de perto
projetando a luz na parede e ouvindo curiosos tic- tacs.
Novamente o estômago reclamou mostrando maior revolta, o
garoto passou a mão sobre a barriga lembrando-se do café
amargo e pão seco do orfanato de onde escapara há dois dias
82
- Não volto! Não.
A voz já não tinha a mesma convicção de antes, mas ele
buscava distrair-se para esquecer a fome. O “relógio” foi
colocado em um dos bolsos não furados de sua calça e ele se
lançou para cima, galgando os degraus de ferro da parte
externa da máquina a vapor que corria veloz sobre os trilhos.
Do alto o menino via as copas dos pinheiros, fazendas e lagos
que refletiam a luz da lua tão escondida sob os vapores que
escapavam das chaminés nas cidades. Ele se sentou não
temendo nem a altura nem a velocidade e abriu os braços
como um albatroz livre. Lembrava das paredes enegrecidas
do orfanato, da frialdade da clausura e do quanto sofrera
naquele lugar.
Em pouco tempo o apito da locomotiva soou e Henrique se
apressou em descer antes que o trem parasse na estação.
Verificou o “relógio” no bolso e estranhou a coloração
vermelha da luz. Saltou correndo novamente por entre os
trilhos e partiu apressado como um rato na ruas escuras
daquela cidade. Na estação, duas figuras não perderam de
vista o pequeno passageiro e seguiram sorrateiros atrás dele.
83
********
Henrique caminhou devagar quando se sentiu seguro, e ao
ler o letreiro estampado em uma construção qualquer, soube
que pisava no chão de Londres. O céu escondido dentre
fumaças diversas não deixava que ele se maravilhasse com os
imensos edifícios espalhados, mas enquanto erguia a vista, a
passagem de um vulto correndo de lá para cá o assustou
impelindo-o em apressar o passo. Mais uma vez o vulto
cruzou os telhados de uma construção e outra, e logo um
assovio fez o peito de Henrique bater tão veloz quanto os
sons, agora descompassados, do objeto que trazia no bolso.
Um beco escuro e sem saída foi o seu reduto e a projeção de
dois seres cantando e dançando vindo em sua direção, fê-lo
tremer acuado.
- Ora, ora. Se não é o pequeno ladrãozinho! – A voz
feminina deixava dúvidas se era amistosa ou não
- Tic- Tac. Tic- Tac. O tempo está passando... – Um homem
falava saltitando e batendo os calcanhares vez por outra.
84
O menino engoliu seco sentindo o objeto esquentar em seu
bolso. O céu precipitou uma fina chuva sobre os três fazendo
a mulher abrir uma curiosa sombrinha com luzinhas brancas
em cada ponta. Dessa forma tanto o garoto pôde ser visto
quanto os rostos daqueles diante dele. Henrique se manteve
parado e surpreso em reconhecer aquela mulher a qual
furtara a bolsa na estação e ver as maravilhas luminescentes
da sombrinha. Havia uma mala que ela segurava, mas assim
que ambos pararam, ela foi colocada no chão. O homem que
seguia ao lado era alto e dava rodopios como um acrobata
sem jamais deixar cair a cartola e a bengala.
Henrique não teve qualquer reação quando ele disparou ao
seu encontro e meteu a mão no bolso da calça onde estava o
objeto circular exclamando ao tocá-lo.
- Quente, quente! Mais um pouco e... Boomm! Um
ladrãozinho a menos no mundo.
A mulher apanhou no ar o “relógio” que o homem lançou, e
uma chave que trazia presa em um cordão no pescoço foi
inserida no objeto fazendo-o retornar a forma de antes: uma
caixinha metálica.
85
- Uffa! Foi por pouco!
Henrique deixou que algumas palavras escapassem dos
lábios, não sentia menos tensão, mas o excesso de
estranhezas que presenciara aguçava a sua curiosidade
- Boomm? Isso era... uma bomba?
Os dois olharam para ele e riram alto. O homem mexeu em
seus cabelos lhe perguntando amigavelmente quem era e
onde morava. O garoto respondeu de imediato confiando no
estranho que recompunha o colete e cartola e brincava com a
bengala.
- Henrique Russell. Eu... eu morava em um... orfanato.
O homem deu um giro na bengala enquanto a mulher
guardava aquela caixinha na mala junto de tantas outras. A
mente infantil do menino não atinou que aqueles artefatos
poderiam explodir uma cidade inteira e nem que estava
diante de dois agentes secretos. A bengala parou de girar e o
homem puxou a cabeça dela projetando uma faca e
apontando para o rosto de Henrique.
86
- Toda operação quase fracassou por causa de um
orfãozinho de merda! – Sua expressão era mais de
reprovação que raiva.
A mulher correu com sua sombrinha luminosa e falou
lançando olhares de ternura para o órfão.
- Não, pare! Pense um pouco. Um órfão ladrão pode ser útil
e depois... “A Ordem” precisa de mais recrutas.
A chuva aumentou fazendo os pingos que escorriam da
lapela da cartola do outro molhar o nariz de Henrique. O
homem piscou os grandes olhos azuis e frios várias vezes.
Todos os trejeitos que fazia pareciam ensaiados e ambos não
se assemelhavam as pessoas que Henrique estava habituado.
- Hunf! Este cai no primeiro teste.
- Não é você quem decide!
A faca foi retirada do pescoço do menino e a voz masculina
soou como desaprovação para companheira.
87
- Você e seus arroubos! Ok! É responsabilidade sua. Agora
vamos!
Ele saiu cantando e espalhando a água empoçada enquanto
segurava a mala.
- God save the Queen. O Lord our God arise, scatter her
enemies, and make them fall...
- Tudo bem. Vamos!
Henrique caminhou ao lado da mulher sem parar de olhar
suas roupas, eram estranhas e extravagantes. Um espartilho
de couro marrom estava por sobre o vestido claro de mangas
bufantes, o comprimento da saia era um pouco abaixo do
joelho e ela calçava botas negras nunca vistas por ele. O
chapéu estava mais para cartola masculina do que para algo
feminino. Ele sentia as maçãs do rosto esquentarem ao olhar
aquele busto muito exposto.
- Desculpa pela queda – Ela disse segurando a mão dele.
- Desculpa por roubá-la.
88
A mulher riu, lembrando-se de haver entregado a bolsa para
não chamar atenção para si.
******
Meses depois a polícia secreta britânica era chamada às
pressas para investigar as estranhas explosões a trens de
cargas e embarcações com manufaturas vindas das colônias
Inglesas. Uma crise se anunciava. No jubileu de diamante da
Rainha, um objeto circular muito quente foi levado para os
aposentos de um empregado, a explosão foi mantida em
sigilo, mas todos ficaram alarmados.
Henrique Russell fracassara em sua primeira missão e corria
na dúvida se outras oportunidades surgiriam ou não.
&&&&
O Texto de Maria Santino ficou em terceiro lugar no Segundo Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal da autora
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/mariasantino >
89
Verde como o céu
Por: Iago Algodão
Ontem quando ouvi a porta bater, sabia que algo estava
errado. Caio era demasiado calmo para provocar furacões.
Pensei em estabelecer diálogo de imediato, mas depois de
uma pausa, julguei ser melhor esperar. O tique taque do
relógio costuma ser um grande conselheiro, como se a cada
segundo vivido, despertasse em nós uma gota extra de
sensatez. A fúria sempre pareceu-me um rato, arma-se em
gigante quando corre por um pedaço de queijo, mas
desmancha-se em fragilidade quando apanhada na ratoeira.
Esperar, no entanto, nem sempre se rebenta em sabedoria.
Há quem passe toda a vida à espera enquanto tornamo-nos
apenas mais novos para a morte. Morri com Caio naquele
dia.
Deixei a sala em busca de uma resposta. Empurrei a porta
lentamente e encontrei o mais vago dos quartos. Apenas a
cama bagunçada, propositadamente desarrumada, numa
90
filosofia inventada numa tarde de domingo. Caio e eu
estávamos convencidos de que a bagunça andava de mãos
dadas com a criatividade e, já há alguns meses, proibimos
um ao outro de ajeitar os lençóis. As marcas de uma noite
bem dormida é o acalanto da alma, sonhamos. Mas o vazio
do quarto preencheu-me como a água ao mundo. Naquele
instante, foi o ar que me respirou e não o contrário. Num
sôfrego desespero, olhei pela janela do nosso décimo andar e
os olhos apenas me calaram. Lá embaixo, a vida transcorria
na loucura de sempre. Miúdos a brincar no playground,
mulheres a embalar seus bebês. Carros a sair e entrar. A vida
de uma janela de apartamento é algo insustentavelmente
estável.
Deixando o quarto onde não havia nenhum vestígio, percorri
todo o apartamento. Apesar da curta distância entre a sala e
a cozinha, a lavanderia e o banheiro, demorei toda uma vida
a 90ncontra-lo. Não obtive êxito. O jogo de se esconder é das
maiores armadilhas da vida. Desde cedo, aliás, carrego um
trauma, fruto de ouvir da minha avó a história de uma
mulher que ao se esconder em pensamentos, perdeu-se, e
nunca mais voltou pra casa. Prometi a mim mesma que
sempre me refugiaria na verdade, sem jamais omitir a menor
91
das narrativas a se debruçar nas minhas estrelas cinzentas.
Têm sido anos de grande luta.
Do sofá, ouvi a campainha. Estou certa de ter mantido o
controle da situação, mas a minha vizinha vinha a me
socorrer, como se eu necessitasse de salvação. Quis não abrir
a porta, mas o fiz. Notei nela um olhar de pena, leviano.
Pobrezinha, também a ela deve ser caro isto de manter as
aparências, num mundo imaginado. Um dia devo contar-lhe
sobre a mulher de que falou a minha avó, assim ela poderá
salvar-se dessa irrealidade em que vive e que nem ao menos
consegue disfarçar. A verdade é uma realidade que custa. É
preciso estar de olhos bem fechados para vivenciá-la.
Fez questão de me abraçar, limpar as lágrimas – bem, não
estou muito certa de que havia lágrimas. Consolou-me,
enfim. Expliquei-lhe que tudo estava sob controle. Ouvira a
porta bater, senti que o Caio estava irritado, fui em busca
dele, mas nada. A porta, afinal, bateu-se para fora e não para
dentro, como havia suposto. Há portas que nunca deveriam
ser fechadas, nem sequer, deveriam ter sido inventadas.
Fechamos os caminhos e depois culpamo-nos por não
encontrar as saídas. Deve ter sido isso que aconteceu ao
Caio, abriu a porta. O vento a bateu. Nós somos um casal
assim, com uma filosofia libertária. O andar é para fora. A
92
esta altura, Joana, minha vizinha, estava com um olhar ainda
mais desolado. Senti que algo estava a correr muito mal. Não
demorou muito para que aparecessem os senhores de branco
que me conduziram até este lugar onde agora me encontro.
Aqui tenho muito tempo disponível para pensar. Seria bom
que outras pessoas tivessem a mesma oportunidade. As
portas também nem sempre estão abertas e, mesmo assim,
entra mais gente do que se sai. O Caio ainda não deu
notícias. Outro dia terminou sem a sua visita e todos se
recusam a falar dele. Aproveitei o banho de sol para olhar o
céu. É verde. Reluzente. Infinito. Quando assim o retratei
numa aula de desenho, fui duramente repreendida pela
professora de artes. É azul que deve ser – insistia ela.
Coitada. Há gente que olha e não vê. Há tanta gente, mas tão
poucos olhos. Sou uma felizarda. Amanhã, tenho certeza, o
Caio virá.
&&&&&
O Texto de Iago Algodão ficou em Primeiro lugar no Segundo Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/freiresle >
93
VUUL E O MENINO
Por: Ginete Negro
No princípio era Vítor e aquela imensa estrutura (que
tomava como sua).
E o menino era o deus daquele mundo. E vagava pelo lugar.
A descoberta dos muros foi um acaso. Para Vítor, o que mais
podia existir além dele, da argila e da água? Desde tempos
imemoriais lembrava-se das andanças solitárias pontuadas
unicamente por pegadas disformes sobre o solo vencido. A
amálgama dos elementos nos quais solas nuas deixavam
marcas compunha um horizonte espelhado. Amontoados de
argila formavam minis cadeias de montanhas resguardadas
por rios e pranchas de mar que mais pareciam sistemas
insulares. O domo dessas montanhas não ultrapassava meia
altura das canelas do menino.
E foi errando de cenho caído como um Javé pré-adâmico ou
um Gulliver desolado que, inesperadamente, deu com a testa
94
numa superfície dura. As passadas largas chegaram a patinar
na lama devido ao impacto, mas Vítor permaneceu de pé.
Que assombro lhe sobreveio ao perceber, do outro lado, num
corte abrupto, ausência de terra e dos minúsculos mares! E o
eterno alvor dos céus dominando tudo!
Vítor tratou de premer o rosto contra aquela novidade
invisível. Embora a visão tenha captado, o tato sentenciou:
uma parede. E extremamente lisa. Mas logo a crosta de argila
enluvando seus dedos arrojou-se naquela estrutura e lhe deu
um pouco de forma. Rastros sujos e horizontais
confirmavam aos olhos aquilo que mãos já sabiam. O
menino, então, concebeu duas ideias, mas deu ação à mais
exaustiva delas.
Consistia em entupir as palmas brancas com argila e ir-se
deslizando sempre para a direita, no franco intuito de
vislumbrar o comprimento daquele muro opaco. Tornou-se
uma espécie de caranguejo humano — as digitais
friccionando barro contra o vidro e as pernas abauladas,
precisas, avançando lateralmente.
Infatigável, afundava as mãos no lodo e enrijecia o tronco. A
trilha marrom jazia onde ele passara e, em seguida, via-se o
95
estirão límpido que pretendia lambuzar com a mesma argila.
O muro era colossal e dividia seu mundo em dois por
quilômetros, milhares deles!
Finalmente, o limite! A destra de Vítor tateou algo como uma
junção, um ângulo separador de um novo muro. Por isso,
abarrotou de argila o seu indicador e raspou o encontrado
vértice em movimentos verticais deixando um risco de,
talvez, dez centímetros.
A tarefa recomeçou. Enquanto dedilhava a superfície
imaculada e arrastava os pés de lado, uma hipótese
resplandeceu na sua mente:
— E se o Universo não for infinito? E se eu estiver
equivocado?
O menino, cambaleando de cansaço, desvendou mais três
ângulos e se sentiu triplamente exausto. Ainda assim, não
desistiu, nem diminuiu a força motriz do seu empenho.
— Maravilha! — rejubilou-se. Ao longe, meio ao branco
ofuscante, notou listras lamacentas que seguiam.
96
As primeiras marcas. O ponto de partida da incumbência.
Aquilo injetou ânimo onde estava escasseando. Com
músculos tesos e passos vacilantes, o pequeno Vítor concluiu
a tarefa auto-infligida: uniu as derradeiras listras às do início
e, satisfeito, deixou-se precipitar de costas, já sem energia,
sobre as pequeníssimas cadeias montanhosas.
— É bom descansar um pouco — disse Vítor a si mesmo. —
Pernas, como vocês doem! Joelhos, como latejam! Dedinhos,
quão dormentes estão! Quase não os sinto! Gastei o grosso
das minhas forças para descobrir o quê? Que meu mundo é
limitado, e quadrado! —Inclinou o dorso e roçou polegares
nas pálpebras exprimindo dúvida. — Quem teria construído
isso e isolado este mundo? Visto que nada existe além de
mim e que meu caminhar tem séculos e séculos... Alguém
teria ocupado esta terra antes do Tempo? Ou no disparo do
primeiro segundo da eternidade? No Universo além das
paredes, haverá algo diferente deste? — Subitamente, Vítor
entregou-se ao êxtase. — E haverá outra criança, também?
Sua esperança tornou-se um salto. Vítor retesou os membros
e os arremessou em direção ao muro. Os pulsos esticavam as
palmas, e as palmas davam aos dedos uma elasticidade
97
incomum — fruto daquele afoitamento a dominar o
descobridor que dava asas às perspectivas:
— Como será essa criança? Terá um corpinho todo
amarelado, igual ao meu? Dois olhos, bochechas, parceria de
nariz e boca? É possível que tenha três olhos e nenhum
nariz? Ou, pelo contrário, uns cinquenta narizes a farejar
esse mundão esbranquiçado e vazio? He-he-he! Nem sei se
sou bonito, afinal, o reflexo dos laguinhos é tão incerto...
Sem meus dez soldadinhos espreitando o rosto, de que
maneira saberia o que está encravado em minha cabeça? E a
criança será tão inteligente como eu? Será? Será?
Entretanto, o menino não identificou bordas na estrutura,
tampouco falhas. A ânsia de encontrar um meio de transpor
o muro tomava proporções assombrosas e descia sobre Vítor
como um maligno possuidor. Fixava-se ao liso transparente
agitando os braços no raio máximo de um Homem
Vitruviano. Erguia calcanhares para alargar o alcance.
Comprimindo o ventre infantil ao comprido daquela parede,
tratou de pôr as mãos noutros quadrantes mais ao alto.
Insucesso total.
98
Vítor desatou em extenuadas lágrimas. A parede, além de
larga, parecia tomar grande altura. Ato contínuo, o menino
se sentiu oprimido, amedrontado, desesperançoso frente à
possibilidade anulada de desbravar o espaço posterior ao seu
mundo. Em linhas gerais, ele sucumbiu à tristeza e pesou-lhe
no espírito uma gigantesca bigorna intitulada SOLIDÃO.
— Sozinho! Abandonado! Nem sei... Sou único? Isolado?
Aprisionado? Se há alguém do lado de fora, transparente
como essas paredes, que apareça e tenha dó de mim! — E
Vítor apequenou-se numa fisionomia descaída. No seu
desespero de conjunto unitário, apanhava punhados de
barro e os esfregava no torso nu como alguém impondo
castigo a si próprio.
Numa dessas mãozadas ao peito, deteve-se. Chamou sua
atenção a compactação das informes bolotas de massa sob os
dedos, os sulcos proporcionados por eles. Em seguida, veio o
estalo.
— Sim. Sim... Sim! — E a expressão pesarosa deu lugar à
alegria infrene.
Sabia exatamente o que fazer.
99
Um pedaço de argila, após sucessivas compressões, saiu do
oco das mãos em forma de batata. Vítor embolotou outro
naco barrento e o seccionou em quatro pecinhas roliças. Com
o auxílio crucial dos dedos médio e mindinho, mensurou
dois cilindros de argila em cada, moldando, assim, as pernas
e os braços que foram enxertados na massa oval. Após
descoser (extrema delicadeza!) os vinte dedinhos, colheu
outro naco, de espessura menor, e coroou seu Frankenstein
com uma cabeça.
Lentamente, pôs o boneco em pé.
— Você será divertimento para mim, e eu te serei por pai e
amigo! — Porém, rapidamente Vítor potencializou sua
disposição. — E se... além de amigo... eu fosse Deus??
Fabricou dez outras batatas de terra, dez pequenas esferas e
quarenta rolinhos do mesmo e único material. Dessa vez,
ocupou-se primeiramente das sutilezas de pés e
mãos. Deixando-os em riste, admirou-se da criação: onze
bonecos de argila! Onze homens-batatas.
— Hum... Posso fazer mais destes. E quero!
100
Vítor se permitiu engolir pela própria faina criadora. Dizia-
se que trinta brinquedos adicionais bastariam, mas não
parou.
A próxima meta resvalava na casa dos setenta. Ultrapassou.
Os membros ágeis davam forma à argila com rapidez
impressionante. Ao todo, quatrocentos e setenta e nove
bonequinhos ocupavam um retângulo insular. Cedendo a
gomos de cansaço, Vítor estipulara terminar em quinhentas
criações. Entretanto, passando olhos nos quatro cantos de
seu campo, disse:
— Mas é tão grande o mundo, vastíssimo o aquário! Sendo
Deus e Senhor, pode deixar tanto espaço desabitado?
Evidente que não, Vítor!
Sob esse pretexto, o menino tomou fôlego e acelerou o
processo até perder o algarismo real de criações. Supunha ter
trazido ao mundo mil e quinhentos daqueles pequenos seres
estáticos, embora, a olho nu, indubitavelmente houvesse
mais de cinco mil. No perímetro de poças d’água — que ele
chamava de praias ou planícies —, ao menos vinte bonecos
101
davam o tom de ocupação. Nos grandes espaços devassados
pelas pegadas do menino-Deus, então, agrupavam-se
praticamente exércitos, verdadeiros batalhões de bonecos
marrons.
Em cálculos complicados, Vítor pretendia cobrir todos os
recantos do seu mundo quadrangular — criar vilas,
comunidades, quiçá países —, mas tal empreitada despendia
o fabrico de, no mínimo, setecentos bilhões de unidades.
Como o número recheado de zeros assustava, por ora,
resolveu parar de manipular argila.
Lavou-se num dos maiores lagos para a preparação do
grande momento. Em voz trombeteante, lançou aos ares:
— Ouçam, todos. Eu sou o Amigo, eu sou Deus. Ordeno que o
sopro da Vida invada seus corpos!
Não se sabe de onde partiu a corrente elétrica que sacudiu os
homens-batatas, mas milhares de braços alçavam-se e
abaixavam-se mecanicamente. As bolinhas onde dois furos
imitavam globos oculares deslocavam-se com extremo vagar
se comparadas ao frenesi dos membros.
102
Maravilhado, Vítor pôde acompanhar a evolução dos
bonecos. Alguns nãos saíam do lugar, plantados como
estacas. Outros arriscavam passos curtos, trêmulos, mal
pensados, mas obtinham êxito. Houve, ainda, quem
dominasse a força das pernas e deitasse a correr!
E as conversações!... Os pobres soltavam vogais; quando
muito, tímidos trissílabos uns aos outros!
Como se abraçavam! Quanto amor chamuscava os peitorais
feitos de terra!
Pela inexistência do Sol e de qualquer astro para basear
relógios (o céu, essa eterna alva!), não se podia precisar
fatias de tempo, mas era patente que o pleno
desenvolvimento das concatenações de ideias entre os
brinquedos demorou bastante. Vítor adorava observá-los —
cosia-se às paredes opacas como um deus distante a deliciar-
se com a suprema criação de seus dedos.
Era de pasmar. Os bonecos (ainda que involuntariamente)
estabeleciam sistemas sociais diversificados, e os de maior
estatura adotavam os indivíduos que fossem, talvez, dois
milímetros mais baixos — como pais recebem filhos. Passado
103
isso, resolveram organizar-se em ajuntamentos — ocuparam
planícies, topos de montanhas e demais terras —, sempre
carregando um nome em comum entre os do mesmo clã.
Andando próximo aos limites do seu território-mundo, Vítor
se surpreendia com a dedicação das criaturas. Elas
construíam casas imensas, casebres do tamanho de um
artelho, pontes sobre lagos menores e tantas outras coisas.
Ao verem o seu Deus e Amigo, tratavam de sorrir e bater
palmas, felicíssimos. Usualmente o menino puxava um dos
bonecos (na velocidade de sucção) e o arremessava para o
alto, permitindo que ele lhe caísse ao ombro esquerdo ou
direito. A plateia do chão ria às largas bandeiras, gargalhava
sem parar, sobretudo quando o Amigo os convidava a
brincar deitando de bruços no solo e abrindo os braços como
asas. Os homens-batatas subiam e, logo, Vítor levantava-se a
correr como harpia sedenta por voar. Os bonecos se
agradavam imensamente da brincadeira!
Em determinado momento, enquanto reproduzia o mesmo
divertimento junto a outros bonecos, o menino ouviu gritos
atingindo suas costas:
— Ami-o! Ami-o! Ami-o!
104
Deu meia-volta. Um grupo inumerável de homens-batatas
vinha apressado ao encontro e sustentando rostos tensos.
Imediatamente, Vítor abaixou-se até o solo e deixou os
brinquedinhos descerem dos braços.
O batalhão praticamente o cercou; mãozinhas maleáveis
tocavam o dedão do pé como quem pede acompanhamento.
O mais alto daquela turba vozeou:
— Um coiso! Vul-vul-vul! — e o bracinho, acompanhando a
onomatopeia, rodeava na pantomima de uma espiral
perfurante ou algo que o valha.
— Rodando assim?
— Xim! Xim! Odandu, odandu! Vul-vul! — replicava o
maioral dos bonecos.
Espantoso, também, como velozmente se estabanavam
aquelas criações. Vítor foi ao encalço tão assustado quanto
eles. E teve de apertar o passo, pois o ocorrido se dera longe
dali.
105
O menino chegou às terras do clã Aiuel. Tamanha desolação
lambeu o lugar! Centenas de homens-batatas se rasgavam
em pranto. No encontro de dois morros jazia algo como uma
derrapagem embarrigada em meia-lua. Obra provável de
uma queda brusca e pesada. Alguns pingos d’água precediam
aquele desenho no lodo e o conectavam ao lago que os Aiuel
batizaram como Ixiú. Um rastro em desalinho saía do
esparrame e seguia até a Praia de Xiausó.
— Vul-vul odandu caiu Xiausó — um segundo boneco
dedilhava o calcanhar do Amigo Vítor. — Vuul cabô vida
papai! Aiuel-kenô tixti, tixti!... Lácrima tixti, Ami-o! Aiude-
me! Ô-favô! Aiude-me!
E somente ali Vítor pôde notar que a criatura — tida como
Vuul — se precipitara sobre duas casas, ceifando a existência
de dez dos seus bonecos.
A súplica do desesperado Aiuel-kenô doeu no fundo de sua
consciência. Instintivamente acocorou-se o menino para
fabricar outro boneco — sem demora, porém, se deu conta
que jamais poderia criar um novo pai para o pobre órfão.
106
Segurou o choro sob um esforço inatural — como Deus e
Amigo da criação, não queria demonstrar fraqueza. No
cérebro, pensamentos afobados entrechocavam-se. “Quem é
Vuul? Pode existir algo além de mim, coisa não surgida de
minhas mãos? Sempre vivi sozinho, ao largo de qualquer
companhia, por milênios. Resolvi conceber uns parcos gatos
pingados a quem chamo ‘minha criação’ e, de repente,
aparece um adversário, um inimigo sedento por dizimá-los!”
Esbravejou feito um desabafo:
— Maldito Vuul, declaro guerra contra ti!
Nem terminou a reflexão e levou um susto tremendo, digno
do passo retrocedido fortuitamente. A dez metros de
distância, um tipo de cajado rosa saltava em riste. Partira do
Grande Mar de Ianuí. Aquele monstro cilíndrico girava ao
redor de si numa celeridade fora do comum. Vuul ainda se
sustentou no ar por quinze segundos antes de se estatelar
contra centenas de bonecos.
Gritaria geral. Vuul rebolou na lama e por cima de alguns
montes. Sagaz, esmagou tudo ao alcance, passou feito um
rolo compressor naquelas paragens. Em seguida, rastejou no
rumo do Lago Eatapeia, onde encontrou refúgio.
107
Furioso, Vítor se arrojou em direção ao lago. Como uma fera
faminta, meteu a totalidade do braço direito Eatapeia
adentro. Dedos vorazes destrinchavam o fundo inacessível
aos olhos. Então, a empunhadura agarrou um cilindro
delgado e elétrico.
Puxou aquilo para a superfície. Vuul girava igual a uma
broca, e a pouca aderência da argila quase o fez escapar do
abraço contentivo de Vítor. O menino teve de usar a força
das pernas no intento de prender o demônio em forma de
serpente.
Fuça à fuça com Vuul, o pequeno Amigo se encheu de asco: a
criatura possuía uma cabeça muito semelhante a cogumelo
ou dente canino, cujo centro abrigava um buraco. A cada
soco e tentativa de estrangulamento por parte do menino,
um jato líquido escapava do orifício e descrevia uma longa
parábola.
A batalha entre Vítor e Vuul estava acirradíssima. O menino
abraçava à força tamanha que veias lhes saltavam do pescoço
e da testa. Por sua vez, o demônio Vuul tentava desvencilhar-
se com o chicotear da cauda e a colérica rotação em si
108
mesmo. Vítor tratou de dar fortíssimas mordidas ao longo do
tronco escamoso da serpente.
Milhares de bonecos vibravam com a cena: — Ami-o vai a-
nhá! Xalva genti, Ami-o! Xalva!
O forte Vítor jogou joelhos por cima da cauda do monstro e
desferiu série sem conta de sopapos. Vuul expelia mais e
mais líquido, parecia agonizar. Esganando o pescoço da
serpente, o menino Amigo reuniu toda sua energia no punho
direito...
*
* *
— Vitinho. Vitinho. São horas, filho.
Uma luz virginal atravessava os meandros verticais das
cortinas, branca e limpa — tal qual a face de círio da sofrida
Anabela.
— Não recolha todas. Abra só a primeira janela — dizia a
mulher ao tio e cuidador de Vitinho. Dirigiu-se ao precioso
109
objeto de adoração: — A noite foi boa com você, bebê?
Sonhou bastante?
— Ãezzzinha!... — o garoto, a muito custo, conseguiu
exprimir. Deitava a cabeça sobre um travesseiro empoçado
de saliva noturna. A boca esgazeava num redondíssimo zero,
as arcadas moviam-se sob luta constante e forçosamente
lenta. Cada vez que tentava falar, os olhos esbugalhavam e o
maxilar entortava, assim como os frígidos dedinhos que
envergavam prestes a quebrar.
Garoto de dez anos usando o elmo da paralisia cerebral —
mesmo assim, um guerreiro!
— A médica receitou mais um remédio. — Escutava o tio
enquanto destravava a cadeira de rodas. Anabela fez um
adendo, apontando para a almofada do assento. — Acho
melhor ele tomar a medicação antes do banho.
— Mas sempre dei a chuveirada antes de qualquer xarope —
protestou o cuidador.
110
— Xxxxaaarrrop... Ã-ão!... — esforçava-se Vitinho, lançando
uma expressão grave ao tio e balançando negativamente o
queixo.
— Faz diferente dessa vez, maninho — respondeu Anabela
carinhosamente.
Propagaram-se buzinadas duplas vindas da rua. A mulher,
paramentada até o pescoço, deu um salto. — É a Lídia.
Deitou um apaixonado abraço no filho — usualmente
sentindo a mesma fisgada dolorosa no coração de mãe que se
policia em ser mais presente perante um Vitinho deficiente.
— Mamãe não demora, tá? Té mais, bebê!
— Maaaamaaalinnnda — vocalizava o menino.
— Ô neném!... — trincou o rosto num espasmo de dor e
saudade pré-concebida. Virando-se para o irmão, perguntou.
— Quer algum troço do centro, Volnei?
— Um só: quando o sol se esconder detrás dos prédios da
Avenida Quintino, que você volte para nós!
111
Sorrisos e beijos trocados. Pouco depois, um veículo
abandonando a entrada da residência — o disparo
corriqueiro da rotina do cuidador e seu pupilo exigente de
atenção.
Volnei alinhou os braços do sobrinho para virá-lo de bruços.
Despiu o menino e destacou os adesivos laterais da fralda
branca.
— Atravessou um sono limpinho, não é, Vitinho? Pena estar
molhadinho. Deixa. Titio Vol vai ajudar o bebê a se secar.
Pudesse a mão humana ser útil somente para exames!...
Talvez pelo calor matinal, o cuidador teve de se desnudar,
também, e afastar vagarosamente as pernas do sobrinho
paralítico — o ouro da irmã.
Reposicionou-se.
Fios de saliva descambavam da boca de Vitinho e maculavam
o travesseiro oposto. Logo, uma mão forrada de panos finos
tapou o vazamento.
112
— Assim, Vitinho... Deixa titio cuidar de ti... Deixa titio dizer
de novo: você tem o bumbum da sua mãe, querido...
O menino se indagava o motivo pelo qual, mesmo deitado,
carregava o tio sobre si. E o corriqueiro hálito quente nas
entranhas dos cabelos, a barba mal aparada fustigando sua
nuca, o cheiro de alcatrão emanando do bigode grisalho.
Também escapava do seu conhecimento explicação para a
intensa vontade do titio Vol em desbravar aquele vale entre
as duas macias colinas do seu corpo; e amassá-las com dedos
esbraseados; e chupá-las como se fossem seios de mel.
Dois braços cinquentenários fizeram um laço contra os seus
e...
No princípio era Vítor.
E aquela imensa estrutura (que tomava como sua).
E Vuul.
Raios! Vitinho não conseguia entender por que Vuul se
imiscuíra no Princípio, no seu Princípio!
113
Sob o peso espichado e quente do Tio Volnei, soltou do olho
lágrima única, solitária, mas não totalmente triste. O menino
forte como um Deus ultrapoderoso contava as horas para
chegar a soldadura noturna dos céus e poder dormir de novo.
Nela, ensaiaria uma maneira de encarcerar Vuul — o
demônio que, nos sonhos, intentava destruir seu povo.
E que, no mundo dos acordados, o penetrava sem qualquer
laivo de piedade.
&&&&&&&
O Texto de Ginete Negro ficou em primeiro lugar no Terceiro Desafio Literário
Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/ginetenegro >
114
Prisão de vidro - Ilusões que o tempo levou
Por: TT Albuquerque
A casa era velha e suas paredes caiadas em um tom de verde
pálido, eram cheias de remendos de barro que atacado pela
umidade se desfazia em minúsculos grãos carregados pelo ar
até tingirem os móveis com uma capa marrom. As aranhas
gordas e pachorrentas, teciam seus pequenos feudos de seda
nos cantos mais altos do teto baixo, onde o sol despejava sua
luz pelos orifícios nas telhas velhas, criando padrões curiosos
no chão de cimento pintado com um vermelho já desbotado.
Lá fora o verão rachava o solo até deixá-lo como um
arremedo tristonho de algum tabuleiro de jogo de estratégia,
o interior da casa era frio, talvez mais que o interior da
antiga geladeira a querosene, cuja ferrugem faminta era
embalada pelo som monocórdio do infatigável motor em
dueto com o relógio antigo onde o cuco há muito deixou de
cantar.
Sobre o piso frio, palitos queimados e cinzas de fumo de
corda viravam pasto do mofo, atrapalhando a lida frenética e
115
despreocupada das grandes saúvas em direção de seu reino
construído ao lado do fogão de lenha. Em cima da mesa de
tampo rachado, um pedaço de queijo coalho era disputado
pelas varejeiras que imitavam o voo de colibris ao pararem
no ar por longos minutos com seu brilho metálico.
Uma garrafa de cachaça meio gasta pela sede do dono da
casa estava largada ao lado do amontoado de gordura
salgada. O homem idoso de olhos distantes e baços pela
influência da cana destilada até se tornar um veneno para a
memória, bebia para afastar a solidão da velhice e acalmar o
desassossego da incerteza sobre o próximo amanhecer. Bebia
também para poder ser abraçado pelos dias idos e todas as
maravilhas perdidas na moenda cruel do tempo, que como
máquina elétrica estilhaçou as coisas quistas ao seu coração
até o transformar em um lago profundo preenchido de
mágoas.
Cada copo entorpecia um bocado mais a sua da alma
solitária no corpo cheio de dores, o fazendo mergulhar em
um sonho desperto rumo a paragens verdes onde serras e
quermesses, já emaciadas na memória, roubavam as cores
funestas da lente escura a qual seus últimos dias estavam
cativos.
116
Revia as ervas sobre os montes a vergar como ondas sob a
vontade da aragem vinda do agreste, as cabras a correr e
balir, os vaqueiros a cavalgar tangendo a boiada em suas
armaduras de couro cheias de arabescos intricados, os barcos
a caminhar mansamente pelo Velho Chico rumo a cidades
distantes, as lavadeiras com suas cantilenas sobre santos e
amores perdidos, a casa de seu pai e o juazeiro. O juazeiro,
seu amigo de brincadeiras onde menino lutava com a
macacada ao lado de cangaceiros para conquistar tesouros.
Seu forte mágico da infância roubado pela fúria do céu
invejoso que vendo seu carinho pela planta, cuspiu uma
língua de fogo que a rachou deixando só brasas e um toco
morto para trás.
Após mais um copo de bebida barata, as imagens das festas
religiosas com seus fogos coloridos, as bandeirinhas de papel
tremulando nos fios esticados pela praça, os repentistas
despejando suas bravatas durante desafios, as procissões, os
cordéis impressos em papel velho, os quitutes de fubá e
açúcar mascavo, os grupos de forró e as bancas de jogos de
azar desfilaram em sua mente ébria trazendo um sorriso
amargo para a boca murcha e cheia se rugas curtidas pelo sol
do sertão.
117
Cada novo gole abria uma nova cortina do sonho desperto
que vivia, e nele, como peças de mamulengos, sua vida se
apresentava. Viu a escolinha onde aprendeu as letras e os
números, Dona Maricotinha a jovem professora que agora já
era parte do pó primordial, as carteiras riscadas, os livros
encadernados em couro cru, os cadernos feitos por seu pai
com papel de embrulho e barbante, as filas para cantar o
hino, o quadro negro torto e a estradinha de chão por onde
toda manhã caminhava duas horas para aprender o bê-á-bá.
Encostado em um canto a viola comprada na mocidade
enfeitada com fitas do Bom Fim, lhe fazia rever os amigos
que formavam seu trio de forró: Chico Duro e Zé Galinha.
Seus parceiros, quase irmãos, que fugiam juntos durante a
noite para tocar na casa de Madame Laura, rapariga velha e
gorda cuja paga em bebida e favores da carne, eram mais
cobiçados que o lugar no Paraíso que sua mãe dizia poder
perder andando em tal antro de pecado. Ele quase podia
ouvir os três cantando as marchinhas da moda, os boleros e
as músicas de Gonzagão sobre as tristezas do nordestino.
Tristezas que na época lhe pareciam bem distantes, mas que
agora eram quase tudo em seu viver.
118
As lembranças eram agridoces, pois tamanha era a saudade
que se tudo fosse cachaça, beberia mil anos sem nem ao
menos a metade de uma garrafa conseguir matar. Olhava
para as poucas fotos do passado que possuía penduradas nas
paredes carcomidas, e sentia seu peito murchar como as
ervas durante o verão do norte.
Mas nada lhe doía tanto quanto rever em seu sonho de
cachaceiro aquela moça que um dia tanto amou. Aninha, a
cabocla de pele acobreada, cabelos cacheados, sorriso de
leite, olhos de joia e corpo malemolente. Seu único amor, o
motivo da maioria de suas tristezas e dores. Ele a via em seu
vestido de missa bem assentado na cintura que fazia suas
formas fartas atrair os olhares de cobiça dos homens e os de
despeito das mulheres. Sentia o cheiro de seus cabelos e o
toque macio de suas mãos de dedos finos a tocar seu corpo.
Ouvia sua voz sedutora a lhe dizer coisas bobas, que para ele
eram mais belas que as histórias do Rei Salomão.
Por ela fez de tudo: deixou de beber, de brigar, ia à igreja e
trabalhava mais que um jerico, só para poder com os poucos
cobres que conseguia dar uma prenda nova para cabocla que
lhe roubou o coração.
119
Já perto do fundo da garrafa, seu peito murchou um tanto
mais ao rever o dia fatídico da traição de seu amor. Aninha
como uma cigana lasciva se vendeu a um Coronel. O largou
pelo fausto de uma vida de mulher dama na cama de um
homem que não queria mais do que seu corpo para se
satisfazer. Com a razão perdida ele matou o fazendeiro cuja
prata valia mais que sua devoção pela cabocla, e por isso teve
de correr o mundo fugindo da Volante. Perdeu a mulher que
amava e todo o resto.
E por anos viveu atocaiado na caatinga, comendo calangos e
bebendo o sumo do xique-xique, para assim não pagar pelo
crime que cometeu. Sem perceber o tempo passou e foi
esquecido por todos. Então voltou para o meio do povo, em
outro estado distante do seu e novamente trabalhou.
Construiu sua casinha em um terreno perdido e seguiu sua
vida, amargando a tristeza parida pelo desamor.
Com o último gole, sua tristeza se tornou tão grande que
pareceu esmagar o peito, criando uma dor aguda que lhe
roubou o controle do corpo puído até que caísse no chão. Dor
tamanha, que começou a apagar a luz de seus olhos. Quando
a réstia final ia se perder, viu em seu sonho de ébrio a
cabocla que tanto amou se achegar e com um sorriso tomar
120
sua mão, para levá-lo ao reino de luz visto durante tantos
anos somente em seu coração.
Quando acharam o velho, estava duro e frio, morreu por
falência do coração. O ataram em sua rede e enterraram no
quintal debaixo de um pé de pau qualquer e por muito tempo
o povo falou do velho que durante todo o tempo viveu de
cara fechada, mas que na morte sorria.
Ainda hoje a casa existe, apesar de ser apenas uma ruína,
quase nada ficou nela, pois o povo tomou pra si os pertences
do morto, a não ser uma foto desbotada presa em uma
parede mal caiada, de um moço feliz e uma cabocla com um
sorriso branco como leite.
&&&&&
O Texto de TT Albuquerque ficou em segundo lugar no Terceiro Desafio
Literário Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/ttalbuquerque >
121
Laço Rosa de Cetim
Por: Douglas Moreira
Ele andava perdido pela cidade, ia rápido e mais parecia um
robozinho de chumbo a dar passos apressados do que um
homem que mal passara da meia-idade. Usava um chapéu
negro e redondo enterrado na cabeça, algumas mechas
negras caiam por baixo dele. Tinha sobrancelhas grossas,
olhos escuros, um bigode preto, e pele branca demais, Tinha
um ar por vezes engraçado, outras um pouco confuso. Mas
de todos os modos era uma face convidativa e amável, por
fim.
A cidade estava cheia, com pessoas a andar pela rua,
apressadas. A paisagem preta e branca era tão imutável
quanto as feições esculpidas das pessoas. Mas ele não, se
destacava na multidão. O seu ar engraçado coloria a cena e a
fazia parecer mais tenra.
Até que... contradizendo a todos que ali passavam, ele
avistou, lá no fundo, um ser tão singular quanto si. Trajava
um vestido rosa claro, uma meia calça branca e... sapatilhas.
Ora, que inquietação na alma. Quase morreu de amores.
Uma bailarina, disse ele, despido de qualquer som que a voz
pudesse fazer reverberar no ar. Foi apenas um movimento
rápido de lábios cinzentos e um gracejar de sobrancelhas em
meio às rugas do cenho. Fez um movimento rápido — quase
teatral — de cabeça e se pôs a andar tal qual um pinguim. —
122
A roupinha engomada não negava a comparação. —
Chegando perto, a bailarina que usava um lacinho rosa em
cetim nas mechas, se levantou com o movimento gracioso de
um pavão a exibir as penas à fêmea.
A olhou começar o primeiro giro do dia, e naquele momento
o sol raiou rosa e com laços de cetim no céu trajado em
manto azul de dia a pouco iniciado. Nada podia ser tão
genuíno, belo e tão singular quantos os dois ali — ele com
cara de bobo e boquiaberto; ela com uma expressão ensaiada
e serena de uma jovialidade invejável.
Antes de tocar o pé direito no chão e desarmar os braços em
forma de arco, ela o notou, e com certa inocência o encarou
como criança a ver um animal do mais fofo pela primeira
vez. Com cenho franzido e olhos cintilantes de pura
perplexidade, ela traçou um sorriso tecido a surpresa na face
pintada de branco.
A boca dele mexeu sem som, mas ela captou algo com “ Oi...
U... Arlie... a..lin”
“Que será?” pensou ela. Mas sua expressão então se explodiu
em surpresa e ela fez um “Ahhh” com os olhos cintilantes.
Também disse algo, muda também.
“Ella” foi o que ele captou em seus movimentos.
Cansados de apenas expressões teatrais eles logo se
aproximaram, com movimentos ensaiados e quase dançados,
chegaram perto um do outro. Ele esticou os braços a ela, que
123
pegou com um sorriso ansioso na face. Valsaram levemente
por sobre o palco de pedra que era o cenário que se
encontravam.
O mundo preto e branco era lentamente pintado no rosa-
claro do vestido daquela moça. O palácio de pedra, nomeado
cidade, se encurvou diante de tal beleza que se transmutava
em tons femininos e risos de graça.
Ele a olhou, com a cabeça torta de águia curiosa, e fitou-a
fundo nos olhos cinzentos. Como era linda, como podia ser
tão única e tão ela... tão.... “MIRELLA”. Foi isso que ouvira,
talvez seu nome fosse Mirella. Ele disse o nome, ainda sem
voz, mas o disse. Ela assentiu com a cabeça, um tremelicar
de empolgação.
Que tenro amor aquele... Surgira tão rápido. Tão inesperado.
Tão tênue.
Ele aproximou sua face da dela e sentiu seu cheiro doce,
olhou seu corpo a arfar em som mudo, seus movimentos
pomposos a exalar tons de rosa, então uma lágrima incolor
— como sempre — apareceu como uma joia na borda dos
olhos.
Então ele foi até o encontro de seus lábios... molhados,
macios, cálidos e doces. Um beijo para a eternidade... mas
não havia eternidade qualquer nesta vida efêmera. Os corpos
se uniram naquele singelo ato, sentiram a quentura um do
outro, o íntimo da língua a se chocar com a outra e o roçar
dos narizes pintados.
124
Foi ai que ele caiu ao chão... Sua expressão ficou vazia e
distante. Sua felicidade ensaiada se desfez e ele virou uma
máscara de teatro grego.
Ela correu ao chão em seu encontro. Tinha movimentos
rápidos e graciosos. Mas uma inquietação nos gestos.
E... Contradizendo qualquer lei do cinema mudo ela foi até
ele e gritou com um sotaque russo... ou era francês?
— Charles!!! — puxava a letra R quando falava.
Nada. Seus olhos ainda fitavam o céu vazio, e sua pele branca
parecia ainda mais pálida e distante.
— Charles — sacudia-o— Charles Chaplin!!!
Mas ele ficou parado ali, sem qualquer vida ou qualquer
coisa daquela existência magnífica que tivera. Seu fortúnio
insólito logo se transformara .E por fim, Chaplin... Charles
Chaplin...
Morreu de amores por ela.
O Texto de Douglas Moreira ficou em Primeiro lugar no Quarto Desafio
Literário Contadores de Histórias
Página pessoal do autor < http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=160995 >
125
Juvêncio e o Pé Preto
Por: TTAlbuquerque
Calisto era caixeiro viajante. Vivia perambulando os
interiores revendendo quinquilharias das mais diversas,
como: rendas, relógios de parede, imagens sacras e várias
outras inutilidades cheias de ágio.
Sempre fazia suas viagens tentando gastar o mínimo
possível, pois ansiava montar um negócio fixo em sua
cidadezinha natal. A vida que levava era difícil e solitária,
mas sua vontade de enriquecer o mantinha firme mesmo
quando se metia em algum problema como o atual.
Estava viajando pelo sertão do nordeste sem conhecer os
caminhos e confiando somente em sua experiência, mas
acabou se perdendo no meio da caatinga. Cada metro
percorrido, entre as árvores secas e cheias de espinhos,
cobrava um imposto pesado em sua pele e roupas. Somado a
isso, o calor e sede lhe tiravam a paz, fazendo imaginar seu
corpo morto secando como as carcaças das criações vencidas
pelo rigor do agreste.
Ficou vagando a esmo sob o céu azul e sem fim até que os
astros brilharam distantes, indiferentes ao padecimento do
homem, na cortina negra da noite.
Com a chegada da escuridão, o caixeiro sentiu seu ânimo
revigorar e usando de uma lamparina que tinha entre seus
produtos, continuou a girar pelo meio do mato espinhoso,
126
assim como uma mariposa faria ao redor da chama de uma
vela.
Vagou, cada vez mais perdido, até que ouviu uma voz de
criança que fugia da escuridão. Esperançoso, seguiu a origem
da voz e após alguns minutos de caminhada, encontrou um
garoto sentado ao lado de uma pequena fogueira armada
rente a um paredão de rocha onde uma cruz de madeira
puída pela inclemência da terra árida, se mantinha erguida
de forma desafiadora.
Aproximou-se do menino de maneira cautelosa, pois temia
que o garoto fugisse ao lhe ver, mas para sua surpresa, o
rapazote sorriu para ele e gesticulou convidativo.
—Noite, sinhô. Qui um homi de feitio tão distinto faz aqui no
meio da Parede de Juvêncio? Tá perdido?
Calisto deu um sorriso amarelo como resposta enquanto se
sentava em frente ao menino, que parecia tranquilo demais
com a presença de um estranho no meio do nada. Tentando
ser o mais amável possível, começou a falar.
-Boa noite, menino. Sim, perdi-me tentando chegar a algum
povoado. Parede de Juvêncio? É o nome dessa região?
O molecote sorriu, um sorriso debochado de quem sente
graça da ignorância alheia.
-Logo apercebi que tava perdido. Não sinhô, a Parede é esse
pedaço de chão aqui. Tempo atrás, teve uma peleja danada e
127
uma tropa de macaco inteira levô a pió bem aqui. A cruz é
pamod’as alma dos mortos achá paz.
O viajante, sem entender o motivo, engoliu em seco. Algo
deslizava por sua espinha, algo frio e convulsivo: o medo.
Sem entender o motivo da sensação, tentou ir direto ao
ponto.
- Que horrível. Não é um lugar dos mais atrativos e creio que
seus parentes não gostariam que você ficasse sozinho por
aqui. Há alguma propriedade aqui perto?
O moleque novamente sorriu, seu sorriso tomava linhas
estranhas, semelhantes as de uma gato ante um calango
ferido.
-Meus parente inté gosta, nun sabe? E sim sinhô, tem uma
vilazinha logo rente daqui, se quisé, pudemo arribá. É uma
caminhada di duas horas.
O rosto do vendedor se iluminou e cheio de vigor renovado,
ele se ergueu do chão rachado.
-Pois eu ficaria muito grato por sua ajuda. Podemos ir então?
O menino seguiu o exemplo e começou a caminhar na frente.
Apesar da escuridão, caminhava com desembaraço entre as
folhas marrons e as hastes agudas. Calisto o seguia com
dificuldades, apesar da luz do lampião, o mato ainda lhe
castigava, fazendo seus passos incertos. Tentado ser
amigável, perguntou sobre a tal peleja ocorrida e para sua
128
surpresa, ouviu uma voz estranha ser cuspida pelo garoto.
Uma voz calma, culta e com trejeitos de uma idade
incompatível com a do seu emissor.
-Já que o moço deseja, vou lhe contar sobre o caso. Sobre o
cangaceiro Juvêncio e o Pé Preto.
E como se estivesse lendo algum cordel rebuscado, o
moleque contou:
A caatinga ressecava sob o Sol de verão fazendo os
espinheiros estalar ante a aragem seca e cheia de pó.
Largado sobre o piso rachado do açude seco, uma carcaça
de gado tinha suas carnes bicadas pelos urubus e carcarás,
que após o repasto mirrado, seguiam suas evoluções no céu
límpido e tão vasto quanto o distante mar.
Os calangos corriam por entre as sombras da vegetação
marrom perseguindo as formigas-de-fogo, seu alimento e
inimigo. Seguiam alheios aos sons que o criminoso fazia ao
fugir em desembalada carreira. Juvêncio corria com todas
as forças ignorando os espinhos que lhe talhavam as carnes
e a dor aguda em seus pulmões. Perdera as sandálias a uns
bons dois quilômetros e apesar dos cortes profundos e dos
cacos de árvores que se prenderam neles, não olhava para
trás. Cada passada elevava aos céus densas nuvens de um
marrom avermelhado, que para uma possível testemunha,
mais se pareceriam com seu sangue virando vapor ao tocar
o piso esturricado.
129
Ele fugia e se amaldiçoava, pois fora um covarde dos mais
xibungos ao largar seus companheiros quando estes
pelejavam com os soldados. Mas o que poderia fazer? Se
para cada um de seu bando havia três Volantes e todos
armados com carabinas Papo Amarelo. Foram pegos de
surpresa ao amanhecer e logo na primeira rodada de
pipocos dados pelos soldados, seis de seus companheiros
morreram como se fossem garrotes no cepo do matadouro.
Juvêncio tentou lutar, mas como ele costumava dizer: a
macacada estava com o sangue nos olhos. Mas não era pra
menos, o bando do cangaço havia invadido o casamento da
filha de um coronel, humilhado todos os convidados os
colocando para dançar pelados. Antes de irem embora
ainda os roubaram e estupraram a noiva.
O latifundiário ofereceu duzentos mil réis por cada cabeça
de cangaceiro que lhe fosse apresentada e oitocentos mil
réis pela de Juvêncio, e essa premiação fazia os praças do
governo se agigantarem, tamanha era a cobiça pelos
cobres.
Durante quase toda a manhã, o cangaceiro correu em fuga
até que seu corpo lhe traiu e a escuridão da estafa total lhe
derrubou no chão seco. Quando acordou, já era noite alta,
as estrelas corriam no céu sem Lua e os bichos do escuro
corriam a caatinga em busca de comida e água. Olhou em
seu redor a procura de algum soldado, mas após alguns
instantes, sorriu por se ver livre e vivo. Tentou se colocar
em pé, mas a fuga pelo mato seco destruiu lhe as solas, que
apesar de grossas, foram talhadas e perfuradas demais e
secretavam líquidos em prévia de infecção. Sem ter como
130
caminhar, começou a arrastar o corpo em direção do que
parecia ser um pé de xique-xique. A sede era tamanha que a
garganta parecia cheia de areia quente. Após grande
esforço, chegou ao pé de pau e para seu desespero,
constatou o erro cometido ao cavar o solo duro, com a
ajuda de seu punhal, e não encontrar o bulbo cheio do
líquido precioso.
Praguejou contra Deus e os homens e uma risada leve, que
parecia ser trazida pelo vento frio da noite do sertão
reverberou em seus ouvidos. O riso era mau e inumano, o
cangaceiro se benzeu e pediu arrego para todos os santos
que conhecia. Ficou calado no escuro, esperando que algum
soldado da volante saltasse sobre ele, mas o único ser que
apareceu foi um preto velho. O homem usava uma calça
feita de estopa - saca de farinha-, amarrada com uma
corda grossa na altura da cintura magra com ossos
salientes e feios. A testa proeminente e tão vincada quanto o
chão quebrado pela secura do verão cuja carapinha branca
contrastava com a brasa do pito de barro pendido nos
grossos lábios tais quais os olhos que refletiam profundos a
mesma vermelhidão.
Juvêncio esticou o punhal na direção do idoso e este sorriu,
mostrando uma boca vazia.
- Se assussegue cabôco! Teu aço e reza num pode cum eu. Pé
preto viu qui tu precisa de uma ajuda. Intão Tô aqui
pámode socorrê.
131
O cangaceiro, acuado, manteve a arma na direção da
estranha figura em sua frente como uma cascavel prestes a
dar o bote.
-Dexe de suas valentia. Pé Preto só qué ajudá. Tu qué ajuda,
né não cabôco?
A vontade de ferir o Preto o deixava trêmulo, mas estava
fraco e faminto. Vencido, acenou em afirmativo com a
cabeça. Vendo isso os olhos do velho pareceram brilhar por
si e um sorriso de satisfação surgiu entre a pele cheia de
marcas do tempo.
-Bão! Bão mermo. Se aprochegue caboclo, Pé Preto vai
ajudá vosmecê, mas carece de paga, vice? Pé Preto vai fazê
vosmecê se vingá da macacada, e in troca, vosmecê vai
trabaiá pra Pé Preto.
Novamente o bandido aquiesceu com um aceno de cabeça,
pois sentia que não havia alternativa em meio do lugar tão
ermo e me frente de sua fraqueza física.
-E de acordo nós sela o trato. Pé Preto guia a matança e
dispôs vem a cobrança. Êh!!! Hummm!!! Chou! Chou! Chou!
Êh!!! Hummm!!! Chou! Chou! Chou!
O velho puxou o fumo com força e os olhos reluziram um
brilho rubi. O vento zuniu nos ouvidos do cangaceiro,
nenhum animal tinha coragem de fazer um barulho sequer.
***
132
Os soldados já haviam acampado quando o Sol deixou o
horizonte para as sombras. Estavam exaustos pela luta,
mas felizes por terem matado quase todo o bando do
cangaceiro Juvêncio Cabeça Louca, o pior cabra do
Recôncavo Baiano. Felizes por terem vinte e duas cabeças
para vender ao coronel Paulo Bezerra e assim ganharem
uns bons cobres.
O líder do bando havia fugido pela caatinga, enfiara o rabo
entre as pernas e metera os calcanhares no mato como um
xibungo safado, mas era certo que lhe pegariam antes do
fim do próximo dia, pois caboclo algum conseguiria viver
sem mantimentos ou água no meio do sertão.
Os praças estavam tão confiantes que nem se deram o
trabalho de postar vigias, deixando o grupo de sessenta e
seis soldados despreparados para o que viria. Do meio das
sombras do mato espinhoso e quebradiço, saltou algo, um
homem vestido com o tradicional paletó de couro dos
caboclos do norte, onde arabescos rebrilhavam de forma
incomum na escuridão sem luar. Tinha por volta de dois
metros de altura e corria como um pé de vento enquanto
disparava a carabina. Os soldados foram pegos de surpresa
e muitos nem se deram conta que algo estava ocorrendo. Os
mais valentes e preparados, conseguiram combater o
homem e após algumas dezenas de disparos, o atacante
acabou tombando.
Usando de um lampião, foram verificar a identidade do
assaltante e para o assombro de todos, era Juvêncio, o líder
133
do bando cangaceiros, mas ele estava mudado. Havia
crescido em tamanho, encorpado e deveria ter mais de dois
metros e meio. Seu corpo estava recoberto por uma densa
pelagem preta, seus pés eram como um de um bode, tinha
uma calda pontuda como a de um calango parrudo, cornos
grossos e recurvados, e de sua boca pendia uma extensa
língua bifurcada.
O horror dominou o espírito dos sobreviventes e alguns se
puseram em fuga, mas para a desgraça total, o cangaceiro
ergueu as garras que mais pareciam punhais e correu
batendo os cascos a cada vida retirada, matar era a única
forma de sentir prazer que conhecia desde que se entendeu
por gente.
O sague jorrado rapidamente foi absorvido pelo solo
fendido de seco.
***
Quando acharam o pelotão enviado atrás do bando de
Juvêncio, encontram os soldados esquartejados e
empilhados juntos a um paredão de pedra onde escrito com
sangue se lia: Juvêncio Pé Preto esteve aqui.
Duas semanas depois, a casa do coronel foi incendiada,
todos os jagunços da fazenda foram mortos e a filha, que
havia sido estuprada em sua festa de casamento, fora
encontrada nua no meio do terreiro ao lado do corpo do
pai. O velho foi esfolado vivo e suas entranhas foram
levadas pelo assassino.
134
A moça relou que Juvêncio na forma de Diabo havia feito
tudo aquilo, mas ninguém lhe deu crédito, pois acharam
que ela havia ficado louca após o crime durante seu
casamento.
Nove meses depois, a jovem teve um menino e assim que viu
a criança, ficou histérica. Tentou matar o próprio filho, pois
segundo disseram as mulheres presentes no parto,
acreditava que o menino era o filho do Diabo. As parteiras
também ficaram impressionadas com a fisionomia do
bacuri...
***
Então o garoto se calou e sumiu por alguns momentos da
vista do caixeiro, que apressou o passo para não o perder.
Caminhou por alguns minutos até que para sua alegria, viu
na distância as luzes da vilazinha. A aragem da noite trouxe
até seus ouvidos os ecos de um bolero cantado por vozes
pastosas e incertas de alguns ébrios e isso lhe deu certa
tranquilidade.
Apressou ainda mais o passo, esquecendo completamente de
seu guia, rumo às luzes onde poderia encontrar descanso e
segurança, mas então ouviu novamente a voz do molecote.
-Num qué sabê pruquê as partera ficarô cum medo do
bacuri?
A voz vinha de suas costas e isso fez o medo novamente
135
passar suas garras na espinha de Calisto. Cheio de dúvidas,
ele se virou devagar e perguntou:
-Por quê?
O horror tomou conta de Calixto. Cercada pelas trevas do
agreste baiano, uma criatura incerta, um misto de homem e
bode, sorria para o vendedor itinerante enquanto batia seus
cascos caprinos quebrando a terra seca, ao passo que
derrubava os espinheiros com a cauda.
Pasmo, o homem correu em direção da vila, ignorando a dor
que sentia ao ter as carnes talhadas pelas ervas ressequidas
que atrapalhavam sua fuga. Correu o mais que pôde e
quando estava prestes a sair do meio da caatinga, sentiu algo
saltar e agarrar sua perna na altura da panturrilha. Uma dor
aguda se fez quando alguma coisa raspou os ossos do
membro ao rasgar a carne, tal qual se fosse manteiga no
calor de fevereiro.
Foi puxado e arrastado pelo chão duro, levantado nuvens de
poeira e ervas secas, enquanto urrava de dor e engasgava
com os pedregulhos que entravam pela boca. O arrasto
durou um tempo que Calisto não poderia determinar,
quando foi solto, se viu novamente na Parede de Juvêncio.
Apesar da dor e fraqueza, conseguiu perceber que a criatura
estava empoleirada sobre a cruz velha como uma ave
carniceira. O demônio o encarava com seus olhos faiscantes,
rindo da miséria do homem.
136
-Agora tu sabe o motivo das quenga véia achá o bacuri
estranho. Elas me viram e tiverô certeza qui era o filho de
meu pai: Juvêncio. Sou o novo Pé Preto. Hei de ser o cabra
mais temido da bixiga de todo o sertão.
O demônio pulou de onde estava e trotou em direção a
Calixto, que se encontrava empapado de suor e urina.
- Agora chega di tanta patestra qui Pé Preto tá querendo o
que é dele.
A última coisa que o viajante perdido viu, foi o vulto daquela
criatura pairando no negrume da noite em seu trote
assassino. Uma sombra com duas brasas como olhos, que lhe
tomou a luz da vida.
&&&&
O Texto de TT Albuquerque ficou em segundo lugar no Quarto Desafio
Literário Contadores de Histórias
Página pessoal do autor
< http://www.recantodasletras.com.br/autores/ttalbuquerque >
137
Invertido
Por: Sidney Muniz
Acabou, quando o sangue entrou no corpo, lentamente. A
bala, após sair das costas da vítima retornou ao revólver e tão
logo as mãos do assassino encontraram o coldre, enquanto
ele se encolhia em um canto. A vítima ainda estava ali,
andando de costas, em câmera lenta, carregando a
menininha nos braços e indo em direção oposta a sua
intenção anterior, como se tivesse olhos na nuca.
A estranha sensação de ser o dono do tempo se revelou
ineficaz após perceber que o havia perdido no
estacionamento. Restava apenas o homem armado que se
escondia por detrás de uma das colunas de sustentação do
piso superior, vigiando algo. Espiando alguém.
Voltar no tempo é algo que todos querem fazer. Talvez esse
querer divida o pódio do desejo de qualquer homem com
outros dois devaneios, o de voar e o de alcançar a fonte da
juventude. Apertar um simples botão e fazer uma coisa
dessas poderia ser impossível há milhares de anos, mas
agora não, agora é possível voltar no tempo.
Precisamos estar atentos, ouvir cada ruído, se atentar a cada
detalhe para que no fim encontremos o que procuramos. Vi o
homem com a criança, ele continuava andando, olhando
para os lados e segurando a bebê. Aparentemente está
138
preocupado. Agora está a vinte metros de onde havia sido
morto. Andar para trás pode não ser abrir mão do futuro, e
sim visitar o passado, e aquela visita estava sendo um
presente para nós.
Ao aproximar-se do carro, abriu a porta detrás e depois
colocou a pequenina na cadeirinha por sobre o banco de
couro, fechou a porta e se dirigiu para o porta-malas. Esse se
abriu e então vimos tudo, e decidimos que era hora de ver o
restante por outro ângulo.
Avançamos no tempo até o momento em que ele estava
morto no chão. O assassino correu na direção dele e apanhou
a criança, abraçando-a forte. Naquele momento o segurança
chegou no rasto do som de um disparo pedindo que o
assassino levasse as mãos na cabeça.
Tentar explicar-se em uma situação dessas é algo que foge
aos padrões de segurança quando se tem uma arma
apontada para sua cabeça. Certamente o que ele queria pegar
no bolso de trás da calça poderia tê-lo salvo, mas naquele
momento o gesto de defesa o matou.
O segurança disparou assim que o homem disse as palavras
que menos esperaria ouvir. O jovem vigia nunca havia
disparado com sua arma, mas quem carrega uma certamente
um dia haveria de usá-la e aquele fatídico momento pareceu-
lhe oportuno.
A bala acertou em cheio a cabeça da criança, que teria em
torno de um mês e meio de nascida, atravessou a frágil
139
carne, transpassou a nuca e se alojou no coração daquele que
tentava protegê-la. Ambos findaram abraçados. As mãos dele
segurando o corpo leve e inerte, com afeto. Ele morreu como
se a colocasse para ninar, um suspiro profundo perpetuou
sua trajetória e após o fim a cabeça pendeu para baixo,
fazendo com que a boca tocasse espontaneamente a testa da
menina, num beijo molhado de sangue.
O guarda olhou para o corpo caído ao chão, e viu o que não
poderia ter visto a distância. Era um bebê morto. O outro
cadáver o segurava. O terceiro morto nesse instante pouco o
interessava, afinal essa vida não havia sido tirada por ele.
Observou no chão, a frente do homem que matou, a arma
que aquele outro não iria pegar e logo enfiou a mão no bolso
de trás do que tentara avisar ser um policial, e encontrou o
distintivo e um pedaço de papel tingido em sangue. Nada
poderia salvá-lo.
Levou as mãos a cabeça, sentiu o cheiro da vida embriagado
de morte. O calor da situação esfriou seu corpo. Era tudo tão
tendencioso, tão meticuloso, tão vil. O futuro é mesmo uma
droga. A vida é uma merda e ele fez a coisa mais sensata que
poderia pensar em fazer após acariciar os cabelos
freneticamente, em sinal de stress e entrega. Ele se entregou
a ruína.
Um tiro certo, tão a queima roupa que explodiu os próprios
miolos. A arma caiu no chão e o papel saltou junto, numa
queda pouco vital e tão melancólica. Um corpo estatelado,
desengonçado e um papel sujo escorregando pelo vento.
Avançamos cinco minutos. A cena não mudou até a hora que
140
a primeira testemunha, uma velhinha de sessenta e nove
anos viu os corpos, e gritou alto, antes de desmaiar. Mais
pessoas chegaram, mais e mais. O choque era comum.
Vinte minutos depois a policia veio, o policial passou tão
perto do corpo do segurança. Mal vi o papel sendo levado
pelo vento, dançando, girando devagar e se misturando ao
lixo mais a frente. Percebi sim a faxineira assustada
passando e varrendo o local, apanhando o papel com a pá e
enfiando dentro do saco preto. Como é que essa prova
escapou assim de mim? Era como se o vento fosse um
comparsa do destino, trazendo e levando.
Descemos as escadas e fomos até o carro. Não havia alarme.
Era um carro velho, as chaves estavam caídas a três metros
dele. Voltando a fita percebemos quando o homem que
carregava a criança deixou-a cair de propósito. O pior foi ver
o que se escondia no porta-malas, ainda que tivéssemos
vislumbrado toda cena alguns minutos antes na sala de
segurança.
A mãe da criança estava trancada lá dentro. Uma sacola de
supermercado envolta em seu rosto morrendo apertada em
seu pescoço, transparente como uma fina camada de pele.
Uma pele isolada, roxa e mórbida. A boca estava engasgada
em um grito que fora abafado pelo plástico. Catarro e
gotículas de saliva ainda denunciavam a dor e os últimos
instantes daquela pobre alma. O corpo nu era espelho de
alguém jovem, bonita e atraente. Dos seios vazavam um
liquido que tal qual o sangue também simbolizava a vida,
branco como a paz, e agora tão sádico como a guerra.
141
Começou. Dentro do carro havia apenas uma foto de família,
uma criança no berçário, uma mãe pálida, fraca e
imensamente feliz, e os abraçando estava o pai que trajava
uma farda, tão cheio de si, repleto de orgulho e com a certeza
da felicidade eterna pela nova vida que acabava de chegar.
“No fim, o que precisamos é de algum inicio. De fato é tudo
tão invertido.”
&&&&&
O Texto de Sidney Muniz ficou em terceiro lugar no Quarto Desafio
Literário Contadores de Histórias
Página pessoal do autor < http://www.recantodasletras.com.br/autores/sidneymuniz >