HENRY, Michel. Ver o invisível: Sobre Kandinsky. São Paulo: Realizações,
2012.
Rafaela Belo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades UFES 2014/1
Michel Henry
Fenomenologia da vida
“A vida sente-se, experimenta-se a si mesma. Não que ela seja
qualquer coisa que, ademais, teria a propriedade de se sentir a si
mesma, mas que aí reside a sua essência: a pura experiência de
si, o fato de se sentir a si mesma. A essência da vida reside na
auto-afecção”
HENRY apud ROSA, 2006, p. 188
“Todo fenômeno pode ser vivido de duas maneiras, não arbitrariamente ligadas aos fenômenos, mas decorrentes da natureza dos fenômenos, de duas de suas propriedades: Exterior- Interior.”
KANDINSKY, Wassily. Ponto e linha sobre plano, 1926.
Experimentamos constantemente com um fenômeno que justamente nunca nos abandona: nosso corpo. • Interiormente como nosso ser mais profundo; • Exteriormente enquanto se propõe a mim ao modo de objeto. - Kandinsky estende essa propriedade a todos os fenômenos.
O que aparece a nós, justamente chamado fenômeno, permite a distinção das duas “maneiras”. A maneira pela qual esse conteúdo se mostra a nós. As duas “maneiras” são dois modos de aparecer. • Kandinsky as chama de EXTERIOR e INTERIOR.
Exterior não designa imediatamente algo exterior, mas a maneira pela qual esse algo se manifesta a nós. Um fenômeno exterior nunca é visto por suas propriedades, mas só por ser exterior. • Kandinsky diz que a “maneira” não está ligada arbitrariamente ao fenômeno, pois é essa maneira- a exterioridade- que justamente o torna fenômeno.
O EXTERIOR se autocomprova, é ele próprio, o mundo como aparece em sua visibilidade. O INTERIOR se autocomprova de maneira própria, que não é mais a do mundo. Ele é invisível, o que não pode ser visto nunca num mundo, nem à maneira do mundo.
Então como se revela o INTERIOR, se nem se assemelha a um mundo? Como a vida. É sentido e experienciado imediatamente, imerso em si. Primeira formulação da equação Kandinskyana:
interior = interioridade= vida= invisível = páthos
VISÍVEL na luz do mundo as coisas se mostram a nós e são vividas por nós como fenômenos EXTERIORES. O INVISÍVEL, na ausência desse mundo e de sua luz, a vida se apossa de seu ser próprio, se apertando nessa prova INTERIOR imediata de si, que é seu páthos, que faz dela a vida.
Visível = Exterior
Invisível = Interior
A qual dos dois campos, o do visível ou do invisível, a pintura pertence? A resposta é indubitável. Pintar, desenhar, não é o artista pintar, desenhar o que vê, aquilo que desdobra seu ser diante de seu olhar, na luz do mundo?
Nossa tradicional concepção da pintura atesta sua origem grega. “Fenômeno”, para os gregos, designa o que brilha, o que se mostra sob a luz, de tal modo que se mostrar significa mostrar-se sob a luz. Ver é participar da luz, penetrá-la, ser iluminado por ela.
O conceito de fenômeno sofre mutação decisiva quando, deixando de se submeter docilmente às injunções do visível, ele é relacionado à vida, à existência. Desde essa transferência, como ocorre em Kandinsky, questões inteiramente novas surgem, acarretando redefinição completa dos objetivos e dos procedimentos da pintura.
Uma abordagem inteiramente nova da atividade pictórica quando são dispensados os pressupostos gregos. Deixa-se de pretender representar o mundo e seus objetos, quando, paradoxalmente, cessa a pintura do visível. O que ela pode então pintar? O invisível, o que Kandinsky chama de interior.
Todo quadro deve ser considerado sob dois ângulos: • Sua materialidade; • A representação pictórica, a obra em si.
Se a pintura empreendesse, ao contrário, pintar o invisível, um problema singular se lhe apresentaria: como representar de maneira visível, sob a forma de quadro, que acabamos de mostrar ser exterior sob todos os aspectos, essa realidade interior, invisível, chamada a constituir doravante o tema da atividade artística?
A revolução de Kandinsky, pensada e cumprida por ele, pode assim ser formulada: Não só o conteúdo da pintura, em última instância “representado”, expresso por ela, não pertence mais ao mundo enquanto um de seus elementos ou partes, mas os meios permitindo a expressão do conteúdo invisível que constitui o tema novo da arte devem ser compreendidos agora como interiores em seu significado e finalmente em sua realidade verdadeira: como invisíveis.
Consideremos os quadros de Kandinsky: encontramos neles outra coisa além de linhas e massas coloridas? Ao contrário, só se trata delas. • O autor escreve que a teoria da pintura abstrata é a teoria de toda pintura concebível.
Dois pensamentos loucos: • O conteúdo da pintura, de qualquer pintura, é o interior, a vida invisível em si e que não pode deixar de sê-lo. • Os meios expressando esse conteúdo invisível- as formas e as cores- são eles próprios invisíveis em sua realidade original.
Na pintura tradicional os meios eram homogêneos, pertencendo ambos ao mundo visível. Com o surgimento da abstração, isso se rompe, já que o conteúdo se torna o invisível, enquanto os meios permanecem o que são. Talvez até conviesse abolir a própria ideia de sua distinção, constituindo conteúdo e meios a mesma realidade, a única essência da pintura.
Kandinsky chama abstrato o conteúdo que a pintura deve expressar, ou seja, essa vida invisível que somos.
Equação Kandinskyana:
interior = interioridade = invisível = vida= páthos = abstrato
“Salta aos olhos que essas duas analogias da arte nova com certas formas de épocas passadas são diametralmente opostas. A primeira, toda exterior, será sem futuro. A segunda é interior e encena o germe do futuro. Após o período da tentação materialista a que aparentemente sucumbiu, mas que repele como uma tentação ruim, a alma emerge, purificada pela luta e pela dor. Os sentimentos elementares, como o medo, a tristeza, a alegria, que teriam podido, durante o período da tentação, servir de conteúdo para a arte, atrairão pouco o artista. Ele se esforçará por despertar sentimentos mais matizados, ainda sem nome. O próprio artista vive uma existência completa, relativamente requintada, e a obra, nascida de seu cérebro, provocará, no espectador capaz de experimentá-las, emoções mais delicadas, que nossa linguagem é incapaz de exprimir.”
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 28.