MICHELLE DE ARAUJO SCHAMPOVSKI RODRIGUES
GUERRA E RELIGIÃO NO NORDESTE AÇUCAREIRO (1630-1654)
CURITIBA
2006
MICHELLE DE ARAUJO SCHAMPOVSKI RODRIGUES
GUERRA E RELIGIÃO NO NORDESTE AÇUCAREIRO (1630-1654)
Monografia de final de curso apresentada ao Curso
de História, Setor de Ciências Humanas Letras e
Artes. Departamento de História da Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Geraldo Santos da Silva.
CURITIBA
2006
AGRADECIMENTOS
A meu professor orientador Luiz Geraldo, pela dedicação e orientação que abriram
meus horizontes e possibilitaram a realização deste trabalho.
Ao Diego, meu esposo e amigo. A minha família e amigos.
ii
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................................iv
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................05
CAPÍTULO I - AS ORIGENS DA INVASÃO HOLANDESA NO NORDESTE AÇUCAREIRO.......................................................................................................................07 1.1 Da Europa para o Brasil: disputas políticas, econômicas e religiosas entre Castela,
Portugal e Países Baixos.....................................................................................................08
1.2 A questão da invasão: direito ou delito...............................................................................12
CAPÍTULO II - VALEROSO LUCIDENO E HISTÓRIA DOS FEITOS: ORIGEM E TEOR DAS OBRAS. ..............................................................................................................19 2.1 A memória da guerra e a memória do herói: as obras promovidas por João Fernandes
Vieira. .......................................................................................................................................20
2.2 Os feitos de Nassau como exemplo: “a memória da posteridade”.....................................24
CAPÍTULO III - OS DISCURSOS DE BARLAEUS E CALADO: UM ESTUDO COMPARADO........................................................................................................................29
3.1 A visão religiosa no entendimento da guerra. ....................................................................30
3.2 Revelação e milagres no avivamento da guerra. ................................................................33
3.3 Os ideais religiosos da guerra.............................................................................................38
CONCLUSÃO.........................................................................................................................46 REFERÊNCIAS......................................................................................................................48
iii
RESUMO
O tema desta monografia é o discurso religioso presente nas obras de Gaspar Barlaeus, História dos
feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e de Frei Manuel Calado do Salvador, Valeroso
Lucideno e triunfo da liberdade, as quais versam sobre as “guerras do açúcar” (1630-1654). O objetivo é analisar
o discurso destes autores buscando compreender os ideais religiosos que defendiam e pretendiam divulgar e sob
quais circunstâncias. Barlaeus e Frei Calado possuíam formação religiosa distinta, o primeiro era calvinista e o
segundo católico. Com a presença holandesa no nordeste brasileiro conflitos religiosos existentes na Europa,
desde a reforma protestante, vieram também para o Brasil. Deste modo, Barlaeus e Calado relatam, em suas
respectivas obras, a guerra no nordeste açucareiro, mas também fazem uma defesa da fé que professavam, da
sociedade que representavam e também de questões e ideais particulares. Além disso, as obras possuem uma
característica comum que será analisada: ambas foram promovidas e encomendadas por patronos que buscavam
atender interesses particulares através delas, por isso, seus discursos têm como característica um cunho
panegírico. Portanto, para compreender o discurso religioso elaborado e defendido pelos autores foi levado em
conta a questão da encomenda das obras e os ideais e interesses de seus patronos e de seus autores, elementos
fundamentais para a compreensão dos discursos presentes nas obras em questão. Para alcançar este objetivo
utilizamos como subsídio metodológico às análises e discussões feitas por Todorov em sua obra A conquista da
América: A questão do outro e por Natalie Zemon Davis. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da
França moderna. Ambos os autores se preocuparam em corresponder as pretensões de seus patronos, pois fazem
um engrandecimento dos mesmos. O patrono de Calado é João Fernandes Vieira e de Barlaeus é Maurício de
Nassau. O elogio que os autores fazem a seus patronos não impediu que defendessem sua fé, pois, suas
confissões eram condizentes, além disso, os patronos são colocados por ambos os autores como os principais
defensores da religião, católica no caso de Calado, e calvinista, no caso de Barlaeus. As perdas e vitórias são
justificadas através da interpretação divina dos fatos, pois ambos os autores acreditavam na intervenção ou
Providencia divina. A visão do outro, ou seja, o modo que os católicos viam os protestantes, os indígenas e os
judeus; e que os protestantes viam e entendiam os católicos, indígenas e judeus, partia de seus ideais religiosos,
que também determinam a maneira como deveriam agir uns com os outros. A guerra é vista como um direito
tanto por católicos quanto por calvinistas. Desta forma, a guerra do açúcar torna-se uma guerra religiosa, pois
segundo os autores tudo era feito em nome das pátrias, de Deus e da defesa da “verdadeira doutrina”.
Palavras-chave: Guerras do açúcar. Discurso religioso. Catolicismo e Calvinismo.
iv
5
INTRODUÇÃO
No século XVII o território brasileiro foi invadido pelos neerlandeses. A primeira
tentativa de invasão ocorreu em 1623 em Salvador, na Bahia, capital do Estado do Brasil,
porém esse ataque foi frustrado pelos soldados luso-brasileiros que logo conseguiram repelir
os invasores. O segundo ataque ocorreu em 1630, em Pernambuco e, desta vez, os
neerlandeses obtiveram sucesso, conseguindo permanecer no Brasil até o fim da Guerra de
Restauração (1645-1654). O período do domínio holandês é relatado por diversos cronistas
portugueses e neerlandeses. Diante disso, escolhemos como fonte de pesquisa duas obras
contemporâneas para confrontar, uma escrita por um português católico e outra por um
neerlandês calvinista. O tema da monografia é o discurso religioso presente nas obras de
Gaspar Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil1 e
de Frei Manuel Calado do Salvador, Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade2, as quais
versam sobre as “guerras do açúcar” (1630-1654). Ambas as obras possuem uma
característica em comum: foram promovidas e encomendadas por patronos, aspecto
característico do antigo regime literário3. Devido a isso possuem cunho panegírico, ou seja,
têm o intuito de louvar e elogiar seus patronos.
O objetivo geral é analisar o discurso destes autores buscando compreender que ideais
religiosos defendiam e pretendiam divulgar e sob quais circunstâncias. Os objetivos
específicos são: analisar as condições de produção destas obras, ou seja, a questão da
encomenda; examinar os objetivos que seus patronos buscavam alcançar; e enfatizar os
aspectos religiosos, católicos e calvinistas, presentes a essas obras.
No primeiro capítulo trataremos do contexto político, econômico e religioso europeu
em que a invasão neerlandesa se insere, buscando compreender as origens do ataque
neerlandês ao nordeste brasileiro. Também será analisado como católicos e protestantes viram
e justificaram a invasão e a presença neerlandesa neste território. No segundo capítulo
traçaremos as biografias dos autores Barlaeus e Calado e de seus patronos, Maurício de
Nassau e João Fernandes Viera, respectivamente, buscando compreender as condições de
1 BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil.Tradução e anotações de Cláudio Brandão. Prefácio e notas de Mário G. Ferri. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. 2 CALADO, Manuel. O valeroso lucideno e triunfo da liberdade. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987. 3 DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
6
produção dessas obras, ou seja, a questão da encomenda e os interesses que estes autores e
patronos buscavam alcançar através delas. No terceiro capítulo é apresentada uma análise dos
discursos de Barlaeus e Calado procurando apreender como estes autores justificaram as
guerras. Também examinaremos a crença na intervenção divina, de revelações e milagres
sobrenaturais. Ainda, discutiremos a visão que católicos e protestantes tinham do outro, ou
seja, uns dos outros, e a defesa da “verdadeira religião”.
A crença na intervenção ou Providência divina marca profundamente as obras de
Barlaeus e Calado. Ambos os autores interpretaram acontecimentos políticos e religiosos a
partir de seus ideais religiosos. Vitórias e derrotas eram entendidas como aprovação ou
reprovação divina, no que se refere as atitudes tomadas por católicos e protestantes. E a defesa
da “verdadeira doutrina” e da pátria foi utilizada para legitimar seus patronos, que são
colocados como os principais defensores de suas confissões religiosas. O modo como
católicos e protestantes viam o outro determina a maneira como deveriam agir uns com os
outros.
Para examinar esses aspectos nos servimos das proposições de Natalie Zemon Davis
utilizada em seu capítulo “Ritos de violência”4 no qual a autora descreve a forma e a estrutura
dos levantes religiosos ocorridos nas cidades e vilas francesas nas décadas de 1560 a 1570. As
fontes utilizadas por Davis são relatos contemporâneos de católicos e protestantes sobre
perturbações religiosas desse período. Ao analisar essas fontes a autora leva em conta sua
parcialidade, mas parte do princípio de que o que elas descrevem realmente aconteceu, ainda
que os relatos tenham acréscimos ou omissões.
A análise da visão do outro aqui será feita conforme o estudo realizado por Todorov5
que examina os documentos produzidos por Cristóvam Colombo, como cartas, relatórios e
diários, sobre a descoberta da América, que abrangem o período de sua primeira viagem a
Meso-América e os cem anos que se seguem a ela. No caso de Todorov o outro é a sociedade
encontrada com a descoberta do Novo Mundo. Ao analisar esses documentos, Todorov
verifica como as crenças de Colombo influenciaram seus escritos.
4 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Tradução de Mariza Corrêa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 5 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. 1º Ed. Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
7
CAPÍTULO I - AS ORIGENS DA INVASÃO HOLANDESA NO NORDESTE
AÇUCAREIRO
A partir de 1630 os neerlandeses se estabeleceram no nordeste brasileiro. Interessados
no lucro comercial obtido com o cultivo e exportação do açúcar lutaram por sua permanência
de diversas formas: através da guerra, da conquista amistosa dos nativos e até mesmo do
estabelecimento de acordos e regras de convivência com os luso-brasileiros e, deste modo,
conseguiram permanecer no Brasil até 1654, quando são expulsos ao fim da segunda guerra
do açúcar ou guerra da restauração (1645-1654).
O objetivo deste capítulo é discutir os motivos da invasão holandesa no nordeste
açucareiro. Acreditamos que esta tem suas raízes fincadas em profundas questões religiosas,
políticas e econômicas que estavam em vigor no continente europeu e que tiveram impulso
em direção ao além mar com a disputa do monopólio comercial português por outros países
da Europa, aqui nos interessando, sobretudo, os Países Baixos. Para alcançar este objetivo
será examinada a historiografia sobre o tema em questão e analisadas as narrativas de
Barlaeus e Frei Calado.
Portugal, a partir de 1578, terá seu trono disputado e finalmente tomado por Felipe II
rei de Castela, em 1581. No entanto, este rei Habsburgo também dominava os Países Baixos
que, por sua vez, estavam rebelados contra este poder, em favor de sua emancipação. Contra
essa rebeldia Felipe II irá pressionar os Países Baixos o que irá envolver suas relações
comerciais com Portugal. Além disso, Felipe II era um rei católico e os Países Baixos
estavam vivendo a Reforma Protestante. Essa conjuntura terá conseqüências políticas,
religiosas e econômicas que chegarão até o Brasil. As disputas que, até então, se limitavam ao
continente europeu será combatida, como cita Chaudhuri6, tanto em terra como no mar e
chegará até o nordeste brasileiro.
A guerra no Brasil holandês foi interpretada e relatada com versões diferentes por
católicos e protestantes. Deste modo, o confronto entre as narrativas de Calado e Barlaeus nos
faz compreender como os luso-castelhanos entendiam a invasão holandesa. Igualmente,
podemos nos aproximar das compreensões que os neerlandeses tinham acerca da expansão
ultramarina luso-castelhana e que elementos os fizeram empreender a tomada de Pernambuco.
6 CHAUDHURI, Kirti. O Estabelecimento no Oriente. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa. (Vol. II). Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. p. 82.
8
1.1 Da Europa para o Brasil: disputas políticas, econômicas e religiosas entre Castela,
Portugal e Países Baixos.
A presença dos holandeses no Brasil a partir de 1630 deve ser entendida dentro de um
amplo contexto sócio-político e econômico europeu. Antes mesmo de consolidar a expansão
ultramarina para a América do Sul, os portugueses já possuíam um complexo sistema
comercial no Oriente que, inicialmente, era mais atrativo do que os negócios no Novo Mundo.
A expansão marítima portuguesa iniciada com a conquista de Ceuta em 1415, primeira
possessão da coroa no além mar, se estendeu, principalmente na virada do século XV para o
XVI, rapidamente ao oceano Índico.
A expansão portuguesa possui como característica marcante a organização de um
império marítimo e a criação de uma rede de feitorias comerciais que se estendia por todo o
planeta. Na Índia os portugueses conseguiram erigir uma estrutura institucional de governo,
povoamento e comércio conhecida como Estado da Índia. A expansão lusitana na África
Oriental e no continente asiático se concentrou no domínio dos portos mais concorridos, na
conquista militar dos pontos comerciais e na tentativa do controle dos principais circuitos
marítimos, tirando a autonomia política e fiscal desses territórios. Desta forma, os portugueses
tornaram-se fornecedores de produtos asiáticos para o mercado europeu que, por sua vez,
produzia mercadorias essenciais para o resgate de africanos e para os negócios na Ásia. A
pimenta e especiarias raras, como a canela, o cravinho, noz-moscada e cardamomo, eram os
principais produtos de comercialização.
Com a morte do rei de Portugal, D. Sebastião, em 1578, ocorrida na batalha contra os
mouros de Marrocos, em Alcácer Quibir, a dinastia de Ávis chega ao fim. O cardeal D.
Henrique, arcebispo de Évora e tio-avô de D. Sebastião chega a tomar o trono português, no
entanto, morre dois anos depois. Em conseqüência disso, a coroa lusitana passa a ser
disputada e apesar da oposição de alguns membros da corte e da população em geral, Felipe
II, rei da Castela, que tinha grande interesse em expandir seu poder torna-se, em 1581,
igualmente rei de Portugal. A configuração comercial européia existente e ativa até então,
sofrerá transformações decorrentes da união peninsular, como veremos adiante.
Os Países Baixos eram possessões dos Habsburgos e estavam rebelados contra este
domínio em luta pela sua independência, que somente será reconhecida por Castela com o fim
Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), movida pela emancipação neerlandesa. Em
decorrência dessa rebelião, os neerlandeses sofriam pressões políticas, religiosas e
9
econômicas por parte de Castela. Estas pressões se aguçaram com a tomada do trono
português por Felipe II, e passaram a envolver a relação comercial entre os Países Baixos e
Portugal, que de longa data comercializavam entre si. Os neerlandeses eram os principais
distribuidores para o norte da Europa dos produtos comercializados pelos portugueses. Além
disso, Felipe II era um rei católico e os Países Baixos estavam vivendo sob a disseminação do
calvinismo, isto, aumentava a tensão entre ambos.
Após seu surgimento na Alemanha, com Frei Martinho Lutero e suas 95 teses
pregadas na porta da Igreja de Wittenberg, em 1517, os ideais protestantes espalharam-se por
toda a Europa e alcançaram os Países Baixos, a França, a Escandinávia, entre outras
localidades européias. Mesmo com a morte de Lutero, em 1546, a Reforma Protestante7
continuava a se expandir, agora com os ideais de João Calvino (1509-1564), desta forma, o
calvinismo passa a ser a confissão oficial das províncias neerlandesas revoltadas contra Felipe
II. Segundo Delumeau8 quando o luteranismo já estava se enfraquecendo Calvino deu uma
nova vida e força à Reforma.
Segundo Magalhães9, mesmo com a reforma protestante ocorrendo na Europa,
Portugal continuava a comercializar com ingleses e neerlandeses desde que não tentassem
divulgar sua religião herética. Os navios neerlandeses traziam para os portos portugueses não
só mercadorias do norte da Europa como trigo, madeira, metais e manufaturas diversas, mas
também produtos de sua própria indústria, sobretudo peixe, manteiga e queijo. No retorno
levavam o sal grosso de Setúbal, vinhos, especiarias e drogas do Oriente e da África, açúcar e
madeiras do Brasil.
Felipe II, no entanto, proíbe o acesso aos portos portugueses de navios holandeses e
ingleses como represália aos hereges como eram, então, considerados os reformados. O
fechamento dos portos portugueses, ainda conforme explica Magalhães10, ocorreu não
somente em 1585, mas também em outros períodos como em 1595, 1598 e 160511. Desta
7 Segundo Delumeau, o nome “protestante” é dado à reforma de Lutero quando, em 1529, seis príncipes e catorze cidades protestaram contra uma dieta que tentava revalidar o édito de Worms e banir Martin Lutero do Império. DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Tradução de Manuel Ruas. Vol. 01. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. p. 126 8 Idem, p. 128. 9 MAGALHÃES, Joaquim Romero. Os limites da expansão asiática. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa. (Vol. II) Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. Pág. 10. 10 Idem MAGALHÃES, p. 11. 11 Gonsalves de Mello sugere outras datas para os embargos impostos aos holandeses nos portos portugueses: 1585, 1596 e 1599. MELLO, J. A Gonsalves de. O domínio holandês na Bahia e no Nordeste. In: HOLANDA.
10
forma os Países Baixos partiram para a busca direta na África, na Ásia e na América dos
produtos que anteriormente eram comercializados em Lisboa, pois o acesso direto às
especiarias já interessava a outros países da Europa além de Portugal. E, conforme afirma
Mello12, os embargos impostos aos holandeses despertaram a possibilidade da procura direta
do sal nas Ilhas do Cabo Verde e depois a navegação rumo às colônias ultramarinas ibéricas.
A burguesia neerlandesa era forte comercialmente e tinha suas bases mais modernas
assentadas em empresas ou consórcios comerciais. Desta forma, dominavam o Estado. Os
mercadores de Amsterdã, diante da possibilidade da realização de um comércio direto com as
Índias Orientais fundaram várias companhias com capitais por ações, essas companhias eram
equipadas militarmente para a defesa de possíveis ataques portugueses e para a execução de
seus projetos comerciais. Em 1602, o advogado holandês Johan van Oldenbarnevelt,
juntamente com o príncipe de Orange, unem estas diferentes companhias e fundam a
Companhia das Índias Orientais (VOC) que tinha como corpo gerenciador, conhecido como
“Heeren XVII”, homens recrutados na rica classe dirigente de Amsterdã, Roterdã, Zelândia,
entre outras cidades.
Cabe aqui salientar que a presença lusitana no oceano Índico tinha diferenças
fundamentais das Companhias das Índias Orientais holandesa e Inglesa no que se refere as
instituições econômicas, como assinala Chaudhuri13. Estas companhias eram organizações
comerciais que tinham o monopólio comercial neerlandês e soberania política delegada pelo
Estado. No entanto, eram instituições econômicas que visavam o lucro. O principal interesse
dessas companhias girava em torno da organização de um comércio lucrativo entre a Europa e
Ásia. Desta forma, a propagação da fé religiosa reformada, a aquisição de estabelecimentos
territoriais, sua defesa militar e o controle das rotas locais de comércio no oceano Índico eram
interesses secundários.
Por outro lado, a coroa portuguesa e sua aristocracia tinham uma visão senhorial
comercial e religiosa, e a idéia da cruzada contra os infiéis, a propagação missionária da fé e a
promoção dos poderes militares do Estado eram tão importantes quanto os saques de navios
inimigos e a fundação de um comércio de especiarias com o Oriente. Todavia, a partir de
1600 essa rede de comércio, então luso-castelhana, passa a ser fortemente abalada por Estados
Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. pág. 235. 12 Idem p. 236 13CHAUDHURI, 1998. p. 185.
11
inspirados em ideologias protestantes com a iniciativa da criação das Companhias das Índias
Orientais holandesa e inglesa.
Com a assinatura da Trégua dos Doze Anos (1609-1621), o comércio entre Castela e
os Países Baixos foi reiniciado e normalizado. Ao fim da Trégua, com o reinício da guerra
com Castela, o abastecimento comercial europeu foi ameaçado, pois, como mencionado
anteriormente, os Países Baixos eram distribuidores dos produtos comercializados pelos
portugueses para o norte da Europa. Além disso, desde a segunda metade do século XVI os
comerciantes dos Países Baixos tinham se voltado para o comércio de açúcar, sendo que
durante a trégua este interesse havia se intensificado. Desse modo, ainda no ano de 1621
comerciantes e o governo holandês fundaram a Companhia das Índias Ocidentais (WIC), que
seguiu o mesmo modelo da VOC para o Oriente, sendo uma companhia de iniciativa tanto
pública como privada. Desta forma, devidamente informado sobre a terra e as suas produções,
o Conselho dos XIX, formado por 19 dirigentes da WIC, decidiu direcionar-se para a América
do Sul, mais precisamente para a região do nordeste brasileiro.
Para Magalhães14 o principal alvo da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais
(WIC) era a destruição do monopólio ibérico no Oceano Atlântico. O domínio do território
brasileiro era parte de um plano de conquistas contra o império português, pois, além dos
êxitos que já haviam alcançado no Oriente, os holandeses desejavam também obter o domínio
da África. O interesse pela África girava em torno da busca do ouro e do tráfico de escravos
para trabalhar na produção de açúcar no Brasil holandês. Deste modo, segundo Fage15, na
primeira década do século XVII, a Companhia das Índias Orientais conseguiu destruir o
poderio português no Oceano Índico e, com a formação da Companhia das Índias Ocidentais,
os Países Baixos apoderaram-se das feitorias mais importantes dos portugueses na costa
ocidental da África.
Conforme explica Chaudhuri16, citando Charles Boxer, a guerra entre o Império luso-
espanhol, Países Baixos e Inglaterra, que ocorreu no período de 1600 a 1663, devastou o
império português. Esta guerra estendeu-se do continente Africano ao Brasil, prolongou-se a
todo o Oceano Índico e alcançou até mesmo o Japão, no continente Asiático, sendo combatida
tanto em terra como no mar. As disputas giraram em torno do domínio do comércio de
14MAGALHÃES, Joaquim Romero. A construção do espaço brasileiro. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa (Vol. II). Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. p. 51. 15 FAGE, J. D. História da África. Trad. Aida Freudenthal. Lisboa: Edições 70, 1997, capítulo 10. 16 CHAUDHURI, 1998. p. 82.
12
escravos africanos, do açúcar brasileiro, da pimenta-negra do Malabar e da Indonésia, das
especiarias finas das Molucas, da canela do Sri Lanka, das sedas chinesas, e da prata e do
cobre japoneses.
Como pudemos observar, as guerras políticas, econômicas e religiosas migraram,
então, da Europa para o Brasil. Primeiramente os neerlandeses executaram uma tentativa de
invasão em 1624, contra Salvador, Bahia, capital do Estado do Brasil. Contudo, este ataque
foi frustrado pelos Ibéricos que logo souberam da ofensiva e organizaram uma grande e
poderosa esquadra que libertou a Bahia em abril de 1625. Mesmo diante desta derrota e de
outras sofridas na África e nas Antilhas, os holandeses realizaram um segundo ataque em
1630, porém, agora contra Pernambuco e desta vez foram bem sucedidos. Pernambuco era a
principal e mais rica região produtora de açúcar da América portuguesa e logo Olinda e
Recife passaram a pertencer ao domínio holandês.
Os holandeses buscaram conhecer bem a colônia americana, através de informantes
tinham conhecimento exato dos rendimentos dos engenhos de Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba. Também contavam com o progresso da cartografia holandesa que possibilitou o
conhecimento do Atlântico, de suas costas e rotas de navegação. Os neerlandeses tinham
planos de conquistar o Nordeste brasileiro e, com isso, obter lucros econômicos através do
domínio do comércio do açúcar, conforme afirma Almeida e Mello17, do monopólio da
exportação do sal brasileiro e também do trafico de escravos angolanos, pois desta forma
trariam grande prejuízo a coroa luso-castelhana.
1.2 A questão da invasão: direito ou delito
A união política efetivada com a tomada do trono português por Felipe II18 trouxe
grandes perdas a Portugal. Foi a partir desta união e devido as interdições impostas por este
rei que os lusitanos sofreram derrotas e um grande declínio diante dos holandeses e ingleses.
Até então, todas as grandes descobertas ultramarinas realizadas do Oceano Índico ao
Atlântico tinham sido executadas por Portugal e por Castela e eram reconhecidas
17 ALMEIDA, A. F. e MELLO, A. R. O Brasil no período dos Filipes (1580-1640). In: HOLANDA. Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. p. 185. 18 A união peninsular iniciada com Felipe II dura 60 anos abrange os reinados deste primeiro, Felipe II (I de Portugal), Felipe III e de Felipe IV, quando acontece à revolução restauradora e a tomada do trono português por D. João, Duque de Bragança, e futuro D. João IV, em 1640 terminando assim a dominação espanhola sobre Portugal. ALMEIDA, A. F. e MELLO, A. R. O Brasil no período dos Filipes (1580-1640). Idem nota 9. pág. 176.
13
internacionalmente. Uma série de bulas papais e tratados garantiam aos Ibéricos o direito de
posse sobre territórios não cristãos descobertos e ainda por descobrir. Russell-Wood19 cita
quatro bulas principais e alguns tratados que demonstram de que maneira a Igreja católica
legitimava o expansionismo ibérico, a conquista e posse de territórios alheios.
A bula Rex regum do papa Eugénio IV, datada de 1436, concedia aos portugueses o
direito de fazer guerra contra os inimigos da cristandade e, ainda, convocava a todos os reis
cristãos para colaborarem nesta guerra. Segundo esta bula, as terras conquistadas aos inimigos
pertenciam ao rei de Portugal. A bula Dum diversas, de 1452, declarava o apoio do Papa aos
portugueses na execução de ataques, conquistas e subjugações de Sarracenos, pagãos e infiéis
para, através da servidão, converte-los ao cristianismo, conquistar as suas terras e bens e,
finalmente, transferi-los para o reino de Portugal.
A bula Romanus pontifex, de Nicolau V a Afonso V e seus sucessores, datada de 1455,
concedeu aos portugueses a posse legal e o domínio de terras, vilas e bens conquistados,
inclusive dos mares adjacentes e legitimou também todas as medidas a serem tomadas para
reduzir o poder temporal dos inimigos da cristandade. Esta bula também autorizava aos
portugueses construir igrejas e edifícios religiosos e enviar padres para converter os pagãos.
Ainda, lhes concedia o monopólio da navegação, comércio e pesca, proibindo as outras
nações de qualquer interferência na atividade portuguesa, seja comercial ou em qualquer outro
aspecto das descobertas e conquistas portuguesas. A bula Inter caetera de Calisto III, de 1456,
confirmou as condições estabelecidas na bula Romanus pontifex e concedeu à Ordem de
Cristo poder, domínio e jurisdição espiritual sobre terras conquistadas e a conquistar do cabo
do Bojador e cabo Não até as Índias.
Devido a desacordos existentes entre portugueses e castelhanos no que diz respeito aos
domínios territoriais, foram firmados diversos tratados com o intuito de estabelecer acordos
de posses. Sendo assim, o Tratado de Alcáçovas, firmado em 1479 e ratificado em 1480,
estabelecia o direito de domínio luso-castelhano no que se refere às pretensões no Atlântico e
aos domínios territoriais. Nele Castela afirmava concordar com o direito português sobre as
ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde, como também às terras da África já descobertas e por
descobrir. Castela ainda reconhecia os direitos exclusivos de Portugal de navegação na Guiné
e seus monopólios comerciais. Finalmente, o tratado de Tordesilhas (1494) determinava que
19RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fronteiras de integração. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa. Vol 01. Lisboa: Temas e Debates, 1998. p. 238.
14
Portugal tivesse direito aos territórios existentes a leste da linha de demarcação e Castela dos
territórios a oeste.
Conforme afirma Russell-Wood20 aquelas bulas estabeleciam regras iniciais para o
relacionamento e para o comércio dos portugueses com povos não católicos, que eram
considerados infiéis e pagãos. Além disso, afirmavam o direito do domínio dos lusitanos
sobre estes povos e sobre seus territórios. Os Tratados de Tordesilhas e Alcáçovas, por sua
vez, teriam estabelecido parâmetros para o domínio territorial e integração através da
colonização.
Entretanto, nem todos os países se agradaram ou, até mesmo, aceitavam a divisão
pactuada em Tordesilhas e Alcáçovas, onde o Novo Mundo e as terras ainda por descobrir
foram partilhados entre portugueses e castelhanos. Pelo contrário, além de não aceitar muitos
países reagiram contra os ibéricos empreendendo a expansão ultramarina nas regiões onde
existia o monopólio comercial luso-espanhol. Os holandeses e ingleses investiram e chegaram
até mesmo a se unirem contra este predomínio.
A análise das obras escritas por cronistas da época como Gaspar Barlaeus, que
descreve em História dos Feitos as realizações de Maurício de Nassau no Brasil holandês,
pode nos aproximar das compreensões que os neerlandeses tinham acerca da expansão
ultramarina luso-castelhana.
Gaspar Barlaeus21, nesta obra, relata que a luta realizada dentro dos Países Baixos, na
Espanha, África e na América constituía de um revide a Felipe II pela guerra empreendida por
ele contra os holandeses. Até mesmo os ataques corsários aos navios castelhanos em que os
produtos comercializados por ibéricos com os asiáticos e americanos eram pilhados pelos
holandeses tratavam-se de uma resposta, ou seja, de um revide.
Para os holandeses, conforme Barlaeus, a proibição da navegação nos portos
portugueses e orientais, impostas por Felipe II, não era lícita, visto que o mar pertencia a
todos. Além disso, teria sido Deus, o Criador, que concebeu nas Índias os produtos que
também eram necessários aos neerlandeses, e por isso, seria oportuno ir até lá, buscá-los por
um melhor preço. Este autor ainda afirma que “o holandês tentou no Oceano derrotas tanto
mais extensas quanto mais enclausurado se sentia nas acanhadas fronteiras de seu país,
espalhando o seu tráfico e poderio por toda a parte onde brilha o sol”22.
20 Idem nota 9, p. 251. 21 Idem, p. 3. 22 Idem nota 11, p. 5.
15
O direito exclusivo de navegação e domínio dos mares reivindicados por Portugal
através da bula Romanus pontifex de 1455, e a divisão do mundo entre Castela e Portugal
acordados em Alcáçovas e Tordesilhas, que já vinham sendo contestadas, foram atacados
mais intensamente através da dissertação jurídica do holandês de Huig van Groot23 Maré
liberum, sive de jure quod batavis competit ad Indiana commercia, dissertatio, que defendia a
liberdade de navegação a navios de todas as nações. Segundo Magalhães24 essa dissertação foi
elaborada por encomenda da Companhia das Índias Orientais (VOC) e editada por ela.
Essa contestação foi respondida por portugueses e castelhanos que buscaram a
reafirmação da legalidade do princípio do Maré clausum, o qual garantia a exclusividade de
navegação aos ibéricos. Ainda, as idéias defendidas por Groot foram confrontadas pelo padre
Serafim de Freitas em na sua obra De Iusto Imperio Lusitanorum Asiático. Mas o interesse
pela expansão ultramarina neerlandesa era despertado, juntamente com a idéia de que a sua
navegação poderia chegar a arruinar o poderio espanhol e o nome do povo holandês poderia
também ser divulgado entre os estrangeiros.
Além disso, acreditava-se também que a guerra feita pelos castelhanos na Europa era
sustentada pelas riquezas obtidas no Novo Mundo, por isso, se fossem privados delas, aqueles
se tornariam menos poderosos e fortes. Como podemos observar abaixo, nas palavras de
Barlaeus:
Nenhum outro feito daria maior glória e renome às Províncias-Unidas que o terem ligado o Velho e o Novo Mundo pelos laços do comércio e da navegação. Não se deveria desprezar essa liberdade comum de comerciar, concedida a todos por uma lei natural e defendida com tantas vitórias brilhantes e desbaratos infligidos aos inimigos. 25
Cabe ressaltar que Barlaeus foi contemporâneo de Groot, como veremos no próximo
capítulo, e simpatizava com suas idéias no que se refere à expansão marítima neerlandesa, a
liberdade de navegação e do pertencimento do mar a todas as nações.
Deste modo, ao preparar-se para o empreendimento no Oceano Atlântico, os holandeses
elencaram os motivos favoráveis ao seu avanço e os pontos desfavoráveis. A informação de
que as costas do Brasil estavam desprotegidas e a idéia de executar a invasão de forma
imprevista pelos inimigos eram pontos positivos aos holandeses. A justificativa para a
expansão baseava-se no direito natural e das gentes e na carência de produtos alimentícios
necessários para seu conforto. Somente a idéia do lucro já era incentivadora para a 23 Podemos encontrar o nome de Groot com tradução para Grócius ou Grócio. 24 MAGALHÃES. Op. Cit. “Os limites da expansão Asiática”, p. 14. 25 BARLAEUS, 1974, p. 11
16
Companhia das Índias Ocidentais, mas para os religiosos que estavam envolvidos nesta
empresa a possibilidade de propagar a sua doutrina, considerada mais pura, e por meio disto
estender não somente o império neerlandês, mas também o de Cristo era realmente
impulsionadora:
Além destes, traziam-se outros argumentos aptos para persuadirem aos espíritos ávidos de lucros. Os mais religiosos pediam suas razões à religião e à conveniência de se propagar uma doutrina mais pura, alegando se deveria acender o facho de fé para guiar os povos que tacteavam no reino das trevas; e que não se deveria estender só o império humano, senão também o de Cristo; que era necessário e possível associar às vantagens dos comerciantes o cuidado de se salvarem tantas nações; que assim os negócios seriam pios, e a piedade útil26.
Por outro lado, era discutida a dificuldade da defesa de tão extenso território e,
também, da aceitação da presença dos neerlandeses por parte dos selvagens, dos bárbaros, que
já haviam aceitado a muito tempo a convivência, os costumes e a religião dos portugueses e,
por isso, poderiam se mostrar hostis. Por fim, um Edito dos Estados Gerais decidiu pela
viabilidade do empreendimento e, estimulados pelos sucessos obtidos no Oriente, os
neerlandeses constituíram uma nova companhia, a WIC, Companhia das Índias Ocidentais,
“com cidadãos mais opulentos e também mais infensos à Espanha.”27
Portanto, podemos concluir que os neerlandeses entendiam o seu avanço ultramarino
contra os monopólios comerciais luso-espanhóis como uma estratégia política, econômica e
religiosa, pois, buscavam através dele reduzir o poderio espanhol de maneira que se livrassem
do seu jugo. Seus empreendimentos seriam sustentados com os lucros retirados dos espanhóis
através da guerra, do corso e dos ataques em terra.
A expansão ultramarina holandesa era para os neerlandeses, sobretudo, um direito
religioso já que o próprio Deus não seria capaz de tolerar que um só povo ou poucos
potentados desfrutassem entre si das águas criadas por Ele e destinadas a utilidades de todos.
Além disso, como vimos a tomada das colônias inimigas era também uma oportunidade de
levar a “verdadeira religião”, ou seja, a reformada, para outras almas.
No entanto, como apontamos anteriormente, os ataques, a tomada e o controle de
territórios pertencentes a povos não católicos pelos ibéricos eram pautados por bulas papais e
tratados firmados entre lusos e castelhanos. A Igreja era, para estes, a expressão da vontade
divina e esta favorecia os reis católicos. Além disso, segundo Chaudhuri28, após o concílio de
26 BARLAEUS, 1974, p. 11. 27 Idem nota 11, p. 10. 28 Idem nota 6, p. 83.
17
Trento, ocorrido entre 1545 e 1563, os ibéricos foram responsabilizados por realizar a Contra-
Reforma e a conversão à religião cristã dos povos existentes fora da Europa, sendo que, para
isso contavam com uma ajuda constante do Vaticano. Deste modo, ambos os lados viam o
domínio nordeste açucareiro um direito legitimado por Deus criando, a partir disso, elementos
suficientes para que no Brasil a guerra pelo açúcar se tornasse também uma guerra religiosa.
Por sua vez, na obra de Frei Calado do Salvador, que escreve durante a guerra contra a
invasão holandesa no nordeste brasileiro e em nome dos portugueses, podemos verificar o
ponto de vista dos ibéricos diante da invasão e subseqüente instalação dos holandeses no
Brasil. Conforme o seu discurso os portugueses acreditavam ter o direito divino de conquistar
e dominar as terras dos inimigos da cristandade e dos gentios, como veremos adiante. Além
disso, os ataques neerlandeses eram considerados pelos lusos-brasileiros uma afronta ao trono
dos Filipes e, ainda, a sua presença era vista como uma oportunidade de infiltração de heresias
entre os fiéis católicos e um meio de roubar as riquezas geradas com a produção do açúcar.
Segundo Calado, Padre Antonio Rosado da Ordem de S. Domingos, numa visita a
Pernambuco chegou a comparar Olinda com a Holanda:
De Olinda e Holanda não há aí mais que a mudança de um i, em a, e esta vila de Olinda se há-de mudar em Holanda, e há-de ser abrasada por os holandeses antes de muitos dias; porque pois falta a justiça da terra, há-de acudir a do céu.29
Para Calado, antes da chegada dos holandeses no Brasil, Pernambuco era rico,
próspero e abundante em ouro e prata conquistando com o açúcar. Parecia, enfim, um
verdadeiro retrato do paraíso terrestre. Entretanto, quando os holandeses entraram em
Pernambuco, juntamente com eles entrou o pecado, as ganâncias, os vícios, as injustiças como
usuras, juros e ganhos considerados ilícitos passaram a ser praticados, assim como
amancebamentos, ladroíces, roubos, brigas e mortes. Com isso, os moradores foram se
esquecendo de Deus, mas aos pecadores, como em Sodoma e Gomorra, veio a justiça divina,
pois “a morte é o efeito do pecado, de turbar, perverte e destruir as coisas.” 30
A guerra religiosa da Reforma e Contra-Reforma é vivida no Novo Mundo, e os
católicos tentam proteger seus fiéis da difusão dos heréticos pregadores do Calvinismo e vão
lutar com todas as suas forças para extirpar de seu meio as heresias e seus propagadores até a
29 CALADO, 1987, p. 48. Vol. 01. 30 Idem, p. 41.
18
expulsão definitiva dos holandeses do nordeste açucareiro, que só ocorrerá efetivamente em
1654.
As obras de Barlaeus e Calado possuem características próprias que devem ser
analisadas para que seja possível o entendimento de suas narrativas. Ambos os autores versam
sobre as “guerras do açúcar” (1630-1654), porém cada um partindo de um ponto de vista
diferente. Ainda, ambos possuem formação religiosa e por isso defendem a fé que
professavam, a sociedade que representavam e também questões e ideais particulares, o que
veremos adiante.
19
CAPÍTULO II - VALEROSO LUCIDENO E HISTÓRIA DOS FEITOS: ORIGEM E
TEOR DAS OBRAS.
As obras de Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados no Brasil, e de
Calado, Valeroso Lucideno e Triunfo da liberdade, possuem, como mencionado
anteriormente, características próprias que serão analisadas nesse capítulo. Deste modo, cabe
aqui apontar informações como data e local de impressão destas obras, suas condições de
produção, tradutor, entre outras, para então analisar e compreender suas narrativas. Cabe
ressaltar que as duas obras possuem uma característica comum que também será analisada:
ambas foram promovidas e encomendadas por patronos que buscavam atingir interesses
particulares através delas. Por isso, seus discursos têm como característica um cunho
panegírico, ou seja, têm o intuito de louvar e elogiar seus patronos.
Além disso, Barlaeus e Frei Calado possuíam formação religiosa distinta. O primeiro
era calvinista e o segundo católico. Deste modo, Barlaeus e Calado relatam, em suas
respectivas obras, a guerra no nordeste açucareiro, mas também fazem uma defesa da fé que
professavam, da sociedade que representavam e também de questões e ideais particulares.
Portanto, para compreender o discurso religioso elaborado e defendido por ambos os autores
será levado em conta a questão da encomenda das obras e os ideais e interesses de seus
patronos e de seus autores, elementos fundamentais para a compreensão dos discursos
presentes nas obras em questão.
As obras de Calado e Barlaeus estão incluídas no padrão existente no antigo regime
literário que se caracteriza pelo patronato. Os escritores, devido a pequena difusão do livro
nos anos imediatamente posteriores ao surgimento da prensa, escreviam para um público
determinado que buscava atender seus interesses particulares. Os reis possuíam um
historiógrafo oficial e seus familiares possuíam leitores, secretários e bibliotecários que
buscavam livros que atendessem seus anseios funcionais e de classe. Desta forma, os autores
integravam-se a uma sociedade de ricos patrocinadores e cortesãos os quais se beneficiavam
mutuamente, ou seja, os cortesãos eram entretidos e os autores recebiam refinamento e
posição social.
Conforme explica Robert Darnton31, os escritores que tinham opiniões consideradas
“sadias” e que faziam propaganda em favor do governo eram privilegiados e recebiam
31 DARNTON, Op. Cit. p. 27.
20
pensões ou subsídios. Ao contrário, os patrocinadores evitavam efetuar qualquer tipo de
pagamento a quem fosse de duvidosa lealdade. Portanto, para beneficiar-se financeiramente e,
até mesmo, sobreviver do ofício de escritor era necessário agradar a comunidade leitora.
Desta forma, os escritores viviam numa dependência diante das regras relativas ao patronato,
ao mecenato e ao mercado.
A obra de Barlaeus foi encomendada por Maurício de Nassau e a de Calado foi
encomendada por João Fernandes Vieira, como discutiremos a diante. Portanto, estes autores
elogiam seus patronos, como aponta o tradutor de História dos Feitos:
Se não prima Barléu pelo estilo, não é tão pouco historiador sereno, obediente à regra de Tácito de narrar os fatos sem ódio nem favor. Panegirista de Nassau, só o aprecia pelo lado bom, sem lhe apontar um só êrro, sem lhe achar um só defeito. Não vê nêle senão virtudes, somente lhe tece louvores. Tal proceder gera desconfiança no leitor. Qual o homem que não tem seus deslizes? Qual o administrador em absoluto isento de alguma falta? E Nassau não poderia fugir à sorte comum a todos os mortais. 32
É nesse contexto de produção literária que as obras redigidas por Barlaeus e Calado
devem ser entendidas. No entanto, ainda que o patronato tivesse expectativas a serem
atendidas os autores buscavam entremeios para expor seus ideais. Como mencionado acima
ambos os autores possuem formação religiosa e, cabe ressaltar, condizente com a de seus
patronos o que dava maior respaldo para transmitir seus ideais.
2.1 A memória da guerra e a memória do herói: as obras promovidas por João
Fernandes Vieira.
A obra produzida por Frei Manuel Calado do Salvador foi encomendada por João
Fernandes Vieira para que Calado narrasse seus feitos. Vieira era madeirense, mas foi para
Pernambuco ainda pequeno. Foi ali que se apresentou como voluntário para lutar na guerra,
logo nos primeiros anos da invasão holandesa. Curiosamente, mais tarde, verificou-se que foi
um dos homens que mais enriqueceu com a guerra.
No período de governo de Maurício de Nassau ocorreu a venda de engenhos
arruinados pela guerra e abandonados por seus proprietários. Vieira inicialmente não pode
comprar engenhos, pois, segundo Mello33, era oriundo de família pobre. Entretanto, se
aproximou de um holandês chamado Jacob Stachouwer que havia comprado a crédito três 32 EXPLICAÇÃO. Nota do tradutor Cláudio Brandão. 33 MELLO, J. A. Gonsalves de. João Fernandes Vieira: mestre de campo do terço de infantaria de Pernambuco. Recife: Universidade do Recife, 1956. p. 27.
21
engenhos, mas que não tinha experiência com a administração de seu novo negócio. Desta
forma, Vieira tornou-se empregado e amigo de Stachouwer, depois, feitor de seus engenhos e
seu procurador tratando de assuntos de compra e venda. Finalmente, tornou-se proprietário de
mais de dezesseis engenhos.
Através de sua ligação com Stachouwer, Vieira aproximou-se dos invasores e utilizou-
se da amizade com os neerlandeses para enriquecer. Tornou-se pessoa de confiança do
governo holandês e seu colaborador e conselheiro nos assuntos referentes ao Brasil. Vieira era
católico e não se converteu ao calvinismo, sendo benfeitor de igrejas e irmandades católicas.
Em 1643, durante a vigência do domínio holandês no Nordeste, João Fernandes Vieira
casou-se com Dona Maria César, filha de Joana de Albuquerque e Francisco Berenguer e
através deste casamento ligou-se a uma família nobre. Entre fins de 1641 e início de 1642
passou a fazer parte do principal núcleo de reação contra os holandeses, que era o dos
senhores de engenhos e lavradores do Várzea do Capiberibe, no qual seu sogro atuava. Assim
que a notícia da aclamação do Duque de Bragança como rei de Portugal chegou ao Recife, em
1641, João Fernandes Vieira pegou em armas contra os holandeses e tornou-se chefe da
insurreição pernambucana até a restauração de Pernambuco. Segundo Mello, entre os motivos
que fizeram com que Vieira se levantasse contra os invasores foi o desejo de elevar seu status
entre os pernambucanos e de ser reconhecido por eles:
Homem ambicioso de prestígio e de poder, vaidoso de ter alcançado situação de preeminência; ufano de ver-se cortejado por um grupo de seguidores civis e eclesiásticos, dependentes de seus favores; orgulhoso de ver-se alvo de atenções regias e de depender de sua iniciativa e da sua direção o movimento libertador contra os herejes, tudo isso, cremos, contribuiu para a decisão de Vieira de participar da rebelião e dela fazer-se chefe.34
Para Calado o motivo de Vieira ter tomado iniciativa contra os neerlandeses foi os
sofrimentos dos pernambucanos:
E vendo o como o Estado de Pernambuco ia de cabeça abaixo, pôs em seu peito o acometer a heróica empresa da liberdade da pátria, e tirar de cativeiro os moradores da terra, que tantas tiranias, e agravos padeciam em poder dos Holandeses, e pôs por obra, dando-me matéria para o assunto que tomei para fazer este tratado. 35
Para elevar ainda mais o seu nome e garantir sua memória de herói João Fernandes
Vieira incumbiu Frei Manuel Calado do Salvador de escrever sobre suas realizações. Por isso,
34 MELLO, 1956, p. 129. 35 CALADO, 1987, p. 108. Vol. 01.
22
a obra de Calado possui um cunho panegírico. Segundo Mello36, além de Valeroso Lucideno
Vieira encomendou outras quatro crônicas: Memórias diárias de la guerra del Brasil, de
Duarte de Albuquerque Coelho (1654), Nova Lusitânia ou história da guerra brasílica, de
Francisco de Brito Freyre (1676) e Castrioto Lusitano de Frei Rafael de Jesus (1679). Essas
obras foram todas escritas entre os anos quarenta e setenta do século XVII. A quarta obra
encomendada, intitulada História da guerra de Pernambuco, de Diogo Lopes Santiago foi
impressa apenas em 1875.
Como podemos observar estes livros tratam de períodos diferentes da guerra contra o
holandês, a saber: as Memórias diárias e a Nova Lusitânia narram o período da guerra de
resistência (1630-1637). As outras obras citadas cobrem, além da resistência, também o
período do governo de Maurício de Nassau (1637-1644) e a guerra de restauração (1645-
1654). O Valeroso Lucideno segue até julho de 1646 e História da guerra de Pernambuco e
Castrioto Lusitano relatam até a capitulação holandesa. Como vemos as obras encomendadas
por João Fernandes Vieira cobrem diferentes momentos da guerra holandesa o que demonstra
sua preocupação em construir para si uma imagem simbólica de heroísmo e de que nenhum de
seus feitos ao longo da guerra deixasse de ser relatado e consagrado como memória.
Além do tom panegírico, a escrita de Valeroso Lucideno revela também o interesse
religioso de Frei Calado, pois muitas vezes o autor defende sua religião e também ideais
particulares e dos habitantes católicos de Pernambuco. Por isso, para entender suas intenções
e os ideais que o autor defendia é necessário primeiramente conhecer sua origem, sua
formação intelectual e religiosa e as influências que recebeu durante sua vida.
Frei Manuel Calado37 é natural de Vila Viçosa, Portugal. Aprendeu a língua latina com
mestres religiosos e teve seus estudos pagos pelos duques de Bragança. Estudou lógica e
filosofia e se formou bacharel, licenciado e mestre de Artes pela Universidade de Évora, onde
foi enviado por D. Teodósio, Duque de Bragança.
Filho de Diogo Calado e Inês Martins fez parte da Ordem de São Paulo, congregação
dos Eremitas da Serra de Ossa. Segundo Mello38, Calado viveu no Brasil durante cerca de
trinta anos e faleceu em 1654, com setenta anos de idade e quarenta e sete anos de religião.
Sua vinda para o Brasil teve como justificativa a arrecadação de esmolas para sustentar seu
36 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 2ª Ed. p. 71-72. 37 Nota do Editor. Edição de 1943. 38 MELLO, Evaldo Cabral de. 1997, pág. 88
23
pai e para o financiamento do casamento de sua irmã. Viveu inicialmente na região de Porto
Calvo onde tornou-se lavrador de mantimentos e senhor de escravos.
A obra de Frei Manuel Calado do Salvador, O valeroso Lucideno e triundo da
liberdade foi impressa pela primeira vez em Lisboa no ano de 1648 por Paulo Craesbeeck,
mas foi escrita durante a guerra de resistência (1630-1645), sendo iniciada aproximadamente
entre setembro de 1645, e concluída na data de sua partida de Pernambuco ou de sua chegada
em Portugal. Segundo Mello a obra “é, não uma história, mas o depoimento de um
contemporâneo; e, mais que contemporâneo, participante dos acontecimentos que narrou.”39.
Calado escreveu sua obra como testemunha ocular, mas também como participante da guerra,
e a escreveu como um diário relatando passo a passo os acontecimentos da guerra e não como
conhecedor de seu fim. Conforme afirma Calado sobre o acontecimento da guerra “(...) é mui
diferente coisa o vê-lo com os olhos, ou querer escrevê-lo com pena, e tinta.” 40.
Calado retornou a Portugal em 1646 para publicar sua obra, o que se efetivou em
1648, como dito anteriormente. Entretanto, foi proibida de circular por pressão dos jesuítas ou
devido ao seu discurso crítico contra as autoridades eclesiásticas no Brasil41. Em decorrência
deste fato, foi incluído no Index librorum prohibitorum por um decreto apostólico datado de
Roma de 24 de novembro de 1655 de onde só foi retirado em 1667. A obra teria uma segunda
parte a qual não chegou a ser impressa devido a interdição do primeiro volume e da morte de
Calado, em 1654. A edição que será utilizada para a realização da monografia será a
publicada pela Editora da USP e Itatiaia em 1987, coleção reconquista do Brasil.
O Valeroso Lucideno foi apresentado e publicado em Portugal com o objetivo de obter
o apoio do rei e de seus ministros a favor dos pernambucanos insurretos, dos quais João
Fernandes Vieira era um dos líderes. Ou seja, Frei Calado tinha a missão de ir para Lisboa
representar e, ao mesmo tempo, interceder pelos pernambucanos. A necessidade da busca de
apoio se dava por causa da hesitação da coroa em enviar auxílio naval para a definitiva
expulsão dos holandeses. Com a aclamação de D. João IV os portugueses da metrópole e
colônia, como afirma Mello42, receavam expulsar os neerlandeses de Pernambuco
forçosamente, pois desejavam reabrir as velhas linhas de comércio anteriormente existentes
entre ambos.
39 MELLO, José Antonio Gonsalves de. Frei Manuel Calado do Salvador. Universidade do Recife: 1954. 40 CALADO, 1987, p. 51. 41 idem, p. 89. 42 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 1º Ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
24
Persuadido (pio, e benigno leitor) de muitas importunações de amigos, e obrigado do amor da Pátria, e levado do primor, e timbre do nome Português e sobretudo por acudir a honra, e infalível palavra, e nome de S. Majestade, e dar alento aos moradores de Pernambuco, para levarem com suavidade a carga dos trabalhos, e o pesa da guerra, na qual andam em roda viva de dia, e de noite, por libertarem a terra das mãos dos Holandeses: tomei a pena na mão pra fazer este trabalho, como testemunha de vistam, pois em companhia dos tristes, e afligidos moradores daquela Província, como amigo, e fiel companheiro, me achei presente, com a espada em u’a mão, e com a língua ocupada na propagação, e defensão da Fé Católica.43
Conforme explica Magalhães44 o levante restaurador se iniciou e desenvolveu de
forma contrária as instruções de Lisboa. A definitiva expulsão dos invasores de Pernambuco
não interessava a coroa por razões diplomáticas relativas à manutenção de equilíbrio de forças
e ao decorrer da guerra na Europa. Mesmo assim, os moradores de Pernambuco organizaram
forças militares para combater os holandeses em 1645, numa guerra contra o herege, que
também reagia contra o problema do endividamento dos moradores desta região do nordeste.
O levante foi encabeçado por João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, D.
Antonio Felipe Camarão e Henrique Dias, conforme o imaginário nativista consagrado no
começo do século XVIII, estudado por Evaldo Cabral de Mello. Segundo o autor, “até meados
do século XIX, a história da expulsão dos holandeses foi a história que, com aguçado senso de
promoção pessoal, Vieira encomendara e divulgara” 45.
A obra de Calado inicia com o relato das guerras de resistência aos invasores
holandeses pelos luso-brasileiros, cobre o período do governo de Nassau e segue até meados
de 1646, início da guerra de restauração. Sua narrativa revela sua constante tentativa de
realizar missas, confessar os condenados a morte e a sua defesa da fé católica da difusão da
religião protestante considerada herética e, ainda, continuar a alimentar a fé católica dos fiéis
com a pregação de seus dogmas.
2.2 Os feitos de Nassau como exemplo: “a memória da posteridade”.
O Conde João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679) foi nomeado governador,
capitão e almirante-general das terras conquistadas ou por conquistar pela Companhia das
Índias Ocidentais no Brasil em 1636 e exerceu suas funções, pagas com alta remuneração,
durante o período de janeiro de 1637 a maio de 1644.
43 CALADO, 1987. Prólogo ao leitor. 44 MAGALHÃES. Op. Cit. “A construção do espaço brasileiro”. Vol. II, p. 55. 45 MELLO, 1997, p. 195.
25
O governo de Maurício de Nassau foi o período em que os holandeses tiveram maior
expansão geográfica em territórios brasileiro e africano. Entre suas conquistas está a
conservação do sul da capitania de Pernambuco, a captura de São Jorge de Minas, na África,
em 1637, e a conquista de Sergipe, Maranhão, a Ilha de São Tomé e Angola em 1641. Em
1638 o Conde tentou um ataque a Bahia, o qual foi frustrado.
Como administrador Nassau teve muito sucesso. Reformulou a organização municipal
portuguesa aos moldes holandeses e criou um Conselho de Escabinos em lugar da Câmara
existente. Estabeleceu regras para juros cobrados sobre empréstimos, mandou construir
pontes, calçar ruas, e vendeu a crédito os engenhos abandonados por proprietários,
possibilitando sua reativação. Além disso, adiantou capitais aos senhores de engenho para que
restaurassem suas propriedades. Desta forma, a boa fama de Nassau corria pelo nordeste
brasileiro e, segundo Mello, Nassau:
Atendia pessoalmente as queixas dos moradores luso-brasileiros (...). Pela atenção com que a favorecia, recebeu o maior elogio que se poderia esperar da população católica do país, o ser comparado a Santo Antônio, a quem ninguém recorria sem ser atendido. Ele próprio socorria muitos necessitados que o procuravam com seus problemas (...)46
Destarte, para garantir que fossem guardadas como memória suas realizações durante
os quase oito anos de seu governo e também para informar aos europeus sobre o Brasil
holandês, Maurício de Nassau encarregou Gaspar van Baerle47 de escrever sobre seus feitos.
A História dos feitos recentemente praticados no Brasil foi encomendada por Nassau e
deveria descrever a história de sua administração como Governador do Brasil Holandês
(1637-1644).
Durante a presença de Nassau no Brasil intelectuais foram convidados a vir para o
nordeste brasileiro, como os pintores Frans Post e Albert Eckhout, sendo o primeiro paisagista
e o segundo figurista, e também o gravador Zacharias Wagner. Ainda veio para o Brasil o
naturalista Georg Marcgraf, que deveria observar animais e plantas, e o médico Willem Piso.
Esses estudiosos o ajudaram a realizar obras em diferentes áreas, como arquitetura e
urbanismo, como a construção e planejamento da Cidade de Maurícia. A criação de um
jardim botânico, a realização de estudos de História Natural, Astronomia e Meteorologia.
46 MELLO, 1968. p. 240. 47 Gaspar van Baerle teve seu nome latinizado em Caspar Barlaeus e aportuguesado em Gaspar Barléu. BARLAEUS, 1974, p. 53.
26
Todavia Barlaeus nunca esteve no Brasil. A obra que redigiu foi encomendada
posteriormente por Nassau e deveria ser escrita “de maneira imparcial à luz de documentação
fornecida”. Para isso, Nassau forneceu a Barlaeus elementos do arquivo que havia reunido em
Pernambuco, além de informações diversas48. No entanto, mesmo que baseado em
documentos, essa imparcialidade não seria possível, já que Nassau encomendara a obra em
busca de enaltecimento e promoção pessoal.
Para Barlaeus a importância de História dos Feitos se dava na transmissão da memória
dos feitos de Nassau que era visto por ele como um grande homem, autor de importantes
realizações. Para o autor, Nassau deveria ser visto e retratado como um exemplo a ser seguido
e imitado:
Negue-se a Nassau o seu prêmio – a memória da posteridade –, e esta se entibiará, sucumbindo por causa do silêncio guardado pela inércia dos escritores. Onde tem ela ante os olhos os exemplos dos maiores, cresce com singular emulação e procura imitar com ardor as ações gloriosas que lê. 49 A obra de Barlaeus inicia com o relato dos atritos entre os Países Baixos e Castela,
segue com a discussão dos motivos que levaram os holandeses a navegação ultramarina para
o Ocidente e finaliza com momento do regresso de Nassau para a Holanda. O autor revela
muitas informações sobre o que foi visto e observado, em alguns momentos, descreve com
detalhes a natureza, as feitorias, a geografia espacial da América portuguesa, as guerras,
estimativas quanto a lucros e gastos, as relações humanas e principalmente as realizações de
Maurício de Nassau. Para embasar suas afirmações o autor transcreve cartas e relatórios.
Aos documentos públicos dou o crédito que lhes dão os amigos da verdade, e não desejo para mim crédito maior: relato aqui, não o que viram vagamente os olhos, mas o que escreveram, durante a paz, espíritos serenos e acalmados. Farei uma seleção no enorme acêrvo dos fatos e nos numerosos maços de documentos para evitar aos curiosos dêstes assuntos a fadiga de uma longa indagação; mas usarei de brevidade que não furte aos sucessos nada de relevante e memorável.50
Segundo Magalhães51 Nassau apresenta, através da obra de Barlaeus, uma visão global
dos interesses da Companhia das Índias Ocidentais no que se refere ao Atlântico e, além
disso, propõe medidas para a viabilização de uma nova construção imperial. No entanto, não
48 J. A. Mello “Prefácio” da edição de 1980. 49 BARLAEUS, 1974, p. 20. 50 Idem, p. 20. 51 MAGALHÃES. Op. Cit. p. 54.
27
foi atendido. Disto, prosseguem diversas dificuldades para a manutenção dos domínios da
Companhia (WIC).
Portanto, a obra de Barlaeus é um relato das realizações de Maurício de Nassau
durante seu governo no Brasil. Muitas vezes percebemos o enaltecimento de Barlaeus ao se
dirigir a Nassau e aos seus feitos, sua forma de ser e agir, isso pode ser compreendido por
tratar-se de uma obra encomendada. Entretanto, ao iniciar a sua obra, o autor se defende e não
assume a sua posição de engrandecedor e, ao contrário, diz relatar somente a verdade:
Nada concederei à adulação, cujas causas desprezo, nem tão pouco, por desafeição a ninguém, nada tirarei à verdade, para não ser tachado de inverídico por ódio igual. Quem pretender versar êste mesmo assunto para granjear renome literário e fama de talento, ostente a sua eloqüência. A mim bastará uma narração singela, inspirada na realidade dos fatos. Escrevem-se mais livremente os feitos praticados séculos atrás, quando já desapareceram as testemunhas. Eu, porém, vivo entre aqueles mesmos que obraram os atos por mim referidos ou nêles intervieram, e eu escrevo para os seus olhos.52 Todavia, não é o que acontece ao longo da obra, como podemos observar na leitura do
pequeno trecho abaixo:
De tal maneiro combinou entre os estrangeiros a bravura, a prudência, a probidade, virtudes exímias dos generais, que aos soldados deu exemplo do seu denodo bélico e aos domésticos o de uma vida moderada e exata. Ninguém mais civil do que êle nos deveres sociais, na conversação, no traje, no andar. E por outro lado inacessível às lisonjas, odiava os semblantes mascarados, amando somente a sinceridade e a inteireza. Com esta bondade, ganhava os corações de todos e, desta maneira, benquisto dos próprios bárbaros e antropófagos, gozava de estima entre monstros (...). 53
Gaspar Barlaeus nasceu em Antuérpia em 12 de fevereiro de 1584. Filho de um
calvinista convicto, cresceu na Holanda. Foi poeta, literato e teólogo. Exerceu as funções de
Pastor em Nieuwe Tonge em 1608, e em 1617 entrou como professor de lógica na
Universidade de Leide. Em 1631 foi nomeado professor de filosofia e retórica em
Amsterdam, onde faleceu em 14 de janeiro de 1648, um ano depois de ter enviado a editora
Estampa a sua obra História dos Feitos. Barlaeus viveu numa época de intensa atividade
literária nos Países Baixos e foi contemporâneo de Groot, Voss, Spinoza e Rembrandt.
Prosperou profissionalmente na época de mais intensa atividade literária dos Países Baixos,
quando estes, entravam em seu período de expansão ultramarina e enriquecimento.
A primeira edição de História dos feitos, escrita em latim, data de 1647 e foi
incumbida ao impressor João Blaeu, em Amsterdam. Esta edição possui 55 estampas
elaboradas por Frans Post, além de mapas e gravuras de autores desconhecidos. A obra foi
52 BARLAEUS, 1974, p. 20 53 Idem, p. 344.
28
traduzida para o alemão por Tobias Silberling em 1659, e para o holandês em 1923 por S. P.
I’Honoré Naber. A terceira tradução, agora em português, foi realizada por Cláudio Brandão,
em 1940, por iniciativa do ministro Gustavo Capanema.
A edição utilizada nesta pesquisa é a de 1974, editora da USP e Itatiaia. Esta versão
contém reprodução fac. similar da edição brasileira, publicada pelo Ministério da Educação
em 1940, traduzida com anotações por Cláudio Brandão. Também utilizarei a reedição de
1980, pois possui anotações exclusivas.
Traçada uma breve biografia dos autores e de seus patronos podemos, então, fazer
uma análise mais aprofundada de suas obras. Como veremos ambos fazem um elogio e
engrandecimento de seus patronos, mas defendem também seus ideais pessoais e religiosos. A
guerra no nordeste açucareiro torna-se também uma guerra religiosa, pois o nome de Deus é
usado por católicos e protestantes na defesa de seus ideais e de suas “verdadeiras doutrinas”.
29
CAPÍTULO III - OS DISCURSOS DE BARLAEUS E CALADO: UM ESTUDO
COMPARADO
As interpretações dos acontecimentos políticos e econômicos ocorridos durante a
ocupação holandesa no nordeste brasileiro podem ser vistas a partir de um viés religioso. A
idéia da intervenção divina marca profundamente as obras de Barlaeus e Calado, pois como
vimos, ambos os autores tiveram formação religiosa. Frei Calado pertenceu à ordem de São
Paulo em Portugal, e Barlaeus formou-se em teologia nos Países Baixos. A confissão e os
ideais religiosos de ambos os autores estão presentes em seus discursos. O engrandecimento e
elogio que os autores fazem aos seus patronos não impedem a exposição e defesa de seus
ideais religiosos, pois suas confissões são condizentes com as de seus patronos. Além disso,
estes são caracterizados pelos autores como os principais defensores da religião, protestante
no caso de História dos Feitos e católica, no caso de Valeroso Lucideno.
A crença da intervenção divina está presente na interpretação de acontecimentos
importantes como vitórias e derrotas sofridas tanto pelos lusos-brasileiros quanto pelos
neerlandeses. Elas são entendidas como favores ou justiças divinas e acontecimentos
inusitados também são vistos como expressão da aprovação ou reprovação do Criador em
relação às atitudes tomadas pelos portugueses ou neerlandeses.
Outro elemento verificado, principalmente na obra de Calado, é a crença em augúrios
e presságios, os quais constituíam maneiras de antever os acontecimentos. O relato dessas
manifestações religiosas, dessas revelações, a crença na intervenção divina e na defesa da
“verdadeira doutrina” serão examinados conforme o estudo realizado por Davis sobre as
práticas de católicos e protestantes levados a efeito na França no início da era moderna.
Natalie Z. Davis54 descreve em seu capítulo “Ritos de violência” a forma e a estrutura
dos levantes religiosos ocorridos nas cidades e vilas francesas nas décadas de 1560 a 1570. As
fontes utilizadas pela autora são relatos contemporâneos de católicos e protestantes sobre
conflitos religiosos desse período. Ao analisar essas fontes, Davis leva em conta sua
parcialidade, mas parte do princípio de que o que elas descrevem realmente aconteceu, ainda
que os relatos tenham acréscimos ou omissões. A partir desta análise, neste capítulo, fazemos
uma comparação dos discursos de Caspar Barlaeus e Frei Calado a respeito da guerra do
açúcar enfatizando os aspectos religiosos desses relatos.
54 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Tradução de Mariza Corrêa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
30
Por outro lado, durante a presença holandesa no nordeste açucareiro, lusos-brasileiros
e neerlandeses dividiram este mesmo território. O contato e a convivência foram, desde o
início, revelando as diferenças existentes entre ambos no que se refere a língua, cultura e,
sobretudo, religião. Obviamente, a maneira que os lusos-brasileiros e holandeses viam uns aos
outros não era a mesma. Isto pode ser observado através da análise dos discursos de Barlaeus
e Calado.
A análise da visão do outro aqui será feita conforme o estudo realizado por Todorov55
que analisa os documentos produzidos por Cristóvam Colombo, como cartas, relatórios e
diários, sobre a descoberta da América, os quais abrangem o período de sua primeira viagem à
Meso-América e os cem anos que se seguem a ela. Ao analisar esses documentos Todorov
verifica como as crenças de Colombo influenciaram seus escritos. No caso de Colombo o
outro é a sociedade encontrada com a descoberta do Novo Mundo. No nordeste açucareiro
para os católicos o outro ou, os outros, são os protestantes, os judeus e os índios. Por sua vez,
para os protestantes, os outros são os católicos, e também os judeus e os indígenas, isto é, o
outro, para católicos e protestantes, é aquele que difere de si em suas crenças religiosas.
3.1 A visão religiosa no entendimento da guerra.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, para Barlaeus a expansão marítima e
territorial neerlandesa era vista como um direito divino, pois para ele, Deus não tolerava que
poucos desfrutassem das águas criadas por Ele, que eram destinadas a todos. Por outro lado,
os portugueses, respaldados pelas bulas papais, acreditavam ter o direito divino de conquistar
e dominar as terras dos inimigos da cristandade e dos gentios, representados como “tabulas
rasas”. Ainda, o Frei demonstra em sua narrativa a crença de que a conquista da América
pelos portugueses era justa:
Em tranqüilidade, e pública alegria estavam mais de trinta mil almas Portuguesas, logrando os frutos da dilatada Província de Pernambuco, pela justa ocupação que nele fizeram os senhores Reis antecessores de Vossa Majestade, por comua repartição dos Príncipes, para reduzir ao lume da Fé da Igreja Romana tantos milhares de almas, que na gentilidade por desconhecimento de Deus se perdiam (...)56
55 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1983. 56 CALADO, 1987. Vol. 01, p. 203
31
As interpretações dos acontecimentos políticos, econômicos e, sobretudo, relativos à
guerra também possuíam esse viés. Deste modo, vitórias e derrotas são entendidas como
favores ou justiças divinas. A perda da coroa portuguesa para Castela e do monopólio
ultramarino para os neerlandeses e ingleses era vista por Frei Calado, como já mencionado, na
perspectiva conforme a qual desde o princípio de sua monarquia, Portugal era amado e
querido por Deus, pois teria sido Ele que fez com que os portugueses se tornassem
descobridores e conquistadores. A justificativa para essas perdas é a que, segundo Calado, ao
enriquecer, os portugueses encaminharam seus corações em direção ao pecado, se esqueceram
de Deus e de lhe agradecer por suas graças. Seria, então, o pecado e a ingratidão as causas da
ira e justiça divinas lançadas sobre os portugueses:
Foram os Portugueses no princípio da Monarquia, tão amados, e queridos de Deus, que como a tais lhes deu gloriosas vitórias de todos seus inimigos caseiros, e vizinhos, e os encheu dos opulentos despojos dos apartados de sua Santa Fé Católica, e fez chegar seu nome, sua fama, e o valor de seus braços, até as últimas partes do mundo, fazendo-os descobridores, e conquistadores de todo o Oriente, fazendo-lhes sujeitos, e ainda tributários muitos Reis, e metendo debaixo de seus pés muitas tiaras, cetros, e coroas; dando-lhes novos Estados, e Províncias, na América, Brasílica, as mais das Ilhas, que no mar Oceano e Índico, se conhecem, e habitam; enfim pondo-os em tão alto trono, que uns temiam de ouvir seu nome, e o reverenciavam, e outros invejavam suas riquezas, e prosperidades, mas como estas costumam perverter, e desencaminhar aos corações humanos; vendo-se os Portugueses tão prósperos, e abundantes, deram entrada aos vícios, entrou com eles a soberba, confiaram mais do que convinha em seu valor, e esforço, e se esqueceram de dar a Deus as devidas graças, por os benefícios que de sua liberal mão haviam recebido; e como a ingratidão é um pecado que mais provoca a Deus executar sua ira, e justiça, começou Deus a executar sua ira, e justiça, começou Deus a castigá-los para que tornassem ao verdadeiro caminho, que encaminha pra o Céu.57
A visão divina dos acontecimentos vai ainda mais longe para Calado. Ele faz, em sua
obra, uma comparação do povo português com povo de Israel, a quem Deus castigou com
peste, fome, sede, guerra e cativeiro. Diante disso, assim como povo de Israel ficou cativo no
Egito, os portugueses ficaram cativos de Castela, neste caso, durante sessenta anos. Foi o
pecado dos portugueses que fez também com que ficassem sob o jugo dos holandeses, que
dominaram muitos portos na Índia e tomaram Pernambuco, Maranhão, a costa de Guiné e de
Angola.
Contudo, Calado via todos esses acontecimentos com esperança, pois, para ele Deus
nunca abandonaria totalmente este povo pecador, sobretudo, porque os portugueses tinham
sido “escolhidos” por Ele:
57 CALADO, 1987, Vol. 01, p. 137-138.
32
Não desamparou Deus aos Portugueses de todo o ponto, nem se esqueceu deles, mas somente os castigou por sua ingratidão, porém como lhes tinha feito tantos favores, e o fazer Deus mercês aos homens é empenho para lhes fazer outras muito mais vantajosas; como tinha escolhido aos Portugueses por filhos queridos, e amados, vendo-os fustigados com a vara de sua justiça, e desejado de os visitar com a clara luz de sua misericórdia, meteu-os no caminho, por o qual para a asa da misericórdia se caminha, que são os trabalhos, e aflições.58 Segundo Mello a crônica de Calado oferece uma leitura providencialista que não
elimina a recapitulação dos feitos ibéricos, mas os integra e subordina ao plano divino. O Frei
teria visto na queda de Olinda e na invasão holandesa o castigo divino pelos pecados dos
moradores de Pernambuco, e lhes atribui a culpa, pois a invasão teria ocorrido devido a
“acentuada deterioração moral que teria caracterizado a vida pública e privada da capitania
nos anos imediatamente anteriores ao ataque neerlandês.” 59
Como a invasão holandesa é entendida como punição divina pelos pecados dos
habitantes de Pernambuco, a guerra de resistência teria sido um empreendimento inútil,
perdida antecipadamente. Já a guerra da restauração estava destinada à vitória, pois desde o
princípio foi entendida como “guerra da liberdade divina”, e contava com patrocínio de Deus
que agora desejava punir os hereges calvinistas. Por isso as narrativas, tanto de Calado,
quanto de outros cronistas abordados por Mello, revelam a Providência divina de modo
diverso nas guerras de resistência e restauração. A primeira não contou com milagres
legitimadores, pelo contrário, ela é relatada como se efetivamente a divindade estivesse
punindo os católicos através dos sacrilégios cometidos pelos neerlandeses, que aparecem de
três formas: contra a pessoa dos religiosos, contra as igrejas e conventos e contra as imagens
sagradas. Por outro lado, na guerra da restauração a Providência se manifesta através de
milagres, sinais sobrenaturais legitimadores, que revelam o auxílio ao movimento.
Desta forma, o amparo divino era visto através de sinais, visões divinas ou augúrios.
Acontecimentos inusitados e até absurdos poderiam ser avisos e até mesmo uma prova da
provisão de Deus para seus escolhidos. Segundo Calado, a aclamação de D. João IV foi
pressentida pelos moradores de Pernambuco. O próprio Duque Dom Teodósio, pai de D. João
IV, já teria sido avisado, através de uma visão, que um de seus filhos seria o escolhido para
assumir o trono português.
Do mesmo modo que a intervenção providencialista havia reconquistado a
independência de Portugal, Pernambuco tornaria a pertencer a Coroa lusitana, aspecto
58 Idem, p. 142. 59 MELLO. Op. Cit. Rubro Veio..., p. 241.
33
manifestado através de avisos sobrenaturais. O Frei relata um presságio que aconteceu em
Salvador, na Bahia, em 1640, quando um senhor chamado Cura da Sé, que era sebastianista60,
predizia a vinda de um rei para Portugal a algumas pessoas que ali estavam reunidas. Havia
um mestre de campo entre elas, que duvidou dizendo que o rei de Portugal viria quando os
cavalos andassem sobre os telhados, sem quebrar as telhas. Segundo Frei Calado, conforme
dito pelo mestre de campo o milagre aconteceu, e dali cinco meses chegou notícias da
aclamação de D. João IV.
(...) movida a prática de entretenimento, sobre Portugal haver de ter Rei, disse o Cura tantas coisas, e apontou tantas escrituras, e profecias (segundo ele lhe chamava) que o Mestre de Campo lhe respondeu, que quando os cavalos se vissem andar por cima dos telhados, sem quebrarem as telhas, então teria Portugal Rei da nação Portuguesa. Despediu-se logo o Cura mui enfadado, e a conversação se desfez em riso, e galhofa dos circunstantes; e não se passaram muitos dias quando se viu um cavalo andar por cima dos telhados das casas da praia, sem se quebrarem as telhas, de cujo sucesso toda a gente daquela Cidade, que acudiu a ver o espetáculo, ficou admirada. E não se passaram cinco meses quando chegou a feliz nova da aclamação de Sua Majestade el-Rei Dom João Quarto, nosso Senhor.61
No entanto, mesmo com a aclamação de D. João IV, Portugal hesitava em mandar
reforços militares para a definitiva expulsão dos holandeses do território brasileiro. Como
assinala Magalhães62, Portugal não manifestava apoio direto aos insurretos por interesses
diplomáticos, pois ao rei interessava negociar a presença holandesa. Os luso-brasileiros
tiveram realmente que se apegar a fé religiosa para acreditar na sua liberdade e vitória sobre
os neerlandeses.
3.2 Revelação e milagres no avivamento da guerra.
Após a tomada do trono português, D. João IV e os príncipes neerlandeses acordam
uma trégua de dez anos para restabelecer as relações comerciais existentes antes da união
peninsular ibérica. No Brasil, ao receber notícias deste tratado Maurício de Nassau também
estabeleceu uma trégua com o governador da Bahia. Essa trégua impedia de uma vez que os
luso-brasileiros lutassem pela expulsão dos holandeses.
60 O Sebastianismo consistia na crença de que D. Sebastião, rei de Portugal, morto na batalha contra os mouros de Alcácer Quibir, voltaria para conduzir o seu povo a gloria. D. João IV e Padre Antonio Viera eram adeptos do Sebastianismo. Para o Brasil a idéia sebastianista provavelmente imigrou com os colonizadores oriundos do norte de Portugal. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 5º Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. p. 700. 61 CALADO, 1987, p. 159. Vol. 01 62 MAGALHÃES. Op. Cit. “A construção do espaço brasileiro”. Vol. II, p. 55.
34
Segundo Mello63 nunca chegou a haver harmonia entre luso-brasileiros e neerlandeses.
Estes sempre tiveram de permanecer de sobreaviso e desconfiados dos moradores da terra.
Desde o desembarque de Nassau já se ouvia os rumores de revolta. A invasão neerlandesa
havia tirado o poder e prestígio dos senhores de engenho, e estes por sua vez, buscaram
recuperá-los com a guerra.
Para justificar o levante iniciado por João Fernandes Vieira, conforme defende Frei
Calado, que o denomina de Governador da liberdade divina, os luso-brasileiros se apegaram a
fé católica e ao nome de Deus. Através da manipulação das revelações divinas é que a guerra
da restauração pretendia ser justificada diante de Portugal, pois, mais do que uma justificativa,
as ocorrências milagrosas eram entendidas como a aprovação da batalha por Deus.
Para compreender o conceito de revelação podemos nos servir da definição proposta
por John Thornton64. Segundo o autor a revelação é uma informação sobrenatural do outro
mundo, fundamental para a constituição de uma filosofia ou religião e também para
determinar suas modificações:
A revelação é uma informação sobre o outro mundo, sua natureza ou suas intenções perceptíveis para as pessoas deste mundo, por meio de um ou outro canal. As revelações fornecem a este mundo uma janela para o outro. As informações assim reunidas constituem, então, dados fundamentais para a construção de uma compreensão geral da natureza do outro mundo e de seus habitantes (uma filosofia), uma percepção clara de seus desejos e intenções para que as pessoas obedeçam (uma religião), e um quadro mais amplo dos trabalhos e da história de ambos os mundos (uma cosmologia). É então através de revelações que as religiões são formadas, e também é por meio delas que sofrem modificações.
O autor divide o conceito de revelação em “revelação contínua”, ou seja, aquela que
ocorre frequentemente e que caracterizava as crenças africanas, e “revelação descontínua”,
que ocorre com menor freqüência, que é a relatada na Bíblia. Esta última foi a responsável por
fornecer uma base inviolável para a fé, para a estrutura da religião e para a cosmologia.
Contudo, tanto a Igreja quanto os leigos continuaram a acreditar na revelação contínua. Além
disso, os europeus do século XVI acreditam na ocorrência constante de presságios,
adivinhações e aparições de seres do outro mundo e, ainda, consultavam astrólogos ou
adivinhos e curandeiros.
63 MELLO, 1979, p.233. 64 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 316.
35
A revelação na obra de Calado pode ser exemplificada pela passagem em que Santo
Antonio aparece para Vieira em sonho, o repreende pelo seu descuido no que se refere ao
serviço de Deus e das necessidades dos próximos e pede para que ele lute contra o inimigo:
(...) encostou-se o Governador João Fernandes Vieira sobre uma esteira, que ali lhes deram com um travesseiro, e André Vidal de Negreiros em uma cama, para tomarem algum alívio do grande trabalho que haviam passado; e tanto que João Fernandes Vieira entregou os olhos ao sono, começou a sonhar, que Santo Antônio falava com ele, e o repreendia de descuidado, e pouco zeloso do serviço de Deus, e das necessidades, e aflições de seus próximos, e que lhe mandava que se levantasse com pressa, e fosse a buscar o inimigo, porque lhe daria seu favor, e adjuntório em paga dos serviços que nas suas confrarias havia feito, e que senão se desse pressa a caminhar, Deus lhe tomaria a ele conta das aflições, crueldades, roubos, deshonras, e mortes, que aos moradores deste distrito estavam ameaçando. Despertou João Fernandes Vieira, aflito, e perturbado com este sonho, ou para melhor dizer, inspiração divina; e depois de revolver várias imaginações, e pensamentos, já parecendo-lhe que poderia isto ser ilusão do demônio, já que poderia ser obra do Céu, desceu por escada abaixo dizendo: Santo Antônio me manda, eu hei lhe de obedecer. 65
Para Thornton, nos séculos XVI e XVII o único papel que cabia aos humanos era
interpretar e agir de acordo com essas revelações manifestadas por seres de outro mundo. Não
deveriam, portanto, questioná-las. Essas revelações eram validadas quando se efetivava a
ocorrência de milagres. Segundo o autor, a raiz da palavra “milagre” refere-se a uma
demonstração, de que a revelação relatada realmente provinha do outro mundo.
Frei Calado descreve um milagre, decorrido de uma revelação, que ocorreu durante
uma batalha, em 1645. Nela os luso-brasileiros lutaram contra os neerlandeses em menor
número de soldados e também com menor quantidade de munição e, mesmo assim, venceram.
Esta vitória, segundo Calado, se devia ao fato da ocorrência de um verdadeiro milagre visto
por soldados lusos-brasileiros e neerlandeses. Durante a batalha teria aparecido uma mulher
muito formosa, vestida de branco e azul com um menino nos braços, que seria a Virgem
Maria e, junto a ela, aparecia um velho venerado vestido com um hábito de ermitão, que seria
Santo Antão e ambos davam armas, pólvora e balas aos soldados. Além disso, ambos
transmitiram uma luz tão forte que ofuscou os olhos do inimigo, que bateu em retirada.
Segundo Calado, a Virgem Maria teria demonstrado com esta aparição que queria ajudar aos
lusos-brasileiros a se vingarem dos hereges e a castigar os inimigos da fé, por terem quebrado
as suas imagens e as de Cristo.
Muitos outros milagres são relatados por Calado, como no caso em que a Virgem
Maria sua, mas muitos deles ocorreram em defesa e legitimação de João Fernandes Vieira.
Em um deles, Vieira recebeu dois tiros, um no peito e outro na cabeça. A bala atirada contra o
65 CALADO, 1987, vol. II, p. 42.
36
peito caiu milagrosamente a seus pés, sem lhes causar dano e a outra bala teria apenas lhes
tirado uma madeixa de cabelos.
(...) foram-se os nossos deitando na cava, e subindo pelos baluartes, e ali nos mataram muitos soldados, e feriram com duas balas ao Capitão Ascenso da Silva, e a Dom Antônio Felipe Camarão Governador dos Índios, e ao Capitão Diogo Barreiros, o qual morreu dentro de vinte dias, e ao Governador da liberdade João Fernandes Viera lhe deram com uma bala nos peitos, a qual sem lhe fazer dano, milagrosamente caiu aos pés, e com outra lhe levaram uma madeixa de cabelos da cabeça, e ao Mestre de Campo André Vidal de Negreiros lhe deram com uma bala nos fechos da pistola que tinha em mãos, e lhe quebraram a caixa (...).66
Alguns desses milagres são apontados por Mello67. Segundo ele, esses tinham a
função de legitimar o levante militar luso-brasileiro, como já se disse, diferentemente da
guerra da resistência, que era entendida como uma penitência, o movimento restaurador era
legitimado por milagres inequívocos.
A ocorrência de revelações e de milagres animava espiritualmente os combatentes. No
entanto, os soldados contavam também com a presença de alguns padres, além de Frei
Calado, que participaram e animaram as batalhas. Alguns deles carregavam crucifixos e
imagens ao longo das campanhas. Em alguns casos, no auge da batalha, quando os luso-
brasileiros já estavam por perder, esses padres rezavam e chamam os combatentes para rezar e
a pedir pelo favor divino. Promessas, jejuns, cilícios68, disciplinas e romarias também eram
feitas a Deus e aos Santos pela busca da vitória:
Enfadados os inimigos da contenda tão porfiada, arremeteram com muito furor aos nossos, e os puseram em grande aperto, com tanta porfia, que muitos dos nossos ficaram quase sem fôlego de cansados, e foi necessário retira-los, e meter logo outros em seu lugar o Sargento-mor, mas como o inimigo tinha tanto poder, e os descansados sucederam os cansados, ganharam desta vez tanta terra, que esteve muito arriscada a se perder de todo, se o Céu não acudira por os seus fiéis; estava junto ao Governador um Sacerdote com uma imagem de Cristo crucificado nas mãos, animando a nossa gente, e vendo o grande perigo em que estávamos, fez uma exclamação pedindo a Cristo pelos merecimentos de sua paixão, e morte, e pelas dores, e angústias que a Virgem padeceu ao pé da Cruz, que não atentasse para nossos pecados, merecedores de eterno castigo, senão para seu amor, e misericórdia, e que não permitisse que os inimigos de sua santa Fé, que tantos agravos lhe tinham feito, profanando seus templos, despedaçando as sagradas imagens dos Santos, triunfassem do seu povo Católico, que estava pelejando por sua honra, e que pois a empresa era sua, nos desse vitória contra aqueles tiranos hereges, para que o mundo soubesse que aos que pelejavam por a honra de Deus, não lhes faltava o divino favor e adjuntório. 69
66 CALADO, 1987, Vol. II, p. 114. 67 MELLO, 1997, p. 284. 68 Cinta ou cordão de lã áspera, que, por penitência se usava direto sobre a pele. 69 CALADO. Op. Cit. Vol II, p. 18.
37
Além de legitimar o levante militar luso-brasileiro, os milagres legitimavam João
Fernandes Viera como o Governador da liberdade divina, ele é colocado por Calado como o
principal defensor da fé católica dos luso-brasileiros. Vieira é quem organiza e inicia o levante
contra os neerlandeses em honra do nome português da religião Católica:
E posto no terreiro do engenho, com a lama até meia perna, chamou ao seu Sargento-mor Antônio dias Cardoso, que pusesse a gente em ordem de marchar, e ele mesmo começou a despertar aos soldados dizendo: É tempo de acudirmos por a honra da Fé de Cristo nosso Redentor, e por nossas vidas, e honras70.
Da mesma maneira que os católicos recorreram à visão religiosa para o entendimento
das guerras, os neerlandeses acreditavam na intervenção divina como justificativa para a
expansão ultramarina e invasão do nordeste brasileiro. Para Barlaeus os neerlandeses
desejavam muito mais do que invadir o nordeste açucareiro: pretendiam se assenhorar de todo
o território brasileiro. Por isso, em 1623, tentaram tomar São Salvador, a capital do Estado do
Brasil. No entanto, como mencionado anteriormente, essa investida foi frustrada pelos luso-
brasileiros. Essa derrota, para Barlaeus, tinha uma justificativa espiritual, pois ela havia
ocorrido mais por conta dos vícios dos neerlandeses do que pelo valor dos lusos-brasileiros.
Segundo ele, os soldados que chegaram a São Salvador não souberam defender esse
território da mesma maneira que o tomaram. Antes, se entregaram aos prazeres, a lascívia, as
delícias, a ociosidade e a intemperança e, por isso, receberam o castigo de seu desleixo e
deslealdade. Portanto, a derrota foi permitida por Deus em conseqüência do pecado dos
soldados neerlandeses. Mas, ainda existia um otimismo ou uma esperança para Barlaeus, pois,
embora tivessem perdido a Bahia, ainda possuíam Pernambuco, que era o principal território
da América portuguesa.
Não só os católicos se apegavam a Deus em busca da vitória para cada batalha e
acreditavam na intervenção divina para compreender e justificar suas vitórias e derrotas. O
nome de Deus também era invocado para animar os combatentes neerlandeses.
Diferentemente da obra de Calado, Barlaeus não descreve milagres sobrenaturais e nem
mesmo revelações como as descritas pelo Frei. A crença em augúrio e presságios aparece
mais como uma crença de marujos do que como uma garantia de sucesso acreditada por
todos. No entanto, relata as reverências religiosas realizadas antes e após as batalhas. Os
protestantes acreditavam no favor e aprovação divina na disputa pelos territórios brasileiros.
70 Idem p. 42.
38
Segundo Barlaeus, logo na preparação para a primeira batalha, após a sua chegada,
Nassau ordenou realizar-se uma prece pública em favor do auxílio divino.71 Ao efetivar a
tomada da fortaleza africana em São Jorge da Mina, o Conde também ordenou uma reverência
pública de ação de graças em todas as províncias para honrar a Deus, “principal autor da
vitória” e ainda, mandou aos comandantes locais testificar o seu regozijo com três salvas de
artilharia e mosquetaria.72 As preces eram realizadas antes de cada batalha, pois esses eram
momentos em que os fiéis calvinistas pediam a Deus o seu patrocínio e o seu favor, as preces
animavam e entusiasmavam os marinheiros e os soldados para as batalhas.
Também era o Conde de Nassau que estabelecia as datas religiosas e ordenava as
comemorações de ação de graças em que se deveriam realizar proclamações públicas e
solenes das intervenções divinas ocorridas em favor dos neerlandeses. Barlaeus, em sua
narrativa, defende que Nassau tomou armas em favor da religião reformada, da pátria e da
Igreja, da salvação dos homens e do comércio. Foi o Conde um grande administrador firmado
nas bases protestante: “Fizeste fora da Pátria o que antes nela praticaste: tomaste armas em
favor da Religião, da Pátria e da Igreja, da salvação dos homens e dos interesses do comércio,
assim procedendo numa e noutra pare, para a glória das Províncias Unidas.”73
Desta forma, católicos e protestantes guerreavam entre si, disputando o mesmo
território em nome de Deus e em defesa da “verdadeira doutrina”. Ambos buscavam a
intervenção divina em seu favor e clamavam por ela numa luta político-religiosa.
3.3 Os ideais religiosos da guerra
Durante a presença holandesa no nordeste açucareiro, lusos-brasileiros e holandeses
dividiram o mesmo território. A maneira que os lusos-brasileiros viam os holandeses não era
a mesma que estes viam aqueles. Assim, a visão espiritual que possibilitava aos católicos e
protestantes entender vitórias e perdas como interferência divina, também influenciou a
maneira de ver o outro.
Como mencionado anteriormente, os luso-brasileiros que estavam sob o domínio
neerlandês viam-se como estivesse em um cativeiro, pois desde sua chegada os moradores de
Pernambuco ficaram sob o jugo do inimigo. As autoridades da Companhia das Índias
71 BARLAEUS, 1974, p. 36. 72 Idem, p. 55. 73 Idem. p. X Dedicatória.
39
Ocidentais buscaram, ao longo de sua permanência, estabelecer uma convivência com os
lusos-brasileiros, pois precisavam de mão-de-obra nos engenhos e também de seu apoio.
Diante disso, deram passaportes e salvo-condutos para que os refugiados voltassem para suas
casas e, além disso, criavam leis e regras para a convivência.
No governo de Maurício de Nassau aos luso-brasileiros que reconheceram a
autoridade dos neerlandeses, segundo Barlaeus, foram concedidos alguns direitos, como o de
realizar o culto católico, liberdade de consciência religiosa e a preservação de seus templos,
ou seja, suas igrejas não deveriam ser destruídas por neerlandeses. No entanto, também
fizeram parte dos acordos alguns deveres que deveriam ser cumpridos pelos luso-brasileiros.
Aos moradores não seria permitido receber o bispo da Bahia, pois os neerlandeses queriam se
prevenir de levantes por parte de seus inimigos. Também não poderiam substituir os
religiosos falecidos por outros novos. Deveriam viver de acordo com as leis neerlandesas e a
elas deviam obediência.
Porém, segundo Calado, a população católica e os clérigos foram reprimidos, estes
muitas vezes foram levados para a Bahia ou desterrados e, isto mesmo no período de governo
de Nassau. Por isso, Frei Calado descreve os neerlandeses como traidores, que cometiam
abusos, que profanavam as igrejas católicas, quebravam as imagens, reprimiam e
assassinavam os padres, roubavam os moradores, estupravam as esposas, defloravam as
donzelas, que cobravam impostos e muitas vezes deixavam os moradores endividados, de
modo que perdiam suas fazendas.
(...) entravam por as Igrejas, depois de roubarem os ricos e custosos ornamentos, e fazerem em tiras muitos deles, quebravam em pedaços as imagens de Cristo, e da Virgem Maria, e dos outros Santos, e as pisavam com os pés com tanta coragem, e desaforo, como que com isto lhe parecesse que extinguiam a fé Católica Romana. 74
Segundo Davis a prática da destruição de bens religiosos está ligada com o ideal de
iconoclastia calvinista que condenava o culto de imagens ou ídolos. Para os protestantes o
perigo estava no “uso incorreto de objetos materiais”. Por sua vez, os católicos tinham a
percepção de que o perigo estava na “pessoa do herege” 75 como fonte de profanação, por
isso, para eles, ferir e matar eram modos de purificação do corpo social. Isso não significa que
os católicos não destruíssem os locais de culto dos protestantes, nem que estes não matassem
os católicos.
74 Idem, p. 51. 75 DAVIS, 1928, p. 146.
40
O outro, ou seja, o protestante, é visto por Calado como pérfido, traidor, como inimigo
mortal da cristandade, cruel inimigo do povo católico, como rebelde que estava “contra o
inocente sangue católico português”, visto ser “tão grande o ódio que tinham a nossa sagrada
religião Católica Romana”. Eles desejavam, ainda segundo Calado, inclinar e perverter os
seus fiéis a suas falsas seitas. O Frei ainda se refere aos invasores como “tiranos roubadores,
não tementes da justiça divina”. Segundo ele, “sempre os holandeses tratavam os portugueses
de Pernambuco com risonhas palavras e mãos aladroadas, cheias de estratagemas, e enganos,
proveitosos para eles, e danosos para nós” 76. Em sua visão, em suma, a religião protestante
era uma “errônea seita calvinista e luterana”.
Para entender a maneira que Calado via e se referia ao outro é necessário retomar
Russell-Wood77, segundo o autor, as bulas estabeleceram regras básicas preliminares para o
relacionamento e para o comércio dos portugueses com povos não cristãos. Além disso,
utilizaram termos específicos para se referir a estes povos, tais como: sarracenos, infiéis,
pagãos e inimigos da Cristandade, o que possibilitou a fixação uma mentalidade de alteridade,
nova ou já existente, dos portugueses em relação aos não cristãos. Isso pode ser observado na
narrativa de Calado, ou seja, no modo em que se refere aos não cristãos e aos reformados.
Podemos verificar que a alteridade presente nas bulas papais, e os termos utilizados por elas
parar se referir aos não católicos estavam presentes nas palavras e discursos de Calado.
Para Calado a sua religião era a verdadeira. Os reformados haviam se rebelado contra
ela e permaneciam no erro, do qual deveriam ser removidos. Mas, sua principal preocupação
não era corrigir, mas sim extirpar as heresias e, principalmente, eliminar seus portadores: os
hereges. Daí a importância de expulsar os neerlandeses do território brasileiro sob a
justificativa da defesa da fé católica.
Podemos verificar na obra de Calado grande ênfase nos atos violentos e abusivos dos
neerlandeses, mas no momento em que o autor passa a descrever o levante dos luso-
brasileiros passa a mostrar o quanto os católicos também mataram e causaram dano ao
inimigo. Para os católicos, os protestantes mereciam ser castigado em nome da fé Católica
Romana. A violência contra hereges se justificava como o ideal de defesa religiosa.
Por outro lado, Barlaeus não retrata estes abusos em sua obra. Ao contrário, defende
os neerlandeses segundo os seus ideais. Barlaeus afirma que a destruição dos templos e das
casas e conventos para a construção de Mauriciópole não se tratava de profanação, pois todo
76 CALADO, 1987, p. 174. Vol. 01 77 RUSSEL-WOOD. Op. cit, p. 240.
41
lugar era considerado sagrado para adorar a Deus, e o que os neerlandeses pretendiam era
uma mudança de religião.
As casas, os conventos e as igrejas, derribados, não pelo furor da guerra, mas de propósito, lagrimavam com a própria ruína. Não parecia sacrilégio aos nossos essa demolição, como o foram furores dos foceus contra o templo de Delfos, mas uma mudança de religião, admirando-se embora os bárbaros e os papistas de que admitissem tais profanações espíritos cultivados, instruídos nas normas mais elevadas e tão persuadidos do culto divino. Os holandeses, ao contrário, convencidos de que todo o lugar é igualmente sagrado e idôneo para se adorar a Deus, julgavam que não cometiam nenhuma impiedade, mas praticavam um ato de inteligência, desejando dar maior segurança à nova cidade e ao seu culto. Não queriam injuriar a Deus, (para longe tal cousa), mas sim que fosse adorado de modo mais seguro e proveitoso. 78
Ora, Barlaeus admite que muitas atrocidades foram cometidas pelos neerlandeses, mas
defende que isso ocorreu antes da chegada de Maurício de Nassau, pois por falta de um
governador tanto os lusos-brasileiros quanto os neerlandeses abandonaram a virtude e se
apegaram aos prazeres, ao ócio “maculando, de maneira vergonhosíssima, a boa fama de sua
nação com a impiedade, os furtos, o peculato, os homicídios e a libidinagem.”79
Ao chegar a Olinda e Recife, Nassau tomou diversas providências no que se refere à
organização de seu governo. Dividiu todos os moradores em companhias, arrendou os
impostos, restringiu os “desregramentos” acerca dos casamentos, isto é, estabeleceu as leis
matrimonias conforme as vigentes nos Países Baixos, obrigando a respeitar os graus de
consangüinidade e a realização da celebração dos casamentos conforme o protestantismo e
não como os católicos romanos. Quanto aos judeus, deu licença para que guardassem o
sábado, mas também os obrigava a guardar o domingo. Mandou organizar cartilhas para a
evangelização indígena, reprimiu o jogo e mandou reconstruir Olinda. Portanto, Nassau
instituiu regras para os moradores e também para os neerlandeses conforme a doutrina
protestante. Segundo Barlaeus, Nassau baniu os prazeres, o ócio e a libidinagem, reergueu o
que estava destruído e corrigiu o que estava viciado, restabelecendo a reverência da religião
calvinista:
a justiça, a equidade, a moderação quase enterradas no país, foram restituídas às cidades, vilas e aldeias. Restaurou-se a reverência à religião, o respeito ao Conselho, o horror dos julgamentos e o vigor das leis. (...) Maurício com que reuniu só num só corpo nações diversas – holandeses, lusitanos e brasileiros –, lançou para o império que surgia sólidos fundamentos de progresso. 80
78 BARLAEUS, 1974, p. 154. 79 Op. Cit. p. 49. 80 Idem, p. 50.
42
O modo que os protestantes viam o outro, ou seja, os praticantes de outras religiões
partia de seus princípios religiosos. Contudo, a maneira como viam os sacerdotes católicos, os
índios e os judeus era diferenciada. Cada grupo era visto de uma maneira divergente e, por
isso, cada um deveria receber um tratamento específico no que se refere à religião. Nassau e
os predicantes calvinistas decidiram suprimir o culto supersticioso e que cultuava vários
deuses levado a efeito pelos que eram chamados por eles, de “pagãos”. A eles deveriam ser
ministrados os rudimentos da fé protestante e a crença e adoração de um só Deus, pois os
protestantes entendiam que os índios estavam perdidos nas trevas e na ignorância.
O tratamento indicado aos judeus era desgarrá-los da crença e observância da lei
mosaica e da espera da restauração do reino de Jerusalém. Os judeus deveriam ser
persuadidos à fé em Jesus Cristo, aceitando-o como o Messias prometido. Aos clérigos e
católicos, chamados de papistas, convinha lhes mostrar os erros cometidos pela Igreja, de
modo que abolissem o reconhecimento de um só chefe infalível e supremo na terra, ou seja, o
Papa. Como vemos, os praticantes de outras religiões eram vistos pelos neerlandeses
protestantes como ignorantes, no caso dos “pagãos”, ou como “obstinados”, no caso dos
católicos, que viviam no engano e que deveriam ser esclarecidos e, mais do que isto,
persuadidos a uma verdade, à “verdadeira doutrina” por mais difícil que fosse:
É muito tênue a esperança de conversão dos papistas pela sua inveterada opinião de verdade, a qual dificilmente se lhes arrancaria, pois julgam que devem guardar a religião e as cerimônias recebidas dos seus maiores e que seria abominável abandona-las. Temos só um predicante que pode falar-lhes em português, mas nem um só papista, que deseje ouvi-lo. Obstinados pelos conselhos de seus padres, a quem dão lucros, e presos pela superstição, fizeram-se surdos à voz dos nossos. Preferem as velharias retumbantes às novidades, e antes querem uma religião esplendorosa e ornada que uma menos brilhante e vistosa. 81
Como vemos, as obras de Barlaeus e Calado estavam permeadas dos seus ideais
religiosos. Assim como Todorov, ao analisar os escritos de Colombo, verificou que suas
crenças determinavam a maneira como o conquistador viu e interpretou o que estava vendo e,
até mesmo, reproduziu o que Colombo via em si mesmo, podemos entender que as crenças de
Barlaeus e Calado também refletiam em seus discursos, além disso, suas ideologias
influenciaram o modo como viam e descreviam o outro, ou seja, aquele que difere de si em
suas crenças religiosas.
Os protestantes procuraram defender a sua “verdadeira doutrina” diante dos católicos
através da instituição de leis e regras, mas também por meio de atos agressivos, tais como a 81 Idem, p. 137.
43
quebra de imagens e destruição de igrejas e conventos. A agressividade tinham suas raízes na
própria doutrina protestante, criada a partir dos questionamentos de Lutero à Igreja Católica.
Desde os antecedentes da Reforma luterana, Erasmo e Rabelais, entre outros, lutavam contra
os abusos da igreja católica como a venda de sacramentos e o relacionamentos sexuais entre
padres e freiras. No entanto, segundo Delumeau, as críticas de Lutero se referiam mais ao
plano da teologia do que ao moral.
Os abusos mencionados não se referiam aos “desregramentos dos monges”, mas sim a
“comunhão sob uma só espécie, a missa transformada em sacrifício, o celibato eclesiástico, os
votos religiosos, os jejuns e as abstinências impostos aos fiéis” 82. O que os cristãos
desejavam era uma renovação teológica, uma transformação da devoção, que permitisse uma
abertura para a participação dos fiéis e liberdade espiritual. Os dogmas impostos pelo
catolicismo passaram a ser entendidos como barreiras para se achegar a Deus. E era contra
esses dogmas que os protestantes passaram a agir violentamente contra os católicos, que por
outro lado, não aceitaram os argumentos luteranos e calvinistas, mas os entenderam como
heresias.
Esse contexto de disputas religiosas é vivida no nordeste açucareiro, pois quando os
neerlandeses chegaram ao Brasil a Europa estava em meio a Guerra dos Trinta Anos (1618-
1648). Conforme Carneiro, esta guerra foi, em parte, uma guerra de religiões ou a última
seqüência de uma série de guerras religiosas entre protestantes e católicos desde Martin
Lutero83.
No Brasil os protestantes tentaram converter aos católicos a sua doutrina, ainda que
com pouco sucesso. Mas, se era difícil converter um católico ou um judeu ao protestantismo,
medidas para conter a propagação e prática destas religiões foram tomadas. O Supremo
Conselho, em 1637, decidiu, entre outras providências, proibir aos diretores da Paraíba a
realização de procissões e cortejos solenes de “papistas” pelas ruas e estradas, devendo os
fiéis católicos encerrar-se em suas igrejas e em seus claustros. Aos judeus foi permitido
praticar a sua religião e seus ritos, porém, entre portas fechadas, e proibiu-se a realização de
cultos públicos. No entanto, conforme afirma Mello84, apesar das proibições impostas pelos
calvinistas, as procissões continuaram nos lugares onde os luso-brasileiros eram mais
82 DELUMEAU, 1983, p. 135. 83 CARNEIRO, Henrique. “Guerra dos Trinta Anos”. In: MAGNOLI , Demétrio. História das Guerras. 3º Ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 169. 84 MELLO. Op. Cit. Tempo dos Flamengos , 241.
44
numerosos que os protestantes. Com isso, nos dias dos principais santos e funerais, os fiéis
continuaram a levar imagens em procissões.
Segundo Davis85 a verdadeira doutrina defendida por católicos ou protestantes poderia
ser defendida em sermões ou discursos. Calado defende a fé católica através de seus discursos
e da insistência, pontuada por ele, de continuar a propagar a sua religião, dizer a missa, pregar
e administrar os sacramentos aos moradores de Pernambuco. Permanecer nesta região teria
sido uma opção pessoal para defender sua fé e garantir que os fiéis católicos não se
desviassem da “verdadeira doutrina”.
Logo que Maurício de Nassau partiu em retorno para os Países Baixos, em maio de
1644, os predicantes calvinistas e luteranos se reuniram para discutir questões concernentes a
organização da religião protestante e sobre a expulsão dos sacerdotes católicos de
Pernambuco. A decisão da expulsão só não se efetivou devido à interferência de Calado,
relatada detalhadamente em sua obra86, que advertiu que tal atitude faria com que o povo se
levantasse e, até mesmo, tomasse armas contra os neerlandeses.
A defesa da “verdadeira doutrina” legitimava a guerra e a violência em favor da
refutação da falsa pregada pelos hereges. Frei Calado chegou, até mesmo, a alimentar os
soldados que lutavam contra os invasores na guerra da resistência, e mais tarde, no início da
guerra de restauração, pregou um sermão exortando aos moradores a pegarem em armas
contra os neerlandeses em defesa da fé católica romana:
exortou a todos que se preparassem para tratar da defensão da Fé Católica, e de livrarem do tirano cativeiro a que estavam, e que tomassem armas, lembrando-se que eram Portugueses, filhos, e netos daqueles grandes Heróis, que nas mais remotas partes do mundo, tantas proezas, e façanhas, haviam obrado; (...) enfim tais coisa disse o Padre Frei Manuel, que quando se acabou a missa todos da Igreja, uns com as lágrimas nos olhos causadas de alegria, e os mais com firme propósito de se declararem contra o inimigo, e venderam suas vidas pelo rigor das armas; e com este intento se recolheram para suas casas 87.
Frei Calado foi um participante ativo das guerras do açúcar, isso pode ser observado
quando Maurício de Nassau chama o Frei para uma conversa, mas ele teme apresentar diante
do conde por ter se colocado contra os holandeses:
Cresceu-lhe ao Príncipe a cobiça de ver ao Padre, e falar com ele, que não somente lhes deu licença para o mandarem chamar, mas também ele mesmo lhe escreveu que viesse com toda a segurança, pois
85 DAVIS, 1990, p. 133. 86 Idem, p. 196 a 198. Vol. 01. 87 CALADO. Op. Cit. Vol 01, p. 253 a 254.
45
era pedido dos moradores. Mandaram os moradores aviso ao Padre Frei Manuel do Salvador, por um próprio; porém ele em lendo as cartas, trouxe à memória com havia trazido soldados contra os Holandeses, e lhes tinha feito muitos males, e que o ódio que lhe tinham se poderia renovar com qualquer ocasiãozinha, por leve que fosse, e tomarem vingança dele, e começou a temer, e a recear, e determinou de mudar sítio, e rancho para onde não fosse achado (...).
Por isso, a obra de Calado e Barlaeus têm muitas diferenças quanto à escrita. Barlaeus
não viveu a guerra como Calado, não a presenciou, na verdade, o neerlandês nem mesmo
conheceu o Brasil, muito menos Pernambuco, como já discutido. Ao escrever baseado em
documentos, Barlaeus já sabia de antemão os episódios da guerra, e como havia sido o
governo de Nassau e como havia ficado o nordeste açucareiro sem este governante. Frei
Calado, ao contrário, havia participado da guerra e escrevia sua obra como um diário.
Uma particularidade da escrita de Calado é que em toda a sua obra ele se coloca em
terceira pessoa. Todas as vezes que o Frei realiza ou participa de uma ação é citado entre os
demais indivíduos pelo nome de Padre Frei Manuel Calado do Salvador, ou simplesmente,
Padre Frei Manuel. Possivelmente tenha optado por este caminho por não querer ostentar a
sua pessoa. Outra hipótese é que este autor queira mostrar-se como participante ativo das
guerras.
A defesa da “verdadeira” religião possuía muitos significados. Ao mesmo tempo em
que era a garantia da liberdade religiosa, poderia livrar definitivamente a comunidade das
heresias difundidas pelos calvinistas e ainda purificar o corpo social. Assim como explica
Davis, “a violência praticada pelas multidões católicas tinham a característica de um rito de
purificação (...)”88. Por isso, a luta contra o inimigo significava para os católicos não somente
extirpar as heresias que estavam sendo disseminadas entre os seus, mas também os
disseminadores delas, os heréticos.
A defesa da “verdadeira doutrina” aparece na obra de Barlaeus nas atitudes tomadas
por Nassau e pelo Conselho dos Dezenove a respeito das regras estipuladas acerca da religião
protestante, católica e judaica e, ainda, sobre as manifestações religiosas pagãs. Barlaeus
procura transmitir um zelo com a transcrição dessas leis. As concessões, proibições e
restrições aparecem como formas de proteção da fé protestante. O autor procura também
demonstrar o esforço dos predicantes calvinistas de estender a sua doutrina aos católicos e aos
pagãos. Sobretudo, Barlaeus apresenta Nassau como pleno seguidor do protestantismo que
tudo fez baseado e em nome da religião. Desta forma, a guerra do açúcar foi acima de tudo
uma guerra religiosa.
88 DAVIS, 1990, p. 135.
46
CONCLUSÃO
A guerra contra os holandeses no nordeste brasileiro se dividiu em dois momentos:
guerra de resistência (1630-1645) e guerra de restauração (1645-1654). Entre elas há um outro
momento de relativa paz: tratam dos anos que englobam o governo de Maurício de Nassau
(1637-1644). A guerra de restauração se inicia com a recuperação da coroa portuguesa por D.
João IV, que esta estava sob domínio de Castela. O ataque dos neerlandeses ao Brasil teve
suas origens na disputa política, econômica e religiosa entre os Países Baixos e Castela. Os
neerlandeses pretendiam livrar-se das pressões causadas por Castela e quebrar com o
monopólio do comércio do açúcar pertencente aos lusos-castelhanos.
Com os neerlandeses essas disputas migraram da Europa para o Brasil e a guerra pelo
açúcar logo se transformou também em uma guerra religiosa. Isto pode ser observado nas
obras de Frei Calado e Barlaeus que revelam que as guerras foram entendidas e justificadas
através da interpretação divina dos acontecimentos.
Ambos os autores se preocuparam em atender as expectativas e interesses de seus
patronos. Defenderam a religião que professavam e colocaram seus patronos como legítimos
defensores da religião, católica no caso de Calado, e protestante no caso de Barlaeus. Desta
forma também transmitiram uma imagem heróica de seus patronos. Segundo Calado, João
Fernandes Viera era o Governador da liberdade divina. Teria sido ele quem organizou o
levante restaurador e lutou até o momento da capitulação holandesa em nome da pátria
portuguesa e da fé Católica Romana. Conforme o discurso de Barlaeus, Maurício de Nassau
reorganizou o Brasil holandês aos moldes do protestantismo e tudo fez em nome de sua pátria
e da religião calvinista.
Neste ponto, ambas as obras se assemelham, embora Barlaeus não tenha vivido e
presenciado a guerra como Calado, que foi testemunha de vista e ativa das guerras. Calado
contribuiu para a vitória luso-brasileira de várias formas, por exemplo, alimentando soldados
e pregando sermãos que estimulavam os moradores a pegar em armas contra o inimigo. Por
outro lado, Barlaeus escreveu sua obra baseado na documentação fornecida por Nassau, e nem
mesmo conheceu Pernambuco.
Mas, de que modo esses autores legitimaram a guerra e os feitos de seus patronos?
Através da religião. Calado justifica o levante contra os neerlandeses, iniciado por João
Fernandes Vieira, através das revelações e milagres sobrenaturais. Até mesmo as perdas, eram
justificadas pela intervenção divina. Pernambuco teria sido tomada pelos neerlandeses devido
47
a vara da justiça divina que estava corrigindo os pecados dos moradores da região. Barlaeus
também demonstrou acreditar na intervenção divina, pois justificou que a perda da Bahia, em
1625, teria sido permitida por Deus por causa dos pecados cometidos pelos soldados
neerlandeses.
A guerra do açúcar também era a guerra feita em nome de Deus e da defesa
“verdadeira doutrina”. Católicos desejavam lutar para expulsar os “pérfidos hereges”. Melhor
do que tentar exterminar as heresias era acabar com o mal pela raiz, expulsando os hereges.
Por outro lado, aos calvinistas, diante da dificuldade de converter os católicos “obstinados” e
os indígenas “pagãos” restava, então, restringir ao máximo suas práticas religiosas. Como
vemos, católicos e calvinistas viam uns aos outros a partir de suas confissões religiosas. Era
esses ideais que determinavam como viam e agiam com o outro.
No entanto, os discursos diferem no que se refere à crença e relato de revelações e
milagres que fazia parte mais da crença católica do que da calvinista. Frei Calado, em várias
páginas descreve a aparição de santos tanto em visões como em sonhos. Os santos católicos
contribuíram para a vitória luso-brasileira milagrosamente fornecendo armas e livrando os
soldados da morte, principalmente, João Fernandes Viera, seu objeto de maiores atenções.
Isso porque estavam a favor da guerra devido aos insultos que as imagens e as igrejas haviam
sofrido pelos neerlandeses. Por sua vez, a fé é explicitada por Barlaeus nos relatos em que
Nassau pede que preces sejam ditas antes das guerras para animar os combatentes, e depois
delas, em forma de agradecimento pelas vitórias. Os patronos, como dito, são os principais
responsáveis pela defesa das suas “verdadeiras doutrinas”.
Desta forma, a guerra do açúcar que se iniciou com as restrições impostas por Felipe II
aos Países Baixos, e que veio repercutir na invasão do nordeste brasileiro passou também a
ser uma guerra religiosa. As disputas iniciadas em torno do monopólio comercial do açúcar
fizeram com que muitos senhores de engenhos perdessem seu poder e prestígio e, diante
disso, organizasse o levante restaurador. No entanto, esta não era apenas uma disputa
comercial ou política, pois conforme os discursos de Barlaeus e Calado, tudo era feito em
nome da pátria, de Deus e da religião.
48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, A. F. e MELLO, A. R. O Brasil no período dos Filipes (1580-1640). In: HOLANDA. Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil; Tradução e anotações de Cláudio Brandão. Prefácio e notas de Mário G. Ferri. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. CALADO, Manuel. O valeroso lucideno e triunfo da liberdade. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987. CARNEIRO, Henrique. “Guerra dos Trinta Anos”. In: MAGNOLI , Demétrio. História das Guerras. 3º Ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 169. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 5º Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. CHAUDHURI, Kirti. O Estabelecimento no Oriente. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa (Vol. II). Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Vol. 01. Editorial Estampa: Lisboa, 1983. Tradução de Manuel Ruas. FAGE, J. D. História da África. Trad. Aida Freudenthal. Lisboa: Edições 70, 1997, capítulo 10. MAGALHÃES, Joaquim Romero. Os limites da expansão asiática. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa. (Vol. II) Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. ______. A construção do espaço brasileiro. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa (Vol. II). Navarra: Temas e Debates e Autores, 1998. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. 2ª Ed. ______. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. 1º Ed. MELLO, José Antonio Gonsalves de. Frei Manuel Calado do Salvador. Universidade do Recife: 1954.
49
______, J. A Gonsalves de. O domínio holandês na Bahia e no Nordeste. In: HOLANDA. Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. ______. Gonçalves de. João Fernandes Vieira: mestre de campo do terço de infantaria de Pernambuco. Recife: Universidade do Recife, 1956. MELLO, José Antonio Gonsalves. Tempo dos Flamengos: Influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. 2º Ed. Recife (PE): Secretaria de Educaçăo e Cultura, Dep. de Cultura : Banco do Nordeste do Brasil, 1979. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fronteiras de integração. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti (Dirs.). História da expansão portuguesa. Lisboa: Temas e Debates, 1998. Vol 01. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. 1º Ed. Brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1983.