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(Trabalho publicado em: Seminário Arte e Cidade, Memória e Contemporaneidade, 2, de 03 a 07 de novembro de 2008, Salvador: EDUFBA, 2008. 94p.)
Gordon Matta-Clark: arquitetura e apropriações Daniela Mendes Cidade Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes – UFRGS, mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura UFRGS e Doutoranda em Teoria, História e Crítica da Arquitetura – PROPAR – UFRGS. Professora e pesquisadora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O escritor Amos Oz, no livro E a história começa, toma como questão a relação de um escritor
com uma página em branco, com o vazio da página. Ele aponta o começo literário como uma
espécie de contrato entre o escritor e o leitor, mostrando as sutilezas que se estabelecem nesse
contrato, as estratégias e a forma de envolvimento gradual com a narrativa. Nesse trabalho de
pensar sobre os começos, Amos Oz (2007) compara a relação do escritor de ficção com o
pesquisador. O autor conta que seu pai escrevia livros acadêmicos, e invejava a liberdade do
romancista, o desprendimento da obrigação opressora de checar fontes, provas e citações, verificar
notas de rodapé e tantas outras tarefas do trabalho de pesquisa. Por outro lado, Oz filho também
invejava o pai, cercado por livros e referências e todo o suporte bibliográfico que ocupava sua mesa
de trabalho e lhe fornecia apoio, protegendo-o da angustia da página em branco. Uso esta
metáfora para falar das duas áreas de trabalho para as quais me proponho trabalhar nesse projeto, e
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suas intersecções, de um lado a área de Artes Plásticas, de outro a da Arquitetura. Num projeto de
reorganizar parte de um processo artístico como o de Gordon Matta-Clark, ao qual me proponho,
é preciso reconstituir etapas, mapear os percursos, desdobramentos, e falar da obra em processo, de
sua poiética, do laboratório, do trabalho em atelier. E implica em pensar o texto como um
processo, como instauração, um esforço para conectar fragmentos, fazendo um paralelo com o
trabalho de collage. E ao mesmo tempo preciso trabalhar com a conjugação do fenômeno
arquitetônico, a construção de espaços, de lugares, e sua destruição, sua fragmentação.
Em relação à fotografia, ela é empregada nesse trabalho tanto como meio conceitual da arte de
Matta-Clark como elemento “sacrificial”. Podemos dizer que ela esteve sempre ligada à idéia da
destruição, como uma celebração, e que ao mesmo tempo traz implícita uma vontade de
reconstrução, de absorção de qualidades daquilo que foi destruído. Ora, sabemos que a idéia da
apropriação (de um corpo, de um lugar) se insere na questão da antropofagia e estabelece o
primeiro questionamento de meu trabalho, qual seja: a questão da assimilação e da transformação
das fontes. A idéia da digestão que ocorre no interior de um ventre escuro (ventre de uma casa,
ventre de um corpo) remete à câmara obscura. E o caráter simbólico da luz estará sempre presente
nesse trabalho. Operações que parecem mais ligadas à atuação de um cirurgião, como as que
ocorrem nos trabalhos arquitetônicos de Matta-Clark, são ligadas às operações de
desmembramento e de cortes do corpo em pedaços, que ocorriam nos rituais de antropofagia dos
indígenas brasileiros.
A metáfora da devoração é muito presente em diversos períodos da história do Brasil. Os índios
canibais da América do Sul, antes de comerem os inimigos para adquirirem as qualidades, o
cortavam em pedaços, como habilidosos cirurgiões, reservando as partes mais nobres para os
membros mais importantes da tribo. No século XVII, o padre Antônio Vieira já recorria a esta
metáfora em seu Sermão do Espírito Santo (Herkenhorff, 1998). Ao falar aos missionários que
partiam para a Amazônia, o padre dizia que o melhor modo de converter feras em homens é
matando-as e comendo-as, e que não há coisa mais parecida do que doutrinar e ensinar, que o
matar e comer. Na perspectiva de Vieira, os missionários também seriam canibais. Buscavam
resgatar os índios da “barbárie” extrema - o canibalismo - preparando-os para o colonialismo.
Convertendo-os ao cristianismo, em troca ofereciam a Eucaristia, como consumo do corpo de
Cristo transubstanciado. O processo colonial teria sido então uma guerra de canibalismos.
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Outra reflexão importante a estabelecer neste trabalho diz respeito a conceituação de lugar. Tanto
a filosofia, como a arquitetura, tratam da precisão do espaço. O filósofo e o arquiteto trabalham o
espaço de um ponto de vista sensível. Os conceitos filosóficos falam de lugar de extensão, de
posição, de distancio ou de vazio. Cada um dos grandes filósofos tem um conceito de espaço. De
Aristóteles a Heidegger o lugar é tratado não como um pedaço qualquer do espaço, um lugar
definido, mas ao contrário, algo determinado por uma coisa, uma paisagem, um templo que
precede o espaço e o instaura. O lugar instaura um espaço antes que o espaço seja fragmentado e
dividido em lugares. Lugar é então orientado por todas as dimensões antropológicas, quer dizer,
alto e baixo, na frente e atrás, direita e esquerda. O lugar seria assim um espaço poético no sentido
de que poeticamente o homem habita sobre a terra. O lugar é construído não somente visando o
homem, mas a partir da habitação do homem. O lugar é um espaço habitado ou habitável. É a
habitação que o define.
O tema a ser desenvolvido tem como ponto de partida o conhecimento da arquitetura a partir dos
conceitos de apropriação e de fragmentação, que neste ensaio engloba ainda a fotografia como
procedimento de acumular, reunir, colecionar vestígios e fragmentos, idéia de agrupamento e
como metáfora de método construtivo daquilo que se encontra separado ou fragmentado.
Portanto, o trabalho consiste na análise das transformações do espaço da cidade – arquitetura –
tendo como meio o processo de criação em artes visuais, aqui através do trabalho de Gordon
Matta-Clark, e a fotografia.
O conceito de tensão também perpassa essa pesquisa, revelando os conflitos entre material e
forma. Tensão presente em um estado precário de organização, tanto material como social.
Tensão que religa ao conceito de precariedade, tanto de materiais como aquele relativo à fotografia
(meio que utilizo como registro desses movimentos de transformação) como imagem precária,
pobre, quando comparada com outras formas de linguagem plástica como o desenho e a pintura,
por exemplo.
Gordon Matta- Clark
Na vida e na obra de Gordon Matta-Clark, além da relação formal com o corte, com a autópsia de
um corpo (a casa), esteve presente uma relação conturbada com seu pai, o pintor surrealista
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Roberto Matta. Segundo Pámela M. Lee (1999), esta seria a principal metáfora da influência
paterna: Roberto Matta era casado com a americana Anne Clark, a quem abandonou em 1948
meses antes do nascimento de gêmeos, sendo que um deles era Gordon Matta-Clark. Roberto
Matta mudou-se para a Europa, abandonando a família na América. A relação de pai e filho
sempre foi muito complicada. A questão da ausência paterna aparece como uma espécie de
complexo de Édipo. Freud propõe uma versão lógica para a metáfora da ausência: o assassinato do
pai. Se um homem sacrifica a existência para expiar uma falta (a ausência do pai) subentende que
esta falta seja um crime. Vida por vida: tal é o princípio de justiça retribuitiva. Mas, no mesmo
instante em que sacrifica a existência, o filho por sua vez torna-se deus. Toma o lugar do pai, a
quem expiava a morte. Para Freud, a comunhão cristã é outro assassinato, ainda que simbólico: um
novo parricídio.
É importante levar em consideração aqui as identidades existentes na percepção espacial de
projetos do filho Matta-Clark. Eles trazem reflexos claros deste manifesto “Matemática Sensível -
a Arquitetura do Tempo”. Judith Russi Kirshner (1999) em Non-Uments aponta paralelos entre
as investigações arquitetônicas de pai e filho. Como seu pai o fez bem antes dele, Matta-Clark
optou pelo estudo da arquitetura antes de se tornar um artista, e ambos dedicaram especial
atenção ao programa modernista da arquitetura, especialmente em estabelecer uma crítica a uma
de suas principais figuras: Le Corbusier. Em 1973, Matta-Clark trabalhou em uma espécie de
inversão, de negativo, de uma das mais conhecidas teses de Le Corbusier, como se repetisse as
críticas feitas por seu pai. Em uma carta ao grupo “The Mob” (The Anarchiecture Group) ele
escreveu: “Uma máquina de não-habitar”, ao lado de um extrato tirado do livro de Le Corbusier
Por Uma Arquitetura mostrando a máquina virgem que ele queria que todos habitassem.
Apesar de a representação e a linguagem de Matta seja pictórica, e a de Matta-Clark seja mais
arquitetônica, tridimensional e escultórica, esta última parece ser mais ligada a questões temporais
e ao fenômeno do aparecimento/desaparecimento. Seus projetos estão sempre ligados a fatores
como a eminente desaparição, à demolição. Uma ausência anunciada que se acompanha de um
desejo de substituição, da mesma ordem da ausência de forças que levaria ao gesto da antropofagia
simbólica como sendo o melhor meio de absorver as qualidades e as virtudes daquele que se decide
apropriar-se (o pai, o mestre). Uma ausência próxima ao sentimento de exílio, sentimento, aliás,
vivido pelo próprio Matta, quando se estabeleceu nos Estados Unidos e posteriormente na França
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ao deixar a América Latina, como muitos outros intelectuais argentinos, brasileiros, chilenos.
Sentimento compartilhado pelo filho. É esse mesmo sentimento de exílio e de perda, que provoca
um retorno à uma origem, que também podemos identificar na obra do escritor brasileiro Oswald
de Andrade. Foi na Europa que ele “exumou” a idéia da antropofagia dos velhos índios tupis-
guaranis, movido pelo desejo de reconstruir uma cultura nacional até então ausente no Brasil.
Matta-Clark ingressou na escola de arquitetura da Cornell University em 1962. Em 1963, ele
viajou a Paris, para um período de estudos de literatura na Sorbonne, retornando á universidade
americana após um ano. Ele deixou a Universidade em 1968, e em 1969, ainda em Cornell,
conheceu Robert Smithson, com quem passou a ter uma relação de profundas trocas intelectuais e
artísticas. Um pouco antes, segundo um artigo publicado na revista the american city, vol. 83, n°7,
julho de 1968, ele teria participado de um projeto de renovação urbana no bairro de Binghamton,
em Nova York. Segundo os seus bibliógrafos, o aproveitamento acadêmico de Matta-Clark foi
sofrível durante o período de estudos: ele foi reprovado em matérias básicas como Cálculo, e
Princípios Estruturais, tendo repetido estas cadeiras por mais de quatro vezes. Ainda segundo seus
biógrafos, ele teria se ressentido da falta de aplicação durante os anos da faculdade, quando em seus
futuros projetos artísticos, ele tinha que lidar com problemas de calculo estrutural em
intervenções escultórico-arquitetônicas.
Com um certo distanciamento crítico, podemos ver que a tendência da escola de Cornell não
pode ser considerada como um fenômeno isolado. Nos anos 70, Colin Rowe relacionava Lê
Corbusier com uma filosofia urbana que viria a ser conhecida como “contextualista”. Largamente
divulgada, a filosofia do contextualismo relativo ao planejamento urbano era concebida como
“anti-determinística” e “anti-utópica”, conforme as formulações estabelecidas por Karl Popper
para a “Open Society - que levava em conta a fragmentação e a contingência histórica. O
contextualismo tentava conciliar duas imagens da cidade: a cidade tradicional, com seus espaços
abertos e sólidas aglomerações, e as idéias de Le Corbusier de “Cidade no Parque” com seus
edifícios isolados plantados livremente em espaços abertos. Tudo isso visando a relação
arquitetônica à cidade através da noção de tipo e contexto, ou o análogo modelo da Gestalt de
relação, arquitetônica figura/fundo apresentando a capacidade de “colocação em lugar” ou
“distribuição” (composição) em um determinado espaço. Em contraste com o que era visto como
o “sem lugar” de muita arquitetura moderna e imperativos universalizantes da vanguarda, o
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contextualismo reconhecia a mutuamente constitutiva relação entre construção e contexto, sendo
enormemente cética quanto às soluções arquitetônicas totalizantes no urbanismo. Sua mais
famosa metáfora, antes publicada no livro de Collin Rowe e Fred Koetter – “Collage City”, de
1978, que era a da colagem. Agora a cidade era menos a “tabua rasa” esperando pelo grande
projeto do arquiteto/demiurgo, do que uma espécie de bricolagem urbana, que leva em conta a
história do lugar como se fosse uma rede de tecido arquitetônico.
Como isso entra na formação, ou na anti-formação de Matta-Clark como estudante de
arquitetura? As notas do artista revelam que ele fez uma disciplina com Rowe. Pode-se imaginar
que as noções de Matta-Clark de “ambigüidade de um lugar”, podem ter influências do
contextualismo de Rowe, nos quais a relação gestaltica de figura/fundo aparece como meio de
solução arquitetônica. Outra hipótese tenta explicar a irritação de Matta Clark com o
“formalismo da superfície”. “As coisas que estudamos sempre envolvem tão restritamente um
formalismo de superfícies que eu nunca tive o senso de ambigüidade de uma estrutura, a
ambigüidade de um lugar....a qualidade que estou interessado em produzir no meu trabalho”.
Talvez o artista estivesse reagindo aos conceitos formalistas adotados por muitos de seus
professores, principalmente às questões ligadas à planaridade, à leveza, à transparência em
arquitetura, contra as idéias e soluções mais socializantes da arquitetura, defendidas por outros
professores. Ultimamente, é mais difícil saber qual era especificamente a reação de Matta-Clark
sobre esse debate, Entretanto, seus últimos trabalhos demonstram que ele se mostrava mais
inclinado a determinadas idéias do que os trabalhos ligados á questões do site-specific dos anos 60.
Entretanto, esses dois modelos devem ser vistos através de diversos pontos de vista. Um deles é de
que a escola de arquitetura de Cornell serviu de base para muitos artistas que ganhariam
significado nas décadas seguintes. Lá, sob a orientação de J.B.Van Cleff e Will Insley, que
lecionavam uma disciplina chamada coincidentemente de Escultura na Arquitetura, um grupo de
estudantes começou a se destacar. É evidente que a importante exposição Earth Art show,
acontecida em Cornell em fevereiro de 1969, contribuiu muito para isso. O evento foi
considerado por muitos historiadores como uma espécie de berço de movimentos como a land art
e um início do pensamento sobre a questão do site-specific e as práticas conceitualistas em geral.
Sob o convite do diretor do museu Andrew Dickson White Museum, Thomas Leavitt, o crítico
de arte Willoughby Sharp, da revista Avalanche, de Nova York escolheu o campus de Cornell
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como lugar e convidou artistas como Robert Morris, Michael Heizer, Dennis Oppenheim, Hans
Haake e Robert Smithson para construírem trabalhos in situ.
O convite curatorial para a exposição incluía uma sugestão e um encorajamento para que os
artistas tirassem vantagem da riqueza e da qualidade dos materiais naturais brutos da região de
Ithaca, que são abundantes no leste dos Estados Unidos. Uma especial atenção deveria ser dada à
colocação do material e do trabalho, ou nos limites do Museu Andrew White Dickson, ou no
Campus de Cornell. O convite de Sharp continha ainda um mapa detalhado da região com a
topografia de Ithaca, e a solicitação de que o trabalho dialogasse com a paisagem.
Em todos esses aspectos, como podemos ver, a exposição era muito ligada á conceitos ligados ao
conceito de site specific que apareceria a seguir. A curadoria falava especificamente que o trabalho
deveria dialogar com o conceito de apropriação e de ocupação de um território específico - com
todas as suas contingências topográficas e as condições do meio ambiente.
Robert Smithson publicou muitos textos críticos sobre o processo de diferentes artistas e sobre o
seu próprio trabalho, em reflexões que abrangem a entropia, os mapas e os paradoxos (as
oposições, como a relação negativo/positivo). Sua atividade artística é toda marcada por essas
oposições entre natureza/cultura, espaço/tempo, monumentos/antimonumentos, lugar/não
lugar, deslocamentos/limites. Utilizando-se dos mais diferentes meios e categorias, sem distinção
ou hierarquias entre a produção de objetos individuais, earthworks, nonsites, desenhos, mapas e
fotografias, filme e escrita.
Seus nonsites, nos quais se estabelece uma dialética entre o trabalho externo e o interno às galerias e
museus, marcam o envolvimento de Smithson com a land art, da qual se torna um dos principais
artistas e teóricos. Seu trabalho mais conhecido, Spiral Jetty (1970) tem como referência a arte
pré-colombiana. Em seus escritos, organizados por Jack Flam (1992), Smithson fala em conceitos
como des-arquitetura (um negativo da arquitetura, um sentimento que acompanha o artista antes
que ele defina seus limites fora do atelier), fragmentação e tempo. O próprio conceito de entropia
tem a ver com o tempo como duração, onde a dimensão temporal é entendida como irreversível,
correspondente a uma progressiva fragmentação da forma.
As formulações e as idéias de Smithson sobre a entropia aparecem em muitos dos trabalhos iniciais
de Matta-Clark, como a Foto-fry, um pequeno projeto fotográfico de 1969, além de outros
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projetos que envolvem o cozimento de materiais. Trata-se de uma relação com a alquimia, e com a
transmutação de metais em ouro. Curiosamente, Matta-Clark usa fragmentos de emulsões de
fotografias pollaroid cozidas - no caso específico de Foto-fry uma foto de uma árvore de natal, que
se transformaria em folhas de ouro. Interessante aqui fazer um paralelo com o conceito de
transsubstanciação, relacionado com o cerimonial católico onde o momento de renovação dos fiéis
pelo sacramento da Eucaristia compreende o recebimento do corpo e do sangue de Cristo, pela
prática simbólica da comunhão.
Entropia, fragmentação e antropofagia
Em Gordon Matta-Clark, o corpo é fragmentado, rompido em sua unidade. E é aqui que eu entro
no tema da Autópsia, outra palavra importante. Porque a fotografia é heterogênea por natureza,
não existe uma teoria que unifique a fotografia categoricamente. Assim como Matta-Clark faz
uma endoscopia do ambiente urbano, ele para mim não só fragmenta, como ele detalha. A
fotografia detalha o real, transbordando-o. É a velha idéia de Blow-up, de Antonioni. A fotografia
é paratáxica, e falsamente sintáxica. A objetiva-faca amplia extraordinariamente o poder separador
do olhar. Mas vejamos a definição de Aristóteles sobre Detalhe e Fragmento, segundo Anne
Cauquelin (1994, p. 103-4): “há toda uma diferença entre detalhe e fragmento. O detalhe é
registro de dados, cuidado de separar tal parte, e de conferi-la uma importância arbitrária-
fechamento do olhar sobre um ponto da totalidade. Aparecimento, como ao microscópio, de
partículas que uma visão rápida não pode diferenciar. O detalhe é curioso, interessante, sugestivo,
ele fala ou nós o fazemos falar. Ele é a intimidade, aquela que provoca em nós a inquietante
estranheza. O detalhe nega a totalidade. É a crítica do global. Ele é o isolamento, ele recusa
qualquer dependência com a significação geral. Separado, isolado, disjunto, o cintilamento do
detalhe ilumina de ilusões singulares o mundo da arte. Mas ele pode ser melancólico. Se tudo é
detalhe, tudo é interessante, o que gera um sentimento de banalidade. Já o fragmento, ao
contrário, não existe fora do contexto que ele repete. Cada fragmento é uma totalidade, porque ele
é ligado do interior por uma organização íntima de suas partes. Contrariamente à Plínio, o Velho,
Aristóteles não descreve os detalhes, ele constrói fragmentos em sua relação com o todo. Porque o
fragmento é isolado, fechado, mas ele não é escolhido por ele mesmo, mas somente por usa relação
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com uma totalidade complexa. Escolhido por algo que o faz parecer outro que não ele, o
fragmento sugere o todo,” ao qual ele se liga por analogia.
A arquitetura entrópica e a fotografia
Sobre a relação da fotografia com a entropia, Smithson declara: “a fotografia é o resultado de uma
concentração de energia solar, e o aparelho fotográfico é uma máquina entrópica na medida em
que registra a perda gradual da luz”.(Flam, 1992)
É interessante que as leis da entropia já eram relacionadas com as questões de arquitetura e lugar
por Smithson desde o final dos anos 60. Em uma entrevista a Allison Skye (Flam, 1992, p. 191),
com o título de “Entropy Made Visible” (entropia tornada visível), ele se refere à uma espécie de
“arquitetura entrópica”, ilustrada com várias fotografias de edificações à beira de um colapso.
Entretanto, alguns anos mais tarde, Smithson aplicaria as regras da entropia em seus trabalhos
com monumentos desenvolvendo a idéia de que o monumento - um objeto que fosse
propositadamente feito para marcar uma figura histórica ou um evento em um determinado lugar,
tivesse uma relação com o próprio lugar de instalação.
Já os cortes de Matta-Clark, embora possam ser vistos também como monumentos à entropia
(tinham a ver com o lugar, com a sua eminente condição de destruição, de fragmentação, de
desaparição, de transformação), não eram exatamente trabalhos de earth art. A noção de ruína,
presente nos trabalhos de Matta-Clark mais especificamente, aparece em um diálogo mais
evidente com Smithson em um trabalho intitulado Partially Burried Woodsheed, de Smithson, de
1970. O trabalho consistiu em uma casa de madeira abandonada, que foi instalada pelo artista no
campus da Ken State University, em 1970. Coberta por uma montanha de restos, a qual provocou
a quebra do pilar central da estrutura da casa, a instalação mostrava o processo de deteriorização
até se transformar em ruínas, o que ressalta a capacidade de “desaquiteturização”, uma espécie de
negativo do processo de arquitetura, conceito presente no trabalho de ambos os artistas.
Da produção inicial de Matta-Clark dos objetos surgidos das reações “entrópicas” até os seus
cortes, a influência de Smithson ao jovem artista parece evidente. Entretanto, através de ambas as
poéticas, o que parece mais evidente no processo é o conceito de entropia como uma espécie de
lição deixada pelo convívio entre ambos.
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A fotografia é então um instrumento decisivo tanto no dispositivo de Smithson como de Matta-
Clark, porque ela propicia a instrumentalização de uma prática, como se fosse uma espécie de
construção de um universo entrópico. Ao registrar as ações de ambos os artistas, a fotografia
participa tanto como documento e como representação. Smithson propõe então uma nova
concepção da imagem como documento, transformando-a em representação de suas práticas
artísticas.
Em busca da alma das construções arquitetônicas
Para Les Levine (1985), a psicologia do trabalho de Gordon Matta Clark está situada no gesto de
adotar o abandonado. Ele trabalhava em velhos edifícios, em comunidades em estado de rejeição.
Ele gostaria em última instância de tomar conta de uma casa que tivesse perdido a sua alma.
O que significa ter a posse? De que maneira uma propriedade tem uma alma? E quais seriam as
convergências teóricas entre um artista, um objeto de arte e uma propriedade, aqui entendida
como um imóvel, uma construção arquitetônica? Em 1971, Matta-Clark começou a desenvolver
uma série de trabalhos que tratam da relação entre arte e propriedade. Usando um processo que
envolvia a dissecação, o corte, a autópsia, ele cortava pequenos fragmentos de edificações usando
serras. Sob o nome de “fragmentos de construções” estas peças, esses pedaços, esses fragmentos de
arquitetura traziam uma lição de como a arquitetura e, por associação, a propriedade, assumia uma
função construtiva na recepção da arte, e vice-versa. Um dos primeiros trabalhos desta série é
Food, de 1971. Consistindo em uma intersecção cega de duas vigas de madeira, era uma rústica
peça, um verdadeiro exemplo de um acidente arquitetônico. Mostrando grampos, marcas de lápis
e pregos sobre sua superfície, parecia uma assemblage modernista. Entretanto, o interesse da peça
está fora dela: a função arquitetônica que o fragmento teve na sua vida anterior, no interior de um
conjunto. Food, como outros fragmentos de construção, falava mais daquilo que ele não é mais
agora, ou seja, de sua função no todo da construção. Trata-se de um signo de ausência, um
negativo de algo. Assim como através da forma intermediária, na imagem invertida, fotografia e
gravura abrem o seu interior assim como toda a lógica de seu processo.
Através das matrizes originais e dos negativos também apresenta-se a mesma dialética da inversão
na construção da imagem. A tal ponto este tema é negligenciado que certos textos parecem
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postular uma epifania, uma adoração direta à prova “positiva”, talvez por sua evidente legibilidade
aos olhos do público, e por ela acabar sendo a única difundida, apreciada, comercializada,
comentada. Mas onde e como ficam o indício, o negativo? Alguém poderia aqui invocar as
imagens digitais, tanto a fotografia como a gravura. Mesmo nelas existe uma etapa de estruturação
da matriz, que prevê uma lenta elaboração, na espessura do negativo. Matrizes eletrônicas que não
dispensam partes do processo original de calcografia ou de fotografia de prata, com intervenções
no ossário, no esqueleto do material fotossensível.
Georges Didi-Ubermann, em um texto escrito para o catálogo da magnífica exposição
L´Empreinte, realizada no Centro Georges Pompidou em Paris em 1997, lembra do grau zero da
impressão: toda a marca deixada por uma aplicação direta de dedos, da mão ou de moldes
antropométricos, traços no chão, queimaduras, corrosões, pulverizações em torno de um corpo,
quando retirado deixa visível a sua impressão em negativo, ou seja: a impressão de ausência de algo.
A arte contemporânea, ou os procedimentos plásticos contemporâneos, incluem esse gesto
técnico, esse princípio, esse paradigma: o do contato com a origem e a perda da origem, a perda e a
possibilidade de recuperação através de um negativo como um sudário, e que pode ser trabalhado
infinitamente. A articulação entre a perda e o resto. A disseminação do único. A aderência cega ao
referente. Podemos citar como antecedente Marcel Duchamp, e após Johns, Morris, Bruce
Nauman, para ilustrar na prática plástica tais procedimentos.
O que o trabalho de Matta-Calark trata aqui é da mesma ordem de uma economia do modo
negativo, economia no sentido de um regime de organização, um princípio, uma forma de
articulação do processo que é casualmente presente também na fotografia. E que, acredito, tanto
na gravura como na fotografia, encontra-se também na maioria das vezes paradoxalmente oculto
do processo como um todo da formação e na dialética da imagem. É como se o responsável por
toda a difusão da ação e suas conseqüências permanecesse eternamente condenado a uma
ocultação.
De fato, se falarmos de contemporâneo, não se pode tratar hoje em dia de “autonomia” de uma
obra, ou de um meio como a gravura ou a fotografia - embora muitos fotógrafos ou gravadores nos
demonstrem que existam excelentes gravuras “puras”- este fato não mudaria em nada uma análise
da gravura contemporânea “heteronômica”, ou híbrida por natureza. Porque a miscigenação
tornou-se uma regra da contemporaneidade: mídias como a gravura e a fotografia não param de
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estabelecer contatos, de trocar, de se misturar, de se contaminar mutuamente, obedecendo a uma
lógica da transversalidade. E ambas trabalham com este princípio da inversão.
Esta análise da obra de Matta-Clark vai se prender àquilo que estaria no interior dessas suas
práticas e da sua vocação à dinâmica da transgressão/reconhecimento. Pois é através dessa
dinâmica que funciona a ficção poética, tão importante na arte contemporânea. Muitas vezes são
gravura e a fotografia os veículos escolhidos para a representação, e é através da representação que
o objeto, o sujeito ou a paisagem, ou parte dela, aparecem ao nosso olhar. Ora através de um
projeto, de uma maquete, como anotação de um processo, ora como suporte de inserção final (no
museu, na galeria). E se falarmos em métodos tradicionais de fotografia de prata, ou então gravura,
haverá sempre a interface em negativo, devido a presença de uma matriz construída, elaborada em
sua espessura física. É o fator que aproximaria gravura, fotografia e escultura. E que nos dois
primeiros casos paradoxalmente é uma imagem invertida: ele próprio apontando ausência,
simultaneamente uma pseudo-presença e um signo de ausência, sinal de um passado inacessível,
quem sabe recuperável, mas imperturbável, perpetuamente presente. Ausência marcando
presença. Um mistério que trabalha no momento cego, por detrás das aparências, e que é o lugar
onde se forma o desejo. Presença afirmando ausência, ausência afirmando presença. Distância ao
mesmo tempo afirmada e abolida, que segundo Phillipe Dubois (1993) provoca o desejo, o
milagre. Milagre da multiplicação. Milagre da alquimia. Há aqui um outro princípio que se insere
no coração da arte contemporânea: o de desprezo ou desgaste do conceito de “aura”, de objeto
único; a ausência do sujeito (do referente ou do autor) na representação, substituído por sua
imagem, por seu fragmento, no caso desse trabalho específico de Matta-Clark, e também a
desaparição, a descontinuidade, a ausência de certos atributos do objeto, como o peso, o volume, o
relevo, o perfume, a profundidade e principalmente o sentido, na criação de uma imagem. Ou
mesmo a condenação à ausência, como é o caso das suas construções fragmentadas. A ausência de
nobreza, marcada por uma certa precariedade nos materiais, a própria “pobreza” reivindicada, a
idéia de simulacro, de rastro, de vestígio, de traço, e uma desconstrução da função do autor - um
trabalho constante de separações e de lutos, todos eles negros como o negativo e como a matriz de
gravura. Ali onde se consumiria a perda da “aura”.
E nos referindo a Walter Benjamin, lembramos a idéia que ele faz da memória, relacionada a uma
busca arqueológica, a um sítio onde os objetos que são descobertos nos falam acima de tudo de
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outros objetos. Como na exumação de um corpo, corpo do negativo, corpo da matriz ou de um
objeto, onde se procura as origens pelas dobras, pelos interstícios. O que vemos, o que nos olha,
diria mais tarde Didi-Hubermann. Mas a metáfora da morte é latente em todo o signo, toda a
imagem, sobretudo na fotografia e na gravura onde, pela presença, todo o signo se tornaria
ausente. A simples presença do modo negativo criaria uma nostalgia da ausência, uma melancolia
que vêm de possibilidade de proliferação, do número. A vida é tudo o que avança, se multiplica e se
transforma, em direção à morte. O negativo é aquilo que procura permanecer, a ser indestrutível,
que aspira à eternidade. Os negativos e as matrizes são imagens mortas, e como tais, eternas. É
justamente esse aspecto de nostalgia da ausência que me impressiona tanto na fotografia como nos
trabalhos de Matta-Clark.
O jogo da ausência, ou o jogo da ausência-presença, tema tratado por Plínio, o velho, que
representa o nascimento da pintura, é trabalhado por artistas como Bernard Moninot: A
importância que esse artista contemporâneo dá à luz solar em sua relação aos objetos que lhe
fazem obstáculo. O jogo de sombra e de luz que banha os objetos em uma duração visível é análogo
ao processo fotográfico. Graças à iluminação de um projetor, as sombras sublinham a analogia
entre o sujeito, a representação da luz e a luz real, princípio que a gente encontra
coincidentemente no daguerreótipo, que supõe um certo ângulo de absorção e de reflexão da luz
para permitir ver bem as imagens. A presença do negativo, do negro, que pode ser o negro de
fumo, que absorve toda a luz, ou o negro de grafite, que reflete um pouco da luz, traduz em seu
trabalho uma interrogação sobre o lugar obscuro da câmara obscura. A grande descoberta da
fotografia reside na dimensão física e não somente metafórica da luz. Bernard Moninot manipula
as sinuosidades e superfícies do material fotossensível, ocluso no interior das dobras. Ele trabalha
numa matriz fotográfica, como se estivesse gravando com buris uma matriz de gravura. Trata-se a
cada vez de dosar, de avaliar, a dupla (e a inversa) quantidade de presença e ausência de luz, da luz
e sombra que vai entrar e se infiltrar nessas camadas tão sensíveis e tão profundas do material
fotográfico.
Voltando à Plínio, o Velho: Naquela primeira sombra, e naquela primeira imagem da arte, há a
história de uma união, nascente, sem dúvida, mas desde o começo marcada pela separação, por
uma ausência onde o sofrimento se refletia em espelho, invertido, no ato do prazer de contornar
uma forma, um afago à distância retido na precisão de um traçado destinado a sobreviver ao adeus.
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Curiosamente, é nos trabalhos de Matta-Clark que se tem uma oportunidade para refletir sobre a
questão do fenômeno religioso, como uma metáfora. O fenômeno religioso se situaria em dois
níveis: aquele da experiência do sagrado, que todo o mundo pode ter, e aquele da religião, que é
uma espécie de instrumentalização, de organização da fé, que a coloca sob o plano da existência
humana concreta, social. A religião seria assim algo impuro: ela é humana, tem interesses, tem
preocupações de ordem econômica e social. A fé, ao contrário, está livre do peso da realidade
humana. Marilena Chauí fala da imagem como um véu entreposto entre nós e nós mesmos, uma
interface, um negativo talvez, e que conduz à alma essa capacidade de religar, a essa atitude
espontânea de religar. Mas lembremos aqui que a idéia do negativo, ou a metáfora do negativo,
nada tem a ver com a teologia negativa, segundo a qual todos os males da terra estariam
relacionados às imagens. E que prega a ausência da imagem. Porque essa teologia nos conduz a
pensar a alma como idéia de uma visão pura, em um espelho totalmente virgem. Essa radicalidade
de posição contra as imagens - a posição iconoclasta - foi logo historicamente corrigida por um
movimento que conduz a retraçar uma passagem entre o cristianismo e o platonismo ao
reestabelecer no visível a fonte de uma reflexão suscetível de se elevar, a partir das sombras e dos
reflexos, à clareza das coisas, de suas imagens e de suas idéias. Lembremos aqui o conselho que
Leonardo da Vinci (1942) dá ao pintor aprendiz: “Tu farás tua sombra mais obscura quanto mais
próxima do objeto que a causa, de modo que ao fim ela se converterá em luz de tal forma que ela
parecerá infinita”.
A busca desse fio condutor no interior das práticas contemporâneas tanto na gravura como na
fotografia estaria relacionada a essa passagem pelo modo inverso, e a ocultação do mesmo poderia
ser o próprio indício à solução do crime perfeito: a marca presente e escondida de uma imagem
cuja principal vocação e intenção é coincidentemente a mesma de toda a arte contemporânea: a de
ser apenas um rastro, um vestígio, uma impressão de algo que passou por ali. Não matarás (ponto).
Esse é o negativo do ato de matar. Mas há nessa frase o desejo implícito da morte. É esse caráter
implícito do desejo nos contrários que constrói os mecanismos dos sonhos. A gravura possui
também esse poder do sonho de revelar uma presença pela qual ela manifesta a ausência, a perda.
Ela nos coloca em presença da ausência.
Marie-José Mondzain (1996) fala de imagens que curam e de imagens que matam, referindo-se a
uma tradição esotérica, mas que também representa a ciência entre vida e morte. Mas, ela ressalta
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que a prática das imagens sempre termina na imagem natural, onde acontece a vitória da vida
sobre a morte. A imagem para ela, entretanto, tem sempre presente o componente de natureza de
ressuscitação, mesmo no coração da melancolia. Creio que o trabalho de alguns artistas
contemporâneos como Christian Boltansky, se situam nesse dado de transformação/inversão de
dados autobiográficos, e que eles realizam uma espécie de viagem onde a questão do negativo está
presente. Essa não é a minha vida. Mas poderia ser. Assim é lançada a estrutura da ausência, e é
nessa espessura e na capacidade de realização do negativo que a imagem vai se definir. A expressão
do inconsciente passa pelo negativo, que representa a insatisfação. Lacan dizia que a coisa deve ser
perdida para que ela possa ser representada. Eu diria que a coisa deve ser perdida para que ela possa
ser transformada. E toda a transformação contém implicitamente uma dose de transgressão, de
violência. A partir desses vestígios, desses rastros, que se traça a ficção, o imaginário, a invenção.
Didi-Hubermann (1985) afirma que, numa impressão, a matriz transmite fisicamente, e não
apenas visualmente, a semelhança do referente. Assim, o objeto impresso privilegia o contato
material, manifestando, segundo o autor, uma aderência excessiva ao seu referencial de
representação. O autor insiste na diferença que separa a forma obtida pela marca, da imitação no
sentido clássico, relacionada à idéia, desenho ou invenção, que supõe a distância, a mediação, a
opticatidade. A impressão, ao contrário, exclui toda a distância do referencial, reduzindo ou
retirando toda a mediação, pois a imagem impressa se constitui no contato de matéria a matéria. O
autor afirma ainda que a marca conduz a uma ambigüidade ou dialética entre visibilidade e
ausência, e ainda problematiza as noções de contato e distância, diferença e semelhança,
reprodução e unicidade.
Apropriação e Propriedade
A dialética da propriedade e do impróprio, da propriedade e da apropriação, do inapropriado.
Esse jogo acontece sempre na obra de Matta-Clark. Em primeiro lugar, a sua posição em relação ao
fragmento. Seus trabalhos da série Fake Estates, da década de 70, estão inseridos nessa discussão e
investigação sobre propriedade, sobre questões sociais e na história da propriedade na parte baixa
de Manhattan, Nova York, principalmente na área do SoHo. Quais foram as condições que
levaram o artista a atuar como uma espécie de coletor de amostras, de legista, ao extrair e preservar
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vários elementos, como se fosse um arqueólogo urbano? Depois de mudar-se para Manhattan, em
1970, Matta-Clark viu-se em uma espécie meio extremamente enriquecedor para os seus interesses
de investigação, em uma vizinhança que passava por um processo de profundas transformações.
Era a importância do meio, o mesmo ao qual eu me referi no início desse trabalho. Em uma
entrevista em 19741, ele ressaltava a importância de trabalhar na origem das construções: “Essa
pesquisa envolveu todo o período em que eu vivi no porão do n°112 da Greene Street e fazia coisas
nos diferentes cantos. Esses cantos não eram diretamente relacionados com as estruturas, eu estava
apenas trabalhando em um lugar próximo da estrutura, mas eventualmente eu comecei a trabalhar
o lugar como um todo, como um objeto”.
Matta-Clark falava pouco sobre o lugar onde vivia em Nova York nas entrevistas que concedia,
principalmente à revista Avalanche, uma publicação voltada às manifestações artísticas dos anos
70. Ele morava na área baixa de Manhattan, em um lugar cheio de galerias e espaços alternativos,
entre as ruas Houston e Canal Street no sentido norte/sul, e Laffaiete e West Broadway no
sentido leste/oeste. O período do início dos anos 70 é conhecido como uma era onde os espaços
alternativos floresciam no SoHo. Um dos mais importantes era o de Holly Salomon, na Greene
Street n°98, que Matta-Clark ajudou a construir e mostrava seus trabalhos freqüentemente. O
outro era o espaço de Alana Heiss, no n°10 da Bleeker Street, que depois evoluiu para o Instituto
para a Arte e Recursos Urbanos, e o Clock Towwer, um espaço de arte fundado em 1973. Todos
esses espaços, além de uma dezena de pequenas galerias, ao lado do Greene 112, mostravam o
trabalho de artistas como Phillip Glass, Laurie Anderson, como muitos outros da geração de 1970.
O número 112 da rua Greene é um prédio industrial onde funcionou uma antiga recuperadora de
roupas usadas, e o edifício foi contruído em 1884 pelo arquiteto Henry Fernbach. Em 1970, foi
adquirido por Jeffrey Leo, que junto com Alen Saret concebeu o espaço como galeria alternativa.
Segundo Pámela Lee (2001) o espaço funcionava 24 horas por dia, sem fechar as portas. Era um
espaço democrático e alternativo que mostrava manifestações de dança, de performance, de
musica e artes plásticas, um lugar de troca de informações.
Mas, um paradoxo governa as leis de propriedade, e Matta-Clark refere-se a esse paradoxo,
criticando-o. O uso da propriedade demonstra a cada momento de sua apropriação plena que há a
necessidade de um controle sobre o objeto de posse, porque está sempre implícita a idéia de
1 Gordon Matta-Clark entrevistado por Liza Bear; Splitting, The Humprey Street House. Revista Avalanche, n° 24, dezembro de 1974
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negativo, da perda. Se não há o controle, pode haver a perda. A mesma idéia está presente na
história do SoHo, onde a simples identidade como artista serviu para garantir um pedido de posse
pela propriedade. Mas, as preocupações de Matta-Clark em relação aos edifícios abandonados, de
um lado, ou de lugares inacessíveis e ambíguos, de outro, dramatiza a noção da propriedade como
um conjunto formado pela posse e uso. Se Hegel diz que a essência da propriedade consiste em seu
uso e seu desaparecimento, Matta-Clark parodia a idéia ao literalizá-la. Para ele, a essência da
propriedade consiste em seu desgaste, em sua exaustão. O valor de propriedade passa a ser
transferido apenas quando acontece o estado de ruína. Como um reverso dialético, o valor de
propriedade para um artista como os do grupo Anarquitetura, ou para Matta-Clark e seus pedaços
de terreno inúteis, passaria a existir quando atingisse o estágio da não-utilização .
A história do SoHo reflete bem essas preocupações presentes na obra de Matta-Clark: a destruição
que abre a possibilidade para a ocupação e/ou a realização de um trabalho. A eminente destruição
e o abandono como metáforas de seu processo inverso, a construção de um trabalho plástico. A
questão do interesse material também precisa ser esclarecida: nem Matta-Clark, nem os demais
integrantes do grupo Anarquitetura tinham um interesse monetário nos processos de apropriação
dos referidos espaços referidos. A escolha de Matta-Clark pelos espaços inacessíveis prova bem
isso. A discussão aparece mais focada nas experiências artísticas sobre os fins do uso da
propriedade privada. E sobre os processos de apropriação em artes plásticas.
A análise dos processos de criação revela todo o conjunto de seleções e apropriações, gerando
metamorfoses e traduções no espaço arquitetônico. O tema principal a ser tratado nesta pesquisa é
o próprio processo de apropriação. Segundo Dominique Berthet, existe uma riqueza sobre o tema
“apropriações”. O conceito de apropriação inicialmente pode ter dois sentidos: um que remete a
idéia de roubo, falsificação, e outro que remete a idéia de impregnação, distanciamento,
empréstimo, reinvestimento pessoal. Este último, ao contrário da idéia de roubo, de plágio, “trata-
se de um diálogo, de uma escuta, de uma experiência de alteridade. Apropriação sob este ponto de
vista, é um reencontro, uma reflexão, uma análise que se estende sobre o singular e a inovação”
(Berthet, 1996, p.8). A apropriação na arte esteve presente em diversos períodos da história da arte
assim como apresentou-se de diversas formas: citação, colagem, sincretismo.
Durante os anos oitenta do século anterior, a pesquisa de um novo academicismo como um
retorno às expressões do passado surgiu na arte e na arquitetura como um novo método
18
experimental de investigação através da manipulação de elementos anteriores. Tratava-se de uma
apropriação de outros tempos. Desta forma a pós-modernidade instaurou o direito à citação.
“Reapropriação de estilos, prática da citação, maneirismo, utilização do kitsh: é claro que de certa
maneira o pós-modernismo joga o jogo do ecletismo, do gosto dos sabores misturados, reciclando
os usos, integrando e se apropriando sem jamais inventar. Recusando hierarquias, ele mantém a
confusão entre arte e kitsch, entre cultura e comunicação mediática.”( BAQUÉ, 1998, p. 178)
Segundo Dominique Baqué, o pós-modernismo nos Estados Unidos adquire uma postura crítica e
descontrutivista. “Podemos identificar três critérios eminentemente pós-modernos nesta cultura
de citações e de apropriações: depreciação da obra inicialmente escolhida, efeito de sobreposição e
reorientação da leitura da obra.“ ( BAQUÉ, 1998, p. 179)
Quando entra em cena a questão da citação em arte, começamos a nos interrogar sobre autoria,
autenticidade e originalidade. A partir de um trabalho sobre Rodin, Rosalind Krauss (2002)
demonstrou como as noções de singularidade, de autenticidade, de originalidade e de origem se
articulam no discurso pós-modernista. Esta autora nos diz que não existe mais diferença entre
original e cópia. Desta forma Baque (1998, p. 180) destaca que a criatividade, a partir de então,
“seja uma armadilha que deva por fim em um mesmo golpe aos mitos fundadores da autenticidade
e da singularidade, abrindo a via para uma outra hipótese: a hipótese desconstrutivista, que
plasticamente reveste as modalidades de simulação, citação e apropriação”.
Voltando para o espaço urbano, a partir da dúvida da autenticidade, surge a dúvida sobre questão
da autoria: quem constrói a cidade? Quem interfere e interage com o espaço urbano hoje?
Cópia ou original, espaço urbano real ou objeto da arte. Estas dúvidas, segundo Giovanni Joppolo,
trazem uma outra forma de arte na atualidade: a das simulações: “um inumerável processo de
apropriação do presente que consiste em simular os mecanismos políticos, econômicos e sociais do
mundo atual.”( Joppolo, 1998, p. 105)
Seja o sistema formal uma reação das formas do passado ou uma simulação dos mecanismos de
produção e consumo da sociedade tomada pela tecnologia e globalizada, de acordo com Joppolo,
cada vez mais o motor principal da arte contemporânea é o ato de apropriação. “Nos encontramos
num espaço de pesquisa da regeneração através da apropriação. A apropriação corresponde para
alguns, os transvanguardistas, a apropriação de um novo já existente fabricado a partir da
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reativação de um existente anterior dentro do sistema artístico, e para outros, os vanguardistas, a
apropriação de um novo existente fabricado a partir da simulação de um existente presente no
cotidiano.” (Joppolo, 1998, p. 106)
Será partir deste último conceito que esta trabalho tenta ampliar esta reflexão adequando-a ao
universo arquitetônico. Se interrogar sobre a noção de apropriação nas artes visuais e na
arquitetura é penetrar em um mundo complexo em razão da diversidade de modalidades de
apropriação e dos riscos deste principio. Apropriação é considerada aqui como um componente
do processo criador.
Outro ponto a ser desenvolvido sobre o ambiente urbano é a inclusão de toda a diversidade que
compõe a cena urbana num processo de sincretismo entre arte e arquitetura. O ambiente
cotidiano inclui formas totalmente arbitrárias, considerando talvez, como desagradáveis em um
cenário de excessos. Em arte, encontramos em diversos períodos o gosto pelos excessos
ultrapassando os limites do “belo”, como o terrível, o grotesco, o bizarro, o feio e o sujo.
Pensar sobre a cidade hoje é incluir neste pensamento as qualidades estéticas que excedem os seus
próprios parâmetros de belo. O feio ou “sujo”, aqui tem o significado específico de interferência,
de ruído causado pelas apropriações realizadas diretamente sobre o espaço da cidade. A expressão
“sujo” coloca também a idéia de inacabado, da construção por fragmentos e acúmulos, assim como
também pode carregar, inicialmente, um sentido negativo do termo apropriação. Cabe aqui
valorizar esta expressão como parte de um processo de constituição da cidade.
Fronteiras permeávei s
É importante lembrar que os fatores de diferenciação evoluem e mudam através da história:
funcionalidade, utilidade, abstração, relação interior/exterior, não são mais específicos da
arquitetura. As formas de arte contemporâneas, como as de Matta-Clark aqui analisadas, entre
outras que se situam na denominação de in situ e instalações, além da arte de Robert Smithson e
da land art, passaram a ter até mesmo como objeto os elementos e princípios fundamentais da
arquitetura, como o uso de materiais e seu processo, o espaço interior, a noção de habitação, a
escala, a relação com a paisagem, a iluminação. A relação entre arte/arquitetura não se limita a
partir da contemporaneidade a um registro de oposições entre meios, usos, modelos de produção,
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porque o estabelecimento de fronteiras entre os domínios não fazem mais sentido para os artistas
contemporâneos.
Martine Bouchier (2006) cita um exemplo dessa relação de fronteiras permeáveis em uma resposta
dada pelo artista Dan Graham à uma pergunta sobre se os seus Pavilhões eram escultura ou
arquitetura: “Eles são um encontro entre Venturi e Mies Van der Rohe. Eles são híbridos, como a
arte atual, que se encontra cada vez mais nessa situação de limite”, respondeu o artista.
Adorno chega a avançar na idéia de que “o deslocamento dos limites entre as artes coincide quase
com um movimento de formas que tentam capturar uma realidade exterior à estética” (Adorno,
1968, p. 40) Essa idéia é fundamental para compreender o movimento de expansão das artes, e sua
aproximação com a arquitetura.
A abertura da arte a domínios exteriores à estética acabou construindo um espaço de práticas
cheio de objetos, de atitudes, de situações que demonstram as situações de múltiplas passagens
entre a ética e a estética, de uma condição artística á outra. Um exemplo é a colagem dadaísta e as
montagens cubista, que trazem ao interior da obra fragmentos provenientes de uma realidade
extra-estética. De inovadores como Kurt Schwitters, que colava nas telas bilhetes de metrô,
pedaços de madeira, ou como Duchamp, que ligava o ready-made ao mundo industrial, ou ainda
mesmo artistas do movimento pop que transferiam elementos arquitetônicos como janelas, portas,
cortinas, chuveiros, do espaço do quotidiano para o campo da estética. Essas práticas de
transferência contribuíram para alargar as fronteiras, e para aliviar o peso atribuído aos trabalhos
artísticos de serem considerados como tal exclusivamente se estivessem em condição de estar
situados fora do domínio industrial, até ao ponto de suspender a noção da obra ou de sua aura,
substituindo-a por aquela da experiência multi-sensorial.
As questões que aproximam arte e vida, tratada por artistas como Allan Krapow, tratam da
dimensão estética em situações banais e carregam o quotidiano de um poder metafórico. A
passagem a uma idéia de arte sem obra põe em questão o papel do artista que passa a reivindicar,
como faz o artista Thomas Hirshhorn, o status de “trabalhador político”. Fazendo frente ao
mundo que o cerca, os artistas localizam e escolhem para trabalhar em lugares específicos, onde
muitas vezes é difícil dizer onde estão os materiais ou linguagens tradicionais da arte. Através de
tais ações, os artistas transferem ao quotidiano uma aura que só a arte é capaz de legitimar. As
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experiências “integradoras” que tais artistas propõe, seguem na mesma linha de Marcel Duchamp,
que diz que “é o observador que faz o quadro”, ou então de Rolland Barthes, que fala do “leitor
como produtor do texto”. Tudo isso leva o espectador a uma experiência que não é mais nem
exclusivamente tátil, nem muitas vezes visual ou retiniana, para usar uma expressão cara à
Duchamp.
Para Martine Bouchier (2006), um grande número de dispositivos artísticos usados na
contemporaneidade demonstram que a arquitetura não é mais a única forma de arte que pode ser
especificada ou identificada pelo envolvimento, elaborada sobre a oposição e as tensões de
elementos como exterior/interior. A arquitetura para a autora não é mais a única linguagem que
tem a capacidade de construir um espaço interior, mais ou menos complexo ou simbólico. Ela
lembra que após os anos 20 do século passado, essa especificidade também passa a ser apropriada
por artistas, e as questões de passagem a um espaço interior começam a integrar o campo da
escultura, por exemplo. Muitos artistas citados por Bouchier, como James Turrel, Dan Graham,
Lucy Orta, e Marina Abramovich, realizam obras que convidam o espectador a ingressar em um
interior, a penetrá-lo. Esses artistas, segundo a autora, investem no conceito de habitar, que antes
era exclusivo da arquitetura.
A utilização de dispositivos tais quais tendas, torres, labirintos, pavilhões, que convidam á
participação do público como alguém que experimenta um espaço interior e todas as suas
sensações, ajudaram, segundo a autora, a apagar os limites entre arte e arquitetura pela utilização
de elementos que antes eram exclusivamente arquitetônicos. Como lugar de exposição, a autora
cita a arquitetura como incluída no próprio corpo das obras de arte, onde, em algumas situações,
seria difícil, e até impossível, de separar onde ou distinguir onde termina a arte e começa a
dimensão arquitetônica. A obra de arte, ainda segundo Bouchier, não se define mais como um
objeto autônomo, fechado sobre ele mesmo, mas como espaço aberto. Por isso, se compreende que
os processos de apropriação encontram seu sentido nos transbordamentos, nos novos limites e
territórios conquistados. Essa pulsação, segundo a autora, faz com que a arte funcione como um
sistema de sístole e diástole, entre expansão e apropriação, que caracteriza a dinâmica do “campo
expandido” da arte que enriquece seu espaço com dados de fora, exógenos, e o estende a novos
territórios. Assim, como parede utilizada como suporte de uma pintura que teve o seu chassis
quebrado, ou não possui uma tela, como suporte de uma escultura que perdeu sua base, ou como
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anteparo criado por uma projeção multimídia, a arquitetura se integra em um continuum espacial
de onde emerge uma constelação de formas artísticas de espaços híbridos.
Segundo Dominique Baqué, o pós-modernismo nos Estados Unidos adquire uma postura crítica e
descontrutivista. “Podemos identificar três critérios eminentemente pós-modernos nesta cultura
de citações e de apropriações: depreciação da obra inicialmente escolhida, efeito de sobreposição e
reorientação da leitura da obra.“ (Baqué, 1998, p. 179)
Se uma obra no campo da arte pode ter uma reorientação passando a dar outro valor aquilo que
foi apropriado pelo artista, porque não podemos encarar as construções que também tem um
caráter apropriativo de forma positiva. Isso somente não acontece pelo fato de suas construções ao
apresentarem dois aspectos importantes no campo da arquitetura: a tecnologia e a legitimação.
A pluralidade e sobreposição da contemporaneidade, como nos lembra David Harvey, geram uma
falta de comunicação entre mundos diferentes que coexistem no mesmo espaço. Estes dois
mundos caracterizam uma justaposição na qual se articulam noções opostas, como observa Piedad
Solans a partir da idéia de Jameson sobre corpo e tecnologia: “modelo difuso de espacialidade se
converteu em uma realidade múltipla e fragmentária que atua desde a nova reconstrução temporal
e espacial a numerosos âmbitos da percepção. Uma percepção que se constrói no tecido
transparente da tecnologia” (Solans, 2004, p.282). A critica pós-moderna em relação ao
modernismo, como sugeriu Robert Ventury, não consiste na retomada de elementos históricos,
mas a uma aproximação da realidade, do cotidiano, e daquilo que se aproxima da estética popular e
não de uma imposição elitista, abstrata e desvinculada do homem “real”, assim como, na
valorização da justaposição, da apropriação e da diversidade.
Considerações f inais
As ações de Matta-Clark como desvelar, violar, desestabilizar, abrir, criar abismos, escavar,
despedaçar, revelar a estrutura mais íntima da arquitetura, revelam a própria idéia de arquitetura
como linguagem que atua contra a intenção funcionalista: “a autêntica natureza de meu trabalho
com edifícios está em desacordo com a atitude funcionalista, na medida em que esta
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responsabilidade profissional tem se omitido a questionar ou reexaminar a qualidade de vida que
se oferece”.2
Conforme salienta Marianne Brouwer (1999), Matta-Clark não é um arquiteto conceitual. Ao
contrário, ao seccionar o edifício ele coloca seu próprio corpo contra a arquitetura para desfazer o
circuito fechado do funcionalismo. Aparece aqui também uma preocupação de ordem social: “ao
desfazer (desconstruir ou decompor) uma edificação, há vários aspectos das condições sociais contra
as quais minha gestualidade se sobrepõe ... criar uma nova situação sobre outra previamente
condicionada não apenas pela sua necessidade física (abrigo) mas pela industria que produz caixas
urbanas e suburbanas como contexto de passividade e alienação do consumidor – uma audiência
virtualmente cativa.”
As intervenções de Matta-Clark nos encaminham para a questão do conhecimento, da descoberta
e do movimento, que envolve tanto o ato criativo, quanto às relações que sua obra estabelece entre
sujeito, arquitetura e lugar. O sujeito ou a fotografia como registro da obra, segundo Bonito
Oliva,( 2003, p.16) reconstroem a condição de uma cidade separada criando um conjunto visível.
Neste sentido, além do pensamento fenomenológico, a obra de Matta- Clark se aproxima do
conceito de descosntrutivismo proposto por Jacques Derrida. Diferentemente da idéia negativa de
demolição ou destruição, a desconstrução poderia ser descrita como uma forma de diálogo crítico
utilizado por Derrida para desmontar um conceito anterior, como uma crítica filosófica, para
construir um conceito. O contrário, o avesso, o esqueleto, a estrutura nos faz chegar ao
conhecimento e à reflexão sobre a arquitetura e o sentido do espaço, ou sobre a arquitetura e o
lugar.
O trabalho de Gordon Matta-Clark pode ser lido tanto sobre o ponto de vista conceitual de
espaço ilimitado da arquitetura, como pela importante relação que ele estabelece entre sujeito e
espaço, que coloca a arquitetura como instrumento de constante análise e crítica do sentido do
espaço e da sua relação social.
2 Depoimento de Matta-Clark, In: BROUWER, Dejando al descobierto, 1999, p. 52
24
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