Giovanni Stiffoni
A compreensão dos aspetos mais significativos do jornal La Battaglia
(1904-13)
Depois de ter dedicado vários anos de estudo à biografia do intelectual libertário
Camillo Berneri, desenvolvi também uma pesquisa sobre os anarquistas italianos
emigrados no Brasil, porque, estudando a trajetória desse conhecido pensador lombardo,
percebi que, para compreender a história do anarquismo italiano, era fundamental
também analisar o papel dos militantes que decidiram imigrar na América latina. Em
primeiro lugar, me parecia evidente que as atividades dos anarquistas ainda residentes
na Europa estavam frequentemente influenciadas pelas atividades dos seus
companheiros imigrados. Além disso, para seguir compreender quais são as
características que definem no início do século XX um militante libertário italiano, era
necessário analisar também as peculiaridades que caracterizavam os anarquistas
italianos emigrados fora de Europa, visto que, come veremos no caso do Brasil, o
contexto em que desenvolviam suas ideias era bem diferente.
Como tive a oportunidade de ter uma bolsa para desenvolver esse assunto no
Brasil, decidi estudar as caraterísticas especificas do jornal La Battaglia, dado que,
durante o largo período de publicação, foram distribuídos entre 3000 e 5000 exemplares
de cada número desse jornal. Uma quantidade considerável de exemplares, levando em
conta a constante repressão policial que os militantes anarquistas tiveram que enfrentar
nesse território (BIONDI, 1994). esse artigo, vou considerar em primeiro lugar aquelas
problemáticas analisadas pelos redatores do La Battaglia visto que eram a consequência
direta do novo contexto em que militaram. Sucessivamente vou apresentar alguns dos
aspetos desse jornal que me pareceram mais interessantes e significativos para
compreender as caraterísticas que definiram a militância anarquista durante o século
XX.
O anarquismo italiano em um novo contexto
Para Ristori e seus companheiros o Brasil podia representar o território onde poder
realizar mais livremente o seu projeto político. Em teoria, o estado brasileiro pela sua
história podia ser menos estruturado daquele italiano e podia deixar um maior espaço aos
anarquistas italianos para desenvolver a sua utopia. De fato, em uma carta que o diretor
do La Battaglia dirigiu ao Presidente da República, ele se apresenta como “cidadão do
mundo que não reconhece fronteiras” e espera poder aproveitar da sua nova realidade
social. 1
1RISTORI, Oreste. “Al presidente della repubblica”, La Battaglia, 4 de setembro de 1904, p.1.
Na realidade, analisando os comentários do jornal La Battaglia, parece que o
conhecimento do Brasil e a sua experiencia nesse novo contexto político provocou uma
reação bastante negativa por parte desses militantes. A esse propósito é significativo que
os anarquistas italianos façam referência ao período da Idade Média para representar a
situação do Brasil.
Alessandro Cerchiai , um dos redatores mais ativos do jornal, faz essa comparação
no artigo “Nel Secolo delle luci” publicado no último número do mês de janeiro de 1906.
Depois de ter contado a história de um ladrão de animais que foi morto por quatro
capangas enviados por um fazendeiro, ele desabafa:
Aqui a Idade Média ressurge: os senhores locais, os sicários, os monges
inquisidores, os capitães de ventura, os amores dos claustros reflorescem
exuberantes na terra brasileira. A época de Ezzelino da Romano revive, os seus
horrores, as suas vergonhas se repetem[...] Dom Abbondio se tornou amigo
dos sicários e a Perpetua trabalha como alcoviteira. Fortebraccio governa e
desgoverna 2
Para descrever o Brasil Cerchiai faz referência a uma serie de figuras que fazem
parte da história e da literatura italiana. Em primeiro lugar, cita o capitão Ezzelino
da Romano, originário da região de Treviso, conhecido por sua crueldade e
mencionado por Dante na Divina Comedia: ele fica no Inferno submergido em um
rio de sangue, porque culpável de exercer uma terrível violência contra o próximo.
2 CERCHIAI, Alessandro. “Nel Secolo delle luci”, La Battaglia, 28 de janeiro de 1906, p.1.
O anarquista toscano menciona também Dom Abbondio, a Perpetua e os sicários,
protagonistas negativos de Os Noivos, um conhecido romance histórico de
Alessandro Manzoni que oferece a típica imagem nociva da Itália do século XVII,
atrasada e dominada pelos estrangeiros.
Finalmente Cerchiai cita também Fortebraccio, outro conhecido homem
político e capitão da Itália central do século XV. Ele o escolhe para sublinhar a
corrupção e a falta de moralidade do Brasil, porque esse personagem histórico foi
representado pela propaganda guelfa como um homem cruel e inimigo de Deus.
De fato, Fortebraccio próximo ao imperador quase conseguiu realizar um Estado
da Itália Central, e por isso se tornou um grande inimigo do poder papal. A
imagem que o Cerchiai oferece do seu novo país é tão negativa que ele teme de
ter sido injusto, comparando-o com o pior período da história da Itália: “Citamos
a Idade Média, mas talvez o caluniamos, porque [a Idade Media] era melhor que
esse horror”.
É significativo que Cerchiai, anarquista italiano do princípio do século XX, sirva-
se da Idade Média para criticar o sistema social brasileiro, porque é esse o tradicional
estereotipo utilizado pelo Iluminismo italiano para criticar o passado mais ignorante e
inculto. A difícil experiencia de Cerchiai no Brasil parece inclusive lhe fazer recuperar a
Itália como ponto de referência da sua visão política.
Apesar de tudo isso esses anarquista toscano, como outros imigrantes italianos,
conclui seu discurso político, introduzindo a esperança de uma mudança do contexto
político e social que justifique a sua escolha de permanecer no Brasil. Ele afirma que,
“apesar do nosso ceticismo, esperamos encontrar uma forma de salvação: os delitos dessa
burguesia assassina, seus vícios obscenos que a esgotam, acabarão por fazê-la precipitar
em um báratro sem fundo, o povo se acordara!” A esse propósito, são também
interessantes as considerações de Piero Cofani, um colaborador do La Battaglia que
escreve seus artigos para La Battaglia desde Piracicaba:
É aqui no Brasil, onde a avides desenfreada do capitalismo e a opressão política
do capitalismo tornam ainda mais insuportável que em qualquer lugar a
situação do proletariado.[...] Mas o Brasil é um ambiente ainda virgem para
nos. Muito tem que ser feito e muito tem que ser desfeito.3
Também no discurso desenvolvido por Piero Cofani há uma dura crítica contra a
organização capitalista da sociedade brasileira que condena o proletariado a uma situação
de extrema dificuldade, mas esse contexto permite também a esperança de uma radical
mudança social: essa sociedade não é ainda desenvolvida como na Europa e deixa um
espaço aos anarquista para reagir e organizar outra realidade econômica e social.
Mesmo nos artigos de Oreste Ristori, em geral tão críticos sobre a realidade
política brasileira, às vezes aparece a possibilidade de mudar a situação do país e a própria
realidade individual. Em um artigo intitulado “Tutto è metafisica al mondo” o anarquista
toscano considera necessário que ele e seus companheiros sejam realistas: “ em última
análise, estamos no Brasil e o Brasil é o ambiente mais adequado para realizar uma
metamorfose.”4 Na visão de Ristori então o seu pais de acolhida, apesar d ser governado
3 COFANI, Piero. “Al lavoro compagni”, La Battaglia, 25 de setembro de 1904. 4RISTORI, Oreste. “Tutto è metafisica al mondo”, La Battaglia, 7 de Janeiro de 1906, p.1
por “o quanto pior se pudesse encontrar nos ergástulos”, é também um ambiente
caraterizado por uma extrema fluidez que deixa a possibilidade de realizar uma nova
sociedade.
Inclusive em alguns artigos de La Battaglia se sublinha a excepcionalidade da
natureza do Brasil: suas florestas virgens, a sua vegetação exuberante, as suas pedras
preciosas mas nesse contexto, segundo Alessadro Cerchiai, é possível somente escrever
“o hino da rebelião”5: “libres são os pássaros, libres são as feras, mas aqui o homem
explora o homem, o homem mata o homem, o homem é escravo do outro homem”.
A posição política dos imigrantes italianos era um aspecto de difícil leitura para
os intelectuais residentes no Brasil. Sem dúvida o transferimento de numerosos cidadãos
europeus para América latina era um fenômeno bastante significativo na época, mas ainda
os jornais anarquistas não analisavam em profundidade as consequências desse evento.
No jornal de Ristori significado da imigração entre Itália e Brasil se tornou um tema muito
importante próprio porque a existência de La Battaglia era uma consequência desse
evento. Normalmente se dá muita importância ao folheto Contra Imigração que foi
publicado em 1906, mas na verdade já se começou a divulgar uma mensagem política
crítica sobre esse fenômeno bem antes.
Em um artigo publicado em 1904, Ristori recomenda seus compatriotas a não se
deixar convencer pela propaganda que tende a mitificar a imagem da América:
5 DE GIGLI, Anna. “Malinconie”, La Battaglia, 7 de julho de 1907, p.1.
Vocês que no continente europeu se deixam ecoar nos ouvidos pela eterna
mentira que repete que aqui se está bem, que aqui se faz uma vida feliz, que
aqui se “faz a América”; Vocês que escutam os alcoviteiros da imigração que
passam pelos povoados para falar de um delicioso e encantador Eldorado,
buscando vítimas para se tornar os novo burros de carga, têm que gritar que os
seus proprietários já comeram a América, que aqui na verdade se morre de
fome6
Uma das missões da atividade do jornal La Battaglia tinha que ser a oferta de uma
imagem mais realista do Brasil para aqueles cidadãos italianos que, vivendo uma situação
economicamente difícil na sua terra natal, estavam dispostos a aceitar qualquer
proposição de trabalho. Amiúde a chegada dos trabalhadores italianos no Brasil era
subvencionada até que, em 1902, foi momentaneamente interrompida pelo decreto
Prinetti: as autoridades italianas proibiram esta prática a causa da rudeza da situação que
os imigrantes tinham que suportar nos lugares de trabalho (TRENTO, 1989).
Ristori, já em um artigo de 11 de setembro de 1904, desmente o mito do trabalho
fácil na terra brasileira com palavras muito claras: “Não é verdade que aqui tem trabalho
para todo o mundo. Não é verdade que o operário seja bem pago. Não é verdade que aqui
tenham umas boas garantias para os estrangeiros” 7. Ele acusa claramente as agências
intermediarias que contatam e mentem aos trabalhadores italianos e critica também os
outros jornais que não desmentem essas lendas criadas para atrair mão-de-obra para o
Brasil. De fato, inclusive esses primeiros artigos que comentam as difíceis condições já
provocam a reação dos jornais burgueses, em particular o Diario popular pede a repressão
6RISTORI, Oreste. “L’inquisizione al Brasile”, La Battaglia, 20 de junho de 1904, p.1: 7 RISTORI, Oreste. “Lavoratori d’Europa non venite al Brasile”, La Battaglia, 11 de setembro de 1904,
p.1.
da difusão do La Battaglia que está prejudicando a imagem do Brasil e a sua atividade
econômica8.
Também o redator do La Battaglia Gigi Damiani considera necessário
desenvolver uma reflexão sobre esse tema, porque o domínio da burocracia brasileira na
gestão da imigração favorece a chegada dos imigrantes italianos no país, mas não melhora
a sua situação econômica. Diferentemente de Ristori, o anarquista romano não se
preocupa tanto em dar uma representação ruim da situação política e econômica do Brasil,
mas faz uma análise mais aprofundada de qual teria que ser o tipo de relação do imigrante
com o seu país de acolhida: “ele teria que se afeiçoar à terra, teria que saber fecundar a
nossa terra, que queira viver a nossa vida e que se torne nossa carne e deixe de ser um
elemento de expansão desse ou daquele governo ou um povo de escravos ou de párias”.
Isso seria necessário para evitar que continue essa lógica de divisão entre raças
que, segundo o militante romano, facilita a difusão do imperialismo: “o imperialismo não
é latim, nem eslavo, nem germânico, é imperialismo”.9 Interessante que o Damiani nesse
discurso evidencia quais deveriam ser os princípios que teriam que caracterizar essa nova
humanidade imigrante que teria que deixar de ser “uma sentinela” de um exército invasor
para virar uma “individualidade consciente” de um cidadão que mora em um país livre e
civilizado.
No La Battaglia se sublinha que não somente os italianos eram vítimas da política
econômica dos fazendeiros brasileiros e de seu Estado, mas que muitos imigrantes
europeus se encontravam em uma situação dramática. Por exemplo, em um artigo
8 “Le nostre sferzate”, La Battaglia, 23 de setembro de 1904, p.1. 9 DAMIANI, Gigi. “Pro Brasil”, La Battaglia, 18 de julho de 1905, p.2.
publicado ao começo de 1906, Antonio Bossi relata que encontrou grupos de espanhóis
em estrado de extrema miséria10. Eles também foram atraídos no Brasil pelas promessas
dos agentes de imigração e depois tiveram que aguentar uma realidade econômica bem
diferente da prometida.
Apesar de La Battaglia ter nascido principalmente para tratar questões políticas,
no novo contexto que vivem esses militantes anarquistas acabam quase inconscientemente
por abordar assuntos de outro tipo e por representar também um ponto de referência para a
comunidade dos imigrantes italianos estabelecidos no Brasil.
Essa função social de La Battaglia parece evidente na parte dedicada ao correio
comunitário onde se tratavam amiúde temáticas que tinha pouca ou nenhuma relação com
a temática política. Por exemplo, em um artigo se debate sobre uma polêmica literária
entre um professor que utiliza um tom “cómico realístico” para provocar um farmacêutico
originário do povoado do poeta D’Annunzio11.
Em outra carta publicada no espaço destinado aos leitores, Ristori toma partido em
um assunto familiar: um italiano habitante na “Santa Rita da passo quatro” se tinha
responsabilizado da sustento dos sobrinhos de um familiar e esse último o denunciou por
uma agressão 12. Ristori recomenda que se reconheça a generosidade desse leitor do La
Battaglia e, em geral, se preocupa de publicar a seguinte nota para intensificar os vínculos
entre a comunidade italiana imigrante presente no Estado de São Paulo e seu periódico:
10 BOSSI, Antonio. “Dalle Caienne brasiliane. Via Crucis interminabile”, La Battaglia, 21 de janeiro de
1906, p.4. 11PASQUINO. “Quisquiglie”, La Battaglia , 28 de mayo de 1909, p.4 12RISTORI, Oreste. “Cose di questo mondo”, La Battaglia, 28 de mayo de 1909, p.4.
Se convidam expressamente os companheiros e os amigos das localidades do
interior do Estado para que no enviem cartas sobre o movimento operário,
sobre as explorações das autoridades, sobre as infâmias patronais e sobretudo
sobre aqueles dramas que acontecem nas “fazendas”. Para isso não é
necessário ser letrados. É suficiente enviar alguns detalhes, uns dados gerais,
porque a Redação se ocupa do resto13.
Parece claro que, embora Ristori queira dar mais importância às temáticas
políticas, La Battaglia incrementam espaço oferecido às temáticas socais da vida da
imigração italiana no Brasil. É assim que são publicadas várias cartas de italianos
residentes no Brasil que desejam tentar retomar o contato com amigos ou familiares dos
quais não tem mais notícias.
É muito importante analisar essas informações porque permitem de compreender
alguns aspetos da vida dos italianos transferidos no Brasil nessa época. Por exemplo, eles
se queixam do comportamento dos “cambistas” que era uma figura muito importante para
a sua vida em São Paulo14. Eles exigem uns juros muito altos, aproveitando da frequente
ignorância dos imigrantes recém-chegados e por isso em algumas cartas chegam a defini-
los como “usureiros”.
Também se critica uma instituição tradicional da sociedade brasileira e portuguesa
como a Santa Casa da Misericórdia, que tem como missão o tratamento e o sustento dos
enfermos e inválidos. O autor de “Carità borghese” quer advertir as mulheres estrangeiras
que não podem contar com o apoio dessa irmandade, porque não tem um pessoal que fala
13 RISTORI, Oreste. “Importante”, La Battaglia, 25 de setembro de 1904, p.1 14 “Altro che strozzini”, La Battaglia, 25 de setembro de 1904,p.3
a língua das imigrantes15. Por isso essa instituição se torna um autêntico “matadouro de
carne humana”, onde médicos inexpertos prescrevem medicamentos inapropriados pela
sua impossibilidade de compreender a língua das doentes ou por falta de experiencia.
Em outro artigo se denunciam as más condições dos hospitais onde se acolhem
as pessoas infectadas. Como acontece frequentemente se começa a análise da situação,
fazendo referência a um caso específico: um médico causou a morte do filho de um
empregado por ter feito uma serie de injeções inapropriadas visto que o menino não
sofria, como o funcionário pensava, de uma doença respiratória16. Segundo o anônimo
autor do artigo, essas situações acontecem frequentemente porque tem “espiões” que
denunciam os seus vizinhos de serem infectados sem ter a certeza desse perigo.
É significativo que se dedicam também alguns artigos a descrever a atitude de
algumas videntes que tentam aproveitar da inocência dos brasileiros, mas também dos
imigrantes. Um dos redatores consegue inclusive contar um episódio vivido por um
amigo seu que acredita ter que morrer jovem depois de ter encontrado uma dessas
senhoras.17Finalmente o autor do artigo consegue tranquilizar o companheiro,
desmentindo a credibilidade dessa vidente através de uma brincadeira, mas insiste sobre
a natureza perigosa dessas figuras que agora se juntam como os padres, ao contrário do
que acontecia na Idade meia.
Parece evidente que La Battaglia não se limita a divulgar as posições políticas dos
redatores, mas acaba também entrando na vida cotidiana dos imigrantes italianos,
publicando muitas cartas que afrontam temas que são também comuns aos habitantes de
15 BULGARO. “Carità borghese”, 7 de janeiro de 1906 p.2. 16 “Come si uccidono i bambini poveri”,La Battaglia, 28 de janeiro de 1906, p.2
17 LUCIFERO. “Le streghe”, La Battaglia, 30 de maio de 1909, p. 3
São Paulo. Como vimos Ristori convida frequentemente os italianos residentes no Brasil
a oferecer a sua contribuição para apresentar seu ponto de vista sobre o seu trabalho e a
difícil situação social que amiúde os imigrantes sofrem.
Apesar desses apelos do diretor de La Battaglia é claro que o discurso que passa
através das cartas dos imigrantes italianos supera os limites do debate político e acaba
conseguindo manter vivos as relações sociais entre imigrantes que se encontram em uma
realidade nova, desconhecida e frequentemente hostil. Provavelmente Ristori não era tão
consciente da importância dessa função social do seu jornal visto que “serão numerosos
os apelos da redação para não se deixar envolver por personalismos e por evitar a narração
de eventos locais que não tem nada a ver com os problemas do trabalho” (BIONDI, 1994,
p.89).
Ao contrário, seria importante sublinhar que a importância dos jornais dos
imigrantes não dependia somente de seu valor político, mas, como afirma Robert Ezra
Parker, sociólogo da Escola de Chicago, esse tipo de leitura era, para os estrangeiros
residentes em um país onde com frequência não conheciam a língua, “like a general store
in a rural community”. 18 Por isso, instintivamente, todos os colaboradores do La
Battaglia se ocupavam frequentemente de temas que lhes ajudavam a compreender
melhor o Brasil e a situação da comunidade italiana, apesar das recomendações de Ristori,
preocupados que seus compatriotas se afastassem da luta política.
Além disso, Parker considera que outro grande mérito da imprensa dos imigrantes
era fazer conhecer a cultura dessas numerosas comunidades de imigrantes aos cidadãos
dessas grandes cidades. Por isso, nas próximas pesquisas será muito importante
18 PARKER, Robert Ezra. The immigrant press and its control, p.113
compreender até que ponto esses jornais, apesar de terem nascido com objetivos políticos,
conseguiam realizar essas outras funções sociólogas (PARKER, 1970).
Uma redefinição dos valores dos militantes anarquistas no Brasil
Além das temáticas que evidentemente tinham uma relação direta com o novo
ambiente em que esse grupo de militantes anarquistas desenvolveram a sua visão política
(o novo país, a imigração entre Brasil e Itália e a diferente função do jornal nesse
contexto), a análise do La Battaglia nos permitiu compreender melhor alguns aspetos que
caracterizam a personalidade dos militantes que se mudaram para Brasil ao começo do
século vinte
Sem dúvida, Ristori e seus companheiros manifestam nos seus artigos
constantemente um forte ressentimento contra a classe social que domina a sociedade
graças ao seu poder político e econômico, impedindo aos grupos sociais mais pobres de
obter uma maior justiça social. A esse propósito, se decide publicar o faustoso menu com
o qual a modesta Câmara municipal de Amparo acolheu o presidente do estado de São
Paulo Albuquerque Lins. O comentário do autor desse artigo é muito ácido: “Amanhã se
esses desgraçados, que pagam, em nome da pátria, essa festa desceram à rua para pedir
algumas melhoras, os senhores que banquetearam farão atirar contra eles”.19 É forte o
contraste existente entre o luxo dos poderosos e os pobres que se lançam para recuperar
os restos da comida.
Um tom igualmente crítico se encontra em um breve artigo onde o anônimo autor
se pergunta “onde acaba o dinheiro que cada município recolhe” em um momento em que
19 “Come si trattano i nostri tutori. Cose di questo mondo”, La Battaglia, 2 de maio de1909, p.4.
a população está atingida pelas constantes limitações econômicas20. A esse propósito no
La Battaglia se cita também o caso de João Florindo, secretário estadual fugido com o
dinheiro público, e que esse não seria um caso isolado: “Não concordam todos em
dilapidar o patrimônio público? O que importa se nas diferentes instituições públicas cada
um rouba de maneira diferente?”.21 Não são somente os políticos e os administradores da
República brasileira a serem acusados de desonestidade, mas às vezes os artigos do La
Battaglia atacam também os responsáveis do seu país de origem.
Em um artigo, La Battaglia ressalta o escândalo do Banco de Roma acontecido no
fim do século XIX, manifestando inclusive uma notável impaciência para os atuais
administradores: “Temos que lamentar a dominação dos bárbaros: fraudes, roubos,
extorsões, desvios peculatos, constantes saqueios de bancos e do caixa do Estado.”22 A
burguesia de qualquer pais é considerada, no jornal de Ristori, como “uns parasitas de
carne e ossos que pertencem a nossa mesma espécie”.23 A única função desses homens
políticos seria aproveitar da sua condição de poder sem participar realmente no processo
produtivo. Os tons e os linguagens utilizados pelos redatores do La Battaglia podem ser
diferentes daqueles dos meios de comunicação utilizados pelos “indignados” da nossa
época, mas o conteúdo e o sentimento de raiva suscitados pela injustiça social dos
potentes parecem ser muitos próximos ideologicamente.
Para Oreste Ristori “essa imoralidade e essa pilhagem que funciona como sistema
de governo em todos os organismos da vida administrativa não se podem suprimir nem
combater com a simples substituição de um presidente da república”. O diretor do La
20 “Come si sbafa”, La Battaglia, 23 de maio de 1909, p.3. 21 “Come si deruba il pubblico”, La Battaglia, 4 de setembro de 1904, p.1 22 “Un’immensa collezione di ladri”, La Battaglia, 4 de settembro de 1904, p.3 23 “Un esercito di Pidocchi”, La Battaglia, 25 de setembro de 1904, p.4
Battaglia toma essa posição quando Hermes de Fonseca se apresenta como candidato à
presidência da República, demonstrando a condição de impotência da população nesse
sistema político onde predomina a desonestidade dos administradores.
De fato, a hostilidade que manifesta esses anarquistas imigrados no Brasil contra o
sistema parlamentar provoca também a sua polemica contra os socialistas reformistas. Já
no Amigo do Povo, periódico onde já colaboraram vários redatores do La Battaglia, se
ridiculariza o discurso do político socialista Prampolini, proferido no Parlamento,
aplaudido também pela direita. A nomeação de um ministro socialista ao título de
Cavaliere del lavoro suscitou também por parte dos anarquistas italianos uma crítica
irônica, pois Prampolini seria obrigado a respeitar uma série de normas consideradas
indignas para um representante do proletariado.
No La Battaglia é dedicada uma atenção particular ao socialista reformista Antonio
Piccarolo, que depois de ter participado na Itália da fundação do PSI e de ter tido diversos
cargos eletivos no partido, emigrou em 1904 ao Brasil para dirigir o Avanti!
(BERTONHA, 1999, p.11). Pelo seu socialismo moderado e disponível ao
parlamentarismo que sempre o caracterizou, ele se afastou do jornal e criou o Il Secolo
em 1906 e o Centro Socialista Paulistano em 1908. Segundo Ristori, quem, como
Piccarolo, queria defender e reivindicar os direitos dos trabalhadores, participando no
sistema parlamentar teria o mesmo comportamento que “todos aqueles doutores,
advogados... que não encontrando espaço na burguesia, colocaram a gravata vermelha”.24
24RISTORI, Oreste. Tutto è metafisica al mondo, La Battaglia, 7 de janeiro de 1906, p.1.
Também Cerchiai se mostra convencido do que “o socialismo nunca vai chegar do
parlamento”25 . O interessante é que ele, nos seus artigos, entra nos detalhes do
funcionamento democrático, citando casos concretos do mal comportamento dos
representantes do povo. Nesse sentido, ele faz referência ao absenteísmo dos
parlamentares que se definem como “populares” (socialistas, republicanos, radicais...) nas
votações necessárias para anular o financiamento das congregações religiosas. Esses
representantes políticos, ao contrário, participam nas votações das leis formuladas para
reduzir os conflitos entre capital e trabalho. É assim, segundo o militante toscano, que
eles ocupam um espaço político que poderia ser utilizado pelos movimentos com “novas
ideais”26.
Cerchiai, no La Battaglia, critica o socialismo confiado nos sistema parlamentar
presente em vários países (Bélgica, Itália, França e Áustria) por não apoiar as
reivindicações dos trabalhadores. Esses últimos são vítimas das manipulações e dos
sofismas presentes nos discursos dos representantes reformistas, porque na realidade “no
meio do povo não se encontraria o revisionismo de Bernstein, plagiado tão mal pelo
socialista Filippo Turati.27
É evidente que a posição crítica que guardam os redatores do La Battaglia contra
os socialistas reformistas depende também do contexto político italiano. Como já afirma
Malatesta, quando polemiza contra o congresso socialista realizado na Suíça em 1897:
Os socialistas democráticos, movidos pelo espírito de dominação e de
centralização que os animam, gostariam de confundir em uma mesma
25 DE GIGLI, Anna. “La mistificazione scientifica del socialismo”, La Battaglia, 28 de maio de
1909, p.1.
26 MASTR’ANTONIO (Cerchiai). “La democrazia all’opera”, La Battaglia , 23 de maio de 1909, p.4. 27 DE GIGLI, Anna(Cerchiai). “La mistificazione scientifica del socialismo”, La Battaglia, 28 de maio de
1909, p.1.
instituição seu partido e o movimento operário, subordinando a resistência
econômica à luta eleitoral28
Ao mesmo tempo, no contexto brasileiro, afastado das constantes polemicas que
caracterizavam, segundo o conhecido pensador Camillo Berneri, o debate libertário na
Itália, o tradicional antiparlamentarismo dos anarquistas italianos no Brasil podia
encontrar facilmente argumentos que reforçassem a sua propaganda. Como bem demostra
José Murilo de Carvalho na sua vasta bibliografia, os mecanismos da Primeira República
eram incapazes de garantir os princípios democráticos necessários para respeitar os
direitos do povo brasileiro. Ao contrário, nesse sistema político o chefe político podia
seguir utilizando aquelas mesmas artimanhas que lhe garantiam a conservação do poder
no período do império: o cabalista se preocupava de manter o maior número de eleitores
do seu chefe na lista de votantes, os capangas se encargavam de ameaçar os eleitores dos
adversários políticos e os honestos cidadãos frequentemente renunciavam a participar dás
eleições por medo de ser vítimas de violências...
Além disso, segundo Murillo de Carvalho, os brasileiros não tinham passado por
aquele processo necessário de formação para transformá-los em cidadãos de uma
república democrática, visto que aquela sociedade brasileira era profundamente marcada
pela tradição escravocrata que dominou o país por vários séculos (CARVALHO, 1987).
Nesse contexto, os redatores do La Battaglia dão uma imagem bastante crítica
do povo brasileiro . Em alguns artigos, eles parecem atribuir as responsabilidades dessa
dramática situação social também aos habitantes do país: “Cada povo tem o governo
que se merece e nós pensamos que o Brasil não pode ser uma excepção a essa regra
28 MALATESTA, Errico. “Il congresso socialista Italiano in Svizzera”, L’Agitazione, 18 de junho de
1897, p. 132.
geral” 29 O mesmo Ristori afirma que o povo brasileiro poderia encontrar a maneira de
sair dessas terríveis condições de vida, mas parece “infectado pelo bacilo da
imbecilidade”30.
Em alguns artigos parece que a difícil situação social que os trabalhadores vivem
no Brasil depende também da atitude que mantem a população brasileira. Se ironiza
sobre a alegria do povo que fica impressionado da iluminação e das bandeiras que
caracterizam as festas religiosas e aquelas patrióticas apesar de que seja a mesma
população que “coloca a mão no bolso e paga”. Frequentemente os redatores do La
Battaglia sublinham que os poderosos aproveitam da situação porque “o povo paga e
fica calado”31.
Às vezes é inclusive o povo que protesta contra quem se esforça de denunciar a
exploração dos trabalhadores e da sua ignorância: em um artigo do La Battaglia se
conta o caso de um escritor de esquerda que é assaltado pela população de Curitiba por
ter publicado um artigo anticlerical. O autor justifica esse triste acontecimento,
lembrando “os muitos séculos de escravidão e ignorância que [o povo] sofreu”32.
Inclusive a raiz da dura realidade que vivem os imigrantes italianos no Brasil
depende da atitude que guardam os trabalhadores brasileiros nas empresas. Luigi
Malavasi, um dos colaboradores do La Battaglia, quer demostrar que a responsabilidade
das tristes condições do trabalho no Brasil “não depende dos patrões mas do
29 RISTORI, Oreste. “La baraonda politica”, La Battaglia, 30 de maio de 1909, p.1.
30 RISTORI, Oreste. “La baraonda politica”, La Battaglia, 30 de maio de 1909, p.1.
31 “Come si sbafa”, La Battaglia, 30 de maio de 1909, p. 3. 32 “Bestie umane”, La Battaglia, 2 de abril de 1905, p.1.
trabalhador, o que aconteceria se todos os trabalhadores se rejeitassem de trabalhar de
graça? [...] A resposta é muito simples: pagar o trabalhador adequadamente ”33
Essa leitura da realidade brasileira nos surpreende muito, tendo em conta qual é a
visão dominante do povo entre os pensadores libertários: é suficiente lembrar a posição
de Kropotkin, muito publicado pelos imigrantes italianos, que exalta tanto a função da
revolução popular. É importante sublinhar que inclusive os mesmos redatores de La
Battaglia precisam tomar a distância da sua própria posição. Por exemplo, em um artigo
Ristori tem que se justificar por ter subido algumas críticas dos leitores brasileiros,
especificando que “nada temos encontra da população brasileira que não tem nenhuma
culpa e é completamente inocente” 34.
Provavelmente, os imigrantes italianos tinham essa atitude porque sentiam falta
de uma instituição que defendesse os direitos dos trabalhadores em um contexto tão
difícil. A posição crítica que eles tomam a respeito da povoação brasileira é a
consequência de uma distância cultural existente entre esses imigrantes, que fugiam
frequentemente da sua terra por razões políticas e de um país ainda profundamente
marcado pela dramática experiência da escravidão. Os anarquistas italianos manifestavam
maior compreensão com seu povo “vítima dos abusos dos poderosos”, porque tinham
uma maior identificação em eles e um melhor conhecimento dos mecanismos de
dominação dos quais também tinham sido vítimas.
33 MALAVASI, Luigi. “Ai graduati”, La Battaglia, 30 de maio de 1909, p.3
34 RISTORI, Oreste. Le nostre sferzate, La Battaglia, 25 de setembro de 1904, p.1.
É significativo que essa mesma visão da população brasileira apresentada no La
Battaglia parece afeitar também os anarquistas portugueses, visto que o historiador
Claudio Batalha encontra uma atitude parecida no jornal anarquista a Voz do trabalhador.
Em um artigo do 15 de julho de 1908, afirma-se que a classe trabalhadora no Brasil vive
ainda em um “estado de indolência” e de “prostração horripilante”, como se existisse
ainda a escravidão. Também o historiador José Murilo de Carvalho faz referência a essa
mesma atitude, quando cita um biólogo francês que afirmou que “o Brasil não tem povo”,
(CARVALHO, 1987, p.66). Evidentemente os imigrantes europeus desse período tem
dificuldade em analisar lucidamente a complexidade da realidade social do Brasil.
De toda maneira, a nossa analise temática do jornal La Battaglia nos permitiu
compreender aspetos da militância libertária que dificilmente comparecem com essa
clareza na imprensa libertaria italiana: a distância ideológica com os socialistas
determinada pela estratégia parlamentarista da sua diretoria, o ressentimento contra a
classe dominante dos sistema político e econômico, a dificuldade de interagir com uma
população pouco interessada à visão social dos anarquistas...
Além disso, o que me parece, sem dúvida, muito relevante observar é que, se
comparamos o tipo de mensagem apresentado na propaganda anarquista na Itália e os
artigos aparecidos nos jornais em língua italiana no Brasil, o discurso político é muito
mais simples e direto. Os redatores do La Battaglia parecem explicar sua visão sem se
preocupar tanto com as consequências e com as polêmicas que podiam suscitar suas
afirmações no seu próprio campo ideológico. Por exemplo, Cerchiai afirma sem medo de
ser desmentido por seus companheiros que os princípios do seu movimento eram:
1) Transformação das propriedades privadas em propriedades coletivas ou
comuns;
2) Abolição de todos os privilégios de casta ou de classe;
3) Abolição de cada poder: Exército, magistratura, etc.;
4) Internacionalismo de todas as reivindicações, isso é, abolição política e
jurídica dos Estados. 35
Nesse discurso claro e imediato desaparecem todas as nuances que caracterizavam
os discursos de pensadores anarquistas italianos, como Malatesta, Fabbri ou Saverio
Merlino, que se esforçavam em encontrar possíveis compromissos entre as várias
tendências do anarquismo.
Provavelmente, os anarquistas italianos emigrados no Brasil se sentiam mais livres
para se expressar em um contexto diferente, onde o peso das autoridades do campo
libertário era menos relevante. Além disso, temos que ter em conta que a maioria desses
militantes teve um papel de segunda fila no movimento anarquista italiano e que tinham
uma preparação intelectual mais modesta do que os pensadores anarquistas que acabamos
de citar. É por isso que muitas vezes o seu ponto de vista nos parece especialmente
significativo, porque parece ser mais representativo da visão que havia entre a maioria
dos militantes anarquistas quando adotavam essa visão política. Por isso, com frequência
o pensamento libertário parece assumir traços mais concretos e realistas nesses jornais do
que nas complexas dissertações dos seus companheiros mais preparados.
35 DE GIGLI, Anna. “La mistificazione scientifica del socialismo”, La Battaglia, 28 de maio de 1909, p.1