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FriedrichNietzscheUm guia
Introdutório
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Friedrich Nietzsche: um guia introdutório
Vinicius Siqueira (Org.)
Talvez não seja tão fácil ler Nietzsche. Talvez alguns iniciantes
esbarrem em conceitos que ainda não conseguiram dominar.O objetivo deste e-book é juntar artigos introdutórios,
comentários sobre conceitos de Nietzsche, e organizá-los para
servir como um mini-manual.
Este livro contém artigos de:
Vinicius Siqueira (Colunas Tortas);
Rafael Trindade (Razão Inadequada);
São Paulo
2016
https://colunastortas.wordpress.com/https://colunastortas.wordpress.com/https://colunastortas.wordpress.com/http://razaoinadequada.com/http://razaoinadequada.com/http://razaoinadequada.com/http://razaoinadequada.com/https://colunastortas.wordpress.com/
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Nietzsche: um guia introdutório
Prefácio
Nietzsche é um dos autores mais lidos do mundo. É o filósofo mais
popular do planeta, mais pesquisado em universidades e seus livros
são best-sellers. Mas não é incrível como o livro mais vendido do
alemão seja Assim Falou Zaratustra, sua obra mais hermética, mais
difícil?
Nietzsche vende, por isso é reimpresso e reeditado. Nietzsche é um
campeão no mercado, afinal, foi criado um mito em torno do autor,
como se ele fosse a fonte de toda sabedoria do mundo. De certa
forma, faz parecer que o alemão é um terapeuta, um autor de
autoajuda. Coisa mais errada não há.
O objetivo deste e-book é apresentar alguns conceitos-chave da obra
de Nietzsche. Aquilo que o leitor precisa aprender pelo menos. O que
é genealogia, chave para entender a genealogia da moral? O que
moral, chave para entender a obra citada agora? O que é niilismo?Vivem chamando Nietzsche de niilista, mas o que significa este termo
na obra do autor? O que é eterno retorno?
Acreditamos que este livreto poderá ajudar aqueles que querem
começar os estudos sobre Nietzsche, e entendemos que o papel
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deste livro não é grandioso: é só um tira-gosto, pois ainda é papel do
leitor buscar pelo prato principal.
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Nietzsche: um guia introdutório
O que é a Genealogia em Nietzsche?
Por Vinicius Siqueira
A criação do procedimento genealógico, no pensamento
nietzscheano, foi uma forma de conseguir unir a filosofia e a história
sem cair em teleologias ou em um puro arquivamento de dados
históricos. Nas tentativas de Nietzsche, tudo começou com a criação
da distinção entre “História”, “Filosofia da história” e “Filosofia
histórica”.
Da genealogia em Nietzsche
Essa distinção, citada acima, pode ser resumida da seguinte
maneira, de acordo com as críticas de Nietzsche a cada uma dessas
perspectivas:
- A crítica da “História” é de sua concretização como uma disciplina
científica. Para Nietzsche, quando se exige que a História
seja “verdadeira” e que se encaixe nos padrões do método científico,
se retira toda a ligação com a vida que ela formou em seu caminho ea primeira consequência disso é “que uma tal prática da história é
inevitavelmente paralisante: nada permitindo mais selecionar entre
os fatos verdadeiros aqueles que importam reter, o passado se torna
o apeiron [infinito, ilimitado] sob o qual o presente se
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encontra imerso”, argumenta Bertrand Binoche, professor da
Universidade de Paris I.
A segunda consequência é o nivelamento de todos os fatoshistóricos. Afinal, se todos os fatos verdadeiros são de igual
importância, então qual seria a razão de preferir um a outro?
“Admitindo que um deles se ocupe com Demócrito, está sempre em
meus lábios a pergunta: mas por que justo Demócrito? Por que não
Heráclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou Descartes? – e assim por diante,
à vontade”, diz Nietzsche, citado por Binoche. “A história verdadeira
é a história que acredita recusar todo juízo de valor, sem ver que
acredita na verdade”, continua o autor alemão.
- Já a “Filosofia da história” é criticada por suas características de dar
sentido à história retrospectivamente. São as grandes teleologias,
como a hegeliana que, por fim, encontra na história uma “forma
acabada da teodiceia”, explica Binoche: “toda tentativa de ordenar a
história a um sentido equivale, em consequência, a produzir uma
‘teologia embuçada’ ou ainda o que a quarta Extemporânea denuncia
como uma ‘teodiceia cristã embuçada’. É exato que a filosof ia da
história justifica Deus, mas é precisamente por essa razão que épreciso colocá-la porta afora”. Por conta disso, o professor afirma que
a filosofia da história é:
1) Extravagante por sua pretensão: como é possível seriamente
se crer no ápice da história universal?
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2) Inconsequente: consciente do ridículo de sua tese, Hegel não
ousa declarar o que, contudo, dela deduz-se
necessariamente: “Aliás, ele teria mesmo de dizer que todas
as coisas que viriam depois dele só devem ser avaliadas,propriamente, como a coda musical de um rondó da história
universal ou, ainda mais propriamente, como supérfluas. Isso
ele não disse (…)”;
3) Servil , na medida em que transforma o homem moderno num
“adorador do processo”, num “idólatra do real” que curva a
espinha diante dos fatos e se inclina diante de todo sucesso,
já que a História é seu verdadeiro sujeito.
Esses três pontos se diferem substancialmente da genealogia em
Nietzsche, como será visto no decorrer do presente artigo.
A segunda crítica é em sua democratização da história: ao formular
leis para a história, se perde aquilo que vale a pena investigar, os
grandes homens, indivíduos dignos que não fazem parte do povo,
mas são pontos acima de qualquer linha média, “com efeito, a
filosofia da história pretende formular leis da história; tais leis, porém,
são concebíveis apenas se o historiador trabalha sobre massas, que
fazem aparecer regularidades estatísticas”, explica Binochi.
Trabalhar sobre massas é uma maneira de negar a vida e submeter
o homem ao rebanho.
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- A “Filosofia histórica” se concretiza como uma união sem
subordinação da história com a filosofia. É aquilo que viria a ser
chamado de genealogia, mais tarde. A filosofia histórica de opõe à
filosofia metafísica, que é aquela que coloca os sentidos das coisascomo se sempre tivessem existido, como o “belo”, “justo” e etc.
Segundo esta filosofia, as coisas citadas são a-históricas e só é
necessário descobrir seu verdadeiro significado.
A filosofia histórica encontrou, primeiramente, na história dossentimentos morais uma maneira de pensar o vir a ser sem divinizá-
lo, sem colocá-lo em um pedestal – de procurar na história dos
conceitos morais uma outra história mais interessante, que é a dos
próprios sentimentos que os próprios julgamentos morais
transformam. Segundo Binochi, “não se trata mais, portanto, do
problema do valor da história, mas dos valores na história, estes
transformando o próprio homem enquanto agregado de instintos”.
No início de sua trajetória, a genealogia em Nietzsche (ainda não
nomeada como tal) se apoia no utilitarismo inglês para realizar tal
façanha:
Nietzsche lança mão de um esquema perfeitamente
identificável: na origem, a utilidade dita o valor, depois o
hábito recobre a causa, deixando subsistir o efeito, ao
qual é preciso, por conseguinte,
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estabelecer, retrospectivamente, uma nova causa,
completamente fictícia; é por isso que a história dos
sentimentos não pode ser identificada com a dos
conceitos que os designam posteriormente. Olhando de
perto, a origem não desaparece, ela permanece,
mas dissimulada pela segunda origem que se lhe
sobrepõe a posteriori: ‘Tais ações, em que foi esquecido
o motivo fundamental, o da utilidade, denominam-se
então morais: não porque seriam realizadas por aqueles
outros motivos, mas porque não são feitas em nome
da utilidade consciente1
Mas sua perspectiva muda radicalmente em “Genealogia da moral”,
quando a utilidade já não é tão importante, mas a potência toma
conta da explicação,
Para a genealogia da moral, em que, a propósito do
castigo, encontra-se exposta a historicidade genealógica
propriamente dita, segundo a qual toda coisa sempre se
encontra já interpretada por uma vontade de potência que
lhe confere seu valor e seu sentido até que outra vontade
de potência se aposse dela e a recubra com um novo
valor e um novo sentido, para além de qualquer
‘evolução’ e em total contingência.2
1 BINOCHE, Bertrand. Do valor da história à história dos valores. Cad. Nietzsche, São Paulo
, v. 1, n. 34, p. 35-62, jun. 2014.2 Do valor da história à história dos valores...
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Quando se reduz “bem” ou “mal” à utilidade se mantém uma
característica universal de seus valores. A metafísica permanece,
apesar de sub-reptícia. Sem contar que pretender pela utilidade é
também traçar uma história linear do desenvolvimento humano, comose tivesse uma direção já dada. Ainda por cima, a utilidade é sempre
– naquela perspectiva – uma utilidade para o rebanho, para a massa.
O novo procedimento precisava de um nome, que conseguisse
expressar a noção da morte de Deus, portanto, da morte da
“sucessão contingente de hegemonias provisórias” durante a história.
Genealogia caiu como uma luva.
Em resumo, para uma genealogia nitzscheana ser feita, é necessário
perceber que não se trata de encontrar aquilo que é útil à comunidade
ou aquilo que é “teleologicamente favorável à espécie”, explicaBinochi. Se trata de entender que a utilidade está a serviço da
vontade de potência e que, sendo assim, o “útil genealógico” é aquilo
que permite que a potência se estenda indefinidamente, que os
modos de existência que se impõe aos indivíduos são como são
porque é somente desta forma que é possível avaliar o mundo e a si
próprio, em função daquilo que pode estender a potência.
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Nietzsche – O que é um filósofo?
Por Rafael Trindade
Desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a
filosofia de sua pessoa3
Nietzsche sabe filosofar com o martelo, mas também sabe dançar.
Sua definição do filósofo é tão múltipla quanto as forças que nelehabitavam. Há nele uma singularidade belíssima: a vida confunde-se
com o pensamento. O simples fato de existir, se reflete em uma
maneira de existir – eis a filosofia: quais são os valores que
engendram uma vida? Como a saúde e a doença fazem de um corpo
um filósofo?
Num homem são as deficiências que filosofam, no outro,
as riquezas e forças. O primeiro necessita da sua filosofia,
seja como apoio, tranquilização, medicamento, redenção,
elevação, alheamento de si; no segundo é apenas um
formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma
triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com
maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos4
3
Nietzsche, A Gaia Ciência, Prólogo, §2.4 Nietzsche, A Gaia Ciência, Prólogo, §2.
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Nietzsche não quer saber de mundo das ideias, este ídolo quebrou-
se há muito tempo. O filósofo alemão também não perde tempo
subindo uma montanha com as tábuas que serão gravadas com as
leis de deus, Deus está morto, resta este mundo e nós que ohabitamos. Quem filosofa são os homens, e ela nasce da saúde ou
da doença. Se no primeiro existe uma Vontade de Potência em
constante atualização, no segundo encontramos um corpo enfermo,
fraco, procurando em que se segurar.
“Que virá a ser do pensamento mesmo que é submetido à pressão
da doença? ” (Nietzsche, A Gaia Ciência). De onde nascem as
filosofias ascéticas? De onde nascem os ideais? Nietzsche responde
isso em seu livro Genealogia da Moral: o homem doente vive a falta
de sentido, não tem a capacidade de afirmar-se, não pode suportar a
dor e cria mundos e planos onde procura descansar e se esconder.
Todo idealismo, toda filosofia e religião até agora, todo platonismo
disfarçado, todo desejo revolucionário de um mundo perfeito foi
produto de um corpo cansado, esgotado, ávido por um paraíso
perdido onde possa repousar.
A filosofia nasce do corpo, em Nietzsche, filosofia e fisiologia se
confundem.
Temos de continuamente parir nossos pensamentos em
meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo
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sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento,
consciência, destino e fatalidade que há em nós.5
Saber viver, enfrentar a dor, fazer do sofrimento ferramenta parasuperar-se. Se a vida é o prato do dia, a dor é seu tempero. O filósofo
faz de seu corpo instrumento para afirmar valores e encontrar novos
modos de vida.
Nietzsche sofria de dores de cabeça horríveis que às vezes odeixavam de cama por dias. Ele era extremamente sensível ao clima
e à culinária dos lugares por onde passava. Parte de sua vida foi
dedicada à encontrar o melhor clima, os melhores pratos, os
melhores livros, músicas. Aquilo que não o matou, o fortaleceu. “O
veneno que faz morrer a natureza frágil é um fortificante para o forte
– ele nem o chama de veneno” (Nietzsche, A Gaia Ciência). Ele
soube fazer de sua dor o remédio para tornar-se mais forte, não o
entorpecente para fugir do mundo e de si mesmo. Se o sofrimento é
a condição de crescimento e criação de qualquer artista, porque não
seria também do filósofo?
Mas o fato de que hoje todos falem de coisas de que não
podem ter qualquer experiência vale particularmente, e
desgraçadamente, para os filósofos e os estados
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Nietzsche, A Gaia Ciência.
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filosóficos: – a pouquíssimos é dado conhecê-los, e todas
as opiniões populares acerca deles estão erradas.6
Isso fez de Nietzsche um filósofo sem meias palavras. É de seesperar, então, que sua concepção de filósofo não seja das mais
amistosas. Filos (amigo) e sofia (sabedoria) são interpretados por ele
de uma perspectiva diferente. O filósofo, para Nietzsche, é aquele
que carrega o martelo, e faz a sabedoria passar pelas mais duras
provações. Que grande amigo da filosofia é este personagem cuja
dureza e rispidez tira o melhor que tem de seu material de trabalho.
O filósofo, com sua disciplina e rigidez, talvez até truculência, busca
lapidar um diamante bruto, desinfetar a ferida purulenta.
“Entendo o filósofo como um terrível corpo explosivo diante do qual
tudo corre perigo”7.
Para Nietzsche, a filosofia não deve ser o refúgio dos fracos. Filosofar
está distante de rezar, pregar, salvar, cuidar… O filósofo é o contrário
de um sacerdote e a filosofia não é uma casa onde os doentes
descansam. Não há compaixão na filosofia! “ Os autênticos filósofos
são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles
determinam o ‘para onde?’ do ser humano”8. Ser filósofo é tornar
6 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §213. 7
Nietzsche, Ecce homo, as Extemporâneas, §3. 8 Nietzsche, Além do Bem e do Mal.
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sinônimo querer e criar, é dar vazão à Vontade de Potência. O
filósofo cria valores, recicla, redispõe, reordena. Filosofar é
comandar: “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade
de verdade é – vontade de poder. Existem hoje tais filósofos? Jáexistiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos? […]”9
A filosofia é a criação e transvaloração de valores. E para criar, os
filósofos assumem diferentes perspectivas, trazem um novo olhar
(aquele que só um homem sadio poderia trazer). O filósofo não sai
do mundo para refletir, pelo contrário, se ele faz avaliações, seu
dever é mergulhar no mundo. Sendo assim, o filósofo não poderia
deixar de ser também um experimentador. Para ir além do bem e do
mal, é preciso experimentar para além da moral. O pensador é comoum alquimista, ele mistura afetos e forças.
Fazer invenções, testar vidas, pensamentos, práticas. Aí faz-se a
diferença entre o “trabalhador filosófico”, definido por Nietzsche como
um pensador menor, e o “livre-pensador”, o filósofo legislador. Um,
busca compreender para reproduzir e copiar, o outro compreende
para inventar e criar em cima. “ Filosofia, tal como até agora a entendi
e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o
9 Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §211.
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que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até
agora baniu”10. Ir para além da moral, mas não se esconder, não fugir,
não ter nojo. Nietzsche faz a negação da negação, ele vira o rostopara tudo que denigra este mundo. O filósofo não se isola, ele anda
no mundo para exaltá-lo e conhecer seus inimigos.
Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro
filósofo, ter passado alguma vez pelos estágios em que
permanecem, em que têm de permanecer os seus
servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio
tenha que ter sido crítico, cético, dogmático e historiador,
e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de
enigmas, moralista, vidente, “livre-pensador” e
praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito dos valores
e sentimentos de valor humanos e poder observá-los com
muitos olhos e consciências, desde a altura até a
distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à
amplidão. Mas tudo isso são apenas precondições de sua
10 Nietzsche, Ecce Homo.
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tarefa: ela mesma requer algo mais – ela exige que
ele crie valores.11
A tarefa do filósofo é então a de assumir uma postura nova, dar vazão
à alegria criadora, à inspiração de artista e deixar-se levar pelo mar
de forças que o farão viver e pensar como um juiz de si. A tarefa do
filósofo é criar e ordenar valores. Mas como chegar tão alto? Como
atingir os cumes do pensamento? Zaratustra ensina a dançar:
somente aqueles com pés leves podem ir tão longe. Sim, a
transvaloração de todos os valores implica em tornar tudo leve.
Deixar todo peso, todo “Tu deves!”, é a tarefa do filósofo dançarino.
É preciso ser muito leve, a fim de levar sua vontade de
conhecimento a uma tal distância e como que acima deseu tempo, a fim de criar para si olhos que abarquem
milênios e, além disso, um céu puro nesses olhos! É
preciso haver se livrado de muita coisa que justamente a
nós, europeus de hoje, oprime, inibe, detém, torna
pesados.12
Aprender a dançar é aprender a ir além de si mesmo, criar valores,
legislar, tornar-se senhor de si, sapatear em tudo que é pesado e
lento. O verdadeiro dançarino é aquele que, apesar da dor dos pés
11
Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §211. 12 Nietzsche, A Gaia Ciência, §380.
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machucados, parece voar. Dor, superação e beleza. O sofrimento
transforma-se em meio para descolar-se do chão. E que outro
caminho haveria? Não queremos a preguiça do homem sedentário.
Tornar-se leve, flexível, imbatível, escorregadio, nômade, impossível
de emboscar. Criar o novo, experimentar, inverter valores, inventar
novos modos de vida: eis o filósofo. Zaratustra disse que só
acreditaria em um deus que soubesse dançar, ele estava certo;
Nietzsche, por sua vez, só acreditaria em um filósofo que soubesse
dançar, tal como ele sabia.
“Eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejarser, senão um bom dançarino”13.
13 Nietzsche, A Gaia Ciência, §381.
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A moral em Nietzsche: o castrado e oespírito livre
Por Vinicius Siqueira
É impossível se referir à moral em Nietzsche sem citar a ligação
necessária que o autor concebia entre este conceito, o socratismo e
o cristianismo. Apesar de irmos em direção de entender o que é a
moral em geral na formulação nietzscheana, é importante
compreender a crítica concreta do autor alemão, que começa com arepulsa à Sócrates e Platão.
Nietzsche, moral dos fortes e moral dos fracos
Reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declínio,
como instrumentos da decomposição grega, como falsos
gregos, como antigregos ("Nascimento da Tragédia"
1872). Aquele consensus sapientium - isto fui
compreendendo cada vez melhor - não prova sequer
minimamente que eles tinham razão quanto ao que
concordavam. O consenso demonstra muito mais que
eles mesmos, esses mais sábios, possuíam entre si
algum acordo fisiológico para se colocar frente à vida da
mesma maneira negativa - para precisar se colocar frente
a ela desta forma14.
14 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos.
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O declínio, a decadência, como já explicado aqui, é o movimento do
niilismo, que tem como arma chave a moral. O consenso representa
exatamente o caminho para esta decadência. O interessante é
entender aqui que havia um afastamento no pensamento socráticono ato de olhar para a vida e a analisar como um objeto exterior ao
ser vivente. Sócrates emitia juízos de valor sobre a vida, ele a
valorava como se pudesse estar fora dela.
No entanto, os juízos de valor a respeito da vida não podem funcionarcom esta autoridade que Sócrates lhes concedeu mediante seus
diálogos. É simples: "o valor da vida não pode ser avaliado. Não por
um vivente, pois ele é parte, mesmo objeto de litígio, e não um juiz;
não por um morto, por uma outra razão", diz Nietzsche no Crepúsculo
dos Ídolos (CI). O que isso significa? Você é vida, não consegue se
avaliar porque está avaliando segundo valores avaliativos que te
constituem. Você é parte daquilo que tenta avaliar através de um
falso distanciamento.
Mas qual é a relevância desta conclusão? Nietzsche também afirma
que "toda e qualquer posição naturalista na moral, isto é, toda e
qualquer moral saudável, é dominada por um instinto de vida" no CI.
O instinto de vida é o livre fluxo da potência, é a potência movida por
forças ativas: a moral natural é a moral dos nobres, da potência e a
moral dos fracos é a moral da repressão, da castração, da religião,
do cristianismo. Ao mesmo tempo,
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A moral antinatural, ou seja, quase todas as morais que
foram até aqui ensinadas, honradas e pregadas, remete-
se, de modo inverso, exatamente contra os instintos
vitais. Ela é uma condenação ora secreta, ora tonitruante
e insolente destes instintos. No que ela diz 'Deus observa
os corações', ela diz Não aos desejos vitais mais baixos
e mais elevados, tomando Deus como Inimigo da Vida...
O santo, junto ao qual Deus sente prazer, é um castrado
ideal... A vida chega ao fim, onde o "Reino de Deus"
começa...15
A tentativa de avaliar a vida e decidir a maneira correta de vivê-la ou
de enxerga-la é, por excelência, força reativa. Ou seja, tentativa de
barrar a potência do outro, de minar a criatividade e de castrar o
desejo. É a moral dos fracos, que depende do outro para existir.
Até agora, conseguimos visualizar a moral em Nietzsche a partir da
divisão da moral dos fortes (moral naturalista), reconhecida como o
livre fluxo da potência, e a moral dos fracos (moral antinatural), vista
como potência movida por forças reativas, que precisam da
referência do outro (e precisam barrar a potência do outro) para
existir. Mas o que é a moral em geral, em Nietzsche?
Segundo Érico de Andrade Oliveira, no artigo A Crítica de Nietzsche
à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima, a moral "não seria um
15 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos.
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capítulo da razão humana [como na visão kantiana], mas o ponto
para o qual converge toda predicação da natureza do homem e de
suas ações". A moral é como um todo que valora a vida e a constitui
o homem, o coloca no mundo e o faz perceber o mundo e suashierarquias de uma forma particular. A moral valora.
É aqui que passamos a entender que "quando falamos de valores,
falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos
obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nósquando instauramos valores" (Nietzsche, CI). A moral é uma forma
de lidar com a vida a partir da valoração do mundo, o dilema da moral
dos fracos e da moral dos fortes é que a primeira tem valores morais
como dados imutáveis, já a segunda os considera como criações
instintivas, explosivas. E é exatamente isso que a Genealogia da
Moral vai expor: a tendência dependente da moral dos fracos e a
explosividade e dominação da moral dos fortes.
A tentativa de avaliar a vida e decidir a maneira correta de vivê-la ou
de enxerga-la é, por excelência, força reativa. Ou seja, tentativa de
barrar a potência do outro, de minar a criatividade e de castrar o
desejo. É a moral dos fracos, que depende do outro para existir.
Até agora, conseguimos visualizar a moral em Nietzsche a partir da
divisão da moral dos fortes (moral naturalista), reconhecida como o
livre fluxo da potência, e a moral dos fracos (moral antinatural), vista
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como potência movida por forças reativas, que precisam da
referência do outro (e precisam barrar a potência do outro) para
existir. Mas o que é a moral em geral, em Nietzsche?
Segundo Érico de Andrade Oliveira, no artigo A Crítica de Nietzsche
à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima, a moral "não seria um
capítulo da razão humana [como na visão kantiana], mas o ponto
para o qual converge toda predicação da natureza do homem e de
suas ações". A moral é como um todo que valora a vida e a constituio homem, o coloca no mundo e o faz perceber o mundo e suas
hierarquias de uma forma particular. A moral valora.
É aqui que passamos a entender que "quando falamos de valores,
falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nosobriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós
quando instauramos valores" (Nietzsche, CI). A moral é uma forma
de lidar com a vida a partir da valoração do mundo, o dilema da moral
dos fracos e da moral dos fortes é que a primeira tem valores morais
como dados imutáveis, já a segunda os considera como criações
instintivas, explosivas. E é exatamente isso que a Genealogia da
Moral vai expor: a tendência dependente da moral do fracos e a
explosividade e dominação da moral dos fortes.
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Moral em Nietzsche: recusa do cristianismo
Primeiramente, Nietzsche recusa o socratismo, 1) devido ao seu uso
da dialética, que é o método dos perdedores, daqueles que não têmoutra saída, afinal, a dialética obriga o forte a se justificar e a provar
que não é um idiota (vide os diálogos de Sócrates) - os fortes não se
justificam, não provam sua honra, eles simplesmente fazem e
dominam. 2) devido ao afastamento da vida que ela promove: a
separação do mundo tal como percebemos e do mundo ideal, assim
como a separação do corpo e da alma promovem o niilismo negativo,
a crença de que a vida de verdade está para além da vida como
percebemos.
Após essa primeira recusa, ele ataca a situação concreta da
decadência exposta no parágrafo anterior (por meio de uma crítica
ao cristianismo),
Deus por conceito contrário e condenação da vida, é
apenas um juízo de valor da vida. - De que vida? De que
tipo de vida? - Mas eu já dei a resposta: da vidadecadente, enfraquecida, cansada, condenada. A moral,
tal como foi entendida até aqui - como por fim foi ainda
formulada por Schopenhauer, como "negação da vontade
de vida" -, é o próprio instinto da décadence que se
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transforma em imperativo. Ela diz: "Pereça!" ela é o juízo
dos que foram condenados...16
A vida termina onde o Reino de Deus começa. Isso porque ocristianismo é a incorporação da tese socrática de que a vida atual
não é uma vida efetiva, é só uma aparência. A vida de verdade só
existirá no paraíso, desta forma, é necessário viver tendo em vista a
salvação.
A hipótese da moral mínima
Érico de Andrade Oliveira, em seu artigo já indicado acima, entende
que a crítica de Nietzsche à moral Kantiana tem como núcleo a "a
falta de discussão, por parte daquela moral, de um critério por meio
do qual a produção e a legitimação de valores são realizadas". Os
valores morais são como dados para esta proposta moral de Kant e,
assim sendo, determinam um tipo de homem monolítico.
A moral em Nietzsche, quando vista sob o ponto de vista da moral
mínima, desligada da metafísica e inserida na efetividade, ou seja,
ligada à situação concreta da multiplicidade de valores e de pessoas,
assim como, que percebe a multiplicidade do indivíduo fora do
rebanho, é uma moral que preserva condições mínimas para a
16 Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos.
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seres de nossa espécie; mas isso não impede que “eles
também poderiam falsos!”18.
Pensando numa separação kantiana entre moral e direito: a moral
está na esfera da autonomia, uma definição/motivação interna (e uma
ação interna) em busca de um fim (que é desinteressado); já o direito
está na esfera da heteronomia, da coação/motivação externa e da
verificação. É assim que o imperativo kantiano é exposto da seguinte
maneira:
Imperativo categórico (moral): Age de tal modo que a máxima
de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como
princípio de uma legislação universal. (na Crítica da Razão
Prática);
Imperativo jurídico: Age externamente de tal maneira que ouso do livre arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos,
Age externamente de tal maneira que o uso do livre arbítrio
possa coexistir com a liberdade de todos. (no Fundamentos
de uma Metafísica dos Costumes).
A diferença entre os dois imperativos está situada na diferença entre
liberdade interna e liberdade externa. Enquanto o imperativo
categórico precisa de um compromisso com a transcendência da
moral como natureza ontológico do homem, o imperativo jurídico é
18 Oliveira, A.O. A Crítica de Nietzsche à Moral Kantiana: Por Uma Moral Mínima.
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verificável, pode ter como avalista, os próprios homens ou a lei, como
indica Oliveira.
Desta forma, a solução pautada no imperativo para garantir a
multiplicidade das perspectivas morais, sem a anulação dos
interesses dos indivíduos, estaria fundada nos seguintes
imperativos:
Imperativo categórico: age de tal modo que teu interesse
(motivo de tua ação) possa ser preservado.
Imperativo jurídico: age de tal modo que tua ação nunca se
torne um valor absoluto.
Essa é, segundo Oliveira, a única maneira de garantir que nenhum
valor seja universalizado e que haja condições mínimas para a da
multiplicidade das perspectivas. É o jeito da moral em Nietzsche
conseguir aproveitar a filosofia kantiana para preservar aquilo que ela
nega: a potência criativa dentro de sua esfera tão brutalizada pela
decadência.
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O niilismo em Nietzsche: decadência comoum processo
Por Vinicius Siqueira
O niilismo em Nietzsche é um conceito chave que precisa ser
discutido. Não é algo misterioso, mas também se diferencia daquilo
que entende-se comumente pelo termo. Quando se fala de niilismo,
é comum entender que se trata da negação de quaisquer valores.
Nietzsche leva o termo para um caminho diferente, se referindo a ele
como uma negação da vida.
O que é a vida? A vida é dominação, violência, afirmação de si, é
exercício da força, é se desligar do rebanho e se individualizar, é
enfrentar o mundo de peito aberto e não se enganar com falsas
crenças, é amar o mundo do jeito que ele é. O niilista, desta forma, é
aquele que acredita em valores que não se confirmam na realidade,
que não têm fundamento metafísico absoluto, é quem deixa de viver
o agora em favor de uma suposta vida futura (num paraíso cristão ou
numa sociedade ideal anarquista).
O niilismo em Nietzsche não é uma escolha, mas é um processo. É
uma situação em que nos encontramos não porque simplesmente
escolhemos individualmente, mas porque fazemos parte de um
processo que atravessa a história. Segundo Giacoia Junior, o niilismo
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pode ser visto de duas maneiras nas obras de Nietzsche: como
resultante da interpretação moral-cristã ou como resultante da crença
nas categorias da razão.
Niilismo, Nietzsche e a interpretação moral cristã
Nietzsche entende que o fundamento niilista da nossa civilização
ocidental não nasce com o cristianismo, mas tem bases anteriores,
no entanto o cristianismo precisa ser interpretado como “potênciacivilizatória do mundo moderno, que sistematiza e universaliza as
condições de conservação e reprodução do ascetismo platônico”. Ou
seja, o que importa no cristianismo é sua estrutura religiosa – é sua
forma de iludir e fazer crer naquilo que não é vida, no nada (é
promover a vontade de nada) e sua força em promover este processo
civilizatório anti-natural.
No texto “Niilismo europeu”, o autor realiza uma pequena reflexão
sobre a interpretação moral-cristã:
Quais são as vantagens que oferece a hipótese moral
cristã?
1. ela conferia ao homem um valor absoluto, em oposição
à sua pequenez e à sua natureza fortuita no fluxo do devir
e do desaparecer;
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2. ela servia aos advogados de Deus, na medida em que
franqueava ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, um
caráter de perfeição, — aí incluída esta “liberdade” — o
mal parecia pleno de sentido;
3. ela coloca no homem um saber que assenta em
valores absolutos e lhe traz assim um conhecimento
adequado sobre o que, precisamente, é o mais
importante, ela impedia que o homem se desprezasse
enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida,
que ele desistisse do conhecimento: ela era um meio de
sobrevivência: — no todo: a moral era o grande remédio
contra o niilismo prático e teórico19.
A interpretação moral-cristã estabelece um lugar para o homem
dentro do devir e retira toda sua pequenez, sua fragilidade. Seu corpo
decrépito é trocado por uma alma imortal. Esse objetivo precisa de
uma noção que dê valor de verdade para sua trajetória, então o autor
alemão continua:
Mas, dentre as forças que a moral desenvolveu, estava a
veracidade: esta se volta finalmente contra a moral,descobre a sua teleologia, a sua perspectiva interessada
— e eis que a visão desta tendência inveterada para a
mentira, da qual se desiste de se livrar, age justamente
como um estimulante. Para o niilismo. Constatamos
agora a presença em nós de necessidades implantadas
19 Friedrich Nietzsche. O Niilismo Europeu.
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pela longa interpretação moral, e que nos aparecem
também como necessidades do não-verdadeiro: por
outro lado, é a elas que parece estar ligado o valor graças
ao qual suportamos viver. Este antagonismo — não
avaliar o que conhecemos, não mais ter o direito de
avaliar as mentiras nas quais gostamos de nos embalar
— desencadeia um processo de dissolução20.
A mentira se transforma no estimulante que nos faz agir. Em nossa
força de viver. Vale dizer que o caminho da superação do cristianismo
está justamente neste ponto: a crença na verdade nos obriga a evitara mentira, nos colocando de frente com a crença religiosa. A
“veracidade” que Nietzsche se utiliza acima é o “imperativo pela
verdade” – esta força é, em seu fim, a auto-supressão da estrutura
religiosa. A exigência daquilo que a estrutura religiosa possibilitou
exigir mas que não pode atender.
Niilismo e as categorias da razão
Para Nietzsche, a crença nas categorias da razão nos faz acreditar
num mundo que precisa ser visto por meio de falsas referências.
Segundo Giacoia Junior, “Nietzsche tematiza três formas do
niilismo,considerado como “estado psicológico”, ou seja, como
conteúdo da consciência reflexiva. Em cada um deles, trata-se
20 Friedrich Nietzsche. O Niilismo Europeu.
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sempre de uma categoria da razão, que dá apoio a uma interpretação
do vir-a-ser e do valor da existência humana na corrente do devir”.
Segundo o comentarista (Giacoia Junior), “O primeiro desses estados
de autoconsciência do niilismo é analisado por Nietzsche na
perspectiva da categoria do “sentido”, ou finalidade. Para suportar a
existência, o homem tem necessidade de interpretar o vir-a-ser como
dotado de um sentido […] O niilismo ocorre, então, nessa primeira
forma, com a descoberta de que não existe nenhum alvo no e para odevir, que o acontecer do mundo e da história não são processos que
se desenvolvem em vista de um fim a ser alcançado, ao qual
estaria ligado o seu sentido e valor. Desse modo, o desalento sobre
a pretensa finalidade é causa do niilismo, enquanto sentimento de
vazio, de um frustrador ‘foi tudo em vão'”.
Ele continua, “A segunda forma do niilismo como estado psicológico
é presidida pela categoria de “totalidade” – enquanto suporte de uma
interpretação global do vir-a-ser. A representação de uma unidade,
de uma organização e sistematização globais conectaria
a multiplicidade caótica dos seres individuais, contingentes e
efêmeros, a uma totalidade integrada e orgânica – a um todo
racional, de infinito valor (panteísmo, monismo, etc.), promovendo a
reconciliação entre a finitude aleatória e o infinito necessário”.
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Já a terceira forma surge a partir das duas primeiras, como uma
situação de negação de sua validade por não compreenderem o
mundo “verdadeiro”. “E com isso, a terceira forma do niilismo surge
como consciência da mendacidade do mundo metafísico, e comodescrença na categoria de verdade – com a descoberta de que o vir-
a-ser é a única realidade – uma realidade, contudo, que não
conseguimos suportar. Balanço final: desprezamos o resultado que
alcançamos pelo conhecimento, ao mesmo tempo que não nos é
mais lícito valorizar aquilo em que gostaríamos de continuar a crer”,
revela o comentarista.
Essas três formas de niilismo em Nietzsche (quando tomando as
categorias da razão como referência) representam a impossibilidade
de continuar com as interpretações baseadas nas categorias de
sentido, totalidade e ser. Acredita-se que há um sentido, quando não
há; acredita-se que há uma totalidade, quando não há; e acredita-se
que, por nada ser de fato uma verdade (ou seja, por não haver
sentido e nem totalidade), não há mais como viver a vida senão a
partir de um movimento autodestrutivo de niilismo passivo, de aceitar
o mundo sem valores e viver de forma covarde, ou seja, sem criar,somente aceitando. Sabemos que o “ser” não pode ser acreditado,
mas não sabemos como viver sem a presença do “ser”, precisamos,
então, entender que a única saída é criar.
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Nietzsche – eterno retorno
Por Rafael Trindade
O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um
demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais
desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está
vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por
incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada
dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o
que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida,
terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma
sequência e ordem – e assim também essa aranha e
esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu
mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre
virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’.
– Você não se prostraria e rangeria os dentes eamaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já
experimentou um instante imenso, no qual lhe
responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão
divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal
como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a
questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais
uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seusatos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de
estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar
nada além dessa última, eterna confirmação e
chancela21.
21 Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência, 341.
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O Eterno Retorno talvez seja um dos pensamentos mais conhecidos
e importantes de Nietzsche. Procurando encontrar alternativas para
fugir do niilismo decorrente da morte de Deus, o pensador alemão
invoca a ideia do Eterno Retorno como possibilidade de aceitar eafirmar a vida. O importante não é pensá-lo como uma hipótese
cosmológica, mas sim como um desafio ético, um pensamento
seletivo. Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim
eternamente? Se fosse condenado a viver a mesma existência
infinitas vezes, e nada além disso, como se sentiria? O Eterno
Retorno é o niilismo usado como ferramenta contra ele próprio.
Este pensamento é um teste que só os fortes podem suportar, um
pensamento que seleciona as forças ativas. Caso se ame a vida e a
frua autenticamente, a ideia do Eterno Retorno é uma bênção. Mas
caso se esteja esperando pela próxima, guiando sua existência por
uma pós-vida, amaldiçoando esta, neste caso, o pensamento de tudo
voltar eternamente seria encarado como uma maldição. Aqueles que
ainda podem nadar, abrem seu caminho em meio ao mar caótico das
forças e chegam em terras desconhecidas, mas o mais pesado dos
pesos faz naufragar os escravos da moral.
Para Nietzsche, este pensamento supera todas as religiões e
metafísicas porque mantém o centro de gravidade ética no real, não
se busca por justificativas além-mundo para valorizar esta existência,
ela se justifica por si mesma. O sem-sentido é uma operação seletiva.
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Mas a seleção é bem diferente da platônica. Aqui a ideia é destruir
em nós o que não pode ser salvo e voltar a criar o que possui a
capacidade de criar. O martelo de Nietzsche serve para destruir e
construir. Ele libera as forças corrompidas pelo ideal. O EternoRetorno seleciona porque dilacera quando passivamente
interpretado e leva ao êxtase quando ativamente interpretado.
Com a morte de Deus, o mundo perde todos os parâmetros
transcendentes em que se guiava. Não temos mais certo e errado,bem e mal como valores que alguma divindade nos revelaria, tudo
passa a ser determinado pelo homem, construído e destruído
exclusivamente por ele. O Eterno Retorno é o niilismo mais selvagem
que assusta aqueles que buscam um sentido. Ele abre dois
caminhos: um onde a exaustão se esgota por si mesma; outro onde
a abundância se supera: se separa e se expande.
Pois bem, se a vida não tem sentido fora da própria vida, se não há
valores transcendentes, então não há nenhum sentido na vida fora
dela mesma, e não há uma entidade para julgar nossas ações. O
Eterno Retorno coage o indivíduo a dar sentido por si mesmo. Ele se
torna criador de valores, operando uma transvaloração de todos os
valores. Esta capacidade de criar e ser juiz é o que justificará sua
existência. Ele precisa escolher e criar pensando “viveria isso
eternamente?”, “se tudo retorna, que forças justificam seu retorno?”.
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A ideia de que tudo pode retornar exatamente igual nos torna
infinitamente responsáveis por nossas escolhas e atitudes. Como
seremos obrigados a vivê-las infinitas vezes, precisamos fazer o
melhor possível, aqui e agora. Precisamos viver de modo que repetirtudo outra vez seja uma bênção! A vida não tem sentido? Ótimo!
Melhor assim! Já imaginaram como seria se o mundo já estivesse
justificado por um decreto divino? Já estivesse tudo decidido por
algum ser superior? Por qualquer entidade que seja? Que tédio! Isso
sim seria um terrível fardo! Não haveria sentido em criar nada. A
moral, a religião, protegeram até agora a vida do sem-sentido, mas o
Eterno Retorno é capaz de liberar as forças e diferenciar. Este é o
papel do pensamento seletivo, acelerar a decadência nos permite ver
quais forças devem se salvar e quais devem ser aniquiladas.
Portanto, o maior de todos os pesos é também o maior de todos os
presentes: se tudo retorna, a vida não tem sentido! Nós damos
sentido a nossas vidas, como um artista que dá sentido a sua obra.
Que bênção! Temos a chance, esta sim nos parece divina, de sermos
responsáveis por nossa própria criação. Nietzsche abriu a
possibilidade de nos tornamos artistas! Esculpindo-nos como nossaprópria obra de arte; dançando a música da vida, não pelo que
acontece depois que ela termina, mas pelo prazer do ritmo e da
melodia.
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Nietzsche – eterno retorno da diferença
Por Rafael Trindade
A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando
exigiu de mim o mais pesado22.
Tornar leve o maior dos pesos! É isso que pretendemos com este
texto. O Eterno Retorno é um conceito de Nietzsche muito lido ecomentado nesta página, Deleuze, grande leitor e intérprete do
filósofo alemão, ocupou-se deste pensamento quando desenvolveu
o conceito Eterno Retorno da Diferença. interpretação radical de uma
ideia já um tanto quanto forte.
E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse
furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse:
“Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá
de viver mais uma vez e por incontáveis vezes”23.
Sim! Esta é a aposta nietzschiana, você suportaria o pensamento doEterno Retorno? A forma homem é capaz de afirmar o retorno de sua
vida pequena e miserável? Conseguiríamos afirmar o retorno de tudo
exatamente igual? “Tudo na mesma sequência e ordem – e assim
22
Friedrich Nietzsche, Ecce homo.23 Nietzsche, A Gaia Ciência, §341.
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também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse
instante“.
Não, o homem não suportaria o Eterno Retorno, ele não abençoaria
o demônio que lhe dissesse isso; na verdade, ele “se prostraria e
rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou“. O
homem não consegue afirmar a existência com força o bastante para
suportar o pensamento do Eterno Retorno; sua vida é muito fraca, ele
pensa no porvir, no bem da humanidade, no progresso, no retorno deCristo…
“Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟ é um
pensamento extremamente pesado para o homem. Por isso, o cerne
da questão é quando Nietzsche escreve: “ou você já experimentouum instante imenso?“. Sim! Quando a Vontade de Potência afirma a
si mesma, ela cria! A Potência é sempre força de criação, produção
do novo, produção de diferença!
O homem está preso na repetição de sua vida medíocre, sente o
peso da existência, sente suas forças se esvaírem. O Além-do-
Homem é capaz de afirmar a existência porque sua força de
afirmação é a de criação de novos valores! Nada é igual porque
quando ele afirma ele o faz criando! A própria essência de seu ser é
sua capacidade de diferenciar-se. O homem pequeno julga, tem
medo, se esconde, pede tutela; já o Além-do-Homem está acima do
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bem e do mal, só ele é capaz de afirmar o Eterno Retorno, porque
para ele, o que retorna é a diferença, não o mesmo.
É no pensamento do Eterno Retorno onde tudo se decide, onde os
fortes se separam dos fracos, onde se diz Sim ou Não à vida e à
existência. Ele é a chave para quebrar o niilismo! Por que o Eterno
Retorno da Diferença separa os fortes dos fracos? Porque ele faz a
seleção das forças. Você suporta o Eterno Retorno? Então você
consegue afirmar a diferença que existe na própria afirmação! Oniilista vence a si próprio, de reativo torna-se ativo. O peso do Eterno
Retorno quebra o homem, o transforma em algo capaz de criar
momentos imensos, onde o que se afirma é a própria afirmação de
sua Vontade de Potência.
O processo se dá em dois momentos. São duas afirmações:
Pensamento Seletivo: acabar com os meio quereres, “Você
quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟. Afirmar
aquilo que se quer, aquilo que se faz e aquilo que passou,“transformar todo foi em assim eu quis”24.
Ser Seletivo: o Eterno Retorno da Diferença é uma roda
(devir) que gira rápido. O movimento centrífugo elimina
aqueles que não conseguem manter-se. O que gira são as
24 Friedrich Nietsche, Assim Falou Zaratustra.
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próprias forças que se afirmam, as forças se afirmam no devir,
somente aquele forte o bastante é capaz de suportar. “Só
volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a
alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que énegação, é expulso pelo próprio movimento do Eterno
Retorno”25.
Por isso trata-se de uma dupla afirmação: do devir, e da própria
afirmação do devir. É um problema ético, aquele que consegueafirmar-se é aquele que dá à Vontade de Potência livre curso. Suas
forças não estão quebradas, seus joelhos não estão dobrados. A
Vontade de Potência sabe que a própria afirmação já é afirmar a
diferença, isto porque a Vontade de Potência é a força de criação e
diferenciação. Por isso torna-se leve e aprende a dançar.
O homem ativo sabe que o que retorna é a diferença, e mais, ele quer
fazer retornar a diferença, está ansioso por isso, operando mortes e
criações! O movimento de diferenciação é a própria marca do seu
ser, ele se diz através da diferença. O pensamento do Eterno Retorno
destrói o homem cansado e o leva à ação, para dar livre curso à sua
Vontade Criadora. O niilismo é vencido por si mesmo.
25 Deleuze, Nietzsche, p. 32
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Tudo se torna leve, tudo dança, tudo acompanha o fluxo de produção
infinita. Não há nada mais leve que o Eterno Retorno da Diferença,
mas “o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida,
para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação echancela?“.
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Por Colunas Tortas.
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