FOLHA UNIVERSAL E A DOMINAÇÃO MASCULINA: UMA ANÁLISE DO
DISCURSO DA MÍDIA IMPRESSA RELIGIOSA
Wellton da Silva de Fatima1
RESUMO
Este trabalho busca compreender os processos de constituição de sentidos sobre a
mulher no discurso do Jornal “Folha Universal” da Igreja Universal do Reino de Deus,
tendo como pressuposto a dominação masculina com base no referencial teórico e
metodológico da Análise do Discurso de linha francesa. O corpus se constitui de duas
edições da coluna Folha Mulher, mais especificamente dos enunciados destacados nos
chamados “olhos” característicos do discurso jornalístico. Buscamos estabelecer nessas
análises a existência dos sentidos estabilizados, mas também a possibilidade de
rupturas, de deslocamentos. Quanto à construção da identidade da mulher, levamos em
consideração e operamos com os conceitos de memória, interdiscurso, formações
discursivas e formações ideológicas; focando nas possibilidades que se dão com as
expressões e cadeias parafrásticas.
Introdução
Religião, dominação masculina e mídia
A noção de dominação masculina em que estaremos inscritos no decorrer desse
trabalho está ancorado nos estudos elaborados por Pierre Bourdieu e se refere,
primordialmente, às relações de poder que eternizam, arbitrariamente, o masculino em
detrimento do feminino no que consiste ao convívio em sociedade, a partir de uma
perspectiva discursiva.
Portanto, nos é caro aprofundarmo-nos nesse conceito em uma perspectiva mais
ampla, afunilando as possibilidades de transversalidade do domínio masculino nas
relações de poder e suas manifestações através do discurso.
A partir de uma visão ampliada, Bourdieu (2014) ressalta a eternização do
caráter arbitrário da dominação masculina, espantando-se em relação a ordem do
mundo, com seus sentidos únicos e seus sentidos proibidos. “ordem estabelecida, com
suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, seus privilégios e suas
injustiças, perpetue-se apesar de tudo [...]”. Sendo assim, a perspectiva que se parte é de
estranhamento do perpetuamento dessas estruturas, mesmo diante de um dado cenário a
que a sociedade encontra-se imersa em seus determinados recortes de momentos
históricos e suas (incertas) progressões de pensamento social.
Há, nesse sentido, uma incorporação de esquemas inconscientes de percepção
das estruturas históricas da ordem masculina, havendo a necessidade, portanto, da busca
de uma estratégia que consista em transformar um exercício de reflexão transcendental
visando explorar as “categorias de entendimento” ou as “formas de classificação” com
as quais construímos o mundo. Tudo isso diante de um panorama etnográfico de
1 Graduando em Letras/Literaturas pela UFRRJ – Bolsista PIBIC/CNPq – [email protected]
estruturas objetivos baseados em uma visão falo-narcísica e na cosmologia
androcêntrica.
A respeito do componente etnográfico percebido no que se refere a construção
social dos corpos há um trato da ordem da sexualidade comparada a dois universos
diferentes, sendo um deles a sociedade Cabila; no tocante a incorporação da dominação,
a ideia da definição social do corpo e dos órgãos sexuais está evidenciada à medida que
se compreende aqui o produto desses dois fatores enquanto um trabalho de construção
social. A violência simbólica, na perspectiva da dominação masculina, consiste no
aparato no qual se encontram reunidas todas as condições do pleno exercício da
sobreposição da masculinidade, através de estruturas sociais e atividades produtivas e
reprodutivas, com base em uma divisão sexual do trabalho.
É relevante notar, também, que na gênese do habitus feminino e nas condições
sociais de sua realização tudo concorre para fazer da experiência feminina do corpo o
limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, desse modo, o corpo percebido é
duplamente determinado socialmente. Postula-se que é através daquele que detém o
monopólio da violência simbólica legítima dentro da família que se exerce a ação
psicossomática que leva à somatização da lei, dessa forma a adesão a ordem das coisas,
do princípio das tendências afetivas atribuídos à mulher na divisão do trabalho de
dominação, da socialização diferencial que predispõe os homens a amar os jogos de
poder e as mulheres a amar os homens que os jogam.
Portanto, compreende-se que o panorama de dominação atual tende à
perpetuação tendo como contracondutas algumas possibilidades como o trabalho
histórico de des-historicização no qual é preciso reconstruir a história do trabalho
histórico de des-historicização, sendo importante a pesquisa histórica que, por sua vez,
não pode se limitar a descrever as transformações da condição das mulheres no decorrer
dos tempos. No que se refere a possibilidade de mudança há de positivo o fato de que a
dominação masculina não impõe mais com a evidência de algo que é indiscutível. E de
todos os fatores de mudança, os mais importantes são os que estão relacionados com a
transformação decisiva da função de dadas instituições que funcionam como aparelhos
ideológicos do estado (Althusser, 1998), na reprodução da diferença entre os gêneros.
Observando fenômenos inerentes às relações humanas em uma perspectiva atual,
pode-se afirmar que a sociedade se circunscreve, ainda, em um regime estrutural
estritamente patriarcal, estando esse regime anterior a agentes sociais como, por
exemplo, a família e a igreja, os quais se configuram enquanto aparelhos ideológicos do
Estado (Althusser, 1998). A organização do patriarcado coloca a figura masculina no
centro do “poder”, estando submetidas a ela as demais instâncias. Desse modo, as
mulheres já se inscrevem na perspectiva da diferença já que se encontram submetidas à
masculinidade. “A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos
simbólicos [...] tem por efeito coloca-las em permanente estado de insegurança corporal,
ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos
outros [...]” (Bourdieu, 2014, p. 96). Ainda de acordo com Bourdieu, as relações entre
os gêneros se dão conforme algumas associações que se dão em uma perspectiva
perpetuadamente simbólica nas quais, por exemplo, as mulheres sempre estão
associadas ao espaço interno, enquanto os homens estarão associados ao espaço externo.
Nesse sentido, a masculinidade é pressuposto fundamental para se exercer determinadas
posições no que se refere aos pares opositivos que contrapõem a vida pública e a vida
privada, o viril e o sensível, entre outras coisas:
Nas faculdades de medicina, a porção de mulheres decresce à
medida que se sobe na hierarquia das especialidades, algumas
das quais, como a cirurgia, lhes estão praticamente interditadas,
ao passo que outras, como a pediatria, ou a ginecologia, lhes
estão quase que reservadas. Como se vê a estrutura se perpetua
nos pares de oposição homólogos às grandes divisões
tradicionais, com a oposição entre as grandes escolas e as
faculdades de direito e de medicina e as faculdades de letras, ou,
dentro destas, entre a filosofia ou a sociologia e a psicologia ou
história da arte. E é sabido que o mesmo princípio de divisão é
ainda aplicado, dentro de cada disciplina, atribuindo aos homens
o mais nobre, o mais sintético, o mais teórico e às mulheres o
mais analítico, o mais prático, o menos prestigioso. (Bourdieu,
2014, p. 127)
Ainda à luz dos estudos de Pierre Bourdieu, e na perspectiva sobre os pares
opositivos que evidenciam as divisões dos papéis de gênero, é possível perceber que há
lugares determinados aos quais somos designados e pré-dispostos ao sermos, no
momento do nascimento, designados segundo a genitália. Sendo o feminino o lado
onerado dessa determinação social, indagam-se os motivos pelos quais a insurgência de
negação a esse “destino” não seja um procedimento comum mesmo na
contemporaneidade, todavia, e seguindo a noção de habitus, entende-se que o processo
é tão naturalizado que a problematização cotidiana fica comprometida, mesmo por parte
das mulheres: “[...] as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de
avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominante que as
leva a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é [...] (Bourdieu, 2014,
p.13)”.
A dominação masculina está enraizada na sociedade e as suas manifestações
perpassam a perspectiva discursiva já que se inscrevem nela componentes ideológicos
cujos sentidos são construídos historicamente. Esses sentidos, ao longo do tempo e das
transformações pelas quais a sociedade passa, perpetuam-se e continuam a fixar a
masculinidade, simbolicamente, como centro do poder em detrimento da figura
feminina. Nesse sentido, compreender as diversas nuances pelas quais se manifestam e
se perpetuam essas estruturas de dominação torna-se urgente.
Refletindo a partir da ideia de prática e de divindade características das religiões
monoteístas, encontramos processos similares principalmente entre as religiões da
descendência de Abraão, tais processos respaldados no texto sagrado e estruturado em
um modus operandis hierárquico que põe em evidencia a figura masculina para além
apenas do ‘embate’ homem/mulher. Aliás, a fundação a que podemos chamar de
‘verbal’ do cristianismo, judaísmo ou islamismo, por exemplo, configuram-se a partir
de uma relação intrínseca com um livro sagrado, cujas escrituras têm diversas funções
perpassando, inclusive, por diretrizes da vida pública e/ou privada. Trata-se de “[...] um
‘cânone da opressão’, que, nas religiões monoteístas, passa pelos livros sagrados e pelas
suas interpretações e reinterpretações por parte das instâncias emissoras dos discursos
oficiais (sempre masculinas!)” (Toldy, 2012, p.2) e, acerca da hierarquização, ressalva:
“O patriarcado não é compreendido nos termos de um sistema sexual binário, mas sim
como uma complexa estrutura piramidal de domínio político e de subordinação [...]”
(Toldy, 2012, p.2).
Em se tratando de Brasil, o Cristianismo, através da Igreja Católica, constitui-se
como religião oficial tornando-se um dos países com o maior número de fiéis da
religião no mundo. O êxito do catolicismo, muito se deve à abordagem e estratégias de
ação da Igreja que, por meio de filosofias que valorizavam a caridade, em grande
medida encabeçada pela Igreja, mas executada pelas mulheres cristãs, o Cristianismo se
institui, cada vez mais forte, como religião dominante. Todavia, nas últimas décadas
observa-se o grande crescimento do protestantismo e mais especificamente das
denominações cristãs de correntes ideológicas neopentecostais.
Dentre os diversos fatores destacados para o crescimento e o êxito do segmento
religioso neopentecostal aqui nos é mais relevante discorrer sobre sua boa relação e
utilização das mídias radiofônicas, televisivas, impressa etc. Na TV, por exemplo, os
programas da Igreja Universal do Reino de Deus, doravante IURD, cativam o público e
exercem a difusão de suas ideias “pela ênfase no exorcismo, na cosmovisão do combate
contra as forças malignas que prejudicam as diferentes dimensões holísticas do ser:
espiritual, físico, corporal, econômico” (Budke, 2005, p.46). Dessa forma é possível
perceber que dentre as características das igrejas neopentecostais está o uso de
elementos da vida cotidiana o que proporciona a criação de uma identidade com os
telespectadores (fiéis e possíveis fiéis). Essa aproximação e (possível) adequação das
igrejas com as pessoas em busca da construção de uma identidade comum faz com que
em diversos momentos, a igreja tenha que ceder na tentativa de acompanhar seu tempo
e se constituir uma possibilidade real para as pessoas que assistem. Isso configura uma
constante tensão entre a doutrina e novas possibilidades, inclusive, de leitura do livro
sagrado.
Prosseguindo à fundação verbal das religiões, é importante ter em vista que a
relação fundamental das religiões com os textos sagrados foi produzida a partir de
tensões através das quais os textos foram submetidos às mais diversas interpretações
decorrentes dos contextos, dos processos históricos e outros contatos que se inscrevem
na forma como se dava a leitura de tais textos.
Admitindo-se novas possibilidades de leitura dos textos sagrados e,
consequentemente, de diretrizes da conduta dos indivíduos segundo à doutrina,
contemporaneamente se vive um momento de reflexão acerca da atuação da igreja, e daí
surge uma problemática: “Agora, que a igualdade entre os sexos é defendida
explicitamente, o discurso da Igreja entra em contradição consigo mesmo, ao insistir
numa antropologia específica [...] que fundamenta exclusões, nomeadamente da vida
pública” (Toldy, 2012, p.6)
Partindo do postulado de que a Igreja, assim como outras instituições como a
família e a escola, apresenta um discurso e uma prática, historicamente, desfavorável à
emancipação feminina, faz-se necessário pensar a transversalidade entre a representação
da religião, ou seja, a Igreja e a dominação masculina, ancorando-se em um aparato
teórico metodológico que permite ir além da superfície linguística, e consequentemente,
além da interpretação de texto e, com isso, alcançar como se dão a construção, a
circulação e a perpetuação dos sentidos que nesse contexto se realizam.
A respeito do embate entre a Igreja e as mulheres podemos iniciar este problema
refletindo sobre a prática da primeira em relação à outra que permite vislumbrar uma
ação discursiva voltada para designar à mulher um determinado lugar, um discurso
sempre vigilante e direcionador, segundo Bourdieu:
Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um
clero pronto a condenar todas as faltas femininas à decência,
sobretudo em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de sua
sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da feminilidade,
ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma moral
familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e
principalmente pelo dogma da inata inferioridade das mulheres
(Bordieu, 2014, p.12)
Tendo o discurso religioso, uma relação intrínseca de dependência com a
dominação masculina, muito pelo fato de estar a Igreja, inclusive, fundamentada em
uma perspectiva estritamente patriarcal, faz-se necessário um trabalho analítico
propositivo de identificação das estruturas que permitem a perpetuação de tal modelo. A
partir da perspectiva discursiva, oferecida pela AD, é possível identificar,
estruturalmente, como se dá a construção dos sentidos sob determinada coisa e, dessa
forma, possibilitar a proposição de desconstruções de modelos enraizados.
Vale ressaltar que, historicamente, a figura feminina tem sido útil às ações da
Igreja. Desde os atos de evangelização aos de caridade, as mulheres tomam a frente das
ações para concretizá-las, de forma que podemos afirmar que a efetividade do trabalho,
digamos, social exercido pela igreja se dá a partir da colaboração do sujeito feminino. A
inclinação feminina para essas ações também se fundamenta em uma lógica de
dominação masculina:
[...] em tarefas de beneficência, sobretudo para a Igreja, em
instituições de caridade ou, cada vez mais, em associações ou
partidos. Não raro confinadas nessas atividades não
remuneradas, e pouco inclinadas, por isso, a pensar em termos
de equivalência entre o trabalho e o dinheiro, as mulheres estão,
muito mais que os homens, disposta a beneficência, sobretudo
religiosa ou de caridade. (Bourdieu, 2014, p.13)
É nessa perspectiva de uma Igreja inscrita em uma condição na qual a
dominação masculina institui desde a organização até o funcionamento de sua estrutura,
que parte de uma fundação verbal na qual há uma relação íntima com as palavras e os
enunciados por elas formados, e que no decorrer do tempo, apropria-se da mídia com o
objetivo difundir as suas ideias a fim de alcançar o maior número de adeptos possíveis
que nos propomos a investigar no ponto onde todas essas questões se imbricam, como
se dá a construção de sentido sobre o lugar da mulher, sabendo-se das questões
supracitadas.
Um problema para a AD francesa
Compreendendo-se não somente como uma teoria, mas também como uma nova
proposta de leitura e de relação com o texto, a Análise do discurso, a que abreviamos
aqui como AD, configura-se como a disciplina do entremeio (Orlandi, 2013, cap.2)
porque se constitui no trabalho contínuo e constante das contradições epistemológicas –
historicamente condicionada – entre diferentes regiões do conhecimento. Assim é que a
proposta epistemológica de Pêcheaux (1969) de articular Ciências Sociais (História,
Sociologia e Filosofia), Linguística, Teoria do Discurso e Psicanálise inaugurou um
novo período de reflexão não só sobre a linguagem, mas também sobre a ideologia – e,
sobretudo, das relações possíveis, de natureza intervalar, entre essas concepções através
da formulação da noção de discurso.
A saber, o movimento aparentemente disperso – mas, na verdade, heterogêneo –
de constituição da AD articulou conceitos de três regiões do saber em seu entremeio, em
seu espaço intervalar – atravessadas por uma teoria do sujeito de cunho psicanalítico –
conforme postulado por Pêcheux & Fuchs (1975):
[...] 1. O materialismo histórico, como teoria das formações
sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das
ideologias;
1. A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos
processos de enunciação ao mesmo tempo;
2. A teoria do discurso, como teoria de determinação histórica
dos processos semânticos (p. 78)
Tendo a noção de discurso como foi condutor de um percurso para compreender
as noções advindas dessas regiões supracitadas e tendo-o, ainda, como ponto de
convergência dos deslocamentos necessários a uma compreensão do complexo processo
semântico-histórico de produção de efeitos de sentido, chegamos à concepção de que na
AD, a noção de história está estreitamente ligada à de social, tendo sido deslocada ao
olhar discursivo através da crítica feita por Courtine (1980) ao conceito de condições de
produção (CP) proposto por Pêcheux (1969): a fim de evitar associações
psicossociologias, que transformariam em simples circunstâncias as determinações
históricas do acontecimento discursivo, Courtine propôs alias a noção de CP à análise
histórica das contradições ideológicas presentes na materialidade dos discursos,
articulando-as às Formações Discursivas (doravante FDs); conceito este emprestado de
Foucault (Vigiar e Punir).
A respeito da ideologia, a principal fonte inicial do pensamento de Pêcheux a
esse respeito foi o trabalho de Althusser, cujas teses de seu famoso artigo “Ideologia e
Aparelhos Ideológicos de Estado” (1998) expomos conforme duas teses:
1. A Ideologia é uma “representação da relação imaginária dos indivíduos com
suas condições reais de existência”;
2. A ideologia tem uma existência material.
Para Althusser, a ideologia não tem história: “a ideologia é eterna” (talvez no
sentido de ‘tempo presente’, que é o vivido, percebido, sentido e experienciado de
modo imediato pelo indivíduo).
Vendo o homem como um animal ideológico por natureza, afirma:
A existência da ideologia e o chamamento ou interpelação dos
indivíduos como sujeitos são uma e a mesma coisa. [...] o que
parece ocorrer fora da ideologia (para ser exato, na rua) ocorre,
na realidade, na ideologia. [...] um dos efeitos da ideologia é a
negação prática, pela ideologia, do caráter ideológico da
ideologia. [...] a ideologia não tem um exterior (para si mesma),
mas, ao mesmo tempo, ela não é nada senão o exterior (para a
ciência e a realidade) (p. 14)
A respeito da discursivização, Segundo Orlandi (1996),
O discursivo pode ser definido como um processo social cuja
especificidade está no tipo de materialidade de sua base, a
materialidade linguística, já que a língua constitui o lugar
material em que se realizam os efeitos de sentido. Daí decorre
que a forma da interpretação – leia-se: da relação dos sujeitos
com os sentidos – é historicamente modalizada pela formação
social em que se dá, e ideologicamente constituída. (p. 146-147)
Do ponto de vista da AD, a linguagem tem na incompletude um de seus
fundamentos: tudo não pode ser dito, e o que pode ser dito não pode sê-lo de qualquer
maneira. A este princípio constitutivo da linguagem, e cerne do conceito de formação
discursiva (FD) corresponde o impossível da língua, o qual se inscreve no real da
língua. Este, segundo Pêcheux (1990, 29-42), não “[...] é o impossível [...] que seja de
outro modo” dos pensamentos escolástico aristotélico, positivista (com seu método
hipotético-dedutivo experimental) e ontológico dialético marxista. Trata-se, para ele, do
“[...] fato linguístico do equívoco como fator estrutural implicado pela ordem do
simbólico.” Aliás, é nisto que consiste o trabalho simbólico da linguagem na
constituição discursiva do referente. Por isso é que a cada enunciação, os sentidos são
(re)negociados, balizados, redimensionados: os sujeitos precisam situar-se
discursivamente, isto é, perceber as posições que ocupam e que são ocupadas pelos
outros, colocar-se no lugar do outro senão para compreender ao menos vislumbrar que o
outro não é completamente o mesmo.
Por isso a linguagem não é uma (homogênea), assim como (e uma vez que) o
sujeito é “dividido”, polifônico, descentralizado. Os sentidos só não tendem à dispersão
ad infinitum porque são circunscritos por determinada FD, que os delimita. Mas
também horizonte, linhas de fuga, pontos de deriva...
Desta forma, postula-se a ambiguidade como fundamento para se evidenciar um
modo de ser da língua, trabalhando a noção de efeito/evidência da língua: esta existe
como corpo/materialidade – o que não autoriza a equivalência (uma forma -> um
sentido – opacidade x transparência). O efeito de aparente transparência da língua se dá
ligada a outras duas evidências: a do sentido (uma palavra da língua se dá ligada a
outras duas evidências: a do sentido (uma palavra significa “x e somente x”) e a do
sujeito (“eu sou y”/origem de si próprio; “eu quero dizer x”/fonte de sentido; “eu digo
z”/origem da linguagem).
Admite-se, então, um apagamento do fundamento ideológico nas discussões
sobre a linguagem, esclarecendo que é isto que a AD tenta resgatar quando fala em
resistência, concebendo-a como um trabalho que se situa na margem entre a dominação
que se faz da linguagem e a que ela estabelece (língua ora como serva, ora como dona
do pensamento). Assim, os enunciados da língua podem sempre escapar à organização
da língua, uma vez que os “furos” e as “faltas” são próprios à ordem da língua são dela
estruturantes no sentido de constituírem-se em “fatos linguísticos estruturais implicados
pela ordem do simbólico” (Pêcheux 1990).
Há uma importante distinção feita por Orlandi, no então artigo “Autoria e
interpretação”, ao investigar a natureza dessa diferenciação entre ordem (do discurso) e
organização (da língua): situa aquela no plano do simbólico (espaço da opacidade dos
sistemas de representação), e esta no plano do imaginário (espaço da ideologia).
Não havendo mais então, em uma perspectiva semântico-histórica (ou
discursiva, nos termos da AD), um centro e uma margem dados a priori, mas dispersão
de sentidos, efeitos possíveis de sentido (discurso), é a formação discursiva (FD) –
concebida como necessariamente constitutiva de uma formação ideológica (FI) – que
determinará qual efeito de sentido prevalecerá em detrimento de outros, o que evoca,
por sua vez a questão do possível da língua e do discurso.
Conforme Orlandi (1987, p. 144), a aceitação da tese da literalidade já é um
efeito discursivo que traz consequências de diversas ordens:
a) Teórica: a literalidade é um produto da história (no sentido de que há um
processo de “hegemonização semântica” determinada pelas relações de
produção, as quais determinam a distribuição do poder em uma sociedade
sendo a teoria do discurso justamente um espaço para a reflexão sobre a
determinação histórica dos processos semânticos);
b) Metodológica: não havendo um sentido nuclear do qual derivam os sentidos
periféricos, cabe ao analista reconstituir (historicamente) como um sentido
dentre (vários/muitos) outros, tornou-se hegemônico/dominante; assim, a
atenção sobre a linguagem se desloca de um percurso psíquico interno
(linguagem-pensamento) para um percurso social externo (linguagem-
sociedade);
c) Analítica: parte-se do funcionamento, do uso (múltiplo, observável, mas não
evidente), e não de uma forma abstrata, para se configurar as condições
determinantes da prevalência de um ou outro efeito de sentido sobre os
demais.
Assim, na visão da AD, quanto ao processo de produção do sentido, não é o
falante/locutor (onipotente, onisciente, onipresente) quem determina a forma e o sentido
do que diz, a construção de um efeito semântico hegemônico sendo determinada pelas
relações de força entre FDs, que não constitutivas de FIs – e através dessas, e em última
análise, por condições de produção específicas (Pêcheux & Fuchs 1975), mas não só de
ordem econômica. De qualquer forma, é essa dinâmica da correlação de forças que
determina (ao menos parcialmente) a possibilidade de interpretação (isto é, a atribuição
de sentidos), cuja discussão remete à questão do (im)possível da língua e do discurso.
É necessário também tratar da relação entre sujeito e enunciação via enunciado,
cuja materialidade fornece a ancoragem linguística necessária do sujeito à história
(historicidade) através da ilusão referencial.
Pressupor que a AD tem o discurso como seu objeto teórico (“fato discursivo”) –
e não simplesmente empírico (“dado linguístico”) -, significa dizer que o concebe
simultaneamente como categorias teórica, conceitual e operacional pela própria
exigência da perspectiva materialista de contemplar a determinação histórica
(constituída simultaneamente pelos componentes ideológico e inconsciente) no processo
de produção dos sentidos que a dicotomia linguística (vs. “linguageira”) “língua/fala”
não recobria. Assim, o discurso é concebido como o espaço, o lugar ou a instância da
linguagem (e não da língua como sistema imanente) em que emergem as significações,
ou ainda, os efeitos de sentido produzidos no processo de interlocução/interação
“verbal” entre formas ou posições-sujeito.
Ainda procedendo às noções que serão necessárias para elucubrar o problema
exposto nessa pesquisa, Courtine (1981) conceitua interdiscurso como
a instância de formação, repetição e transformação dos
elementos de saber de uma FD, em função das posições
ideológicas que ela representa em uma conjuntura determinada.
[...] o interdiscurso é o lugar de formação do pré-construído e
funciona como um elemento regulador do deslocamento das
fronteiras de uma FD, controlando a sua reconfiguração e
permitindo a incorporação de pré-construídos que lhe são
exteriores, provocando redefinições, apagamentos,
esquecimentos ou denegações entre os elementos de saber da
referida FD.
Por isso é possível ao autor ver na contradição o princípio constitutivo de toda
FD. E ele retoma Foucault (1969) para ir além: a contradição é a própria lei de
existência do discurso: “[...] A contradição funciona, assim, no fio do discurso, como o
princípio de sua historicidade.” Assim, segundo Courtine (1981), a FD deve ser pensada
como uma reconfiguração incessante, em que seus limites deslocam-se em função das
posições ideológicas que essa FD representa no interior de uma conjuntura determinada.
Desse modo uma FD deve ser entendida como dois ou mais discursos em um só,
estabelecendo a contradição como seu princípio constitutivo, sendo então uma unidade
dividida e heterogênea, seu contorno sendo fundamentalmente instável, pois não há
limites rígidos a separar os elementos internos de seu saber daqueles que lhe são
exteriores. O domínio de saber de uma FD funciona como um princípio de exclusão do
que nela não é formulável, em função da formação ideológica (FI) de que provém. O
interdiscurso constitui-se, então, no domínio de saber próprio a uma FD, funcionando
como um princípio de aceitabilidade discursiva, ou seja, determinando o que pode e
deve ser dito, e excluindo o que nela não é formulável, promovendo, pois, a repetição, a
redefinição, ou o recalque e a negação dos elementos do saber. O interdiscurso
incorpora os elementos pré-construídos, produzidos exteriormente à FD, mas atuando
como se sempre estivessem estado lá. É então através da repetição do pré-construído
que os objetos do discurso adquirem sua “estabilidade referencial” ou produzem a
“ilusão da transparência dos sentidos”.
Nesse sentido, estando o trabalho simbólico do discurso na base da produção da
existência humana, pode-se recorrer à AD para compreender processos diversos
relacionados ao homem e sua atuação nos mais variados campos e instâncias sociais.
As religiões, através de seus cultos míticos, são espaços nos quais o simbólico
está sempre em ação, os significados são construídos com base em uma história
percorrida, resistências e transformações. Ao manifestarem-se através da língua, as
religiões também se inscrevem em uma perspectiva discursiva, estando então sujeitas e
passíveis de reflexão através das teorias para seu entendimento: “Na análise do discurso,
procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do
trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (Orlandi, 2013, p.15).
Em função disso, através da AD e levando-se em consideração a fundação mítica
“verbal” pela qual se constitui o cristianismo desde suas correntes mais tradicionais até
as mais contemporâneas e inovadoras, é possível lançar-se no aparato teórico-
metodológico da AD para compreender determinados processos em cujo interior
imbricam-se a religião e a prática discursiva.
Diante da necessidade de desvendar processos de produção dos sentidos, é
preciso partir de pressupostos que colocam o discurso em situações de questionamento.
Ancorando-se no processo histórico de constituição, observando a problemática através
de fenômenos linguísticos e circunscrevendo-se em uma noção de sujeito vinda da
psicanálise, o trabalho de análise considera as mais diversas dimensões e intersecções
de imbricamento do discurso, pois, como diz Orlandi “As palavras simples do nosso
cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se
constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós.”(2013, p.20), é mister
propor uma indagação que vai além da superfície linguística, buscando compreender os
processos de significação para além do que releva a interpretação do texto e com isso,
desvendar as diversas possibilidades de caminhos percorridos por aquelas palavras até o
momento da enunciação em questão.
A aplicação da teoria ao texto está sujeita a uma série de adequações através das
quais é possível mensurar a efetividade do trabalho a ser feito. A depender do gênero
textual há muitas possibilidades em se tratando de análise envolvendo questões
linguísticas. Especificamente pensando no texto jornalístico e seus desdobramentos
enquanto gênero textual, o trabalho no âmbito da AD permite a visitação não somente
no modo como o discurso em questão é produzido, mas também no próprio modo de
funcionamento do discurso de instituições que, em seus jornais ou revistas, têm seus
discursos e ideologias diluídos. Para além disso, quando as questões se transversalizam,
o problema da linguagem em questão torna-se desafiador à medida que o trabalho de
análise se debruça sobre um texto jornalístico que se propõe enquanto veículo de
informação sem abrir mão de seu caráter religioso e, com isso, de seus valores morais e
de todas as filiações que isso possa representar, inclusive à dominação masculina.
Por isso, compreendendo que a Análise do Discurso trabalha propriamente com
o discurso e que “[...] a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso,
de percurso, de correr por, de movimento.” (Orlandi, 2013), elegemos a AD francesa
para perceber, no ponto onde todas essas questões se encontram, como se dá a
construção do entendimento sobre o lugar da mulher através da história do diálogo entre
os atores supracitados, entendendo o modo de produção dos sentidos sobre as mulheres
no discurso jornalístico, em uma coluna direcionada à mulher, em um jornal filiado a
uma instituição religiosa, que, por sua vez, está ancorada em uma religião e, portanto,
sujeita às influências da dominação masculina.
O discurso da coluna Folha Mulher
Ao trabalhar com conceitos como o de formação discursiva, faz-se importante
evocar também o conceito de memória, trabalhada na AD também à luz da noção de
interdiscurso. Buscamos, então, recuperar o caminho teórico percorrido até chegar à
noção de memória, ressaltando a despretensão quanto à cronologia desta trajetória.
Além disso, fazemos uma distinção entre as noções de memória e interdiscurso, as
quais, por vezes, são tomadas como sinônimos ou equivalentes.
Uma noção que não poderia deixar de aparecer em uma disciplina que se propõe
a analisar discursos seria a de repetição. Não é difícil notar, e no corpus com o qual
estamos trabalhando isso fica evidente, que os discursos, por princípio, tentem a se
repetirem. Assim, a AD considera que as repetições são o princípio motor para a
produção de discursos, isto é, pela repetição de discursos anteriores é que novos
discursos são construídos. Neste sentido, retomando o texto escrito por Pêcheux e
Fuchs, em 1975, Freda Indursky afirma: “[...] o sentido se constitui a partir das relações
de parafrasagem que as diferentes expressões mantêm entre si no interior de uma FD,
ou, mais exatamente, nas palavras dos autores, tais relações interiores à matriz de
sentido de uma Formação Discursiva” (Indursky, 2009, p.1), exigindo, portanto, que
haja uma repetibilidade de certos sentidos.
Portanto, um sujeito, ao evocar discursos anteriores e produzir o seu discurso,
recorre inevitavelmente a repetições. Essas repetições, apesar de muitas vezes serem
feitas ipsi litteris, constituindo-se em citações, normalmente ocorrem em forma de
paráfrase. A repetição, sendo palavra por palavra ou não, pode levar a um deslizamento
de sentido, a uma ressignificação. Assim, mesmo havendo citação, é possível que os
sentidos atribuídos às palavras sejam diferentes.
Além da noção de repetição, outra noção presente na trajetória da reflexão sobre
memória é a de pré-construído. O pré-construído seria todo o elemento de discurso que
é produzido anteriormente, em um outro discurso e independentemente. Eni Orlandi
estreita a relação entre memória e pré-construído quando afirma que “a memória
discursiva é o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma
de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de
palavra” (2013, p.31). Portanto, o pré-construído é um elemento do interdiscurso
reinscrito no (intra)discurso do sujeito e é caracterizado por ser derivado da
exterioridade, derivação esta que é esquecida.
Nesse sentido, selecionamos duas edições do Jornal da IURD publicadas entre
os anos de 2014 e 2015, visando buscar uma regularidade no discurso do folhetim no
decorrer de cerca de um ano. Procedemos então à análise da superfície linguística
dessas edições, optando pela aplicação do trabalho com cadeias parafrásticas de sentido,
característico da AD francesa, apenas no título da coluna. O corpus analisado se
constitui especificamente de enunciados retirados da coluna Folha Mulher. Foram
analisados todos os enunciados que evocassem um sentido que evidencie qual a ideia de
lugar que o jornal, através de sua coluna revela a partir da leitura de construção
histórica dos sentidos (ainda que não no léxico, mas no contexto).
A respeito do próprio título da coluna e na perspectiva da possível designação de
lugar, utilizamos a paráfrase da seguinte forma:
Folha Mulher Folha Mulheres
Refletindo sobre a representação, e sabendo-se que é comum no plano da
superfície linguística o uso do plural de um determinado vocábulo para caracterizar a
abrangência de sua representação, trabalhamos o deslocamento do singular para o plural
para perceber as possibilidades de deslizamento de sentidos. Levando em consideração
a característica do gênero textual de cuja estrutura o texto jornalístico se beneficia, é
sabido e justificável que a expressão “mulheres” no lugar de “mulher” seria muito bem
vista já que sugeriria uma determinada abrangência de alcance do ali é publicado.
Todavia, a partir da noção de interdiscurso e através do não-dito, compreendemos
também que o termo “mulheres” evoca sentidos não tão bem-vindos para um jornal
filiado a uma instituição que se pretende de corrente ideológica neopentecostal, que é a
possibilidade de existência de categorias, ou seja, optar pelo plural de “mulher”
significaria consentir com a ideia da existência de uma sessão do que se compreende
por mulher, admitindo a possibilidade de diversas “categorias” de mulher. Dessa forma,
ao optar pelo singular, compreende-se a não possibilidade do sentido que sugere que o
discurso ali contido não é construído para sujeitos diferentes e sim para uma unidade, o
que vem ao encontro do pensamento dos principais trabalhos mais relevantes
atualmente sobre gênero.
Em outra perspectiva, observando não somente o plano linguístico, mas também
o suporte no qual o discurso está disposto, postula-se que, dadas as características dos
gêneros textuais que estruturam o texto jornalístico há um contraste entre a coluna
Folha Mulher e o restante do Jornal da IURD. Ainda a partir da noção de não-dito e
recorrendo a Dominação Masculina de Bordieu fica explícito no discurso do jornal, no
que se refere a designação de lugar para os sujeitos característico do discurso religioso,
que ao optar por tratar de determinados temas como afetividade, relacionamento
amoroso e família, quase exclusivamente na coluna em detrimento dos outros espaços
do jornal, a Folha Universal corrobora a ideia de orientar a mulher sempre para o plano
do interno, para aquilo que está de uma forma ou de outra conectado ao lar, à casa e
quase nunca à vida pública.
A despeito do que é possível a partir do que é acionado pelo interdiscurso sobre
o nome da coluna que estamos analisando, a superfície linguística releva um
contraponto. A predominância da dominação masculina fica explícita em diversos
recortes da coluna ao trazer trechos como "A mulher ‘desnuda’ mostra insegurança e de
certa forma ‘perde’ a beleza” (Ed. 1143), no qual é evidente a ideia de que a mulher
está em constante vigilância e se espera dela que acate as expectativas dessa vigilância,
adequando a sua vestimenta de acordo com conceitos morais, ou trechos como “Quando
a mulher é facilmente influenciada pela moda, ela fica igual a todo mundo” (Ed. 1143)
que corroboram basicamente a mesma ideia.
Mais especificamente sobre a imposição de conceitos morais característicos do
discurso religioso e oriundo de uma ideia tipicamente patriarcal de pensar o
comportamento dos sujeitos, ficam expressos em falas de entrevistados como: “O que
faz a mulher mais atraente para o homem é a graciosidade e a feminilidade. Valores que
têm entrado em extinção nas mulheres hoje em dia” (Ed. 1143). Ou, ainda, quando o
título da matéria principal é “Muito além do decote”, enunciados como: “As pesquisas
comprovam: nada fácil é atrativo” ou “Mas como então chamar atenção deles?”,
evidenciando a expectativa que se coloca discursivamente a nível de pressuposto sobre
as mulheres estarem constantemente designadas a aprontar-se e atender às expectativas
masculinas. Ainda na edição 1143, há uma matéria secundária de título “Você acredita
no seu filho?”, na qual a feminilidade é compreendida e discursivamente produzida
como fundamental para exercer a boa maternidade.
Já na edição 1889, enunciados como “Mulheres que se estressam facilmente ou
que descontam suas angústias nos outros são como uma bomba prestes a explodir.”,
constroem uma ideia de sujeito sobre desestabilizado sentimentalmente o que podemos
atribuir como característica do próprio jornal como todo e não apenas da coluna, muito
embora a maioria dos enunciados que revelam um sujeito instável afetivamente tenham
sido direcionado, de fato, às mulheres. Outros trechos corroboram essa afirmação, tais
como “como os sentimentos influenciam atitudes”, que, no contexto em que se
apresenta, falando das emoções e, sobretudo associando um determinado descontrole de
emoções à figura feminina, o enunciado remete pragmaticamente não a ‘como os
sentimentos influenciam atitudes’, mas ‘como ser sentimental influencia nas atitudes’.
Conclusão
As igrejas de correntes ideológicas neopentecostais tais como outras
denominações religiões cristãs estão circunscritas a uma formação social que se
estrutura a partir do patriarcalismo, tal como as religiões monoteístas principalmente as
religiões da descendência de Abraão. No interior dessa formação social, em que
predomina a dominação masculina encontram-se formações ideológicas que
caracterizam, entre outras coisas, as possibilidades de ideias relacionadas aos conceitos
morais, comportamentos etc. E no interior das formações ideológicas, encontram-se as
formações discursivas que compõem, por exemplo, o texto que nos propusemos a
analisar no decorrer deste trabalho.
Apesar do discurso aparentemente adequado aos avanços, principalmente, da
pauta feminista e dos processos pelos quais perpassam os direitos das mulheres
evidenciados na possibilidade obtida através da paráfrase expressa no título da coluna, a
superfície linguística revela que, muito embora o discurso vem tentando se adequar ao
que o expectador considera atrativo, as ideias que orientam os temas, assuntos e falas
que a coluna evidenciam ainda se configuram de forma a designar à mulher um
determinado lugar, e esse lugar ainda está associado ao espaço interno, à exclusividade
da afetividade relacionada ao feminino, dentre outras características descritas conforme
a Dominação Masculina de Bourdieu. Ou seja, o discurso do Jornal Folha Universal,
especialmente em sua coluna Folha Mulher, busca apresentar um discurso emancipador
sugerindo a autonomia da mulher na sociedade dentro do próprio ambiente religioso,
todavia as formações a que inscreve, devido à forma como se constitui e se perpetua na
sociedade, está circunscrito à uma formação social patriarcal no qual a dominação
masculina alcança êxito.
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