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Fısica Modernapara iniciados, interessados e aficionados
Ivan S. Oliveira
Ph.D. Oxford
Departamento de Materia Condensada e Fısica Estatıstica
Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas
Notas do Autor
Escrever um livro sobre fısica moderna como este exige um bocado deespırito de risco em relacao ao proprio trabalho. Alguns colegas poderaoachar este esforco fatalmente inutil, por considerarem quase impossıvelpara o “pedestre comum” compreender as estranhas ideias da rainhadas ciencias no seculo XX. Discordo frontalmente; nao e preciso serum Villa-Lobos para “arrancar” alguns acordes. A minha motivacaoao abracar tal empreitada e muito simples: tenho certeza que meni-nos e meninas ao final do ensino medio, com um certo esforco, saocapazes de entender os conceitos da fısica do seculo XX somente com amatematica que ja aprenderam. Esta certeza nasceu, em parte, do meubreve convıvio com alguns destes estudantes no chamado Programade Vocacao Cientıfica, iniciado na Fiocruz, e adotado no CBPF aofinal de 1997, e em parte devido a um interesse particular por desafiosdeste tipo. Apos algum tempo trabalhando somente com estudantes demestrado e doutorado, foi uma agradavel surpresa descobrir a curiosi-dade cientıfica, ainda sem vıcios, e o desembaraco de estudantes taojovens. Assistı-los apresentando seminarios ou em frente a um painel,explicando sem cerimonia o que aprenderam para uma audiencia de ci-entistas profissionais, foi uma surpresa que me causou grande estımulo.
Contudo, o texto nao e dirigido somente para alunos do ensinomedio, mas tambem para todos os que se consideram iniciados, in-teressados ou aficionados. Dentre estes incluem-se alunos no inıcio degraduacao em engenharias, quımica, e qualquer pessoa que tenha in-teresse em fısica moderna, e que conheca a matematica do segundograu. Acredito que o texto sera particularmente util para professoresdo segundo grau, e alunos dos cursos em licenciatura. Aqui uma cons-tatacao: o livro nao e um livro texto no sentido usual, mas tambem naoe um livro de divulgacao como outros tantos. Tentei atingir um balancoentre as duas abordagens. A razao e que com pouquıssima matematicapode-se ir muito alem do que se conseguiria sem nenhuma.
A matematica e a linguagem natural da fısica. Qualquer pessoa quedeseje conhecer fısica com alguma profundidade, nao podera ignorar amatematica. A razao e tao simples quanto fascinante: os fenomenosda Natureza obedecem a equacoes matematicas! Um buraco negro euma solucao de um conjunto de equacoes matematicas; um eco de spins
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tambem, ondas eletromagneticas idem. Podemos lancar satelites, ex-trair energia dos nucleos dos atomos, conhecer a idade do Universo, ob-servar as imagens de um cerebro humano em funcionamento, ou aindasonhar com computadores quanticos e computadores biologicos, gracasa compreensao matematica que temos dos fenomenos naturais.
Acredito que a abordagem matematica utilizada neste texto o tornaacessıvel a todos aqueles que tenham interesse pela fısica e seus fasci-nates problemas no seculo XX. O leitor precisara ter nocao do que sejauma funcao e conhecer algumas operacoes algebricas elementares, aonıvel do que se aprende no segundo grau de nossas boas escolas. Al-guns capıtulos sao mais tecnicos do que outros, e podem parecer maisdifıceis. Aqueles que nao se impressionarem com sımbolos, e tiverem umpouco de paciencia, nao encontrarao dificuldades em seguir os argumen-tos. Aqueles outros que possuırem apetite especial para matematica,encontrarao material suplementar em alguns dos paineis inseridos aolongo do texto. Aos que “odeiam” matematica, mas possuem inter-esse por certas areas da fısica, recomendo que simplesmente ignorem asformulas e sigam adiante. O aproveitamento dependera neste caso docapıtulo e da experiencia do leitor em achar o “caminho das pedras”!
O seculo XX foi o seculo da fısica. Avancos espetaculares na com-preensao dos fenomenos naturais (se e que podemos realmente afir-mar que “compreendemos” o que significa o tempo dilatar ou umafuncao de onda colapsar!) desaguaram em tecnologias nunca antessonhadas, e em discussoes filosoficas tao infindaveis quanto interes-santes. Nosso conhecimento sobre a Natureza avanca vertiginosamente,e e impossıvel dizer como ele, e a tecnologia que dele decorre, vao es-tar ao final do seculo XXI! Computadores quanticos realizando tele-porte e calculando com velocidade inimaginavel, gerando codigos crip-tograficos indecifraveis; todas as maravilhas prometidas pela chamadananociencia decorrente da manipulacao de materiais em escala atomica,como circuitos eletronicos moleculares; transporte de energia sem dis-sipacao em supercondutores; novos dados observacionais sobre a ex-pansao do Universo, desafiando modelos cosmologicos; novas teoriassobre os constituintes elementares da materia. Estas sao apenas algu-mas das tendencias mais atuais.
Acredito que nossos cursos, tanto introdutorios quanto intermediarios,devessem “concentrar fogo” sobre essa “nova fısica”, e nao estagnar
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sobre conceitos formulados ha 300 anos que, de certa forma, ficaram“soterrados” no inıcio do seculo XX. A maioria dos nossos jovens soconhece Einstein pela explorada fotografia da careta, e o associam aformula E = mc2. E preciso separar os resultados das suas deducoes.Deduzir a expressao matematica E = mc2 como consequencia logica dealguns postulados simples, e consideravelmente tecnico para um estu-dante em fase inicial. Mas isso nao quer dizer que ele nao possa com-preender o que esta formula significa, e quais sao as suas implicacoes! Omesmo se pode dizer sobre a mecanica quantica, sobre a fısica nuclear,sobre o magnetismo, sobre a supercondutividade, etc. Obviamente naoe preciso que um estudante de medicina seja Ph.D. em fısica para iralem dos botoes dos equipamentos, e entender um pouco dos princıpiosda ressonancia magnetica nuclear, fenomeno fısico que o auxiliara comos seus pacientes!
Resumindo, este livro e um laboratorio. Inevitavelmente muitostopicos importantes ficaram de fora, como em qualquer outro livro comum numero manuseavel de paginas. Ao me convencer de que ele naopoderia ser um livro texto como os usuais, me senti livre para experi-mentar um estilo descontraıdo, que em geral funciona nos meus cursosna pos-graduacao do CBPF. Afinal, para um carioca incorrigıvel comoeu, ficar longe do bom humor e do sarcasmo pode ser sintoma de doencagrave. Espero que esta combinacao pouco ortodoxa seja util para oleitor.
Ivan S. Oliveira
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Agradecimentos
Gostaria de agradecer aos seguintes amigos e companheiros de labuta:Dr. Luis A. C. P. da Mota do Instituto de Fısica da Universidade doEstado do Rio de Janeiro (companheiro infalıvel de muita pizza e muitafısica nos gelidos sabados de Oxford); ao meu querido amigo Dr. Edi-som Moreira Jr., do Departamento de Matematica e Computacao doInstituto de Ciencias da Escola Federal de Engenharia de Itajuba; Dr.Jose Abdalla Helayel Neto, do Departamento de Campos e Partıculasdo Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas, ao ex-aluno, agora amigo ecolaborador, Engenheiro Salvador Barreto Belmonte e ao Dr. AlbertoPassos Guimaraes, amigo e mentor de longa data, do Departamentode Materia Condensada e Fısica Estatıstica do Centro Brasileiro dePesquisas Fısicas. Checou todas as vırgulas, colocou todas as tremas ecorrigiu todas as crases! Ao meu bom amigo alemao, Dr. Stefan Jorda,e ao amigo Dr. Vitor Luiz Bastos de Jesus, a quem pude sugerir algu-mas ideias e de quem aprendi outras tantas. Aos colegas do Instituto deFısica Gleb Wataghin da UNICAMP, Drs. Marcelo Knobel e LeandroR. Tessler, pelo encorajamento e incentivo. Quero tambem agradecera minha esposa, Dra. Rosinda Martins Oliveira, entusiasmada neuro-psicologa. Enquanto muitos autores agradecem as respectivas esposaspela “compreensao”, “paciencia”, “estımulo”, etc., tenho a sorte de tertido o mesmo, e ainda contar com algo mais. Crescemos juntos, e esta-mos ambos familiarizados com as belezas desta estrada, mas tambemcom seus “buracos” e “pedagios”. Foi ela quem primeiro leu o livro efez as primeiras crıticas e sugestoes. E gostou!
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ParaJulio e Maurıcio
meu melhor incentivo
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Ganhadores do Premo Nobel de Fısica1
1901. Wilhelm Konrad Rontgen - pela descoberta dos raios-X.1902. Hendrik Antoon Lorentz e Pieter Zeeman - pelas suas pesquisas
sobre radiacao.1903. Antoine Henri Becquerel e Pierre Curie - pela descoberta da
radioatividade espontanea.1904. John William Strutt (Lord Rayleigh) - pela descoberta do argonio.1905. Philipp Eduard Anton von Lenard - pelos seus trabalhos sobre os
raios catodicos.1906. Joseph John Thompson - pelos seus trabalhos sobre a condutividade
eletrica dos gases.1907. Albert Abraham Michelson - pelos seus trabalhos com instrumentos
opticos de precisao.1908. Gabriel Lippmann - pelos seus trabalhos com cores e fenomenos de
interferencia.1909. Guglielmo Marconi e Carl Ferdinand Braun - pelas suas con-
tribuicoes ao desenvolvimento do telegrafo sem fio.1910. Johannes Diderik van der Waals - pelos seus estudos sobre a equacao
de estados de gases e lıquidos.1911. Wilhelm Wien - pelos seus estudos sobre radiacao de calor.1912. Nils Gustaf Dalen - pela invencao de reguladores automaticos utiliza-
dos na iluminacao de farois.1913. Heike Kamerlingh Onnes - pela liquefacao do helio.1914. Max von Laue - pela descoberta da difracao de raios-X por cristais.1915. William Henry Bragg e William Lawrence Bragg - pelos seus
estudos sobre a estrutura de cristais utilizando difracao de raios-X.1917. Charles Glover Barkla - pela descoberta dos raios-X caracterısticos
dos elementos.1918. Max Plank - pela descoberta do quantum de energia.1919. Johannes Stark - pelos seus trabalhos com o Efeito Doppler.1920. Charles-Edounard Guillaume - pelos seus trabalhos em medidas de
precisao.1921. Albert Einstein - pelos seus trabalhos em fısica teorica, em particular
pela explicacao do efeito fotoeletrico.1922. Niels Bohr - pelas suas investigacoes sobre a estrutura do atomo.1923. Robert Andrews Millikan - pelos seus trabalhos sobre a carga ele-
mentar e sobre o efeito fotoeletrico.1924. Karl Manne Georg Siegbhan - pelas suas pesquisas sobre espectro-
scopia de raio-X.
1Parcialmente compilado de: Fundamentals of Physics, D. Halliday e R. Resnick,3a. Ed., John Wiley & Sons (Nova Iorque, 1988)
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1925. James Frank e Gustav Hertz - pelos seus trabalhos sobre o impactode eletrons em atomos.
1926. Jean Baptiste Perrin - pelos seus trabalhos sobre a estrutura damateria.
1927. Arthur Holly Compton e Charles Thompson Rees Wilson - pelometodo de condensacao de vapor para tornar trajetorias de partıculas visıveis.
1928. Owen Willans Richardson - pelos seus trabalhos sobre o efeito ter-moionico.
1929. Louis-Victor de Broglie - pela descoberta da natureza ondulatoriado eletron.
1930. Chandrasekhara Venkata Raman - pelos seus trabalhos sobre es-palhamento de luz.
1932. Werner Heisenberg - pela criacao da Mecanica Quantica.1933. Erwin Schrodinger e Paul Adrien Maurice Dirac - pelos seus
trabalhos sobre a teoria atomica.1935. James Chadwick - pela descoberta do neutron.1936. Victor Franz Hess e Carl David Anderson - pela descoberta do
positron.1937. Clinton Joseph Davisson e George Paget Thompson - pelos seus
trabalhos sobre a difracao de eletrons por cristais.1938. Enrico Fermi - pela descoberta dos elementos transuranicos.1939. Ernest Orlando Lawrence - pela invencao do acelerador cıclotron.1943. Otto Stern - pela descoberta do momento mangetico do proton.1944. Isidor Isaac Rabi - pelos seus estudos em ressonancia magnetica
nuclear.1945. Wolfgang Pauli - pela descoberta do Princıpio de Exclusao.1946. Percy Williams Bridgeman - pelos seus trabalhos em fısica de alta
pressao.1947. Edward Victor Appleton - pelos seus trabalhos sobre fısica at-
mosferica.1948. Patrik Maynard Stuart Blackett - pelas suas descobertas em fısica
nuclear e radiacao cosmica.1949. Hideki Yukawa - pela previsao teorica da existencia do meson.1950. Cecil Frank Powel - pelo desenvolvimento de metodos fotograficos no
estudo de processos nucleares.1951. John Douglas Cockcroft e Ernest Thomas Sinton Walton - pelos
seus trabalhos sobre a transmutacao de nucleos atomicos utilizando aceleradores departıculas.
1952. Felix Bloch e Edward Mills Purcell - pelos suas descobertas emressonancia magnetica nuclear.
1953. Fritz Zernike - pela invencao de novas tecnicas de microscopia.1954. Max Born - pela interpretacao estatıstica da funcao de onda.1955. Willis Eugene Lamb - pelos seus trabalhos sobre a estrutura fina do
atomo de hidrogenio. Polykarp Kush - pela determinacao precisa do momento
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magnetico do eletron.1956. William Shockley, John Bardeen e Walter Houser Brattain -
pelos seus trabalhos em semicondutores e transistores.1957. Chen Ning Yang e Tsung Dao Lee - pelos seus trabalhos sobre as
leis de paridade em partıculas elementares.1958. Pavel Aleksejevic Cerenkov, Il’ja Michajlovic Frank e Igor’Evegen’
evic Tamm - pela descoberta do efeito Cerenkov.1959. Emilio Gino Segre e Owen Chamberlain - pela descoberta do
antiproton.1960. Donald Arthur Glaser - pela invencao da camara de bolhas.1961. Robert Hofstadter - pelos seus trabalhos sobre espalhamento de
eletrons por nucleos. Rudolf Ludwig Mossbauer - pela descoberta do efeitoMossbauer.
1962. Lev Davidovic Landau - pelos seus trabalhos em materia condensada.1963. Eugene P. Wigner - pelas suas contribuicoes a teoria nuclear e de
partıculas. Maria Geoppert Mayer e J. Hans D. Jensen - pela descoberta daestrutura de camadas nuclear.
1964. Charles H. Townes, Nikolai G. Basov e Alexander M. Pro-chorov - pelos seus trabalhos em eletronica quantica.
1965. Sin-Itiro Tomonaga, Julian Schwinger e Richard P. Feynman -pelos seus trabalhos em eletrodinamica quantica.
1966. Alfred Kastler - pela descoberta e desenvolvimento de metodos opticospara o estudo de ressonancias em atomos.
1967. Hans Albrecht Bethe - pelas suas contribuicoes a teoria das reacoesnucleares.
1968. Luis W. Alvarez - pelos seus trabalhos em partıculas elementares.1969. Murray Gell-Mann - pelos seus trabalhos em partıculas elementares.1970. Hannes Alven - pelos seus trabalhos em magnetohidrodinamica. Louis
Neel - pelas suas descobertas sobre antiferromagnetismo e ferrimagnetismo e suasaplicacoes ao estado solido.
1971. Dennis Gabor - pela descoberta dos princıos da holografia.1972. John Bardeen, Leon N. Cooper e J. Robert Schrieffer - pelo
desenvolvimento da teoria da supercondutividade.1973. Leo Esaki - pela descoberta do tunelamento em semicondutores. Ivar
Giaever - pela descoberta do tunelamento em supercondutores. Brian D. Joseph-son - pela descoberta da supercorrente atraves de juncoes em supercondutores.
1974. Antony Hewish - pela descoberta dos pulsares. Martin Ryle - peloseu trabalho em radio-astronomia.
1975. Aege Bohr, Ben Mottelson e James Rainwater - pelos seus tra-balhos sobre a estrutura nuclear.
1976. Burton Richter e Samuel Chao Chung Ting - pelas suas descober-tas de uma partıcula fundamental.
1977. Philip Warren Anderson, Nevill Francis Mott e John Has-brouck Van Vleck - pelas suas investigacoes em materiais magneticos e sistemas
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desordenados.1978. Peter L. Kapitza - pelos seus trabalhos em fısica a baixas temper-
aturas. Arno A. Penzias e Robert Woodrow Wilson - pela descoberta daradiacao de fundo do Universo.
1979. Sheldon Lee Glashow, Abdus Salam e Steven Weinberg - pelateoria unificada da interacao eletrofraca.
1980. James W. Cronin e Val L. Fitch - pela descoberta de violacoes emprincıpios fundamentais de simetria no decaimento de mesons K.
1981. Nicolaas Bloembergen e Arthur Leonard Schawlow - pelas suascontribuicoes a espectroscopia de laser. Kai M. Siegbahn - pelas suas con-tribuicoes a espectroscopia de eletron.
1982. Kenneth Geddes Wilson - pelos seus estudos sobre fenomenos crıticosna materia.
1983. Subrehmanyan Chandrasekhar - pelos seus estudos sobre a evolucaodas estrelas. William A. Fowler - pelos seus estudos sobre a formacao de elemen-tos quımicos no Universo.
1984. Carlo Rubia e Simon van der Meer - pelas suas contribuicoes adescoberta das partıculas W e Z.
1985. Klaus von Klitzing - pela descoberta do efeito Hall quantico.1986. Ernst Ruska - pela descoberta do microscopio eletronico. Gerd Bin-
nig - pela descoberta da varredura de tunelamento. Heinrich Rohrer - pelainvencao do microscopio eletronico por varredura de tunelamento.
1987. Karl Alex Muller e J. George Bednorz - pela descoberta dossupercondutores de alta temperatura crıtica.
1988. Leon M. Lederman, Melvin Schwartz e Jack Steinberger - pelassuas pesquisas sobre a estrutura dos leptons.
1989. Norman F. Ramsey, Hans G. Dehmelt e Wolfgang Paul - pelodesenvolvimento da tecnica de aprisionamento de ıons.
1990. Jerome I. Friedman, Henry W. Kendall e Richard E. Taylor -pelas suas investigacoes sobre o espalhamento inelastico de eletrons em protons eneutrons.
1991. Pierre-Gilles de Gennes - pelos seus estudos em cristais lıquidos epolımeros.
1992. Georges Charpak - pela invencao de detectores de partıculas.1993. Russell A. Hulse e Joseph H. Taylor Jr. - pela descoberta de um
novo tipo de pulsar.1994. Bertramin N. Brockhouse e Clifford G. Shull - pelas suas con-
tribuicoes ao desenvolvimento de tecnicas de difracao de neutrons.1995. Martin L. Perl e Frederick Reines - pelas suas contribuicoes a fısica
dos leptons.1996. David M. Lee, Douglas D. Osheroff e Robert C. Richardson -
pela descoberta da superfluidez no 3He.1997. Steven Chu, William D. Phillips e Claude Cohen-Tannoudji -
pelos seus trabalhos sobre as interacoes entre radiacao e materia.
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1998. Robert C. Laughlin, Horst L. Stoermer e Daniel C. Tsui - peladescoberta de novas propriedades eletronicas a baixas temperaturas e altos camposmagneticos.
1999. Gerardus ’t Hooft e Martinus J.G. Veltman - pelos seus trabalhosteoricos sobre a estrutura e movimento de partıculas subatomicas.
2000. Zhores Alferov, Herbert Kroemer e Jack Kilby - por suas pesquisasem semicondutores que permitiram o desenvolvimento de computadores ultra-rapidos.
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Lista de Paineis por Capıtulo
Capıtulo 1Painel I - “A Vida e a Obra de Dois Genios” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pg. 5Painel II - “Quantidades Escalares e Vetoriais” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Painel III - “Derivada de uma Funcao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14Painel IV - “Integral de uma Funcao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Painel V - “Numeros Imaginarios, Numeros Complexos e
Funcoes Complexas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Capıtulo 2Painel VI - “A Experiencia de Michelson” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98Painel VII - “Casamento Conturbado” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Capıtulo 3Painel VIII - “Funcoes de Distribuicao de Probabilidades” . . . . . . . . . . . . . . . 148Painel IX - “A Equacao de Schrodinger” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
Capıtulo 4Painel X - “ Coordenadas Retangulares vs. Esfericas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Capıtulo 5Painel XI - “Alan Turing” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
Capıtulo 6Painel XII - “RMN e Computacao Quantica” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
Capıtulo 7Painel XIII - “O Projeto Manhattan” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386Painel XIV - “Espelhos Magneticos e Tokamaks” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .394
Capıtulo 8Painel XV - “O Efeito Mossbauer” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 420Painel XVI - “Relatividade e Imposturas Intelectuais” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435
Capıtulo 9Painel XVII - “A Camara de Wilson” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457Painel XVIII - “Vida e Obra de Cesar Lattes” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 460Painel XIX - “Vida e Obra de Jose Leite Lopes” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 466Painel XX - “O Laboratorio Nacional de Luz Sıncrotron . . . . . . . . . . . . . . . . . 475Painel XXI - “O Modelo Padrao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 478
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Contents
1 A Fısica ate 1905: uma Casa de Gigantes 11.1 A Mecanica Classica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.1.1 As Leis do Movimento;Newton, Espaco e Tempo Absolutos . . . . . . . . 3
1.1.2 Movimento de Objetos sob a Acao deForcas Mecanicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
1.1.3 Gravitacao Universal: da Queda da Maca a Quedada Lua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
1.1.4 O Movimento dos Planetas . . . . . . . . . . . . . 331.1.5 Massa Inercial vs. Massa Gravitacional . . . . . . 391.1.6 Movimento Relativo . . . . . . . . . . . . . . . . 401.1.7 Fısica Termica: dos Planetas aos Gases . . . . . . 441.1.8 E Possıvel o Tempo andar para Tras? . . . . . . . 471.1.9 O Relogio Cosmico . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
1.2 O Eletromagnetismo Classico . . . . . . . . . . . . . . . 521.2.1 Fenomenos Eletricos e Magneticos . . . . . . . . . 521.2.2 Fenomenos Ondulatorios: Difracao e Interferencia 621.2.3 Ondas Eletromagneticas . . . . . . . . . . . . . . 701.2.4 Afinal, o que e a Luz? . . . . . . . . . . . . . . . 751.2.5 Afinal, Porque o Ceu e Azul? . . . . . . . . . . . 791.2.6 Acabou a Fısica?! . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
2 A Teoria da Relatividade 852.1 Einstein: um Genio Desempregado . . . . . . . . . . . . 862.2 Maxwell nao Concorda com Newton . . . . . . . . . . . . 892.3 Os Postulados da Relatividade:
a Implosao do Velho Templo . . . . . . . . . . . . . . . . 104
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2.4 O Tempo pode ser Esticado! . . . . . . . . . . . . . . . . 1082.5 O Espaco pode ser Encolhido! . . . . . . . . . . . . . . . 1152.6 E = mc2: Energia que da Gosto! . . . . . . . . . . . . . 1172.7 Viagens no Tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
3 A Mecanica Quantica 1293.1 Havia uma Pedra no Caminho . . . . . . . . . . . . . . . 1293.2 Max Plank: Pacotes de Luz?! . . . . . . . . . . . . . . . 1333.3 Louis de Broglie: Ondas de Materia?! . . . . . . . . . . . 1403.4 Erwin Schrodinger e o Misterio ψ(r, t) . . . . . . . . . . 1443.5 A Dubia Vida de um Pobre Gato . . . . . . . . . . . . . 1593.6 Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1613.7 O Princıpio de Exclusao de Pauli . . . . . . . . . . . . . 1703.8 Einstein: “Deus nao Joga Dados” . . . . . . . . . . . . . 1783.9 Correlacoes Estranhas: Afinal, Deus Joga Dados? . . . . 1823.10 Existe um Mundo la Fora? . . . . . . . . . . . . . . . . . 1873.11 Teletransporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
4 Como Construir um Atomo 1974.1 A Estrutura do Atomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1984.2 Orbitais Quanticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2034.3 A Materia do Universo em uma Tabela . . . . . . . . . . 2174.4 Esticando a Tabela Periodica . . . . . . . . . . . . . . . 2204.5 Ligacoes Quımicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2234.6 ADN: uma Molecula muito Especial . . . . . . . . . . . . 2284.7 Magnetismo do Atomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2344.8 Forca Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2394.9 O Indivisıvel pode ser Dividido! . . . . . . . . . . . . . . 242
5 Dos Atomos aos Computadores 2475.1 Objetos Macroscopicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2495.2 Periodicidade na Natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . 2515.3 Porque a Lata Difere do Diamante? . . . . . . . . . . . . 2555.4 Autoestados em uma Caixa Periodica . . . . . . . . . . . 2565.5 O Mundo e Quantico! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2645.6 Metais, Isolantes e Semicondutores . . . . . . . . . . . . 2695.7 Juncoes, Diodos e Transistores . . . . . . . . . . . . . . . 272
xiv
5.8 O que sao Computadores? . . . . . . . . . . . . . . . . . 2835.9 Bits & Bites: o Basico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2875.10 A Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2915.11 O ADN Computa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2945.12 Computadores podem Pensar? . . . . . . . . . . . . . . . 297
6 Magnetismo 3076.1 Origem do Magnetismo na Materia . . . . . . . . . . . . 3076.2 Tipos de Ordem Magnetica . . . . . . . . . . . . . . . . 3196.3 Magnetismo Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3236.4 Ressonancia Magnetica Nuclear . . . . . . . . . . . . . . 3276.5 O Sistema Girante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3356.6 Ecos de Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3406.7 Imagens do Corpo Humano;
uso Medico da RMN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3456.8 A Fauna Quantica: Fotons, Fonons,
Magnons, Plasmons, e outros ‘ons’ . . . . . . . . . . . . 3496.9 Trens que Flutuam! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353
7 Energia Nuclear 3657.1 Instabilidade Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3667.2 Alfa, Beta e Gama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3687.3 Fissao Nuclear: Xo Satanas! . . . . . . . . . . . . . . . . 3747.4 Energia de Fissao: Quantos Nucleos Fervem uma Piscina?3787.5 Reatores-N & Bombas-A . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3827.6 Lixo Atomico: um Sub-Produto Indesejavel . . . . . . . 3897.7 Fusao Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3917.8 Como Funciona o Sol? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3967.9 Efeitos Biologicos da Radiacao . . . . . . . . . . . . . . . 3977.10 Medicina Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402
8 Relatividade Geral 4098.1 Einstein Ataca de Novo! . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4098.2 O Princıpio da Equivalencia . . . . . . . . . . . . . . . . 4108.3 Geometria e Gravitacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4238.4 Nascimento e Morte das Estrelas:
Buracos Negros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427
xv
8.5 Novos Desafios a Relatividade . . . . . . . . . . . . . . . 4308.6 O Universo teve um Inıcio?
A Grande Explosao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4388.7 O Universo tera um Fim?
O Grande Colapso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441
9 O Sonho da Unificacao 4459.1 As Quatro Damas da Criacao . . . . . . . . . . . . . . . 4469.2 Newton:
Unificacao do Ceu com a Terra . . . . . . . . . . . . . . 4499.3 Maxwell:
Unificacao da Eletricidade com o Magnetismoe com a Otica Fısica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452
9.4 Partıculas Elementares:A Ducha Cosmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453
9.5 Unificacao Eletrofraca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4649.6 E Possıvel Recriar o Universo em um Laboratorio? . . . 4689.7 Gravitacao: outra Pedra no Caminho! . . . . . . . . . . . 4769.8 Teorias de Tudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 480
xvi
Chapter 1
A Fısica ate 1905: uma Casade Gigantes
1.1 A Mecanica Classica
No inıcio tudo era o caos. Primeiro criou Deus o Ceu e a Terra. A Terra
era vazia e sem forma. O Espırito de Deus pairava sobre as aguas. E
Deus disse:
- Haja Luz!
Notando no entanto que nada acontecera, o desapontado Criador
deu um longo suspiro, e balbuciou distraıdo:
- Haja Paciencia!
Um de seus Arcanjos entao, constrangido com o que ocorrera, cochichou-
Lhe algo nos ouvidos. . .
- Ah, sim. Claro! Haja, antes, Espaco e Tempo!
E depois repetiu animado:
- Haja Luz!
E um aberto sorriso iluminou Sua face.
1
2
O Livro do Genesis descreve de maneira poetica o momento da
Criacao do Universo. Embora alguns cientistas ainda discutam se houve
realmente um “inıcio”, as evidencias mais recentes apontam para o
fato de que o Universo em que vivemos teve seu nascimento em algum
momento, ha cerca de 15 bilhoes de anos atras. A adulteracao das
primeiras palavras da Bıblia feita acima, serve para enfatizar (de forma
bem humorada) o que intuimos a respeito da estrutura mais basica do
Universo: o espaco e o tempo. E difıcil imaginarmos o espaco e o tempo
como objetos fısicos em sı, que foram criados com os outros objetos do
Universo. O sentimento que temos e de que o espaco e o tempo devem
ter pre-existido a criacao das outras coisas.
No entanto, parece nao ser assim. Como veremos ao longo deste
livro, a Natureza muitas vezes nao corresponde as nossas intuicoes
ingenuas. No primeiro quarto do seculo XX o edifıcio cientıfico cons-
truıdo durante mais de 300 anos por gigantes da Ciencia como Galileu
Galilei, Isaac Newton, e James Clerk Maxwell, viu as suas bases ruırem
diante das ideias revolucionarias de homens como Albert Einstein, Max
Planck, Niels Bohr, Louis de Broglie, Wolfgang Pauli, Werner Heisen-
berg, Erwin Schrodinger, entre outros.
Nos dias de hoje estamos habituados a usar computadores, e ouvir
coisas sobre energia nuclear, bombas atomicas, buracos negros, tomo-
grafia computadorizada, lixo atomico, viagens interestelares, etc. Es-
tas coisas aparecem em jornais, revistas, romances, filmes, poemas,
etc. Fazem parte do nosso dia-a-dia, e ocupam o centro da producao
cientıfica e tecnologica dos paıses industrializados, onde o uso deste co-
nhecimento gera riqueza e desenvolvimento. No entanto, muitas vezes
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES3
nao nos damos conta de que este conhecimento e o produto de uma
revolucao cientıfica (talvez a maior da historia da humanidade), que
ocorreu ha menos de 100 anos atras! As bases desta revolucao sao duas
teorias fısicas espetaculares: a Teoria da Relatividade e a Mecanica
Quantica. E sobre estas duas teorias e suas consequencias de que trata
este livro. Antes, contudo, para melhor apreciarmos a devastacao feita
por estes dois furacoes, e necessario que nos coloquemos na situacao
dos fısicos do inıcio do seculo XX, que tiveram que assistir perplexos
ao desabamento do Templo que habitavam.
1.1.1 As Leis do Movimento;Newton, Espaco e Tempo Absolutos
O que hoje chamamos de Fısica Classica e basicamente o conteudo da
obra de dois homens: o ingles Isaac Newton, e o escoces James Clerk
Maxwell. O primeiro unificou as leis da mecanica, que descrevem o
movimento de objetos sob a acao de forcas que sobre ele atuam. O
segundo unificou as leis que regem os fenomenos eletricos e magneticos,
incluindo a propagacao de ondas eletromagneticas no espaco, como on-
das de radio e a luz. Na fısica, esses dois monumentos teoricos sao
conhecidos como Mecanica Classica e Eletrodinamica Classica.
Nesta secao vamos revisar os fundamentos da mecanica, seus pos-
tulados, e suas leis do movimento: as tres leis de Newton. Na segunda
parte deste capıtulo estudaremos os fenomenos eletromagneticos. Al-
guns conceitos matematicos, como a “derivada” e a “integral” de uma
funcao sao introduzidos nos paineis, por razoes de complementaridade.
Ter conhecimento previo destas tecnicas nao e, contudo, necessario para
4
acompanhar o texto.
A obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ou Princıpios
Matematicos da Filosofia Natural, publicada em 1687, e um marco na
Historia da Ciencia, que perpetua o nome de Isaac Newton como um
dos maiores, senao o maior genio cientıfico que ja existiu. Nesta obra,
Newton estabelece os fundamentos da mecanica. O espaco e o tempo
absolutos sao conceituados como estruturas estaticas, homogeneas, in-
alteraveis, que nada tem a ver com as outras coisas. Para Newton,
as nocoes vulgares de espaco e tempo que temos decorrem da nossa
experiencia de movimento dentro dessa estrutura absoluta.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES5
PAINEL I
A VIDA E OBRA DE DOIS GENIOS
O ingles Isaac Newton nasceu no dia de Natal de 1642, em uma cidade chamada
Woolsthorpe ao centro-norte da Inglaterra. No mesmo ano morria o italiano Galileu
Galilei. Newton bacharelou-se pela Universidade de Cambridge em 1665, ano que
retornaria para Woolsthorpe, fugindo da Grande Peste que assolava a Europa. Os
dois anos que se seguiram foram, segundo o proprio Newton, os mais ferteis de sua
vida. Durante este perıodo desenvolveu o Calculo Diferencial e Integral (que ele
denominava calculo das fluxoes), fez importantes estudos de otica, e comecou a sua
Teoria da Gravitacao Universal. Tornou-se membro da Royal Society (a academia
de ciencias inglesa) em 1672. Sua obra mais importante, o Philosophiae Naturalis
Principia Mathematica foi publicada em 1687, com duas edicoes posteriores, em
1713 e 1726. Newton morreu em 1727.
James Clerk Maxwell nasceu em Edinburgo, capital da Escocia, no dia 13 de
junho de 1831, e portanto quase 100 anos apos a morte de Newton. Ainda muito
jovem ja revelava aptidoes especiais para a ciencia. Aos 19 anos produziu alguns
trabalhos originais que foram apresentados a Royal Society de Edinburgo. Em 1847
Maxwell ingressou na Universidade de Edinburgo, terminando sua graduacao em
janeiro de 1854. Seus trabalhos mais importantes sobre Teoria Cinetica dos Gases e
Eletrodinamica foram desenvolvidos durante os anos de 1860 e 1865, perıodo em que
esteve no Kings College, em Londres. Em 1871 tornou-se professor de eletricidade
e magnetismo em Cambridge, onde durante os primeiros anos deu retoques em seu
grande trabalho sobre a eletrodinamica. Em 1879 caiu doente e faleceu no dia 5 de
novembro, com a idade de apenas 49 anos.
6
A famosa expressao matematica1
F = ma (1.1)
define a relacao entre a forca resultante F que atua sobre um objeto
de massa m, e a aceleracao a que este adquire sob a acao da forca.
Esta equacao dinamica e o coracao da mecanica classica. Ela descreve
o movimento de qualquer objeto: pode tanto ser uma bola que rola
ladeira abaixo, quanto o movimento de um planeta em torno do Sol.
A equacao 1.1 e a expressao matematica da conhecida Segunda Lei de
Newton. Newton postulou mais duas leis de movimento. Sao elas:
Primeira Lei: Todo corpo permanece em estado de re-
pouso ou de movimento retilıneo uniforme, a menos que
atuem sobre ele forcas externas que alterem este estado;
Terceira Lei: A toda acao existe sempre uma reacao
igual em modulo, e em sentido contrario.
Com essas tres Leis, Newton revolucionou o Mundo!
E importante lembrar que a equacao 1.1 e uma equacao vetorial.
As quantidades F e a nao sao numeros puros: sao vetores, e portanto
possuem modulo, direcao e sentido. Vetores, de uma maneira geral, pos-
suem tres componentes, que correspondem as tres dimensoes do espaco.
No caso da forca F, por exemplo, representamos essas componentes por
Fx, Fy e Fz. Em problemas unidimensionais so havera uma componente
1Adotaremos a notacao em negrito ‘F’, ao inves da mais usual ‘F ’, para repre-sentar vetores.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES7
e podemos omitir o negrito da notacao vetorial, observando, contudo,
o sentido do movimento.
8
PAINEL II
QUANTIDADES ESCALARES E VETORIAIS
Em fısica, numeros servem para quantificar propriedades relacionadas a objetos ou
ao movimento de objetos. Por exemplo, quando afirmamos que um objeto possui
uma massa de 5 kg, associamos a propriedade de massa, o numero 5, vezes o padrao
quilograma. Algumas propriedades, no entanto, nao ficam completamente caracte-
rizadas apenas com um numero. Por exemplo, se alguem disser ‘passou por aqui um
carro a 100 km/h’, nos ocorre a pergunta: ‘em que direcao?’ Neste caso, somente
o numero ‘100 km/h’ nao completa a informacao. Quantidades que ficam caracte-
rizadas apenas por um numero sao chamadas escalares, e quantidades associadas a
direcoes no espaco sao chamadas vetoriais.
Vetores possuem modulo, direcao e sentido. Usamos os vetores unitarios (ou
seja, de modulo 1, tambem chamados de versores) i, j e k, tambem chamados de
vetores de base, para representarmos as 3 direcoes do espaco. Com isso podemos
escrever qualquer vetor como uma combinacao dos vetores de base. Por exemplo,
F = Fxi+ Fyj+ Fzk
representa um vetor F cujas componentes sao Fx, Fy e Fz. Embora nao seja es-
tritamente necessario, os vetores de base sao em geral perpendiculares entre si, ou
seja, formam angulos de 90 graus uns com os outros.
O modulo de um vetor F, representado por |F| ou F , e uma medida da inten-sidade da grandeza fısica que ele representa. O modulo e dado por:
|F| =√F 2
x + F 2y + F 2
z
Por exemplo, o modulo do vetor posicao r = 3i−2j+5k e igual a √9 + 4 + 25 ≈ 6, 2unidades de distancia (por exemplo, o metro). O modulo do vetor velocidade v =
4i+ j − 5k e √16 + 1 + 25 ≈ 6, 5 unidades de velocidade (por exemplo, kilometrospor hora).
A soma de dois vetores e outro vetor cujas componentes sao as somas das
componentes dos vetores originais. Se
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES9
F1 = F1xi+ F1yj+ F1zk
e
F2 = F2xi+ F2yj+ F2zk
entao:
F1 + F2 = (F1x + F2x)i+ (F1y + F2y)j+ (F1z + F2z)k
Por exemplo, se F1 = 3i− 2j+5k, e F2 = i+4j−k, entao, F1+F2 = 4i+2j+4k.
Graficamente, o vetor soma e dado pela diagonal do paralelogramo cujos lados sao
formados pelos vetores originais.
A direcao de um vetor e dada pelo vetor unitario obtido dividindo-se cada
componente do vetor pelo seu modulo. Por exemplo, a direcao de F = 3i− 2j+5k,a qual vamos representar por eF , e igual a:
eF =3i− 2j+ 5k
6, 2= 0, 48i− 0, 32j+ 0, 81k
Note que |eF | = 1, como requer um vetor unitario.
Existem tipos diferentes de produtos entre vetores. Por exemplo, o produto
escalar, cujo resultado e uma quantidade escalar, e o produto vetorial, cujo resultado
e outro vetor, perpendicular aos dois vetores originais. Se F1 e F2 sao dois vetores,
e θ o menor angulo entre eles, seu produto escalar sera dado por:
F1 · F2 = |F1||F2|cosθ
E o modulo do produto vetorial sera dado por:
|F1 × F2| = |F1||F2|senθ
Os produtos escalar e vetorial podem tambem ser expressos em termos das
componentes dos vetores, sendo o primeiro dado por:
F1 · F2 = F1xF2x + F1yF2y + F1zF2z
10
e o segundo:
F1 × F2 = (F1yF2z − F1zF2y)i+ (F1zF2x − F1xF2z)j+ (F1xF2y − F1yF2x)k
Essas duas relacoes podem ser obtidas a partir do fato de que os unitarios i, j e k
possuem as propriedades:
i · i = j · j = k · k = 1
i · j = j · k = k · i = 0
i× j = k; j× k = i; k× i = j
i× i = j× j = k× k = 0
e notando que o produto vetorial troca de sinal sob uma permuta dos vetores:
i× j = −j× i, etc.
A partir do que foi dito acima, fica facil calcular o angulo entre dois vetores;
este sera dado pelo angulo entre os vetores unitarios correspondentes, ou seja:
cosθ = eF1 · eF2
Por exemplo, se eF1 = 0, 48i−0, 32j+0, 81k e eF2 = 0, 24i−0, 94j+0, 24k, o anguloentre F1 e F2 e igual a:
cosθ = 0, 11 + 0, 30 + 0, 19 = 0, 61⇒ θ = 52, 4o
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES11
A aceleracao a e definida como a taxa de variacao da velocidade v,
por intervalo de tempo. A velocidade, por sua vez e definida como a
taxa de variacao da posicao r do objeto por intervalo de tempo. Neste
ponto aparece uma certa dificuldade nessas definicoes. Para exempli-
fica-la, considere uma situacao simples em que um motorista e obrigado
a percorrer uma distancia de 80 km em 1 hora. Obviamente isto pode
ser feito de diversas maneiras. A mais simples consiste em manter uma
velocidade constante, exatamente igual a 80 km/h, e apos 1 hora ele
tera percorrido a distancia desejada. Neste caso, nao ha variacao da
velocidade durante o percurso, e consequentemente a aceleracao sera
igual a zero.
Uma segunda opcao seria acelerar o carro uniformemente ao longo
do percurso. Por exemplo, se a carro iniciar o movimento com uma ve-
locidade de 20 km/h, e o motorista for capaz de manter uma aceleracao
constante de 120 km/h2 (isto e, a cada hora a velocidade aumentar de
120 km/h), apos exatamente 1 hora ele tera percorrido os 80 km.
Nesses casos simples (de aceleracao nula ou uniforme), v e a podem
ser definidos por:
v =r − r0
t− t0=
∆r
∆t(1.2)
a =v − v0
t− t0=
∆v
∆t=
∆
∆t
(∆r
∆t
)≡ ∆2r
(∆t)2(1.3)
onde o sımbolo ∆2r foi introduzido para representar ∆(∆r), ou seja, a
variacao da variacao da posicao do objeto2 r0 e t0 sao respectivamente
2No presente contexto, a expressao mais a direita, ∆2r/∆t2, deve ser vista como
12
a posicao e o instante iniciais. No nosso exemplo do carro, |∆r| = 80
km, e ∆t = 1 h. Embora estejamos usando unidades do nosso dia-
a-dia para expressar velocidade e distancia, no sistema internacional
(SI) as unidades de r e v sao respectivamente o metro (m) e o metro
por segundo (m/s). A aceleracao se mede em metro por segundo ao
quadrado (m/s2), e a forca em newtons (N=kg · m · s−2).
Estamos de acordo que estas nao sao as duas unicas maneiras de se
percorrer 80 km em 1 h. De um modo geral, a aceleracao e a velocidade
irao variar de uma forma arbitraria com o tempo ao longo do percurso,
e as definicoes 1.2 e 1.3 nao serao validas, pois consideram os valores de
r e v apenas no inıcio e fim do movimento. Newton se deparou com este
problema, e para resolve-lo teve que inventar uma nova matematica!
Imagine que ao inves de medir a variacao de r e v entre o inıcio
(t0) e o fim (t) do movimento, o intervalo de tempo ∆t seja dividido
em 1000 intervalos menores, cada um com 3,6 segundos. Se para cada
um destes sub-intervalos calcularmos as razoes dadas por 1.2 e 1.3,
teremos uma especie de velocidade e aceleracao “instantaneas”. Para
sermos ainda mais precisos, poderıamos dividir ∆t em 10000 ou em
1000000 de sub-intervalos. Quanto menor for o sub-intervalo, mais as
definicoes 1.2 e 1.3 refletirao os valores instantaneos de v e a. Nada
nos impede de imaginarmos intervalos infinitamente pequenos de r e t.
Em matematica esses intervalos infinitesimais sao representados por dr
e dt. Com isso as definicoes 1.2 e 1.3 se tornam:
ummero sımbolo matematico, e nao uma operacao propriamente dita. Somente paraintervalos de tempo muito pequenos de ∆r e ∆t e que este “sımbolo” se transformaem uma operacao.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES13
v =dr
dt(1.4)
a =dv
dt=d2r
dt2(1.5)
O leitor iniciado em matematica avancada reconhecera imediata-
mente as expressoes acima como as derivadas dos vetores r e v em
relacao a t (dizemos que a velocidade e igual a derivada primeira da
posicao em relacao ao tempo, e que a aceleracao e a sua derivada se-
gunda). O leitor nao iniciado em Calculo Diferencial , nao precisa se
preocupar, pois nao faremos uso desta ferramenta neste livro (algumas
nocoes basicas sao descritas no Painel III). O importante e lembrar que
as definicoes 1.2 e 1.3 estao restritas a situacoes particulares.
14
PAINEL III
DERIVADA DE UMA FUNCAO
Seja r uma funcao de t: r = r(t). Esta poderia ser, por exemplo, a posicao
de um objeto que se move com o tempo. Como calcular a velocidade do objeto,
tambem como funcao de t? Tomemos dois intervalos de tempo, t e t + ∆t. As
posicoes correspondentes a esses instantes serao, respectivamente, r(t) e r(t+∆t).
Por definicao, a velocidade media neste intervalo sera:
v =r(t+∆t)− r(t)
∆t
A derivada de r em relacao a t e definida como o limite da razao acima quando o
intervalo de tempo ∆t for infinitamente pequeno, ou seja, ∆t → 0 (le-se ‘delta t
tende a zero’). Simbolicamente escrevemos:
v =drdt= lim
∆t→0
r(t+∆t)− r(t)∆t
Suponha por exemplo que a funcao r(t) seja proporcional ao quadrado de t:
r(t) = a0t2, onde a0 e constante. Entao:
r(t+∆t) = a0(t+∆t)2 = a0(t2 +∆t2 + 2t∆t) =
= r(t) + 2a0∆t+ a0(∆t)2
Consequentemente:
r(t+∆t)− r(t) = 2a0t∆t+ a0∆t2
Dividindo esta expressao por ∆t teremos:
r(t+∆t)− r(t)∆t
= 2a0t+ a0∆t
Tomando o limite ∆t→ 0, o segundo termo do lado direito se anula e ficamos com:
lim∆t→0
r(t+∆t)− r(t)∆t
= v(t) = 2a0t
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES15
Este processo pode ser repetido para qualquer funcao, escalar ou vetorial. Pode-
mos, por exemplo, calcular a aceleracao a partir do resultado acima:
a =d2rdt2
= lim∆t→0
v(t+∆t)− v(t)∆t
= 2a0
.
A velocidade instantanea em um tempo t e obtida dividindo-se o intervalo infinite-simal δx por δt.
16
Outras quantidades importantes da mecanica sao o momento linear
(ou quantidade de movimento) p, definido por
p = mv
onde m e a massa do objeto, e o momento angular L, definido como o
produto vetorial entre r e p, tambem chamado de torque do momento
linear:
L = r × p
onde o sımbolo ‘×’ representa o produto vetorial. Enquanto p e uma
medida da quantidade de movimento de translacao, L e uma medida da
quantidade de movimento de rotacao. Por exemplo, um carro pesando
1 tonelada (1000 kg) se deslocando a 100 km/h (aproximadamente 28
m/s) possui uma quantidade de movimento com modulo igual a p =
28000 kg m/s. Se ao inves do carro fosse um passaro, com apenas 0,5
kg, o modulo da quantidade de movimento seria de 14 kg m/s. Se por
outro lado o nosso carro estivesse descrevendo uma curva circular com
raio de 50 m, ele teria um momento angular cujo modulo seria 1, 4×106
kg m2/s.
A variacao de p esta ligada a aplicacao de forcas externas sobre o
sistema, assim como a variacao de L esta ligada a torques externos.
Portanto, essas quantidades se conservarao (ou seja, nao mudarao com
o tempo) se nao houver forcas e torques atuando sobre o sistema.
Outra variavel dinamica importante e a energia cinetica do objeto,
definida por:
T =1
2mv2 =
p2
2m
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES17
onde v e p sao os modulos dos vetores v e p, respectivamente. T e uma
medida da energia associada ao movimento do objeto, e sua unidade
no SI e o joule (J). Se houver um campo de forcas atuando sobre o
objeto, como por exemplo o campo gravitacional (veja adiante), havera
tambem uma energia potencial, que representamos genericamente por
V .
Ao contrario da energia cinetica, que e zero se o objeto estiver
parado, a energia potencial nao se anula para v = 0. Se, por exem-
plo, segurarmos uma pedra a uma altura h do solo, sabemos que se a
soltarmos ela caira. Antes de ser solta, a pedra possuıa uma energia
potencial igual a V = mgh, onde m e a massa e g a aceleracao da
gravidade. Ao tocar o solo, h = 0 e consequentemente V = 0, mas a
velocidade nesse instante sera maxima, e portanto a energia cinetica
tambem sera maxima. O que ocorreu ao soltarmos a pedra foi uma
transformacao da energia potencial em cinetica. Usando o fato de que
a energia total se conserva, a velocidade do objeto ao chegar ao solo
pode ser calculada simplesmente igualando as duas formas de energia:
ENERGIA CINETICA MAXIMA = ENERGIA POTENCIAL
MAXIMA
mv2max
2= mgh⇒ vmax =
√2gh
Por exemplo, se h = 10 m, e g = 10 m/s2, vmax ≈ 14 m/s, ou aproxi-
madamente 4 km/h.
Note deste resultado que a velocidade maxima independe da massa
da pedra, embora a energia dependa! Ou seja, tanto pode ser uma
18
pedra de 50 g quanto uma de 10 kg que a velocidade ao tocar o solo
sera a mesma. Falaremos mais sobre isto adiante.
Em qualquer situacao a energia total do objeto, E, e a soma das
energias cinetica e potencial:
E = T + V
Em uma grande classe de problemas importantes, como o caso da queda
de objetos, a energia total se conserva (note que isso nao quer dizer
que T e V se conservam separadamente, mas apenas sua soma). Tais
sistemas sao chamados de conservativos.
1.1.2 Movimento de Objetos sob a Acao deForcas Mecanicas
Para conhecermos a trajetoria e a velocidade de um objeto temos que
resolver a equacao 1.1. Um exemplo bem conhecido de aplicacao pratica
daquela equacao e o calculo da trajetoria de um projetil disparado de
um canhao. Podemos tambem calcular a velocidade com que gotas
d’agua caem do ceu em um dia de chuva, as posicoes de uma massa
oscilando presa a uma mola, a trajetoria do cometa de Halley, etc.
Qualquer que seja o caso, e preciso conhecermos a natureza da forca
F que comparece em 1.1, e sua forma funcional. Forma funcional e
a expressao matematica que descreve a dependencia da forca com as
variaveis do problema, como a posicao, a velocidade, o tempo, etc. Se
o amigo leitor entender este ponto, ja tera ganho o dia! Matematica-
mente, podemos escrever a forca com qualquer forma. Por exemplo,
podemos inventar uma forca do tipo
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES19
F =a√x
onde x e a posicao do objeto. Podemos inventar o que quisermos:
F = bx2/7,−c/x2, dsen(kx), etc. Formalmente qualquer coisa serve!
F pode tambem depender explicitamente da velocidade e do tempo.
Matematicamente e uma festa! Acontece que para descrevermos os
fenomenos da Natureza temos que encontrar a F correta para cada um
deles. Isso e o que faz a diferenca. Movimentos de planetas, quedas
de objetos, movimentos de partıculas carregadas em campos eletro-
magneticos, etc., obedecem a forcas com formas funcionais especıficas.
Sao leis imutaveis estabelecidas pela Natureza. O trabalho do fısico
e precisamente descobrir quais sao estas leis a partir da observacao do
movimento causado por elas. Matematicamente este trabalho se traduz
em escrever corretamente o lado esquerdo da equacao 1.1, e depois re-
solve-la a fim de encontrar os vetores r(t) e v(t) (o que nem sempre e
possıvel, mesmo conhecendo-se a lei correta!). O leitor pode estar se
perguntando que metodos sao utilizados para se descobrir a forma fun-
cional correta da forca em um dado problema. E o analogo a perguntar
que metodos Chico Buarque utiliza para escrever os seus versos, ou
que metodos Pele utilizava para chegar ate o gol! As vezes e possıvel,
atraves de experimentos, deduzir uma forma funcional para F em uma
dada situacao. Outras vezes se consegue bons resultados por tentativa
e erro, ou seja, “chuta-se”. Obviamente quanto melhor informado es-
tivermos acerca do problema, maiores serao nossas chances de darmos
um bom “chute”. Mas, assim como na musica e no futebol, na fısica
20
havera sempre os “Peles”, os “Chico Buarques”, e os outros.
O caso mais trivial de movimento ocorre quando a forca que atua
sobre o objeto e nula, ou seja, F = 0. A equacao 1.1 neste caso se
torna:
ma = 0
Mas na medida em que m = 0, a unica solucao possıvel para a esta
equacao e:
a = 0
Por simplicidade vamos considerar o movimento em 1 dimensao e
omitir o negrito da notacao vetorial da aceleracao. Nesse caso escreve-
mos:
a = 0
Consequentemente, utilizando a definicao simplificada da aceleracao
obtemos:
∆v
∆t=v − v0
t− t0= 0
Para que a fracao se anule, e suficiente que o seu numerador se anule.
Logo:
v − v0 = 0 ⇒ v = v0
ou seja, a velocidade do objeto neste caso permanece igual a sua ve-
locidade inicial. Isso quer dizer que se o objeto estiver inicialmente
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES21
parado, assim permanecera indefinidamente. Se por outro lado o ob-
jeto estiver se movendo, continuara nesse estado de movimento ad eter-
num. Observe que obtivemos matematicamente aquilo que e enunciado
da primeira lei de Newton! Na literatura secundarista este problema
aparece com o nome - na minha opiniao excessivamente burocratico -
de movimento retilıneo e uniforme, ou MRU.
Podemos levar o calculo adiante e obter a posicao do objeto no
tempo. Basta escrevermos:
v =x− x0
t− t0= v0 ⇒ x = x0 − v0t0 + v0t
Como sabemos, x0 e v0 sao condicoes iniciais arbitrarias. Seus va-
lores sao obtidos em t0, o instante do inıcio do movimento. Em geral
escolhemos t0 = 0, e a equacao acima se torna:
x = x0 + v0t
A proposito, temos aqui uma daquelas situacoes embaracosas que o
leitor atento ja deve ter percebido. O que ocorre com a definicao de v
acima se fizermos t = t0? Em princıpio deverıamos obter a velocidade
em t = t0, que por sua vez e igual a v0, ja que nao ha forcas atuando
no sistema. Mas vemos que para t = t0 o denominador da expressao
para v se anula. Uma fracao com denominador muito pequeno e um
numero muito grande. Por exemplo, 1/0, 01 = 100; 1/0, 001 = 1000; e
1/0, 0000001 = 1000000. Extrapolando, dizemos que se o denominador
da fracao tender para zero, a fracao tendera para infinito (ocasional-
mente o leitor estara lembrado que 1/0 = ∞). Mas, por definicao, em
t = t0, o objeto se encontra exatamente em x = x0, o que tambem
22
anula o numerador. Teremos entao o estranho resultado 0/0. Mate-
maticamente o resultado da divisao de zero por zero e indeterminado.
Indeterminado?! Como, se sabemos de inıcio que a velocidade e cons-
tante e igual a v0? Deixo para o leitor o desafio deste paradoxo!
Voltando ao problema, vemos que a posicao do objeto em um ins-
tante t qualquer pode ser obtida calculando-se a area sob a curva em
um grafico de v versus t. O problema foi resolvido. Passado e futuro
estao plenamente determinados! Por exemplo, se x0 = 0, e v0 = 50
km/h, em 5 minutos o objeto estara a uma distancia de 4,2 km da
origem. Ha 100 anos atras (ou seja, t = −100 anos), o objeto estava a
−43800000 km da origem, e assim por diante.
Um segundo exemplo, ligeiramente mais complicado, e o caso de
uma forca constante, igual a F0, atuando sobre o objeto. Teremos
neste caso:
ma = F0 ⇒ a =F0
m
ou seja, a aceleracao tambem e constante e igual a F0/m. Vamos ba-
tizar de a0 essa quantidade. Usando a definicao simplificada de a, e
considerando novamente t0 = 0, obtemos a velocidade (que e numeri-
camente igual a area sob a curva de a versus t):
v = v0 + a0t
A posicao sera novamente dada pela area sob a curva de v versus t, e
pode ser facilmente obtida:
x = x0 + v0t +1
2a0t
2
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES23
O exemplo do motorista que deve percorrer 80 km em 1 h, com v0 = 20
km/h, e a0 = 120 km/h2 , pode agora ser trivialmente verificado da
expressao acima:
x− x0 = 20 +120
2= 80
E o que ocorre no caso geral em que a forca e uma funcao arbitraria
de t? Ainda aqui podemos interpretar v(t) e x(t) geometricamente
como as areas sob as curvas de a versus t e v versus t, respectivamente.
A diferenca esta no fato de que neste caso o calculo da area se torna
mais complicado.
A tecnica matematica para se calcular areas sob curvas com formas
arbitrarias e chamada de integracao, e foi inventada (“pra variar”) por
Newton3
3Esta tecnica faz parte do que chamamos atualmente em matematica de CalculoDiferencial e Integral, ou simplesmente Calculo. O Calculo foi inventado simultane-amente por Newton e pelo matematico alemao Gottfried Wilhelm Leibniz.
24
PAINEL IV
INTEGRAL DE UMA FUNCAO
Seja uma funcao arbitraria f(x). E interessante sabermos calcular a area sob
a curva descrita por f . Somente em situacoes muito simples, como no caso de
uma funcao constante, ou linear, e que podemos fazer isso usando as formulas da
Geometria Plana. Em um caso geral, para sabermos a area temos que integrar a
funcao.
A integracao de uma funcao pode ser visualizada como um processo de soma
de areas infinitesimais. O intervalo no qual a area sera calculada e dividido em
N subintervalos, cada um com uma largura infinitesimal ∆x. Cada um desses
subintervalos pode ser considerado como um retangulo de base ∆x e altura f(x), e
portanto possuira uma area igual a
∆S = f(x)∆x
Se somarmos todas as areas dos N intervalos, teremos a area total desejada:
S =∑N
f(x)∆x
A integral de f(x) e definida como o resultado dessa soma quando tomamos o limite
∆x → 0, que representamos por dx. Simbolicamente representamos a integral por∫(uma especie de ‘S’ esticado):
lim∆x→0
∑N
f(x)∆x ≡∫f(x)dx
Matematicamente pode ser demonstrado que a operacao de integracao de uma
funcao e o inverso da operacao de derivacao. Ou seja, se g(x) e a funcao que resulta
da derivacao de f(x),
g(x) =df(x)dx
entao, a funcao f e a integral de g:
f(x) =∫g(x)dx
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES25
Considere, por exemplo, a funcao v(t) = a0t, a velocidade de um objeto que
se move ao longo do eixo x com aceleracao constante, igual a a0. A integral desta
funcao sera: ∫v(t)dt =
∫a0tdt
Mas como a0 nao depende de t, podemos escrever:∫v(t)dt = a0
∫tdt
A funcao a ser integrada e portanto f(t) = t. Como esta funcao e igual a derivada
da funcao g(t) = t2/2, teremos: ∫v(t)dt =
12a0t
2
Reconhecemos este resultado como a posicao de um objeto que se move em MRUA,
com velocidade e posicao iniciais iguais a zero:
x(t) =∫v(t)dt =
12a0t
2
A integral de uma funcao entre os pontos a e b e numericamente igual a soma dasareas dos trapezios, como mostrado na figura.
26
Um exemplo de forca extremamente importante em fısica e aquela
em que F e proporcional ao deslocamento do objeto, mas atua em
sentido contrario ao movimento, ou seja:
F = −kx
O tipo de movimento que decorre dessa forca aparece em varios fenomenos
da Natureza, e daı a sua importancia. A solucao formal da equacao 1.1
nesse caso e consideravelmente complexa para ser apresentada aqui,
mas podemos conhecer o resultado mesmo sem realizarmos formalmente
os calculos.
Na expressao acima, k e uma constante positiva chamada de “cons-
tante de forca”, ou “constante elastica”. Sua unidade e o newton por
metro (N/m), e e uma caracterıstica intrınseca do sistema. Por exem-
plo, esse tipo de forca ocorre em uma mola que e deformada se nela
pendurarmos um objeto de massa m (por exemplo, num dinamometro).
k e uma caracterıstica intrınseca da mola, assim como m e uma car-
acterıstica intrınseca do objeto preso a ela. Quanto mais esticamos a
mola, mais difıcil se torna estica-la, porque a forca F aumenta com a de-
formacao x, e portanto tende a restaurar o estado nao deformado. Todo
mundo ja viu as oscilacoes de um objeto preso a uma mola. Se sim-
plesmente pendurarmos o objeto, a mola se deformara e ficara parada.
Mas se alem desse ponto esticarmos a mola e a soltarmos, o objeto
passa a oscilar em torno da posicao de equilıbrio. Esse movimento de
“vai-vem” e descrito pelas funcoes periodicas seno e cosseno:
x(t) = xmaxcos(ω0t)
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES27
ou
x(t) = xmaxsen(ω0t)
onde xmax e a deformacao maxima alcancada pela mola. A quantidade
ω0, chamada de frequencia angular, e uma medida da “rapidez” das
oscilacoes. Ela e dada por:
ω0 =
√k
m
ω0 e medida em radianos por segundo (rad/s). O produto ωt possui
portanto dimensao de angulo, e se mede em radianos. Um ciclo com-
pleto do movimento corresponde a ω0t = 2π rd.
A frequencia do movimento, f0, se relaciona com ω0 atraves de:
f0 =ω0
2π
Portanto a unidade de f0 e o s−1, ou Hertz. Dizer que a frequencia
do movimento e de 10 Hz significa dizer que a cada segundo o sistema
realiza 10 oscilacoes completas.
O inverso da frequencia e o perıodo, τ , que corresponde a um ciclo
completo do movimento:
τ =1
f0
=2π
ω0
A unidade do perıodo e o segundo (s). Se a frequencia e de 10 Hz, o
perıodo e de 0,1 s, sendo este o tempo gasto pelo sistema para completar
1 volta. Suponha por exemplo que k = 2 N/m, e m = 0, 5 kg. Entao,
ω0 =
√2
0, 5= 2
rd
s
28
e consequentemente,
f0 =1
2πrd× 2
rd
s= 0, 32 Hz
e o perıodo,
τ = 3, 1 s
Ou seja, a cada segundo o sistema realiza somente 32% de seu ciclo
completo.
E importante enfatizarmos o fato de que ω0, e portanto f0 e τ sao
quantidades intrınsecas ao sistema. Estas quantidades caracterizam o
movimento do objeto, pois nos dizem o perıodo e a frequencia com que
ele oscila. O interessante e que o sistema pode estar parado, e mesmo
assim podemos caracterizar o seu movimento. Isso e possıvel precisa-
mente porque ω0 depende somente de k, uma propriedade intrınseca
da mola, e m, uma propriedade intrınseca do objeto. Chamamos ω0 de
frequencia natural do sistema, ou modo normal de oscilacao.
Todo sistema mecanico possui modos normais de oscilacao (ou seja,
possui frequencias naturais que intrinsecamente determinam como ele
vibrara caso seja posto em movimento). Conhecer os modos normais de
um sistema e de grande importancia, pela seguinte razao: se uma forca
externa variar com o tempo e atuar sobre um sistema mecanico na sua
frequencia natural [por exemplo, uma forca do tipo F (t) = F0sen(ω0t)
atuando sobre um sistema massa-mola com frequencia natural ω0], a
amplitude do movimento crescera tanto que podera haver uma ruptura
no sistema. Esse fenomeno e chamado de ressonancia. Dizemos que
a forca externa esta em ressonancia com o sistema. O caso da ponte
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES29
Tacoma Narrows nos Estados Unidos e um exemplo dramatico de res-
sonancia em sistemas mecanicos. Ela desabou em 1 de julho de 1940,
pouco tempo apos a sua inauguracao devido a acao ressonante do vento
sobre ela4. Da proxima vez que o leitor estiver atravessando uma ponte
em uma regiao onde venta muito (como na ponte Rio-Niteroi no Rio
de Janeiro), procure NAO pensar sobre o fenomeno da ressonancia!
1.1.3 Gravitacao Universal: da Queda da Maca a
Queda da Lua
No inıcio de 1665 eu encontrei o metodo de aproximacao
de series. Em maio do mesmo ano eu encontrei o metodo
das tangentes, e em novembro eu tinha o metodo de fluxoes,
e em janeiro do ano seguinte a teoria das cores, e em maio
iniciei o metodo inverso das fluxoes. No mesmo ano come-
cei a estender a gravitacao a orbita da Lua, e da regra de
Kepler para o perıodo dos planetas, deduzi que a forca que
mantem os planetas em suas orbitas deve ser proporcional
ao inverso do quadrado da distancia. Tudo isso aconte-
ceu durante 1665-1666, os anos da Peste. Eu estava no
primor da minha inventividade para matematica e filosofia,
mais do que estaria em qualquer outra epoca da minha vida.
(The Life of Isaac Newton, Richard Westafall, Cam-
bridge 1993)
O maior feito de Isaac Newton, e talvez a maior conquista intelectual
ja alcancada por um so homem, foi o de ter sido capaz de explicar o4Existe, contudo, alguma controversia sobre a razao do desabamento da ponte.
30
movimento de corpos celestes (satelites, planetas, cometas, etc.) com
base na equacao 1.1, e portanto coloca-los na mesma “categoria” dos
fenomenos que ocorrem na superfıcie da Terra, como a simples queda
de uma maca.
Newton postulou que objetos massivos se atraem, sendo a forca de
atracao proporcional ao produto das massas dos objetos envolvidos e
inversamente proporcional ao quadrado da distancia entre eles. Ou
seja, se m1 e m2 forem as massas de dois objetos separados por uma
distancia r, a forca de atracao de m1 sobre m2 sera:
F = −Gm1m2
r2er (1.6)
onde er e o vetor unitario da direcao que liga os dois objetos, com
sentido5 de m1 para m2. G e a chamada Constante de Gravitacao
Universal, e vale G = 6, 67 × 10−11 m3/s2kg.
Nos deparamos aqui novamente com um grau de generalizacao fan-
tastico, tıpico das grandes teorias fısicas: a expressao da forca em 1.6
vale para quaisquer pares de objetos no Universo6! Reflita um pouco
sobre isso: podemos tanto descrever uma pedra que cai na superfıcie
da Terra, quanto o movimento de um planeta desconhecido em torno
de um sol em uma galaxia jamais vista, usando a mesma equacao 1.6!
Que outra Ciencia possui esse poder de sıntese?! O leitor eventualmente
estara interessado em uma aplicacao curiosa da equacao 1.6, qual seja,
5E obvio que m2 atraira m1 com uma forca de igual modulo. Contudo o seusentido sera dado por um unitario oposto a er.
6De fato, a Gravitacao Universal de Newton foi generalizada na RelatividadeGeral de Einstein, a ser vista no capıtulo oito. No entanto, dentro do mundoclassico, a expressao 1.6 descreve perfeitamente o movimento de objetos celestes.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES31
avaliar a forca de atracao gravitacional entre duas pessoas separadas
por uma distancia de, digamos, 0,5 mm. E frustantemente pequena!
Certamente a gravitacao nao e a forca responsavel pela “atracao” entre
pessoas!
Newton postulou que massas se atraem com forcas radiais, que diminuem com oquadrado da distancia entre os objetos.
32
A forca dada em 1.6 somente sera apreciavel se pelo menos um dos
objetos tiver dimensoes astronomicas. Por exemplo, seja m1 = 80 kg,
a massa de uma pessoa e m2 a massa da Terra: m2 = M = 5, 98× 1024
kg. Tomemos por r o raio medio da Terra: r = R = 6, 37 × 106 m.
Sustituindo esses valores em 1.6 obtemos para o modulo da forca:
F ≈ 6, 67 × 10−11 × 80 × 5, 98 × 1024
(6, 37 × 106)2≈ 786 N
Como a Terra nao e uma esfera perfeita (certa vez uma das “cobras”
de Luiz Fernando Verıssimo definiu brilhantemente a Terra como um
planeta chato nos polos e nos domingos sem futebol!), esse valor varia
ligeiramente com a posicao da pessoa no planeta. Somente para efeitos
de comparacao, vamos calcular a forca com que o Sol atrai a Terra. A
massa do Sol e igual a 1, 99 × 1030 kg, e a distancia media entre o Sol
e a Terra e de 1, 50 × 1011 m. Substituindo em 1.6 obtemos:
F ≈ 6, 67 × 10−11 × 1, 99 × 1030 × 5, 98 × 1024
(1, 50 × 1011)2≈ 35, 3 × 1021 N
ou seja, a forca do Sol sobre a Terra e cerca de 40 mil quatrilhoes (= 40
quintilhoes) de vezes maior do que aquela da Terra sobre uma pessoa.
Consideremos com mais detalhes o que acontece na superfıcie da
Terra. Tomando R como seu raio medio, podemos escrever 1.6 na
forma:
F =(GM
R2
)m
onde M e a massa da Terra, e m a de qualquer objeto em sua su-
perfıcie. Como forca e igual a massa vezes aceleracao, a quantidade
entre parenteses na expressao acima possui dimensao de aceleracao, e
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES33
e constante, ja que G, M e R sao constantes. Essa quantidade nada
mais e do que a aceleracao da gravidade na superfıcie terrestre, que
denotamos por g. Nesse caso a forca gravitacional e o que chamamos
de peso, P :
P = mg
onde
g = GM
R2
Substituindo valores numericos paraG, M eR encontra-se g = 9, 8m/s2.
Note que no nosso dia-a-dia misturamos os conceitos de massa e
peso como se fossem sinonimos. Massa esta relacionada a quantidade
de materia, e portanto e uma propriedade intrınseca do objeto. O peso,
por outro lado, e uma propriedade extrınseca, pois depende do campo
gravitacional que atua sobre o objeto. Uma pessoa com uma massa de
80 kg pesa na Terra 786 N, mas na Lua, onde a aceleracao da gravidade
e de apenas 1,6 m/s2, seu peso seria igual a 128 N. Em Netuno, onde
g = 11 m/s2 a mesma pessoa pesaria 882 N. Contudo, isto nao significa
que uma pessoa ficara mais magra ao viajar de Netuno para a Lua!
1.1.4 O Movimento dos Planetas
Contam que certa vez o eminente fısico Edmund Halley (aquele do
cometa), intrigado com o problema das orbitas dos planetas, cuja solucao
vinha perseguindo ha anos, foi a Cambridge visitar Isaac Newton.
Chegando la, humildemente expos a sua duvida: supondo que o Sol
atrai um planeta com uma forca proporcional ao inverso do quadrado
34
da distancia, qual sera a trajetoria do planeta?, a que Newton teria
respondido instantaneamente: Uma elipse. Este problema eu ja resolvi
ha muito tempo atras. Halley teria ficado tao impressionado (e pos-
sivelmente deprimido) que apos verificar a demonstracao de Newton, o
convenceu a escrever o Principia, e ainda teria pago os custos da sua
publicacao!
Como mencionamos na secao anterior, o movimento de qualquer
objeto sob a acao do campo gravitacional e descrito pela expressao
dada em 1.6. Para objetos que se movem proximos a superfıcie da
Terra a forca e dada por mg, onde g e a aceleracao da gravidade.
Algo curioso acontece aqui. Substituindo F = mg na Segunda Lei
de Newton, F = ma, obtemos
mg = ma⇒ a = g = constante
donde se conclui que
v = v0 + gt
e
z = z0 + gt+1
2gt2
onde z e a distancia do objeto ao solo. Antes de irmos adiante o leitor
seria capaz de dizer o que ha de tao extraordinario neste resultado? Nao
parece ser o mesmo ja obtido anteriormente, para o caso de aceleracao
constante? Sim, parece, mas apenas parece, pois anteriormente a ace-
leracao era dada por F0/m, e portanto dependente da massa do objeto.
Ao contrario, as expressoes para v e para z acima nao contem a massa
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES35
do objeto! Isso quer dizer que fixados z0 e v0, desprezados os efeitos
causados pelo atrito com o ar, todos os objetos cairao ao mesmo tempo
e alcancarao o solo com a mesma velocidade final! Uma geladeira, um
caminhao com sacos de cimento, uma bolinha de papel, uma caneta,
uma pena de galinha, ou um navio! Voce acredita nisso? Va em frente
e faca o teste voce mesmo: deixe cair da mesma altura uma bolinha de
papel bem amassada (para minimizar o atrito com o ar) e um tijolo.
Como diz um velho amigo do CBPF, em toda boa teoria nos temos que
“tirar” mais do que “colocar”. Em outras palavras, se a teoria nao te
causa surpresas verificaveis experimentalmente, jogue ela no lixo!
Forcas que so dependem do modulo da distancia entre os objetos
e cuja direcao esta ao longo do raio que os liga, como a dada em 1.6,
sao chamadas de forcas centrais. E importante mencionar que forcas
centrais nem sempre sao atrativas, mas podem tambem ser repulsivas,
como e o caso da forca eletrica entre cargas eletricas com o mesmo sinal
(Secao 1.2). Quando um objeto se encontra sob a acao de uma forca
central, e descreve uma trajetoria circular com velocidade constante,
podemos igualar a expressao 1.6 a chamada forca centrıpeta, dada por:
Fc =mv2
r(1.7)
onde m e a massa, v a velocidade, e r o raio da trajetoria circular.
Igualando 1.6 a 1.7 podemos calcular, por exemplo, a distancia da Terra
ate a Lua. Para isso, obviamente temos que supor a trajetoria da Lua
como sendo circular, e supor ainda que sua velociade seja constante.
Vamos la:
36
mv2
r= G
Mm
r2⇒ r =
GM
v2
onde agora M e a massa da Terra e m a da Lua (note que m desaparece
da expressao final). Mas, se r e o raio da circunferencia descrita pela
Lua em volta da Terra, a distancia que a Lua percorre em uma revolucao
completa sera igual a 2πr. Como a sua velocidade e constante e igual
a v, o seu perıodo de movimento sera:
τ =2πr
v⇒ v =
2πr
τ
Por outro lado, podemos usar a expressao para g - a aceleracao da
gravidade na Terra - e substituir o produto GM (isso obviamente nao e
estritamente necessario, apenas facilita a substituicao numerica ao final
do calculo):
GM = gR2
Com isso obtemos:
r =
(gR2τ 2
4π2
)1/3
Substituindo os valores numericos: g = 9, 8 m/s2, R = 6, 37 × 106
m e τ ≈ 27 dias, obtemos r ≈ 383 000 km para a distancia Terra-Lua.
Newton foi o primeiro a fazer este calculo (o bicho era mesmo o “cao
chupando manga”!). O valor atual, medido com tecnicas modernas e
de aproximadamente 382 000 km. A tabela abaixo resume algumas das
principais propriedades dos planetas do Sistema Solar.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES37
.
Podemos calcular a distancia Terra-Lua supondo que o movimento da Lua e circulare uniforme.
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3a.
Ed.,
(198
8)
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES39
1.1.5 Massa Inercial vs. Massa Gravitacional
Podemos escrever a segunda lei de Newton da seguinte forma:
a =1
mF
ou seja, a aceleracao que um objeto adquire e diretamente proporcional
a forca a ele aplicada, e inversamente proporcional a sua massa. Para
uma dada forca, quanto maior a massa, menor sera a aceleracao. Nesta
expressao, a massa representa a resistencia do objeto ao movimento
(ou contrariamente, se o objeto estiver se movendo, m representa a sua
resistencia a parar). Esta tendencia dos objetos massivos manterem seu
estado de movimento e chamada de inercia. Por esta razao, a massa
que aparece na segunda lei de Newton e chamada de massa inercial.
Por outro lado, vimos que a forma funcional (ou seja, o lado es-
querdo de 1.1) para a forca de gravitacao proposta por Newton de-
pende explicitamente da massa que, neste caso, e chamada de massa
gravitacional:
F = GMm
R2
Na mecanica classica nao ha nada que diga ou prove que a massa
inercial e a massa gravitacional devam ser iguais. No entanto elas sao
rigorosamente identicas! Este fato, aparentemente trivial, e consider-
ado por Newton como uma “estranha” coincidencia, levou Einstein a
um profundo “insight” a respeito da natureza da interacao gravita-
cional. Com isso ele formulou seu princıpio de equivalencia a partir
do qual desenvolveu a Teoria da Relatividade Geral, que sera tratada
40
no capıtulo oito. O ilustre fısico brasileiro, professor Mario Schenberg,
costumava ensinar que em fısica nada e tao trivial quanto parece. Esta
e uma grande licao!
1.1.6 Movimento Relativo
Encerra-te com um amigo dentro do maior camarote sob
o conves de um grande navio e leva contigo moscas, bor-
boletas e outros insetos que voam; municia-te tambem de
um grande recipiente cheio de agua e com peixinhos; pegue
tambem um pequeno balde cuja agua vaze gota a gota por um
pequeno orifıcio em outra vasılha colocada abaixo. Quando
o navio estiver parado, observa cuidadosamente como os
pequenos animais que voam vao com a mesma velocidade
em todas as direcoes da cabine; veem-se os peixes nadar
insdistintamente por todos os lados, e as gotas que caem
entram todas no recipeinte colocado abaixo; se jogares al-
guma coisa a teu amigo, nao teras necessidade de atirar
mais forte numa direcao que noutra quando as distancias
sao iguais. Quando tiveres observado cuidadosamente tudo
isso faze o navio navegar com a velocidade que desejares;
desde que o movimento seja uniforme, sem balancar num
sentido ou noutro, nao perceberas a menor mudanca em to-
dos os efeitos que acabamos de apontar; nada permitira que
percebas que o navio esta em marcha ou parado.
[Galileu Galilei, em 1632. Extraıdo de Imposturas Intelectuais, Alan
Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES41
Quando afirmamos que um objeto se move com velocidade v e sua
posicao em cada instante de tempo e r, esta implıcito que estas quan-
tidades estao sendo medidas a partir de alguma posicao do espaco, em
geral onde se encontra o observador. A partir de sua propria posicao,
um observador estabelece um sistema de coordenadas do qual qualquer
grandeza fısica pode ser medida. O local onde o observador se encontra
e normalmente considerado a posicao r = 0. Como o espaco possui 3
dimensoes, tal sistema de coordenadas deve possuir 3 eixos coordena-
dos, os quais chamamos x, y e z, normalmente perpendiculares entre
si. Qualquer componente de um vetor podera, entao, ser medida inde-
pendentemente de qualquer outra. Por exemplo, se uma forca qualquer
F atua sobre um objeto de massa m, podemos medir a aceleracao que
este adquire ao longo da direcao y, digamos ay, e verificar a relacao
ay = Fy/m.
Acontece que em fısica nao nos satisfazemos somente com o que ve-
mos, mas queremos tambem “bisbilhotar” o que os outros veem. Tec-
nicamente falando, queremos expressar as leis de movimento que ob-
servamos no nosso sistema de coordenadas, em termos das coordenadas
medidas por observadores em outros sistemas. Desta forma podemos
descrever o movimento de objetos do ponto de vista de observadores
diferentes, e saber como as leis da fısica se transformam de um sistema
de coordenadas para o outro. Por exemplo, podemos descrever a tra-
jetoria de uma bomba lancada de um aviao, tanto do ponto de vista de
um observador parado na Terra, quanto do ponto de vista do piloto do
aviao. As trajetorias serao obviamente diferentes, porem o ponto onde
a bomba atinge o solo sera o mesmo para os dois observadores. For-
42
malizando um pouco mais, considere um objeto cuja posicao medida a
partir de um sistema de coordenadas A seja r e a partir de um sistema
de coordenadas B seja r′. A posicao de B em relacao a A e dada por
R. E facil ver que estes tres vetores estao relacionados por:
r = r′ + R (1.8)
A expressao acima pode ser entendida como uma “regra” que nos
ensina como transformar coordenadas de um sistema de coordenadas
A para outro B. Se considerassemos apenas uma dimensao, a relacao
acima seria:
x = x′ +X
onde x e a distancia medida de uma determinada origem A, e x′ de
um outra origem B, que dista de A de X. Por exemplo, se o objeto
se encontra a x = 10 metros a direita da origem de A, e a origem
deste sistema dista X = 3 metros tambem a direita da origem de B, a
distancia do objeto a origem B sera obviamente de x′ = 7 metros.
A origem B nao necessariamente precisa estar parada em relacao
a A, mas pode estar se movendo. Alem disso, o proprio objeto pode
tambem se mover em relacao a ambas. Suponha entao que a velocidade
do objeto em relacao a A seja vx, e em relacao a B seja v′x. Suponha
ainda que B se mova em relacao a A com velocidade V . A relacao entre
essas tres velocidades sera dada por:
vx = v′x + V
Ao realizarmos esta soma, devemos levar em consideracao o sentido do
movimento. Por exemplo, suponha que o objeto se mova na direcao e
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES43
sentido positivos de x, com velocidade vx = +5 m/s, medida em relacao
a A. Se B se afasta, na mesma direcao e sentido com velocidade V = +2
m/s, a velocidade do objeto medida de B sera:
v′x = 5 − 2 = 3 m/s
Mas se B se aproxima de A com velocidade V = −2 m/s, teremos
v′x = 5 + 2 = 7 m/s
Devemos ainda notar que se o ponto B se move em relacao ao A
com velocidade V , apos um tempo t, a sua posicao em relacao a A sera
X = V t. Com isso, a relacao entre as coordenadas x e x′ se torna:
x = x′ + V t
Em tres dimensoes teremos uma relacao vetorial tambem para as
velocidades:
v = v′ + V (1.9)
onde v e a velocidade medida no sistema A, v′ aquela medida no sistema
B, e V e a velocidade relativa entre os dois sistemas. E obvio que se o
sistema B estiver parado em relacao a A, teremos V = 0, e ambos os
observadores medirao a mesma velocidade.
Agora, se a velocidade relativa V entre os dois sistemas for cons-
tante, a aceleracao relativa dos referenciais sera nula. Nesta situacao,
se o objeto que se move estiver submetido a uma forca, ambos os ob-
servadores medirao a mesma aceleracao, ou seja,
44
a = a′ (1.10)
Multiplicando ambos os lados da igualdade acima pela massa do ob-
jeto (a massa independe do sistema de coordenadas), chegamos a um
importante resultado:
ma = ma′ ⇒ F = F′
onde F e a forca medida de A, e F′ de B. Consequentemente, se V for
constante, a segunda lei de Newton tera exatamente a mesma forma
em ambos os sistemas de coordenadas. Conclui-se entao que todos
os sistemas de referencia que se movem com velocidade constante sao
equivalentes uns aos outros, perante a segunda lei. Estes sistemas sao
chamados de sistemas inerciais. Sistemas de referencia acelerados, ou
seja, que se movem com velocidade nao uniforme, sao chamados de
sistemas nao-inerciais. Transformacoes de coordenadas entre sistemas
inerciais sao chamadas de transformacoes de Galileu. Como veremos
no capıtulo seguinte, quando aplicadas a fenomenos eletromagneticos
as transformacoes de Galileu falham. Isto levou Albert Einstein (consi-
derado o “Newton” do seculo XX) a reformular a mecanica newtoniana.
O resultado desta reformulacao foi a Teoria da Relatividade Restrita.
1.1.7 Fısica Termica: dos Planetas aos Gases
A mecanica classica foi alem da descricao do movimento de planetas e
outros corpos sob a acao de forcas mecanicas. Ela tambem foi capaz
de dar um fundamento microscopico para certos fenomenos termicos.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES45
A termodinamica e uma tradicional area da fısica que estuda feno-
menos termicos. Estes sao fenomenos associados a sistemasmacroscopicos,
onde um grande numero de partıculas como moleculas atomos, aglo-
merados, etc., interagem entre si e com o meio externo trocando massa
e energia. A mudanca da fase lıquida para a fase de vapor da agua e um
exemplo de fenomeno termico. Outro exemplo e o aquecimento de um
fio condutor percorrido por uma corrente eletrica, ou ainda a dilatacao
de uma ponte de concreto em um dia de calor.
A abordagem da termodinamica para tratar fenomenos deste tipo e
baseada em observacoes experimentais. Nao ha nesta ciencia uma des-
cricao destes fenomenos a partir de um modelo microscopico onde os
detalhes das interacoes entre as partıculas que compoem o sistema sao
levadas em conta. Precisamente por este aspecto, alguns fısicos con-
sideram a termodinamica uma ciencia melhor fundamentada do que as
outras areas da fısica, por ela nao estar sujeita a modismos teoricos.
Einstein, por exemplo, tinha a opiniao de que no futuro todas as teo-
rias atuais da fısica provavelmente desapareceriam, com excecao da
termodinamica.
Vamos tomar como exemplo uma conhecida lei da termodinamica,
a lei dos gases perfeitos:
PV = NRT
Esta equacao descreve uma relacao observada experimentalmente en-
tre a pressao P , o volume V e a temperatura T de um gas com N
moleculas. R e a chamada constante universal dos gases, e vale 8,314
J/Mol K. As quantidades P , V , T sao chamadas de variaveis de estado
46
do sistema. Termodinamica e isso: relacoes entre variaveis de estado de
um sistema. A relacao acima nos diz, por exemplo, que se quisermos
baixar a pressao de um gas temos que aumentar o seu volume e/ou
diminuir a sua temperatura. Pressao e temperatura neste contexto sao
meramente numeros que se medem com barometros e termometros,
respectivamente. Mas, quais sao os processos fısicos microscopicos que
dao origem a pressao e a temperatura? A termodinamica nao sabe
responder.
E aqui que a mecanica de Newton entra novamente em acao. Con-
siderando um gas como um objeto composto por um numero muito
grande de partıculas (atomos ou moleculas), tipicamente da ordem de
1023 partıculas por centımetro cubico, que se movem aleatoriamente
dentro de um recipiente com volume V , e descrevendo o movimento
de cada uma delas de acordo com as leis de movimento de Newton, a
equacao acima pode ser deduzida matematicamente. Note que inicial-
mente dissemos que PV = NRT era uma relacao entre as variaveis de
estado de um gas, observada experimentalmente; agora estamos dizendo
que esta relacao pode ser deduzida matematicamente aplicando-se as leis
da mecanica ao movimento das moleculas constituintes do gas. O fato
de que o movimento das moleculas deve ser considerado aleatorio e fun-
damental para a derivacao teorica da equacao. Matematicamente isto
significa que o problema deve ser tratado estatisticamente7. Com esta
abordagem, conhecida como teoria cinetica dos gases, pode ser dado um
fundamento microscopico para a equacao dos gases perfeitos. Na teoria
7Em tal tratamento, as posicoes e velocidades de cada molecula ou atomo do gasnao sao conhecidas, mas apenas as probabilidades de que cada uma delas esteja emuma posicao r com momento p.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES47
cinetica dos gases a pressao do gas surge naturalmente como uma me-
dida da transferencia de momento causada pelos colisoes das moleculas
nas paredes do recipiente. A temperatura, por sua vez, aparece como
uma medida da energia cinetica media das moleculas. A aplicacao bem
sucedida dos seus conceitos ao problema dos gases foi outro importante
triunfo da mecanica classica.
1.1.8 E Possıvel o Tempo andar para Tras?
Uma peculiaridade importante da segunda lei de Newton e a sua in-
variancia sob uma mudanca no sinal do tempo. Considere a definicao
simples de aceleracao:
a =v
t
onde tomamos t0 = 0. Mas, como v = r/t, no denominador da ex-
pressao de a aparecera t2, o tempo ao quadrado. Consequentemente,
se trocarmos t por −t, a aceleracao a ficara invariante, pois (−t)2 = t2.
Isso quer dizer que a segunda lei de Newton nao distingue passado de
futuro! Ou seja, fenomenos “que andam para frente” no tempo, para a
segunda lei, sao identicos aos que “andam para tras”. Esta situacao e
demasiado esquisita, pois todos nos sentimos que o tempo so “anda pra
frente” (como diria o ilustre cientista, professor e fundador do CBPF,
Jose Leite Lopes, do alto dos seus mais de 70 anos de idade: “infe-
lizmente!”). Alguem ja viu uma pessoa nascer velha e morrer jovem?!
Sera que a dinamica classica nao se aplica ao movimento das moleculas
do nosso corpo?
Certamente sabemos hoje que a dinamica das moleculas do nosso
48
corpo nao e governada pelas leis da mecanica classica, mas pelamecanica
quantica, que sera tratada no capıtulo tres. Mas um organismo vivo,
como o corpo de uma pessoa, e um sistema muito complexo para servir
de exemplo no presente contexto. Tomemos um caso mais simples,
como o nosso gas perfeito da secao anterior. Inicialmente o gas ocupa
um volume V . Sabemos que se dobrarmos o volume para 2V , imediata-
mente o gas se expandira e passara a ocupar todo o volume. Imagine
que por um instante pudessemos confinar todas as moleculas do gas
em um unico ponto. Ao soltarmo-las elas novamente ocupariam todo o
volume disponıvel. Imaginar o processo reverso, ou seja, as moleculas
espontaneamente se juntarem em um unico ponto do espaco soa insano
(em fısica nao podemos ter medo de lidar com maluquices desse tipo!).
No entanto, se cada molecula se move de acordo com a segunda lei, esta
insanidade pode, em princıpio, acontecer! Podemos dar outros exem-
plos insolitos: todo mundo ja deixou algum dia na vida um copo com
agua cair no chao, e assistiu com horror o copo se quebrar, a agua se
espalhar, e fazer aquela lambanca. Contudo, ate o momento, ninguem
parece ter relatado o oposto, ou seja, a agua e os cacos se juntarem e
voltarem sob a forma de um copo para as maos de um observador es-
tarrecido. No entanto, de acordo com a mecanica classica isto poderia
acontecer!
O que ha de comum nestes processos? E o fato de eles ocorrerem
somente em uma direcao no tempo. O copo cai, quebra, e ponto final.
Ou: o gas se expande, e fica expandido. Nao ha como voltar atras. Na
fısica a funcao associada a essa flecha do tempo e chamada de entropia.
Processos fısicos como a expansao livre do gas ou o copo que se quebra
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES49
resultam sempre em um aumento de entropia.
A entropia mede o grau de ordem de um sistema termodinamico, e
esta associada a nossa informacao (ou ignorancia!) sobre ele. No exem-
plo do gas, no estado em que todas as moleculas se encontram em um
so ponto do espaco, conhecemos todas as suas coordenadas, e portanto
nossa informacao e grande, e a entropia e pequena. No momento em
que o gas se expande, perdemos informacao, pois nao e possıvel acom-
panhar as posicoes e velocidades de 1023 moleculas ao mesmo tempo.
Desse modo a entropia aumenta. Uma vez expandido, para voltar ao
estado de entropia inicial, as moleculas teriam que retornar ao “ponto
de encontro”. De acordo com as leis da mecanica, nao ha nada que
impeca que isso ocorra, mas probabilisticamente podemos dizer que o
fenomeno e impossıvel.
Portanto, a “flecha do tempo” estaria associada a aleatoriedade ine-
rente a sistemas termodinamicos, como e o caso do gas. Deste ponto de
vista a irreversibilidade, e portanto o fluxo unidirecional do tempo, seria
uma mera ilusao causada pela nossa ignorancia (Einstein costumava
dizer que o tempo e uma ilusao)! Em um nıvel fundamental, defendem
alguns fısicos, nao ha distincao entre passado e futuro. O Premio Nobel
de Quımica de 1972, Ilyia Prigogine e um dos cientistas contemporaneos
que discordam desta posicao. Ele escreveu em seu livro recente O fim
das Certezas (Ed. UNESP 1996):
O futuro e dado ou esta em perpetua construcao? E
uma ilusao a crenca em nossa liberdade? E uma verdade
que nos separa do mundo? A questao do tempo esta na
encruzilhada da existencia e do conhecimento. O tempo e a
50
dimensao fundamental da existencia, mas esta tambem no
coracao da Fısica...
Prigogine acredita que a irreversibilidade e a flecha do tempo e-
xistem mesmo em um nıvel fundamental, ou seja, nao e uma “ilusao”,
como acreditava Einstein. De fato, ele defende a ideia de que o fluxo
unidirecional do tempo e a chave para a solucao de varios paradoxos
hoje existentes na fısica. O leitor arriscaria uma solucao? A discussao
continua...
A “flecha do tempo” esta associada ao aumento da entropia. Neste exemplo do gasem uma caixa, sabemos que a situacao em C ocorre depois daquela em A porque aentropia em C e maior.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES51
1.1.9 O Relogio Cosmico
O quadro construıdo pela mecancia de Newton descreve o “funciona-
mento” da Natureza de uma maneira as vezes comparavel ao de um
relogio suıco. O espaco e o tempo sao estruturas absolutas e alheias
aos fenomenos fısicos que “dentro” deles se desenrolam, como atores no
palco de um teatro. O entusiasmo com o tremendo sucesso da mecanica
levou a algumas concepcoes extremas, como exemplificado nas palavras
de Pierre Laplace, um importante fısico e matematico frances do seculo
XIX:
Devemos encarar o estado atual do Universo como efeito
de seu estado anterior, e como causa do estado que se seguira.
Uma inteligencia que em determinado instante, pudesse con-
hecer todas as forcas que governam o mundo natural, que
pudesse conhecer todas as posicoes respectivas das entidades
que o compoe e que fosse capaz de analisar todas essas
informacoes, teria como abranger em uma unica formula
os movimentos dos maiores corpos do Universo e de seus
menores atomos. Para essa inteligencia nada seria incerto
e, tanto o passado quanto o futuro, estariam diretamente
presentes a sua observacao.
Obviamente a concepcao que Laplace tinha da Natureza nao deixa
espaco para caracterısticas essencialmente humanas, como livre arbıtrio.
Todos nos sentimos que “somos donos de nossos narizes”. Ou seja,
nossas decisoes nao obedecem a solucoes de equacoes matematicas!
52
Sabemos (ou pelo menos pensamos que sabemos) que o futuro e cons-
truıdo por nos mesmos, e nao pre-determinado. Este conflito entre
lıvre arbıtrio e determinismo cientıfico atormenta a humanidade desde
os tempos de Epicuro, um filosofo grego que viveu cerca de 300 anos
antes de Cristo. Suas indagacoes sao espantosamente modernas, como
lembra Prigogine:
Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de
tudo, o sabio ri-se dele. De fato, mais vale ainda aceitar
o mito sobre os deuses do que se sujeitar ao destino dos
fısicos. Pois o mito nos deixa a esperanca de nos conciliar-
mos com os deuses atraves das honras que nos lhes rende-
mos, ao passo que o destino tem um carater de necessidade
inexoravel.
Mas, essa e apenas uma concepcao. A discussao continua, e o leitor
esta convidado a participar...
1.2 O Eletromagnetismo Classico
1.2.1 Fenomenos Eletricos e Magneticos
Todo mundo ja teve o desprazer de enfiar o dedo em uma tomada ou
segurar um fio desencapado. Aquela sensacao “agradavel” de estarmos
sendo virados pelo avesso e causada pelo fluxo de corrente eletrica pelo
nosso corpo. Choques eletricos, lampadas, eletrodomesticos e antenas
de televisao so existem por causa de uma propriedade fundamental
da materia: a carga eletrica. Cargas eletricas podem ser positivas ou
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES53
negativas. O eletron e uma das partıculas constituintes do atomo, e
transporta o menor valor de carga eletrica na Natureza8. Ela vale
e = −1, 6019×10−19 coulombs (C). Portanto a carga eletrica e discreta
(em oposicao a “contınua”, e nao a “exibida”), ou quantizada. O choque
que sentimos ao enfiarmos o dedo na tomada e causado pela corrente
que flui devido a uma diferenca de potencial eletrico mantida entre
os seus terminais. Diferencas de potencial eletrico causam movimento
de cargas, assim como diferencas de potencial gravitacional causam
movimento de massa e diferencas de pressao na atmosfera causam o
movimento do ar (vento).
Uma outra experiencia comum que o leitor provavelmente ja viven-
ciou e a observacao do alinhamento da agulha de uma bussola com o
campo magnetico da Terra. O fenomeno e devido a interacao entre o
material do qual a agulha e feita, e o campo magnetico gerado pela
Terra; campos magneticos interagem com materiais magneticos, assim
como campos eletricos interagem com cargas e campos gravitacionais
interagem com massa.
Uma terceira experiencia que certamente todos ja vivenciaram (geral-
mente realizada aos domingos na casa da mae ou da sogra) consiste em
sentar-se em uma confortavel poltrona e assistir a um bom programa de
televisao (como por exemplo um jogo do Flamengo). O leitor saberia re-
sponder de onde vem as imagens e os sons que o deixa tao irritado? Elas
chegam atraves do espaco, sob a forma de ondas eletromagneticas, emi-
tidas por uma estacao transmissora, detectadas pela antena na nossa
8Na verdade existem partıculas subnucleares, chamadas quarks, cuja carga e umafracao da carga do eletron. No entanto, os quarks nao existem isoladamente comoo eletron. Mais sobre quarks no capıtulo nove.
54
casa, e decodificadas pelos circuitos eletronicos que existem dentro do
aparelho de TV, para finalmente se tornarem sons e imagens. Ondas
eletromagneticas interagem com cargas eletricas9.
Todos estes fenomenos, e uma infinidade de outros, sao o objeto de
estudo do segundo tronco da fısica classica: a eletrodinamica classica.
Esta e a parte da fısica que trata de fenomenos eletricos, magneticos,
da geracao e propagacao de ondas eletromagneticas, etc. Aqui uma
pausa: a palavra “magnetismo”, que nao e propriedade da fısica, tem
sido usada indiscriminadamente ao longo do tempo e do espaco nos
mais variados contextos e situacoes. Parece que esta palavra exerce
um fascınio especial sobre algumas pessoas. Na fısica, em particular, o
magnetismo esta entre os fenomenos mais bem estudados e compreen-
didos. Procure entender o que e magnetismo para saber reconhecer o
que e cientıfico.
E preciso nesse ponto introduzir o conceito de campo em fısica.
Ja falamos anteriormente de campo gravitacional. Definir campo nao
e tarefa simples, mas grosso modo podemos afirmar que um campo
e uma regiao do espaco que adquire propriedades especiais, causadas
pela presenca de objetos com massas, cargas e correntes. A presenca
do campo pode ser detectada atraves de objetos que interajam com ele.
Por exemplo, o campo gravitacional interage com a massa dos corpos.
Sabemos que existe o campo porque quando largamos um objeto de
uma certa altura, ele cai.
Campos sao representados por linhas imaginarias que podem ser de-
9Ondas eletromagneticas interagem tambem com momentos magneticos, comoexplicado no capıtulo seis.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES55
senhadas no espaco. As linhas representam a direcao e a intensidade do
campo em cada ponto do espaco. A vantagem desta representacao esta
no fato de que olhando apenas para as linhas de campo, podemos imag-
inar o movimento de um objeto que interaja com ele, sem a necessidade
de nos referir aos detalhes da fonte que gera o campo. Por exemplo,
ao analisarmos a queda de uma pedra na superfıcie da Terra, usamos
apenas o fato de que o campo gravitacional aponta “para baixo”, e seu
valor e de aproximadamente 10 m/s2. Nao ha necessidade de fazermos
referencia a detalhes geograficos ou geologicos do planeta.
Cargas eletricas possuem a interessante propriedade de criar cam-
pos eletricos que podem interagir com outras cargas eletricas. Alem
disso, se uma carga eletrica se move, ela cria adicionalmente um campo
magnetico. Um campo magnetico tem a propriedade de interagir tanto
com cargas quanto com objetos magneticos, como a agulha de uma
bussola. Analogamente, se colocarmos um ıma em movimento ele cria
um campo eletrico a sua volta. “Epa! Esse troco ta confuso!” E isso
mesmo: um campo eletrico e sempre criado por uma carga em repouso,
mas tambem aparece quando existe um campo magnetico variando no
tempo. Por sua vez, um campo magnetico que varia no tempo cria um
campo eletrico, que cria um campo magnetico, que cria um eletrico,
que cria um magnetico...Afinal, como e que voce acha que uma onda
eletromagnetica se propaga?
Representamos o campo eletrico pela letra E - um vetor - e o campo
magnetico pela letra B, tambem um vetor. A unidade de campo eletrico
no SI e o volt por metro (V/m), e a de campo magnetico o tesla (T).
Uma lampada de 200 Watts, por exemplo, gera a 3 m de distancia um
56
campo eletrico da ordem de 30 V/m e um campo magnetico da ordem
de 0, 0000001 T.
Existe uma diferenca importante entre a interacao eletrica e a gra-
vitacional: enquanto massas sempre se atraem, cargas podem se atrair
ou se repelir, dependendo dos sinais serem iguais ou opostos. A in-
teracao entre objetos magneticos pode tambem ser atrativa ou repul-
siva, como pode ser observado aproximando-se o polo norte de um ıma
ao polo norte ou sul de outro.
Agora um pouco de formalismo matematico. A forca eletrica que
atua sobre uma carga q devida a um campo eletrico E e dada pelo
produto da carga pelo campo:
F = qE (1.11)
Por exemplo, um campo eletrico de 1 V/m exerce uma forca de 1, 60×10−19 N em um objeto com carga igual a carga do eletron.
Neste ponto, as coisas podem (compreensivelmente) estar ficando
confusas para o leitor. Se nao estao, de duas uma: ou voce ja conhece
tudo o que esta sendo dito, ou nao entendeu nada ate agora! Por exem-
plo, nesta expressao da forca acima, quem gera o campo E? A propria
carga q? Nao. O campo E e considerado como sendo gerado por um
outro conjunto de cargas, mas que se encontram distantes da carga q.
Obviamente sendo q uma carga eletrica, ela gera seu proprio campo.
Contudo, consideramos que este campo sera irrelevante em comparacao
a E que aparece na expressao da forca eletrica. Nessas circunstancias
a carga q e chamada de carga de prova, ou seja, ela e usada para testar
o campo E, sem alterar as suas propriedades. O mesmo ocorre no
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES57
caso gravitacional. Quando escrevemos P = mg, para o peso de um
objeto na superfıcie da Terra, a massa do objeto, m, tambem gera seu
proprio campo gravitacional (nossos corpos sao fontes de campo!). No
entanto, consideramos (implicitamente) que este campo nao altera as
propriedades do campo da Terra.
Suponha, por exemplo, que E seja constante, e aponte ao longo
da direcao x: E = E0i. Teremos entao de 1.11 (omitindo a notacao
vetorial):
ma = mv
t= qE0 ⇒ v =
q
mE0t
Se a partıcula for por exemplo um eletron, q/m = 1, 06× 10−19/9, 11×10−31 = 0, 176 × 1012 C/kg. Se E0 = 1 V/m, partindo do repouso,
apos 1 segundo a velocidade do eletron seria v = 0, 176 × 1012 m/s.
Como veremos no capıtulo seguinte, velocidades desta magnitude sao
proibidas pela teoria da relatividade.
Agora, como calcular o campo E devido a uma carga Q? Para isto
usamos a expressao do campo em um ponto r:
E =1
4πε0
Q
r2er (1.12)
onde ε0 e chamada de permissividade eletrica do vacuo, e vale ε0 =
8, 854 × 10−12 C/Nm2. A direcao de E e dada pelo vetor unitario er,
radial em relacao a carga Q.
Entao, a forca de interacao eletrica entre duas cargas q e Q separadas
por uma distancia r, de acordo com 1.11 e 1.12 sera:
F =1
4πε0
r2er (1.13)
58
Esta expressao e chamada lei de Coulomb. O vetor unitario er esta ao
longo da linha que une as cargas. Note que se as cargas q e Q forem
da mesma ordem de magnitude, o campo eletrico total nao podera ser
aproximado como aquele devido a somente uma das cargas. Nesse caso,
em qualquer posicao r, ele sera simplesmente a soma dos campos de
cada uma delas. Repare a semelhanca entre 1.13 e 1.6. A massa foi
simplesmente trocada pela carga e a constante de proporcionalidade
mudou. Sera isto mera coincidencia?
Para efeitos de ilustracao, vamos comparar os modulos das forcas
eletrica e gravitacional entre dois eletrons. Sabemos que a forca gra-
vitacional (que vamos representar aqui por Fg) nesse caso sera dada
por:
Fg = Gm2
r2
onde m e a massa do eletron. E a forca eletrica:
Fe =1
4πε0
e2
r2
onde e e a carga do eletron. Dividindo uma expressao pela outra obte-
mos:
FgFe
=Gm2
r2
14πε0
e2
r2
=4πε0Gm
2
e2
Substituindo os respectivos valores numericos para as constantes:
FgFe
=4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × 6, 67 × 10−11 × (9, 11 × 10−31)2
(1, 60 × 10−19)2≈ 10−34
ou seja, Fg ∼= 0, 0000000000000000000000000000000001× Fe.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES59
Passemos agora a forca magnetica. Se uma carga q possui uma
velocidade v em uma regiao do espaco onde exista um campo magnetico
B, ela fica sujeita a uma forca magnetica dada por:
F = qv × B (1.14)
onde “×” representa o produto vetorial entre v e B. O modulo da forca
magnetica e F = qvBsenθ, onde θ e o angulo entre v e B. Vemos por-
tanto que F sera maximo se a direcao da velocidade for perpendicular
a do campo, ou seja, θ = 90o. Se, por outro lado, v for paralela a B, o
modulo da forca serra zero. Neste caso a carga nao “sente” o campo.
Entre θ = 0 e θ = π/2, a fora magnetica varia continuamente entre
seus valores extremos.
A forca magnetica possui a direcao perpendicular ao plano formado
por v e B. Esta peculiaridade da forca magnetica faz com que v mude
sua direcao continuamente. Por exemplo, se a direcao do campo e ao
longo do eixo z, B = B0k, e a direcao inicial da velocidade e ao longo
de y, v = vj, a direcao da forca magnetica sera dada pelo produto
vetorial j× k = i, ou seja estara ao longo do eixo x. Se por outro lado
tivessemos v = vi, terıamos F ao longo de i × k = −j. Note que se v
for paralela ao vetor B, a forca magnetica sera zero, ou seja, a partıcula
nao sentira a presenca do campo! Se por outro lado v for perpendicular
a B a partıcula descrevera uma orbita circular em torno da direcao de
B. Finalmente, se v possuir componentes paralela e perpendicular em
relacao a direcao de B, o movimento no plano perpendicular a B sera
circular e ao longo da direcao do campo a partıcula descrevera uma
linha reta. Ou seja, o seu movimento sera helicoidal.
60
Como qualquer outro movimento periodico, o movimento circular
de uma carga eletrica em torno da direcao de B pode ser descrito pelas
funcoes seno e cosseno. Supondo que a direcao do campo seja z, teremos
as seguintes expressoes para as posicoes da carga:
x(t) = acos(ωct)
y(t) = asen(ωct)
z(t) = v‖t
onde v‖ e a componente da velocidade paralela a direcao do campo.
Esta componente se conserva, e se for nula inicialmente, o movimento
da partıcula sera uma circunferencia no plano xy. Nestas expressoes,
ωc e a frequencia angular da partıcula em torno do campo, chamada de
frequencia de cıclotron. Ela e dada por:
ωc =qB0
m
Este problema e o analogo magnetico do sistema massa-mola, men-
cionado na secao anterior. Vimos naquele caso que a frequencia angular
era dada por:
ω =
√k
m
onde k era a constante elastica da mola e m a massa da partıcula. No
presente caso o papel da constante elastica e desempenhado pelo campo
B0, e ao inves de simplesmente a massa, temos a razao carga-massa,
q/m como parametro intrınseco a partıcula. Vamos avaliar ωc para o
caso de um eletron, em um campo magnetico de 1 T.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES61
ωc =1, 60 × 10−19 × 1
9, 11 × 10−31= 0, 176 × 1012 rd/s
que equivale a uma frequencia de:
fc =ωc2π
= 2, 8 × 1010 Hz
Isso quer dizer que a cada segundo o eletron dara cerca de 28 bilhoes
de voltas em torno do campo!
Assim como no caso massa-mola, ωc so envolve parametros intrınsecos
ao sistema, e representa uma frequencia natural, ou “modo normal de
vibracao do sistema”. Podemos tambem aqui esperar que ocorra o
fenomeno de ressonancia, que neste caso tem um nome especial: res-
sonancia de cıclotron. Basta para isso que uma forca eletrica seja apli-
cada ao sistema, e oscile na sua frequencia normal. Mas como a forca
eletrica e dada pelo produto da carga pelo campo eletrico, para induzir-
mos uma ressonancia de cıclotron no sistema, bastaria em princıpio
aplicarmos um campo eletrico igual a
E = E0cos(ωct)
Na ressonancia, a carga em movimento no campo magnetico absorve
energia do campo eletrico, e aumenta a sua propria energia cinetica.
Esta discussao sera importante quando falarmos sobre aceleradores de
partıculas no capıtulo nove.
Voltemos aos campos magneticos. Dissemos que eles sao gerados
por cargas em movimento, ou seja, por correntes eletricas. Os fios
condutores que trazem energia eletrica para nossas casas, por exemplo,
62
geram campos magneticos a sua volta. Em um fio condutor existem
incontaveis eletrons que se movem, e o campo magnetico total gerado
pelo fio e a soma dos campos gerados por cada um dos eletrons em
movimento. Se tivermos apenas 1 unico eletron, ou qualquer outra
carga q, movendo-se com uma velocidade v, a expressao para B em
qualquer ponto r do espaco sera igual a:
B =µ0
4πqr× v
r3(1.15)
onde µ0 e a chamada permeabilidade magnetica do vacuo e vale 4π×10−7
Ns2/C2.
Se uma partıcula estiver ao mesmo tempo sujeita a um campo E e
a um campo B, a forca total sobre ela (eletrica + magnetica ) sera:
F = q(E + v × B) (1.16)
Esta e a chamada Forca de Lorentz, e e extremamente importante em
problemas de eletrodinamica.
1.2.2 Fenomenos Ondulatorios: Difracao e Inter-
ferencia
Na proxima secao falaremos sobre a importante propriedade dos cam-
pos eletrico e magnetico que, sob certas condicoes, se destacam de
suas fontes geradoras e se propagam pelo espaco sob a forma de ondas
eletromagneticas. Nesta secao introduziremos alguns conceitos basicos
e gerais a respeito de ondas.
Dentre os mais comuns fenomenos ondulatorios esta o som, que sao
ondas que se propagam atraves do ar, lıquidos ou solidos. O som e uma
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES63
onda mecanica que necessita da presenca de um meio material para se
propagar. Ondas podem ser facilmente observadas, por exemplo, na
superfıcie de um lago quando jogamos uma pedra na agua. Sao aquelas
perturbacoes em forma de cırculo que vao se “abrindo”, e se propagam
pela superfıcie. Ondas tambem podem ser produzidas em uma corda
prendendo-a em uma extremidade e fazendo-a oscilar na outra. A onda
e uma perturbacao que “passa” pelo meio, ou como dizemos, se propaga
atraves dele. O meio (agua, corda, ar, etc.) funciona meramente como
um sustentaculo a sua passagem.
Tomemos como exemplo o caso de uma corda presa em uma extre-
midade e posta a oscilar na outra. Se tirassemos um “instantaneo” da
corda em movimento, verıamos as ondulacoes ao longo de seu compri-
mento. A distancia entre dois pontos equivalentes consecutivos, como
por exemplo dois maximos das ondulacoes e chamado de comprimento
de onda, e representado pela letra grega λ (lambda). Por outro lado,
se fixarmos a atencao em um unico ponto da corda, veremos que ele
“sobe” e “desce”, descrevendo um movimento periodico no tempo, com
perıodo τ . Em outras palavras, uma onda deste tipo e algo que os-
cila tanto espacialmente, quanto temporalmente. Isso significa que a
funcao matematica que descreve as posicoes no espaco por onde se
propaga uma onda, dependera tanto de r quanto de t. Podemos nova-
mente utilizar as funcoes seno e cosseno para representar as oscilacoes
em uma onda, so que agora essas funcoes devem conter duas variaveis:
uma espacial e outra temporal. Se chamarmos de u(x, t) as posicoes
ao longo de uma corda orientada sobre o eixo x, podemos descrever a
onda atraves da expressao:
64
u(x, t) = u0cos(
2πx
λ− 2πft
)(1.17)
onde u0 representa a amplitude maxima da oscilacao. O fator 2π re-
presenta um ciclo completo (espacial ou temporal). Em fısica e mais
comum usarmos a quantidade k ≡ 2π/λ, chamada de numero de onda.
k mede o numero de oscilacoes da onda por intervalo de comprimento,
do mesmo modo que ω = 2πf mede o numero de oscilacoes por in-
tervalo de tempo. Estas quantidades relacionam-se entre si atraves da
velocidade da onda, v:
v = λf =ω
k
Assim podemos escrever:
u(x, t) = u0cos(kx− ωt) (1.18)
Se tivermos tratando um problema em 3 dimensoes, x deve ser sub-
stituıdo pelo vetor r, e k por k, chamado vetor de onda, que nos da
a direcao de propagacao da onda. O produto kx sera nesse caso sub-
stituıdo pelo produto escalar k·r:
u(r, t) = u0cos(k · r− ωt) (1.19)
As vezes, a manipulacao matematica de funcoes trigonometricas se
torna incoveniente. Por esta razao e comum representarmos a onda de
uma outra forma, baseado na seguinte relacao entre a funcao exponen-
cial e as funcoes seno e cosseno:
eiθ = cosθ + isenθ
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES65
Esta relacao e muito utilizada na teoria dos numeros complexos (se
voce ainda nao sabe o que sao numeros complexos, de uma olhada no
Painel a seguir). Vemos que a parte real desta relacao e exatamente
a nossa expressao para a onda, com θ = k · r − ωt. Podemos entao
expressar 1.19 na forma alternativa:
u(r, t) = u0ei(k·r−ωt) (1.20)
mantendo em mente que, ao final das operacoes matematicas devemos
tomar somente a parte real da expressao.
66
PAINEL V
NUMEROS IMAGINARIOS, NUMEROS COMPLEXOS E FUNCOES
COMPLEXAS
Numeros imaginarios sao definidos como o resultado de raızes quadradas de numeros
negativos. A unidade imaginaria, representada por i, e definida como:
i =√−1
De modo que se tivermos um numero negativo, como por exemplo −b2, onde b ereal, sua raiz quadrada sera:
√−b2 = √−1
√b2 = ib
Note que i× i = i2 = −1. O numero ‘ib’ e dito ser um numero imaginario10.
Um numero complexo, representado por Z, e um numero composto por uma
parte real e uma parte imaginaria:
Z = a+ ib
onde a e b sao reais. Podemos representar numeros complexos graficamente, como
se fossem vetores em duas dimensoes. Sobre o eixo horizontal colocamos a parte
real, e sobre o eixo vertical a parte imaginaria. Os numeros complexos sao entao
representados por pontos neste plano, chamado de plano de Argand-Gauss.
O conjugado de um numero complexo, representado por Z∗, e obtido trocando-
se i por −i:
Z∗ = a− ib
O modulo quadrado de um numero complexo, |Z|2, e obtido multiplicando-se onumero pelo seu conjugado:
|Z|2 = ZZ∗ = (a+ ib)(a− ib) = a2 + b2 ⇒ |Z| =√a2 + b2
10Nao se embatuque por conta desta infeliz terminologia; um numero imaginarioe tao verdadeiro quanto qualquer outro numero!
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES67
Note que o mesmo resultado pode ser obtido aplicando-se o teorema de Pitagoras
no plano de Argand-Gauss.
Se θ e o angulo entre Z e o eixo real, podemos escrever:
a = |Z|cosθ b = |Z|senθ
de modo que Z pode ser escrito como:
Z = |Z|(cosθ + isenθ)
A expressao acima, como demonstrado em textos mais avancados de matematica, e
equivalente a:
Z = |Z|eiθ ⇒ Z∗ = |Z|e−iθ
Analogamente aos vetores, a soma de numeros complexos e feita adicionando-se
as partes reais e imaginarias separadamente. Se Z1 = a1 + ib1 e Z2 = a2 + ib2 sao
dois numeros complexos,
Z = Z1 + Z2 = (a1 + a2) + i(b1 + b2)
ou, representando Z1 = |Z1|eiθ1 e Z2 = |Z2|eiθ2 ,
Z = Z1 + Z2 = |Z1|eiθ1 + |Z2|eiθ2
O produto de Z1 e Z2 sera:
Z1Z2 = |Z1||Z2|ei(θ1+θ2)
Estendendo a definicao de numeros complexos, podemos definir variaveis com-
plexas. Estas sao em geral representadas pela letra z, e sao tambem compostas por
uma parte real e outra imaginaria:
z = x+ iy
x e y sao variaveis reais.
68
Uma funcao de uma variavel complexa, e chamada de funcao complexa, repre-
sentada por f(z). Assim como z possui uma parte real e outra imaginaria, funcoes
complexas podem em geral tambem ser escritas sob a forma:
f(z) = g(x, y) + ih(x, y)
onde g e h sao funcoes reais. O complexo conjugado de f(z) e obtido trocando-se i
por −i:
f(z)∗ = g(x, y)− ih(x, y)
e o modulo quadrado da funcao e dado pelo produto de f por f∗:
|f(z)|2 = f(z)f(z)∗ = g(x, y)2 + h(x, y)2
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES69
Existem dois efeitos envolvendo fenomenos ondulatorios que sao
uma especie de identidade e CPF das ondas: a difracao e a inter-
ferencia. A difracao ocorre quando uma onda incide sobre um obstaculo
que possui uma abertura com dimensoes da ordem de seu comprimento
de onda. Do outro lado do obstaculo a onda se propagara em direcoes
oblıquas a direcao de incidencia.
A interferencia ocorre quando ondas se superpoem. A onda resul-
tante e obtida somando-se as amplitudes das ondas primarias em cada
ponto do espaco. Dependendo da diferenca de fase entre elas, a ampli-
tude final pode ser maior ou menor do que as amplitudes originais, ou
nula. O fenomeno pode ser observado em uma cuba com agua, ou em
um lago, largando-se duas pedras sobre a agua.
Existe ainda um terceiro efeito importante que ocorre com ondas,
o chamado efeito Doppler, devido ao fısico austrıaco Johann Christian
Doppler, que o propos em 1842. Este efeito ocorre quando a fonte que
produz a onda se move em relacao ao observador (ou o observador em
relacao a fonte). Ele e comumente observado no nosso dia-a-dia com
ondas sonoras. Se, por exemplo, uma sirene de carro de polıcia estiver
ligada, emitindo ondas sonoras em uma determinada frequencia, um
observador que se aproximar da sirene com uma velocidade v ouvira
um som mais agudo do que outro que se afastar com a mesma veloci-
dade. Isso ocorre porque o observador que se aproxima da fonte percebe
uma frequencia mais alta do que o que se afasta. Por exemplo, se a
frequencia do som emitido for de 1 kHz (1000 Hz) para um observador
parado em relacao a fonte, e v ≈ 120 km/h, a frequencia para o obser-
vador que se aproxima sera de 1096 Hz, e para o que se afasta 904 Hz.
70
Em geral, a velocidade com que o observador se move e pequena em
relacao a velocidade de propagacao da onda11. Neste caso a mudanca
em frequencia pode ser calculada da formula simples:
f ′ ≈ f(
1 ± v
V
)
Na expressao acima, f e a frequencia para o observador parado em
relacao a fonte, v a velocidade do observador, e V a da onda. O sinal
‘+’ se aplica para observadores se aproximando da fonte, e ‘−’ para
observadores se afastando. Por exemplo, a velocidade do som no ar e
cerca de 343 m/s. Se v = 120 km/h = 33 m/s, teremos da expressao
acima:
f ′
f= 1 ± 33
343= 1 ± 0, 096
Entao, se f = 1000 Hz, teremos
f ′ = 1000 ± 96 Hz
1.2.3 Ondas Eletromagneticas
Vimos na secao 1.2.1 que cargas eletricas produzem campos eletricos, e
que em movimento produzem tambem campos magneticos. Nos exem-
plos mencionados os campos eletrico e magnetico foram considerados
estaticos. Esse sera o caso sempre que as cargas que produzem os
campos estiverem paradas ou em movimento uniforme, ou seja, nao
estiverem aceleradas. Um dos resultados mais importantes da teoria
11Por exemplo, a velocidade do som no ar a 0 oC e de 343 m/s, ou cerca de 1235km/h, o que obviamente e muito maior do que a velocidade de um carro.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES71
eletromagnetica de Maxwell foi a previsao de que campos eletricos e
magneticos poderiam se “libertar” de suas fontes, e propagarem-se pelo
espaco sob a forma de ondas eletromagneticas.
Ondas eletromagneticas sao produzidas, por exemplo, em antenas
de radio e televisao fazendo-se oscilar as cargas do metal de que e feita
a antena . Elas atravessam o espaco com uma velocidade proxima a 300
000 km/s. Um dos maiores triunfos da teoria de Maxwell foi ter associ-
ado a velocidade da luz no vacuo, denotada pela letra c, as quantidades
ε0 e µ0, respectivamente, a permissividade eletrica e a permeabilidade
magnetica do vacuo, atraves de:
c =1√µ0ε0
=1√
4π × 10−7 × 8, 85 × 10−12= 299, 9 × 106 m/s
Esta conquista abriu o caminho para a interpretacao da luz como um
fenomeno eletromagnetico.
Assim como qualquer outro tipo de onda, as ondas eletromagneticas
tambem sofrem fenomenos de difracao e interferencia, mas ao contrario
das outras formas de onda, elas nao precisam de um meio especıfico
para se propagar, ou seja, tambem se propagam no vacuo. Se nao fosse
assim, a luz das estrelas nao poderia chegar ate os nossos olhos! Ate
o inıcio do seculo XX, contudo, pensava-se que ondas eletromagneticas
tambem necessitavam de um meio de propagacao. Por isso, os fısicos
da epoca imaginaram que todo o espaco era preenchido por uma subs-
tancia que eles chamaram de eter, no qual as ondas eletromagneticas
se propagavam. No proximo capıtulo veremos como esta hipotese do
eter foi derrubada pela teoria da relatividade.
Ondas eletromagneticas sao oscilacoes espaciais e temporais dos
72
campos B e E, que se propagam pelo espaco. Matematicamente es-
tas oscilacoes podem ser representadas da mesma forma que em 1.19
(ou 1.20):
E(r, t) = E0ei(k·r−ωt) (1.21)
B(r, t) = B0ei(k·r−ωt) (1.22)
Nas expressoes acima, E0 e B0 representam as amplitudes maximas dos
campos eletrico e magnetico na onda.
Um fato importante a ser mencionado e que em uma onda eletro-
magnetica que se propaga pelo espaco os campos B e E sao sempre
perpendiculares entre si. Outro comentario e que em geral uma onda
nao tera um so valor de ω, mas uma mistura. Quando so existe um unico
valor de ω, como em 1.21 e 1.22, dizemos que a onda e monocromatica.
Fenomenos de interferencia em ondas eletromagneticas constituem
uma interessante manifestacao do carater vetorial dos campos E e B.
Suponha por exemplo que duas ondas com campos eletricos E1 e E2
se superponham em alguma regiao do espaco (por simplicidade vamos
omitir o campo magnetico). O campo eletrico total em um dado ponto
sera a soma dos campos individuais:
E = E1 + E2
E sabido que a energia da onda e propocional ao quadrado do campo
eletrico total. Logo:
E2 = E ·E = (E1 + E2)2 = E2
1 + E22 + 2E1 · E2
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES73
Suponha, por simplicidade, que as duas ondas possuam a mesma
amplitude: E1 = E2 = E0, e que θ seja o angulo entre os vetores E1 e
E2 no ponto em questao. Entao podemos escrever:
E2 = 2E20(1 + cosθ) ⇒ E =
√2(1 + cosθ)E0
Logo, em um ponto do espaco onde E1 e E2 sao paralelos, θ = 0,
e teremos a amplitude maxima E = 2E0, ao passo que nos pontos
onde E1 e E2 sao antiparalelos (ou seja, possuem mesma direcao e
sentidos opostos), θ = π e a intensidade se anula. Este e o fenomeno
de interferencia entre ondas eletromagneticas.
Se varias ondas com diferentes vetores de onda forem superpostas,
ocorrera interferencia construtiva ou seja, adicao das amplitudes em
certas regioes do espaco, e interferencia destrutiva (subtracao das am-
plitudes) em outras. Se representarmos por ∆x a regiao do espaco
onde ocorre interferencia construtiva (para uma onda que se propaga
ao longo da direcao x), verifica-se que quanto maior a quantidade de
ondas que se superpoem com comprimentos de onda λ (ou numeros
de onda k) diferentes, menor sera ∆x. Isto e facil de visualizar: se
tivermos uma so onda, teremos um unico valor de k, e a onda estara
distribuıda igualmente por todo o espaco. Se tivermos duas ondas se
superpondo, com numeros de onda k1 e k2, havera interferencia, como
dito acima. Se houver varias ondas com muitos valores de k distribuıdos
em um intervalo ∆k, a interferencia sera tal que ocorrera superposicao
construtiva somente em uma regiao ∆x. Quanto maior for ∆k, menor
sera ∆x. Essa interdependencia entre ∆k e ∆x e expressa pela relacao
aproximada:
74
∆k∆x ≈ 1
Em fenomenos de interferencia ondulatoria, quanto maior for a dispersao ∆k, menorsera a dispersao ∆x, e vice-versa.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES75
1.2.4 Afinal, o que e a Luz?
A antologica obra de Rock The Dark Side of the Moon (O Lado Es-
curo da Lua) do grupo Pink Floyd traz na capa uma bela pintura
mostrando de modo estilizado a decomposicao da luz branca em com-
ponentes monocromaticas (isto e, de uma unica cor). A luz e composta
por uma mistura de cores, que podem ser visualizadas usando-se um
prisma de vidro como o desenhado na capa do disco. Cada cor esta
associada a um comprimento de onda e a uma frequencia.
Ondas eletromagneticas sao classificadas de acordo com o seu com-
primento de onda, λ = 2π/k, e frequencia f = ω/2π. A luz visıvel, por
exemplo, e composta por ondas eletromagneticas com comprimentos
de onda que vao de λ = 4 × 10−7 m, correspondendo ao violeta, ate
λ = 7 × 10−7 m, correspondendo ao vermelho. No centro do espectro
visıvel estao o verde e o amarelo com λ na faixa de 5, 5×10−7 m. Ondas
de radio operam na faixa de 104 a 108 Hz, com comprimento de onda
da ordem de 104 m. Microondas utilizadas em radares, por outro lado,
possuem f ≈ 1010 Hz e λ ≈ 10−2 m. Radiacao gama possui f na faixa
de 1020 a 1022 Hz, e λ entre 10−14 a 10−12 m. Nos referimos ao conjunto
de valores de f e λ como o espectro eletromagnetico.
Obviamente a descricao fısica das cores feita acima acaba nos nossos
olhos, ou mais especificamente na retina. A percepcao das cores esta
associada a complexos processos fotoquımicos envolvendo as celulas da
visao (cones e bastonetes), sua transmissao atraves dos nervos ate ao
cerebro que, sabe la Deus como, nos causa a sensacao psicologica da
cor.
76
A decomposicao da luz em um prisma em suas componentes monocro-
maticas e causada por um fenomeno chamado de refracao. Quando um
feixe luminoso incide sobre uma superfıcie que separa dois meios (por
exemplo, o ar e o prisma), parte da luz e refletida, e parte e refratada,
ou seja, penetra no meio mudando a sua direcao de propagacao. O
grau de desvio da direcao de propagacao depende de uma quantidade
caracterıstica do meio chamada ındice de refracao, n. Se o feixe parte
de um meio cujo ındice de refracao e n, e incide sobre um outro meio
com ındice de refracao n′, formando um angulo θ com uma linha reta
imaginaria perpendicular a superfıcie que os separa (chamada de ‘linha
normal’), o angulo θ′ que o feixe refratado faz com a normal pode ser
obtido da expressao:
nsenθ = n′senθ′
Esta expressao e chamada de lei de Snell. O ındice de refracao do ar,
por exemplo, e n = 1, 00029 (em condicoes normais de temperatura e
pressao) e da agua (a 20 graus) e n = 1, 33. Entao, se um feixe de luz
incide sobre a superfıcie da agua com um angulo de incidencia θ = 30
graus, teremos:
senθ′ =1, 00029
1, 33sen30 = 0, 3760 ⇒ θ′ = 22, 1o
Logo, o desvio do feixe sera ∆θ = 30o − 22, 1o = 7, 9o.
E possıvel demonstrar que a decomposicao da luz ocorre porque o
valor do ındice de refracao depende tanto das propriedades do meio,
quanto da frequencia da onda, ω, segundo a expressao:
n = 1 +C
ω20 − ω2
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES77
onde C e uma constante que depende das caracterısticas do meio, e ω0 e
uma frequencia natural, associada as vibracoes dos atomos e moleculas
que formam o meio. Se ω for muito menor que ω0, n sera constante.
De fato, se ω0 for muito grande, todo o segundo termo da expressao
para n pode ser desprezado, e teremos n ≈ 1. Este e, por exemplo,
o caso para o ındice de refracao do ar atmosferico. Por outro lado,
se ω0 nao for muito grande, a medida que ω cresce e se aproxima de
ω0, o denominador da fracao diminui, fazendo n aumentar. Ou seja, n
aumenta com o crescimento de ω. Assim, aquelas componentes da luz
que tiverem frequencia mais alta, serao mais desviadas. Por exemplo,
como a frequencia do azul e maior do que a do vermelho, o azul sera
mais desviado do que o vermelho se uma onda contendo uma mistura
dessas cores incidir em um meio como um prisma. Note como atraves
de consideracoes muito simples, podemos de fato calcular (cal-cu-lar!)
a sequencia de cores decompostas em um prisma!
78
.
Ao incidir em uma superfıcie que separa dois meios com ındices de refracao difer-entes, um feixe de luz e parcialmente refletido e parcialmente refratado.
A luz visıvel e composta por ondas eletromagneticas com comprimentos de ondadiferentes, cada um associado a uma cor.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES79
1.2.5 Afinal, Porque o Ceu e Azul?
A luz do Sol e formada por ondas eletromagneticas cujos campos eletrico
e magnetico podem ser representados por 1.21 e 1.22. Quando a luz
do Sol incide sobre a Terra, ela e desviada de sua direcao original pelos
elementos que compoem a atmosfera terrestre. Dizemos que a radiacao
e espalhada. O fenomeno e semelhante ao de refracao. O grau de
espalhamento depende da frequencia da onda, e como a luz do Sol e
“branca”, ou seja, possui todos os comprimentos de onda, cada com-
ponente sera espalhada de um angulo diferente. A quantidade fısica
que mede o grau de espalhamento e chamada de secao de choque de
espalhamento, e representada pela letra grega σ (sigma). Os fısicos con-
seguem mostrar que σ e proporcional a quarta potencia da frequencia
da onda, ω, ou seja12: σ ∝ ω4. Isso quer dizer que uma componente do
espectro luminoso cuja frequencia e apenas duas vezes maior do que a
de uma outra, sera espalhada 16 vezes mais intensamente. E precisa-
mente o que ocorre com o azul, cuja frequencia e cerca de duas vezes
a do vermelho, e portanto e mais eficientemente espalhada. Em um
dia de sol intenso, se olharmos diretamente para o Sol o veremos com
uma aparencia amarelada, justamente porque a componente azul da
luz e mais espalhada. Se, por outro lado, olharmos para uma regiao
do ceu longe do Sol, o que veremos? justamente o que foi espalhado:
aquele azul maravilhoso! Pela mesma razao o entardecer e avermel-
hado. Quando o Sol se situa proximo a linha do horizonte, vemos a
12“∝” significa “proporcional a”. Esta proporcionalidade e valida em situacoesem que o comprimento de onda da radiacao espalhada e maior do que as dimensoesdo objeto espalhador.
80
componente da luz menos espalhada pela atmosfera: o vermelho.
Da proxima vez que o leitor ou a leitora estiver “azarando” na praia
em um daqueles domingos de ceu azul e sol escaldante, tente “jogar”
essa conversa intelectual pra ver se “cola” :
- Aı mina, chega mais. Estas vendo esse ceu maneiro?
Sabias que a luz do Sol nada mais e do que radiacao eletro-
magnetica composta por varios comprimentos de onda, vi-
aja batida a trezentos mil quilometros por segundo, e porque
a secao de choque de espalhamento e proporcional a quarta
potencia da frequencia da onda, o azul e mais espalhado do
que o vermelho? Hein? O que tu achas?
- Ve se te enxerga. . .
O espalhamento da luz por pequenas partıculas gera ainda ou-
tros fenomenos importantes, sendo um dos mais espetaculares, por sua
beleza, o arco-ıris. Todo mundo ja “curtiu” um arco-ıris. Ele e causado
pelo espalhamento da luz do Sol por gotıculas de agua em suspensao
na atmosfera. Ao incidir sobre uma gota a luz e parcialmente refletida
e parcialmente refratada, como discutido na secao anterior. A parte re-
fratada, dentro da gota, e novamente refletida e refratada. O arco-ıris
e formado pelos raios que saem novamente da gota apos terem sido re-
fletidos 1 vez dentro dela. A reflexao interna depende do comprimento
de onda da radiacao incidente, justamente como no caso do prisma, o
que causa uma dispersao das cores.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES81
1.2.6 Acabou a Fısica?!
Neste capıtulo apresentamos de forma resumida o que se conhece por
fısica classica. Uma infinidade de problemas foram compreendidos
a partir da Mecanica e Eletrodinamica Classicas, duas construcoes
teoricas monumentais. Os fenomenos foram separados em duas ca-
tegorias: os mecanicos, envolvendo o movimento de partıculas sob a
acao de forcas externas, e os eletromagneticos, envolvendo campos e
propagacao de ondas eletromagneticas.
O movimento mecanico de qualquer objeto (pedras, bolas, planetas,
carros, avioes, macas. . . ) esta sintetizado na formula:
F = ma
Em particular, o movimento de partıculas carregadas sob a acao de
campos eletromagneticos e descrito pela forca de Lorentz:
F = ma = q(E + v × B)
O lado direito dessa equacao representa a eletrodinamica, enquanto que
o lado esquerdo a mecanica.
O movimento de objetos em campos gravitacionais, como planetas,
e descrito pela Lei da Gravitacao Universal:
F = ma = −GMm
r2er
e assim por diante.
A fısica classica estabeleceu um paradigma, isto e, um modelo a ser
seguido por todas as outras areas do conhecimento. Seu sucesso foi tao
82
arrebatador que todas as outras ciencias tentaram se fundamentar sob
bases semelhantes. Isso levou alguns fısicos do final do seculo dezenove
a afirmarem que a fısica tinha chegado ao seu fim! Tudo que havia
para ser feito seria aplicar a mecanica e a eletrodinamica para resolver
problemas especıficos, mas que nada de mais fundamental havia para
ser descoberto. O que aconteceria entao no inıcio do seculo XX iria
provar para estes imprudentes senhores que a Natureza so havia ate
entao revelado o trivial!
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. Aneis Planetarios, Sylvio Ferraz de Mello, vol. 1, no. 4, p 16.
2. O Campo Magnetico dos Planetas, Osmar Pinto Junior, Walter D. Gonzales,Iara R.C.A. Pinto e Odim Mendes Junior, vol. 14, no. 79, p. 32.
3. Halley a Vista, Francisco Jablonski, vol. 4, no. 20, p. 6.
4. Bem-Vindo Halley!, Oscar T. Matsura, vol. 4, no. 21, p. 32.
5. Na Rota do Halley, Oscar T. Matsura, vol. 4, no. 22, p. 8.
6. Halley: Presenca no Ceu por mais 12 Mil Anos, Jose Antonio de FreitasPacheco, vol. 5, no. 25, p. 16.
7. A Origem da Lua, Oscar T. Matsura, vol. 5, no. 25, p. 26.
8. Plutao, um Planeta Peculiar, Masayoshi Tsuchida, vol. 9, no. 49, p. 14.
9. Principia Mathematica, 300 Anos, Marcio Q. Moreno, vol. 7, no. 41, p. 58.
10. Os Planetas de Upsilon Andromeda, Sylvio Ferraz Mello, vol. 26, no. 151,p. 14.
11. O Enigmatico Anel F de Saturno, Silvia M. Giuliatti Winter, vol. 26, no.151, p. 59.
12. A Busca por Novos Sistemas Planetarios, Oscar Toshiaki Matsuura, vol.24, no. 144, p. 65.
13. Netuno: 150 Anos de Historia e Ciencia, Othon Winter, vol. 21, no. 125,p. 38.
CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES83
Resumo - Capıtulo Um
Na fısica classica, os fenomenos da Natureza se dividem em duascategorias: os mecanicos e os eletromagneticos. O ingles Isaac Newton eo escoces James Clerk Maxwell foram os principais nomes da fısica ateo inıcio do seculo XX.
A equacao central da mecanica classica e:
F = ma
Com essa equacao Newton conseguiu explicar nao so o movimento deobjetos na superfıcie da Terra, como tambem o movimento de planetas,cometas, etc. A Gravitacao Universal de Newton e descrita pela forca:
F = −GmMr2
er
Maxwell viveu 200 anos depois de Newton, e formalizou as leis que de-screvem os fenomenos eletromagneticos. Esses envolvem cargas eletricas,campos eletricos (E) e campos magneticos (B). Campos eletricos saogerados por cargas eletricas, que em movimento geram tambem camposmagneticos. Cargas eletricas se atraem ou se repelem de acordo com alei de Coulomb:
F =14πε0
r2
Ondas eletromagneticas sao geradas por cargas eletricas aceleradas.Uma vez criadas, ondas eletromagneticas se desprendem da sua fonte ese propagam pelo espaco com uma velocidade de 300 000 km/s.
Em uma onda eletromagnetica os campos E e B oscilam tanto noespaco quanto no tempo. As oscilacoes temporais sao caracterizadas peloperıodo, τ , ou o seu inverso, a frequencia ω = 2π/τ . De modo analogo, asoscilacoes espaciais sao caracterizadas pelo comprimento de onda, λ, ouseu inverso, o numero de onda k = 2π/λ.
A luz e uma onda eletromagnetica que possui um comprimento deonda tal que a torna visıvel aos nossos olhos. Ate o inıcio do seculo XXpensava-se que a luz se propagava atraves de um meio chamado eter.
As duas “marcas registradas” dos fenomenos ondulatorios sao a in-terferencia e a difracao.
O movimento de cargas em campos eletromagneticos e descrito pelaforca de Lorentz:
F = q(E+ v ×B)
Chapter 2
A Teoria da Relatividade
“Nao sei o que voce quer dizer”, ponderou Alice. “Claro que nao sabe”,
redarguiu o Chapeleiro, balancando desdenhosamente a cabeca. “Ouso
afirmar que voce jamais falou com o Tempo!”
“Talvez nao”, replicou Alice cautelosamente, “mas sei que tenho
que vencer o tempo, quando aprendo musica”. “Ah! aı esta”, disse o
Chapeleiro. “Ele nao gosta de ser vencido. Se voce se mantivesse em
bons termos com o Tempo, ele obrigaria o relogio a fazer quase tudo
que voce desejasse. Suponha, por exemplo, que fossem nove horas da
manha, hora de comecar a estudar; bastaria que voce sussurrasse uma
insinuacao ao Tempo e o relogio avancaria num piscar de olhos. Treze
e trinta: hora da refeicao”. (Alice no Paıs das Maravilhas, Lewis
Caroll, 1896. Compilado de As Ideias de Einstein, J. Berstein, Ed.
USP 1975)
85
86
2.1 Einstein: um Genio Desempregado
Albert Einstein e o unico fısico do seculo XX cujo genio cientıfico e com-
paravel ao de Isaac Newton. Viveu em uma epoca dramatica e fasci-
nante da Historia. Uma epoca de guerras, perseguicoes e revolucoes
polıticas e cientıficas. Alem das duas teorias da relatividade (a espe-
cial e a geral), deu outras contribuicoes fundamentais para a fısica,
como a explicacao para o efeito fotoeletrico (trabalho pelo qual ga-
nhou o Premio Nobel de Fısica de 1921), o movimento browniano e o
calor especıfico dos solidos. A enigmatica imagem do velho descabelado
mostrando a lıngua para os fotografos transformou-se numa especie de
ıcone do “cientista louco” bonachao. Judeu e pacifista fervoroso, es-
creveu sobre o exercito:
A pior das instituicoes gregarias se intitula exercito. Eu
o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em
desfilar aos sons de musica, eu desprezo esse homem...Nao
merece um cerebro humano, ja que a medula espinhal o sa-
tisfaz. Deverıamos fazer desaparecer o mais depressa possıvel
este cancer da civilizacao. Detesto com todas as forcas
o heroısmo obrigatorio, a violencia gratuita e o nacional-
ismo debil. A guerra e a coisa mais desprezıvel que existe.
Preferia deixar-me assassinar a participar dessa ignonımia.
(Albert Einstein. Como Vejo o Mundo, Ed. Nova
Fronteira, 1981)
Albert Einstein nasceu no dia 14 de marco de 1879, na cidade de
Ulm, na Alemanha. Seus pais se chamavam Hermann e Pauline Eins-
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 87
tein, e seus avos Abraham e Hindel Einstein. Einstein destaca duas
experiencias que teve durante a infancia e que aparentemente foram
determinantes na escolha da sua carreira. A primeira teria aconte-
cido aos 4 ou 5 anos de idade, quando estava doente, e seu pai lhe
deu de presente uma bussola. O fato da agulha da bussola, isolada
e protegida dentro do vidro, obedecer a uma forca externa, invisıvel,
que a fazia sempre apontar para o Norte deixou-lhe a impressao de
que deveria haver “algo escondido nas profundezas das coisas”. Aos 12
anos veio a segunda experiencia, segundo ele, de natureza inteiramente
diferente. Ganhou de presente um livrinho de geometria plana. Apos
conseguir, com muito esforco, demonstrar o teorema de Pitagoras, ex-
perimentou, segundo ele, um tipo de certeza que nao conhecia: a certeza
matematica.
Primeira fotografia conhecida de Einstein, por volta dos 5 anos de idade.
88
Quando Einstein tinha 7 anos de idade, sua mae escreveu em carta
para a avo materna: “Ontem Albert trouxe seu boletim escolar. No-
vamente ele esta no topo da turma, com notas brilhantes”. Um ano
depois o avo materno escreveu: “Albert voltou as aulas ha uma semana.
Eu adoro aquele menino, porque voce nao pode imaginar como ele se
tornou inteligente.”
Aos 16 anos Einstein prestou exames para admissao na Escola de
Engenharia do famoso Instituto Tecnologico de Zurique, na Suıca. Em-
bora tenha se saıdo brilhantemente em matematica e fısica, fracassou
nas outras materias e foi reprovado. Ironicamente, foi nesta mesma
epoca que comecou a ter os primeiros “insights” que o levariam a teo-
ria da relatividade.
Em 1896, aos 18 anos de idade, foi finalmente admitido na Politecnica
de Zurique. Havia desistido de se tornar engenheiro e decidido ganhar a
vida ensinando fısica e matematica. Contudo, as aulas em Zurique nao
o entusiasmavam muito. Preferia estudar por conta propria as coisas
que lhe interessavam. Foi durante essa epoca que tomou contato com
a eletrodinamica de Maxwell, tendo se tornardo uma autoridade no
assunto. Graduou-se em 1900.
Com o fim do curso vieram os problemas. Embora seu talento tivesse
sido reconhecido em Zurique, aparentemente nao manteve as melhores
relacoes com seus ex-professores, entre eles um influente homem chamado
Heinrich Weber, que certa vez lhe teria dito: “Voce e inteligente! Mas
voce tem um problema. Voce nao aceita nada que lhe digam. Nao
aceita nada”. Para ganhar a vida Einstein dava aulas particulares. Foi
Marcel Grossmann, um matematico e ex-companheiro da Politecnica
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 89
quem, atraves do pai, lhe arranjou um emprego em um escritorio de
patentes em Berna. Ali naquele lugar, durante as horas vagas, Einstein
produziria o trabalho que iria detonar 300 anos de fısica!
Em suas Notas Autobiograficas (Ed. Nova Fronteira, 1982) Eins-
tein, aos 67 anos de idade, escreveu:
Perdoe-me Newton; voce descobriu talvez o unico ca-
minho possıvel em sua epoca para um homem possuidor
do mais alto raciocınio e poder criativo. Os conceitos que
criou ainda hoje orientam o nosso pensamento na fısica,
embora saibamos que deverao ser substituıdos por outros,
muito afastados da esfera da experiencia imediata, para pos-
sibilitar a compreensao mais profunda dos relacionamentos.
2.2 Maxwell nao Concorda com Newton
Segundo o proprio Einstein, aos 16 anos de idade despertou para um
problema que o deixou intrigado. Suponha que voce esteja se olhando
em um espelho. Voce ve a sua imagem porque a luz que chega ao
espelho e refletida sobre seus olhos. O que aconteceria com a sua i-
magem se voce e o espelho estivessem viajando a velocidade da luz
no vacuo, ou seja, a 300 000 km/s? Se pensarmos de acordo com a
mecanica classica, nesta situacao a luz nao alcancaria o espelho e, con-
sequentemente, a imagem desapareceria. Lembremos aqui que, como
vimos, todos os referenciais que se movem com velocidade constante
sao equivalentes perante a segunda lei de Newton. Por outro lado,
sabemos que a luz e um fenomeno ondulatorio e, em tal experiencia
90
pensada, estarıamos viajando com a onda que, aos nossos olhos perde-
ria este carater de luz! No entanto, de acordo com a eletrodinamica
de Maxwell isso nao e possıvel; uma onda eletromagnetica e sempre
uma onda eletromagnetica, em qualquer referencial inercial e viaja sem-
pre com a mesma velocidade de 300 000 km/s. Einstein entao se deu
conta do paradoxo: ou a mecanica de Newton, ou a eletrodinamica de
Maxwell esta errada! O que fazer?
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 91
.
Que imagem apareceria em um espelho que, com o seu observador, se deslocasse avelocidade da luz?
Recordemos o que foi dito na seccao 1.1.6 sobre movimento relativo.
As transformacoes de Galileu para posicao e velocidade de um objeto,
medidas de dois referenciais que se movem relativamente um ao outro
com velocidade V, sao dadas por:
r = r′ + R
v = v′ + V
No experimento do espelho imaginado por Einstein, V seria igual a
velocidade da luz.
Para explicar a propagacao da luz e de ondas eletromagneticas em
geral, os fısicos do seculo XIX imaginaram que o espaco era preenchido
92
por um meio que eles denominaram de “eter”. Nesta epoca nao se
concebia a ideia de que uma onda poderia se propagar na ausencia de
um meio material que a sustentasse. O eter seria uma substancia que
permearia todo o espaco, e serviria de sustentaculo para a propagacao
da luz. A existencia dessa substancia misteriosa nunca foi detectada,
mas imaginava-se que o valor c = 300 000 km/s, da velocidade da
luz, era aquele medido de um sistema de coordenadas que estivesse
em repouso em relacao ao eter. Tal sistema ficou conhecido como o
sistema do eter. Na medida em que a Terra tambem deveria se mover
em relacao ao eter, era natural imaginar que haveria uma diferenca entre
as velocidades da luz medidas no referencial do eter (c) e no referencial
da Terra (que chamaremos c′). De acordo com as transformacoes de
Galileu, se Terra e luz se deslocassem na mesma direcao e sentido, e
a velocidade da Terra em relacao ao eter fosse V , a velocidade da luz
medida no referencial da Terra deveria ser:
c′ = c− V
E se o movimento fosse em sentido contrario, ou seja, luz para um lado
e Terra para o outro, terıamos, de acordo com as transformacoes de
Galileu:
c′ = c+ V
Se esse troco ta dando um no na sua cabeca, nao se desespere.
Pense como se a Terra fosse um carro na Rio-Sao Paulo, e o eter fosse
um outro carro, na mesma pista. Os dois motoristas querem medir a
velocidade de um terceiro carro: o “carro-luz”, e comparar os valores.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 93
Suponha que voce esta no “carro-Terra”. Voce sabe de antemao que
a velocidade do “carro-luz” em relacao ao “carro-eter” e constante e
igual a c. Que velocidade voce mede? Se a velocidade relativa dos dois
primeiros carros e V , e se eles estiverem viajando na mesma direcao,
a velocidade do “carro-luz” que voce mede sera c − V , e se estiver
em sentido contrario sera c + V . Em fısica e assim: as vezes a Terra
vira carro, as vezes ela e um ponto geometrico, e as vezes tem massa
desprezıvel. Vale tudo pra entender o problema! A proposito, voce ja
ouviu falar em cavalos esfericamente simetricos?
O problema “quente” no final do seculo XIX era portanto medir
esta suposta diferenca entre as velocidades da luz no eter e na Terra.
Se voce fosse um fısico da epoca e quisesse embolsar o Premio Nobel,
como e que voce faria isso? Arrumaria dois carros, uma lanterna, e
iria pra Rio-Sao Paulo? Certamente que nao! Voce construiria um
interferometro! Interferoque?!
Um interferometro e uma ideia luminosa. E um aparelho desti-
nado a medir a velocidade da luz utilizando o fato de que ondas eletro-
magneticas apresentam o fenomeno de interferencia (secao 1.2.4). Vi-
mos que a intensidade da onda e proporcional ao quadrado do campo
eletrico, e que para dois campos que se superpoem encontramos a
seguinte expressao para o campo total em um ponto do espaco:
E2 = 2E20(1 + cosθ)
onde θ e o angulo entre os vetores de campo eletrico das ondas indivi-
duais. Usando a relacao trigonometrica
94
1 + cosθ = 2cos2
(θ
2
)
e chamando de I a intensidade da onda total, proporcional a E2, pode-
mos escrever:
I = 4Imaxcos2
(θ
2
)
onde Imax e a intensidade maxima da onda.
O angulo θ e chamado de angulo de fase entre as ondas, ou diferenca
de fase. A formula acima mostra um resultado muito interessante: ela
nos diz que a intensidade da onda total depende somente da diferenca
de fase entre as ondas individuais. Por exemplo, se a diferenca de fase
for igual a π a intensidade sera zero, mas se θ for igual a 0, a intensidade
sera maxima. Em um interferometro podemos medir a velocidade da
luz controlando a diferenca de fase entre ondas luminosas que percorrem
caminhos diferentes e se superpoem. As ondas sao observadas em um
anteparo, e sua superposicao resulta em um padrao que consiste em
regioes de maximos e mınimos de intensidade luminosa, chamadas de
franjas de interferencia.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 95
.
Ondas eletromagneticas podem interferir construtiva ou destrutivamente, depen-dendo do angulo de fase entre elas.
O americano Albert Abraham Michelson realizou em 1881, pela
primeira vez, tal experimento e com ele faturou o Nobel de 19071 No ex-
perimento, um raio luminoso incide sobre um espelho semi-transparente
posicionado a exatos 45o com a direcao de incidencia do feixe. O fato do
espelho ser “semi-transparente” significa que metade da intensidade lu-
minosa sera refletida, e metade o atravessara. O fato de estar a 45o com
a direcao de incidencia, significa que a parte refletida fara um angulo
de 90o com a direcao original. As partes refletida e transmitida sao no-
vamente refletidas por outros espelhos e se juntam novamente em um
1Michelson foi o primeiro americano a receber o Premio. Em 1887, 6 anos aposseu experimento original, ele obteve, trabalhando com E.W. Morley, resultados maisprecisos. Foi este segundo experimento que entrou para a Historia da Fısica comoo experimento de Michelson-Morley.
96
anteparo onde o padrao de interferencia pode ser analisado. A inter-
ferencia ocorrera porque os raios luminosos que se juntam no anteparo
percorrerao caminhos diferentes em tempos diferentes, e consequente-
mente terao fases diferentes. Por exemplo, considere aquela parte do
feixe que se desloca paralelamente ao deslocamento da Terra. Se c e a
velocidade do raio luminoso em relacao ao eter, e v e a velocidade da
Terra (e portanto dos espelhos) tambem em relacao ao eter, quando o
espelho se desloca no mesmo sentido do raio luminoso, o tempo para
percorrer a distancia l entre os espelhos sera igual a l/(c − v). Mas
quando o raio volta refletido e consequentemente se desloca em sentido
contrario ao deslocamento da Terra, encontra o espelho indo em sua
direcao com uma velocidade igual a c + v. Portanto o tempo de volta
sera l/(c+ v), e o tempo total de ida e volta sera entao:
t =l
c− v+
l
c+ v=
2cl
c2 − v2=
2l/c
1 − v2/c2
Agora, devido ao fato de que a velocidade da luz e muito maior do que
a do espelho, ou seja c v, podemos usar a relacao aproximada:
(1 − x)n ≈ 1 − nx
valida para x 1, e aplicar ao denominador da fracao acima, sendo
x = v2/c2, e n = −1, para obtermos o resultado:
t ≈ 2l
c
(1 +
v2
c2
)
para o tempo de ida e volta do raio luminoso que se desloca paralela-
mente ao movimento da Terra. A deducao para o tempo de ida e volta
do raio luminoso que se desloca perpendicularmente ao movimento do
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 97
espelho, e ligeiramente mais complicada, mas nao chega a ser difıcil
(veja Painel VI).
98
PAINEL VI
A EXPERIENCIA DE MICHELSON
Um esquema do interferometro de Michelson e mostrado na figura. Uma fonte
luminosa F emite um feixe de luz que incide sobre um espelho semi-transparente E,
posicionado a 45o em relacao ao raio incidente. Metade da intensidade e refletida
sobre o espelho E2, e metade atravessa E e incide sobre outro espelho E1. O feixe
refletido em E2 retorna sobre E que novamente deixa passar somente metade da
intensidade (a outra metade e refletida de volta para a fonte). Do mesmo modo,
a porcao refletida em E1 incide de volta em E que refletira metade da intensidade
do raio que retorna. A parte que incidiu sobre E1 percorre uma distancia total l1
correspondente ao trajeto E → E1 → E, e a parte que incide sobre E2 percorre
l2 no trajeto E → E2 → E. A interferencia entre os raios e observada sobre estasduas porcoes no anteparo. Suponha que a velocidade dos espelhos em relacao ao
eter seja v, paralela a direcao do raio que incide sobre E1. O tempo de percurso
E → E1 → E e facilmente obtido:
t1 =l1c− v +
l1c+ v
=2l1c
(1
1− v2/c2)
Para calcularmos o tempo de percurso E → E2 → E temos que levar em conta
que E e E2 se deslocam perpendicularmente a direcao de movimento dos espelhos.
Se t2 e o tempo total deste percurso, em t2/2 o espelho E2 tera se deslocado de uma
distancia vt2/2. A distancia percorrida pela luz nesse caso sera de ct2/2, sendo que
esta percorrera a mesma distancia ate alcancar E2 novamente. Aplicando o teorema
de Pitagoras a este trajeto do raio, obtemos:
ct22=
[l22 +
(vt22
)2]1/2
Consequentemente,
t2 =2l2c
1√1− v2/c2
A diferenca entre os tempos de transito nos dois percursos sera:
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 99
∆t = t2 − t1 = 2c
[l2√
1− v2/c2 − l11− v2/c2
]
100
.
Esquema do inteferometro de Michelson.
Trajetoria do raio luminoso com o movimento do interferometro.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 101
Suponha agora que todo o aparelho seja girado de 90o. Fazendo
isso, e simples ver que l2 troca de lugar com l1, e consequentemente a
“nova” diferenca nos tempos sera:
∆t′ =2
c
l2
1 − v2/c2− l1√
1 − v2/c2
Portanto, a rotacao muda as diferencas entre os intervalos de tempo
por:
∆t′ − ∆t =2
c
l1 + l2
1 − v2/c2− l1 + l2√
1 − v2/c2
Usando o desenvolvimento binomial (1 + x)n ≈ 1 + nx, valido para
x pequeno, obtemos para os denominadores dos termos entre colchetes:
1
1 − v2/c2≈ 1 +
v2
c2
1√1 − v2/c2
≈ 1 +v2
2c2
com isso:
∆t′ − ∆t =v2
c2
(l1 + l2c
)
Esta diferenca entre os intervalos de tempo de percurso causa uma
mudanca na diferenca de fase entre as ondas que, por sua vez, acarreta
em um deslocamento nas franjas de interferencia sobre o anteparo. Ou
seja, onde estava claro fica mais escuro. Esse deslocamento ∆N sera
dado pela razao entre a diferenca nos tempos ∆t′−∆t, e o perıodo das
ondas (como os raios partem da mesma fonte o perıodo (e a frequencia)
sera o mesmo para ambos):
102
∆t′ − ∆t
τ= ∆N =
v2
c2
(l1 + l2cτ
)
Mas, cτ = λ, o comprimento de onda da radiacao. Na experiencia de
Michelson, l1 = l2 = 11 m, λ = 5, 5 × 10−7 m, e v/c = 10−4. Com
isso obtem-se ∆N = 0, 4 franjas. Este e o deslocamento das franjas
que deveria ser observado se houvesse alguma diferenca na velocidade
da luz medida nos dois referenciais, o da Terra e o do Eter. Como
nenhuma mudanca foi observada, a conclusao inevitavel foi de que a
velocidade da luz e a mesma nos dois referenciais.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 103
Na experiencia de Michelson os raios paralelo e perpendicular sao
superpostos de modo a interferirem. O que se mede em um inter-
ferometro deste tipo sao as posicoes das franjas de interferencia. Essas
posicoes dependem dos caminhos percorridos pelos dois raios luminosos.
Michelson mediu as posicoes das franjas e depois rotacionou de 90o todo
o aparelho, de modo a trocar as direcoes de propagacao entre os raios
paralelo e perpendicular. Ele calculou que se houvesse uma diferenca
entre as velocidades da luz no sistema do eter e na Terra, essa rotacao
deslocaria as franjas de interferencia de quatro decimos. Espertinho,
nao? Porque voce acha que ele embolsou o Estocolmo2?
Resultado do experimento: deslocamento das franjas igual a zero!
Isto e, nao houve mudanca nenhuma no padrao de interferencia quando
foi feita a rotacao. Polvorosa total! O Titanic comecou a afundar!
Este resultado foi tao impactante, que ate 1930 (50 anos depois do
experimento de Michelson, e 25 anos depois da Relatividade) tinha
“mane” repetindo o experimento. Todos eles confirmaram: nao existe
a diferenca entre as velocidades da luz em relacao ao sistema do eter
e da Terra, previsto pela mecanica classica. Ou seja, nao existe o tal
sistema do eter. Entao, para que o eter?!
2Estocolmo, capital da Suecia, terra natal de Alfred Nobel, um milionarioquımico e industrial que instituiu o famoso Premio Nobel para obras cientıficas,literarias e filantropicas.
104
2.3 Os Postulados da Relatividade:
a Implosao do Velho Templo
“Zur Elektrodynamik Bewegter Korper”, ou “ Sobre a Eletrodinamica
dos Corpos em Movimento”. Este e o tıtulo de um dos artigos publi-
cados em 1905 no Annalen der Physik, uma influente revista cientıfica
alema da epoca. O autor do artigo: um desconhecido jovem de 26 anos
de idade, funcionario de um escritorio de patentes, chamado Albert
Einstein. Era o inıcio do fim para a fısica classica3.
Nesse artigo Einstein postula dois princıpios:
Princıpio da Relatividade: As leis da Fısica sao as
mesmas em todos os sistemas inerciais. Nao existe nenhum
sistema inercial preferencial.
Princıpio da Constancia da Velocidade da Luz: A
velocidade da luz no vacuo tem o mesmo valor em todos os
sistemas inerciais.
Com o primeiro princıpio Einstein detona a ideia do tal sistema
do eter e, de forma geral, de sistemas de referencia absolutos. Ele
afirma que nao e possıvel encontrarmos atraves de qualquer experi-
mento (mecanicos, oticos, eletromagneticos, etc.) um sistema de re-
ferencia que esteja absolutamente parado, ou absolutamente em movi-
mento. Tal sistema nao existe. Tudo o que existe e o movimento
3Na verdade, cronologicamente falando, o “fim” da Fısica Classica ja haviacomecado em 1900 com o trabalho de Max Planck (capıtulo tres). Contudo, aimportancia deste trabalho so foi reconhecida pela primeira vez pelo proprio Ein-stein, que e, na opiniao do autor, a figura central da Fısica no seculo XX.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 105
relativo. O segundo princıpio e um postulado consistente com os re-
sultados experimentais de Michelson. Einstein mais tarde viria a dizer
que por ocasiao de seu artigo desconhecia os resultados de Michelson4.
Vamos estudar agora as consequencias logicas dessas duas sentencas.
A velocidade da luz e a mais alta velocidade que pode ser atingida na
Natureza. E o topo. O segundo princıpio afirma que esta velocidade e
a mesma em todos os sistemas inerciais. Aqui a nossa intuicao comeca
a ir para o brejo! So para “sentir o drama”, considere novamente o
experimento da imagem no espelho, que Einstein imaginara dez anos
antes do seu artigo. De acordo com o segundo princıpio, se fosse possıvel
para o observador se mover com o espelho a velocidade da luz, ele
continuaria a ver a sua imagem como se estivesse parado! E como
se voce quisesse medir a velocidade de um carro na estrada tentando
“emparelhar” com ele, mas por mais que voce acelerasse a velocidade
dele continuasse sempre a mesma em relacao a voce. Imagine uma coisa
dessas: voce vai com seu carro pela a estrada a 80 km/h, e ve outro
carro a sua frente a 50 km/h, em relacao a voce. Entao voce acelera e
aumenta a sua velocidade para 120 km/h, mas continua vendo o carro
da frente se afastar com os mesmos 50 km/h! E ou nao e esquisito?
Obviamente uma coisa dessas nao e imediatamente aceita pelos
fısicos so porque um tal de Einstein falou. Desde seu nascimento, a
relatividade ja foi testada milhares de vezes em diferentes laboratorios
por todo o mundo, e sobreviveu a todos os testes. Um dos testes mais
espetaculares da constancia da velocidade da luz foi realizado no la-
4Ha aqui alguma controversia. Alguns autores afirmam que Einstein conheciaos resultados de Michelson, mas fazia de conta que nao, o que sugere uma certa“malandragem” sua.
106
boratorio CERN, localizado na Europa, em 1964 (9 anos apos a morte
de Einstein; 35 anos apos a publicacao do artigo!). Para isso os fısicos
usaram o decaimento de uma partıcula chamada pıon, representada
por π0 (o sobrescrito “0” quer dizer que a partıcula e neutra, ou seja
sem carga eletrica). No capıtulo nove falaremos com mais detalhes so-
bre partıculas elementares e decaimentos. Por agora e suficiente saber
que o π0 se desintegra, ou decai, em duas partıculas gama, que nada
mais sao do que ondas eletromagneticas. Representamos o processo de
decaimento de maneira semelhante aquela usada pelos quımicos para
representar reacoes quımicas:
π0 −→ γ + γ
Estes sımbolos significam que o pıon “some” para dar lugar a ondas
eletromagneticas (tambem chamadas de partıculas gama, ou fotons,
como veremos no proximo capıtulo), representadas pela letra grega
gama (γ).
Pıons podem ser fabricados em laboratorios. No experimento de 64
no CERN, pıons foram produzidos com uma velocidade muito proxima
a velocidade da luz: v = 0, 99975c (ou seja, 99,975% da velocidade
da luz). O objetivo do experimento era medir a velocidade dos gamas
emitidos no decaimento no referencial do pıon. Ou seja, realizar na
pratica a experiencia do espelho de Einstein! O resultado da medida
foi:
c = 2, 9977 × 108 m/s
ou seja, identico a velocidade da luz medida no laboratorio (obviamente
em repouso em relacao ao pıon). A conclusao deste experimento foi a
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 107
de que o pıon se movendo com uma velocidade muito proxima a da luz,
“ve” a onda eletromagnetica se propagar com uma velocidade que seria
a mesma que ele “veria” se estivesse parado.
Obviamente os princıpios postulados por Einstein invalidam as trans-
formacoes de Galileu. Mas, se aquelas transformacoes estao erradas,
quais sao as certas? Antes de responder vamos considerar uma situacao
simples onde dois referenciais A e B se deslocam relativamente um ao
outro ao longo do eixo x com uma velocidade v. De acordo com as
transformacoes de Galileu, as relacoes entre as coordenadas medidas
nos dois sistemas sera:
x′ = x− vt
y′ = y
z′ = z
t′ = t
Ou seja, somente a coordenada x sofrera neste caso alteracao quando
passarmos de um sistema para outro. A ultima equacao, t′ = t e uma
mera afirmacao de que o tempo e absoluto, um postulado da mecanica
newtoniana. A relatividade afirma que essas transformacoes nao sao
corretas, ou pelo menos nao sao gerais (por exemplo, elas estao em con-
flito com o resultado do experimento de Michelson). As transformacoes
encontradas por Einstein, e que devem ser usadas sao chamadas trans-
formacoes de Lorentz, dadas por5:
5Essas expressoes nao foram deduzidas por Einstein, mas pelo fısico holandesHendrik Antoon Lorentz, que, no entanto, as utilizou em um contexto fısicodiferente.
108
x′ =x− vt√1 − v2/c2
y′ = y (2.1)
z′ = z
t′ =t− vx/c2√1 − v2/c2
Note que a ultima equacao afirma que intervalos de tempo medidos pelo
observador em movimento dependem da velocidade relativa entre os
sistemas de coordenadas. Ou seja, cai por terra o absolutismo do tempo
newtoniano, implıcito nas transformacoes de Galileu! Se a velocidade
v for muito pequena, ou seja, v c, os termos v2/c2 e v/c2, podem
ser desprezados e o que obtemos sao precisamente as transformacoes de
Galileu. Portanto, a relatividade estabelece um limite de validade para
as transformacoes de Galileu (e de certa forma para a nossa percepcao
do mundo!). Quando v for muito grande, comparavel a velocidade da
luz, a fısica “muda”, e temos que usar as transformacoes de Lorentz.
Quanto mais proximo v for de c, mais a razao v2/c2 tendera para o
valor 1, e consequentemente a expressao√
1 − v2/c2 tendera para zero,
fazendo as fracoes em 2.1 “explodirem” para infinito. E nesse limite que
coisas estranhas acontecem com o tamanho dos objetos e os ponteiros
dos relogios!
2.4 O Tempo pode ser Esticado!
Simultaneidade: “Qualidade do que e simultaneo; existencia ao mesmo
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 109
tempo de duas ou mais acoes, fatos ou coisas.” (Koogan/Houaiss, En-
ciclopedia e Dicionario Ilustrado, Ed. Delta 1998).
Um dos conceitos chaves em relatividade e o de simultaneidade.
O dicionario define a palavra sem dizer contudo como julgar se dois
eventos sao simultaneos ou nao. Nas palavras de Einstein: Quando
digo, por exemplo, ‘o trem chega as 7’, significa que a passagem do
ponteiro do relogio sobre o lugar marcado 7 e a chegada do trem sao
eventos simultaneos. Esta afirmacao trivial para o senso comum, nao e
tao trivial assim em relatividade.
Suponha que um observador meca dois eventos, que vamos chamar
de evento 1 e evento 2 (como por exemplo a passagem de um aviao e o
espirro de uma pessoa). O nosso senso comum nos diz que se os eventos
ocorrem ao mesmo tempo para um observador sentado no banco de um
jardim, ou seja, se eles sao simultaneos, tambem o serao para alguem,
por exemplo, passando em um onibus. Acontece que simultaneidade
tambem e um conceito relativo. Ou seja, se o observador sentado no
banco observa o evento 1 e o evento 2 ocorrerem ao mesmo tempo, o
observador em movimento pode chegar a conclusao, por exemplo, de
que a pessoa espirrou antes de o aviao passar!
A relatividade da simultaneidade esta associada a relatividade do
tempo. Consideremos um outro “experimento-cabeca”. Material necessario:
2 observadores, 1 trem, 1 espelho, uma lanterna, 2 relogios, e 1 maqui-
nista (para guiar o trem!). Ainda bem que o experimento e so de cabeca!
Para dar um toque mais humano vamos chamar um dos observadores
de Eduardo e o outro de Monica. Eduardo esta em pe na plataforma,
e Monica viaja em uma cabine do trem, que se move com velocidade
110
v constante (portanto ambos os referenciais sao inerciais). O espelho
se encontra em frente a plataforma, a uma distancia d, do outro lado
dos trilhos. O trem se aproxima da estacao e, no momento em que a
cabine de Monica passa por Eduardo, a lanterna e acesa. O objetivo
do experimento e medir o tempo que a luz leva para ir ate o espelho,
refletir, e voltar ate a cabine onde esta Monica. Como Monica esta
parada em relacao ao trem, ela simplesmente ve a luz ir e voltar per-
pendicularmente a sua cabine, e portanto gastar um tempo ∆tM igual
a:
∆tM =2d
c
Por outro lado, para Eduardo o trem tera se deslocado uma distancia
igual a v∆tE , durante o tempo ∆tE de ida e volta do raio luminoso
medido por ele. O caminho percorrido pela luz sera para Eduardo
igual a 2l (veja figura), e portanto:
∆tE =2l
c
Aplicando o teorema de Pitagoras ao triangulo retangulo formado por
l, d e (1/2)v∆tE obtemos:
l =
√(v
2∆tE)2 + d2
Mas, da expressao do tempo medido por Monica obtemos:
d =c
2∆tM
consequentemente
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 111
l =
√(v
2∆tE)2 + (
c
2∆tM)2
Por outro lado, da expressao do tempo medido por Eduardo temos:
l =c
2∆tE
Substituindo na expressao anterior, e elevando ambos os lados ao quadrado,
obtemos:
(c
2∆tE)2 = (
1
2v∆tE)2 + (
c
2∆tM )2
ou
(c2 − v2)∆t2E = c2∆t2M
donde obtemos a seguinte relacao para os intervalos de tempo ∆tM e
∆tE :
∆tE =∆tM√
1 − v2/c2
Ou seja, os intervalos de tempo medidos por Eduardo e Monica sao
diferentes! Eles somente serao iguais se a velocidade do trem for muito
menor do que a da luz (o que obviamente e sempre verdade, pelo menos
para os trens fabricados aqui na Terra!), ou seja v c. O leitor deve
parar para refletir sobre esse resultado espetacular da relatividade. A
formula acima vale para qualquer velocidade v. Para um valor qualquer
de v, o intervalo de tempo medido por Eduardo sera maior do que aquele
medido por Monica. Ou seja, o relogio de Monica se atrasa em relacao
112
ao de Eduardo. Eduardo envelhece mais rapido do que Monica! Note
que isso e uma consequencia direta da constancia da velocidade da luz:
como o percurso do raio visto por Eduardo e maior, a unica maneira
de manter c constante e alongar o tempo na mesma proporcao! Este
fenomeno e chamado de dilatacao temporal. Embora nao o facamos
aqui, a dilatacao temporal pode tambem ser deduzida facilmente das
transformacoes de Lorentz.
A Relatividade preve que observadores que se movem relativamente um ao outroenvelhecem de maneira distinta.
Para dar um exemplo numerico utilizando valores acessıveis no nosso
dia-a-dia, vamos supor que Monica se encontre em um desses super-
trens japoneses que viajam a 500 km/h (aproximadamente 139 m/s).
A esta velocidade, o fator no denominador da expressao acima seria de:
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 113
1√1 − v2/c2
=1√
1 − (139/3 × 108)2≈ 1 + 10−13
Ou seja, para essa velocidade, cada segundo que se passar para Monica,
1,0000000000001 segundos (um segundo e um decimo de um trilhonesimo)
se passarao para Eduardo! Este exemplo mostra porque no nosso dia-
a-dia de velocidades mundanas, nao percebemos tais fenomenos.
Mas, o que e impossıvel para humanos, pode ser corriqueiro para
partıculas. Lembra do experimento de 64 realizado no CERN para
verificar a constancia da velocidade da luz? Pois e, em 68 eles fizeram
um para verificar a dilatacao temporal! Desta vez eles usaram nao o π0,
mas o muon, uma partıcula que quando em repouso dura apenas cerca
de 2,2 microssegundos (1 microssegundo = 1 µs = 10−6 s). Muons foram
produzidos a uma velocidade de 0,9966c (ou seja, 99,66% da velocidade
da luz), e seu tempo de decaimento observado. Resultado: quando se
move com essa velocidade o muon leva cerca de 26,2 microssegundos
para decair. Comparando com a previsao da teoria da relatividade:
∆t =2, 2√
1 − 0, 99662= 26, 7 µs
em boa concordancia com o experimento. Entao, do ponto de vista
do observador em repouso, o muon vive mais tempo quando em movi-
mento!
Aqui vale uma pausa para um comentario nao-tendencioso de um
fısico experimental. Ca pra nos, esses experimentos sao de arrepiar!
Nao fosse possıvel verificar experimentalmente esses resultados estapafur-
114
dios da relatividade, a teoria jamais teria sido aceita! A fısica e uma
ciencia experimental. Experimentar e preciso!
O leitor deve estar se perguntando ainda sobre o problema do espe-
lho. A constancia da velocidade da luz em todos os referenciais inerciais
foi postulada por Einstein, o que leva as transformacoes de Lorentz. Ob-
viamente se essas transformacoes estao corretas, elas devem “embutir”
o resultado do experimento do espelho (ou do muon). Ou seja, temos as
transformacoes para as posicoes; precisamos agora das transformacoes
para as velocidades. Vamos considerar o problema unidimensional ao
longo do x. Se v for a velocidade de um objeto medida de um sistema
fixo em relacao ao solo, e v′ o medido de um sistema que se desloca
com velocidade V em relacao ao primeiro, sabemos que classicamente:
v = v′ + V
A transformacao correta para velocidade, obtida das transformacoes de
Lorentz e:
v =v′ + V
1 + v′V/c2
Note que esta se reduz a expressao anterior no caso em que v c.
Para verificarmos o experimento do espelho simplesmente substitu-
imos v′ = c para a velocidade do espelho e do observador, e vemos o
que resulta para v, a velocidade da luz medida por ele:
v =c+ V
1 + cV/c2=
c+ V
1 + V/c=
c+ V
(c+ V )/c= c
ou seja, a velocidade da luz permanece a mesma.
Passemos agora aos tamanhos das coisas.
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 115
2.5 O Espaco pode ser Encolhido!
Como se mede o comprimento de alguma coisa? O leitor a essa altura
deve estar pensando: “pronto, agora ele enlouqueceu de vez!” Mas
lembremos que foi exatamente fazendo perguntas “triviais” que Eins-
tein chegou a relatividade. Vamos entao de novo: como se mede o
comprimento de alguma coisa? Pegamos uma regua e comparamos o
tamanho do objeto com o numero daqueles tracinhos desenhados na
regua. Neste processo trivial, o que estamos fazendo na realidade e
subtrair os numeros correspondentes aos tracinhos que coincidem com
as extremidades do objeto a ser medido. Por exemplo, se uma das
extremidades coincide com o tracinho que marca ‘15 cm’ e a outra esta
sobre o tracinho ‘5 cm’, o comprimento do objeto sera obviamente de
10 cm. E se o objeto estiver se movendo em relacao a voce? Suponha
que voce queira medir o comprimento de um cabo de vassoura que esta
se movendo, por exemplo, arrastado por uma bicicleta. Neste caso fica
difıcil usar uma regua. Poderıamos, por exemplo, usar um daqueles
dispositivos oticos que existem em portas de elevadores para abrı-las
quando a luz e interrompida. Entao, durante a passagem do cabo de
vassoura a luz estaria interrompida. Medirıamos desse modo o tempo
gasto durante a passagem do cabo, e multiplicarıamos esse tempo pela
velocidade do cabo. Este seria o comprimento do cabo, certo? Mas,
que intervalo de tempo voce usaria, cara-palida, se acabamos de ver
que intervalos de tempo dependem do observador?
Retornemos aos nossos observadores Eduardo e Monica. Desta vez
o objetivo e medir o comprimento da plataforma da estacao. Eduardo,
116
que esta parado em relacao a plataforma, pega uma regua e mede um
comprimento igual a L0. Alem disso, ele mede o intervalo de tempo
que o trem leva para atravessar a plataforma. Chamando esse intervalo
de ∆tE , e sabendo que a velocidade do trem e constante e igual a v,
obviamente Eduardo chega a conclusao de que:
L0 = v∆tE
Para Monica, por outro lado, o trem esta parado, e e a plataforma que
se move com velocidade v (em modulo). De dentro do trem Monica
mede um intervalo de tempo ∆tM para o trem atravessar a plataforma,
e chega a conclusao de que o comprimento da plataforma e igual a:
L = v∆tM
Dividindo uma expressao pela outra obtemos a seguinte relacao entre
os comprimentos medidos por Eduardo e Monica:
L = L0∆tM∆tE
= L0
√1 − v2
c2
Portanto, Monica ve a plataforma com um comprimento menor do que
o que e visto por Eduardo! Para ela o espaco encolheu! Este fenomeno
e chamado de contracao do comprimento, e e obviamente uma con-
sequencia direta da dilatacao do tempo. Podemos novamente utilizar o
exemplo do trem japones viajando a 500 km/h para avaliar de quanto
a plataforma encolhe para Monica. Neste caso, obtemos:
L ≈ (1 − 10−13)L0
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 117
ou seja, se o comprimento da plataforma para Eduardo for de 50 metros,
para Monica ele sera de 49,9999999999999 metros!
Poderıamos agora perguntar, por exemplo, a que velocidade o trem
deveria viajar a fim de que a plataforma aparecesse para Monica com a
metade do comprimento visto por Eduardo. Basta substituir L = L0/2
na expressao acima:
1
2=
√1 − v2
c2⇒ 1
4= 1 −
(v
c
)2
ou
v
c=
√1 − 0, 25 = 0, 866
ou seja, cerca de 86,6 % da velocidade da luz, ou 259 800 km/s!
Uma curiosidade: note como o valor da velocidade da luz e impor-
tante para a nossa percepcao do mundo. Se ao inves de 300 000 km/s, a
luz viajasse a 100 km/h, o valor calculado acima corresponderia a ape-
nas 87 km/h, o que de fato e a ordem de magnitude para velocidades
de trens e carros. Em tal situacao verıamos carros, trens, onibus, etc.,
mudarem de tamanho quando postos em movimento!
2.6 E = mc2: Energia que da Gosto!
Nao so a imagem de Einstein mostrando a lıngua para os fotografos se
tornou um sımbolo, mas tambem a sua famosa expressao E = mc2. Ex-
pressoes simples como essa possuem um poder cativante sobre a mente
estetica dos fısicos. Formulas complicadas sao coisas horrorosas, em
geral aproximadas, sem beleza e sem generalidade. Como dizia Vini-
cius de Moraes, “beleza e fundamental”. Concordamos que E = mc2 e
118
mais famosa do que F = ma. Que diretor de cinema usaria F = ma,
ou p = mv, ao inves de E = mc2 em uma daquelas historias manjadas
do menino-genio? Mas o que significa essa expressao, e quais sao suas
consequencias? E o que veremos nesta secao.
Recordemos primeiramente a definicao de momento ou quantidade
de movimento em mecanica classica:
p = mv
Vimos que esta quantidade esta associada a energia cinetica T atraves
de:
T =p2
2m
Lembremos ainda a importante propriedade de conservacao destas quan-
tidades em sistemas mecanicos isolados.
Em relatividade o momento, como definido acima, nao se conserva
para todos os sistemas inerciais. A fim de preservar a lei de conservacao
do momento, sua expressao deve entao ser redefinida. A nova expressao
envolve o mesmo fator√
1 − v2/c2 que aparece nas expressoes da di-
latacao temporal e contracao do comprimento:
p =m√
1 − v2/c2v
Podemos re-escrever essa expressao com o mesmo aspecto que a
classica definindo uma quantidade chamada massa relativıstica m′:
m′ =m√
1 − v2/c2
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 119
de modo que
p = m′v
Vemos entao que a massa relativıstica depende da velocidade do
objeto. Quando v = 0, teremos m′ = m. A massa m e aquela me-
dida por um observador em repouso em relacao ao objeto, e por essa
razao e chamada de massa de repouso. Por outro lado, a massa m′ e
aquela medida por um observador que ve o objeto se mover. Entao,
em relatividade existem duas massas: a de repouso e a relativıstica.
Obviamente para v = 0, m e m′ serao diferentes. E preciso ter cuidado
nesse ponto: o fenomeno de aumento da massa relativıstica e um efeito
dinamico, e nao significa que a quantidade de materia do objeto esteja
aumentando. Trata-se de um aumento da inercia do objeto. Ou seja,
quanto mais proxima da velocidade da luz for a velocidade de um ob-
jeto, mais difıcil se torna aumenta-la. Estritamente falando, somente
objetos com massas de repouso iguais a zero podem viajar a velocidade
da luz (como, por exemplo, os fotons - capıtulo tres). Um eletron, por
exemplo, possui massa de repouso m = 9, 11× 10−31 kg. Se um eletron
for acelerado ate que sua velocidade atinja o valor 0, 95c (95% a ve-
locidade da luz), para um observador em repouso em relacao a ele, sua
massa passa a ser aproximadamente de 3, 2m. E desnecessario dizer que
no nosso dia-a-dia nao percebemos tal aumento. Usando novamente o
exemplo do trem a 500 km/h, se Monica mede 60 kg para sua propria
massa, Eduardo medira 60,00000000000001 kg, o que nao significa que
Monica aparecera aos seus olhos mais gordinha!
A energia cinetica relativıstica nao tera mais uma relacao tao sim-
120
ples com o momento do objeto, quanto na mecanica classica. Ela e
dada por :
T = mc2
1√
1 − v2/c2− 1
ou
T =mc2√
1 − v2/c2−mc2 = m′c2 −mc2
Note que quando v = 0, teremos T = 0, como ocorre na mecanica
classica. Alem disso, na maioria das situacoes do nosso dia-a-dia, a ve-
locidade v do objeto que se move sera muito menor do que a velocidade
da luz c, ou seja, v c. Neste limite, podemos usar uma aproximacao
para a raiz quadrada no denominador da expressao acima. De um modo
geral, em uma expressao do tipo:
(1 + x)n
se x for muito menor do que 1, podemos escrever:
(1 + x)n ≈ 1 + nx
No caso que estamos tratando, identificamos x como −v2/c2, e n =
−1/2:
1√1 − v2/c2
= (1 − v2/c2)−1/2
Consequentemente, para v c teremos:
1√1 − v2/c2
≈ 1 +v2
2c2
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 121
e nossa expressao para a energia cinetica entao se torna:
T = mc2(
1 +v2
2c2
)−mc2 =
mv2
2
que e o resultado classico. Logo, a energia cinetica relativıstica se
reduz a classica no limite de baixas velocidades, como alias ja era de se
esperar!
Definimos a quantidade m′c2 como a energia total do objeto, que
sera entao igual a soma da energia cinetica mais o produto mc2:
m′c2 = T +mc2
Note que no ultimo termo, a quantidade m e a massa de repouso. Esta
e a famosa expressao da energia de repouso, E:
E = mc2
Esta expressao estabelece uma equivalencia entre massa e energia,
e e talvez o resultado mais revolucionario da teoria da relatividade. Ela
simplesmente nos diz que massa pode ser convertida em energia e vice-
versa. Como veremos com mais detalhes no capıtulo sete, esta equiva-
lencia e verificada em processos de desintegracao nuclear. Somente a
tıtulo de exemplo vamos estimar aqui a energia contida em uma massa
igual a 1 grama:
E = 10−3 kg × (3 × 108)2 m/s = 9 × 1013 ≈ 1014 J
So para dar uma ideia da quantidade de energia acima, recordemos que
a energia necessaria para elevar 1 litro de agua de zero ate 100 graus
122
Celsius e da ordem de 105 J. Portanto, com a energia de 1014 J contida
em uma massa de apenas 1 g, poderıamos ferver cerca de 1 bilhao de
litros de agua! Pense nisso: se na sua casa a caixa dagua e de 2000
litros, 1 bilhao de litros corresponde a 500 000 caixas dagua!
O resultado mais revolucionario da Relatividade: massa e energia sao grandezasfısicas equivalentes!
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 123
PAINEL VII
CASAMENTO CONTURBADO
Einstein casou-se pela primeira vez em 1903, sob veemente oposicao dos seus
pais, com a serbia Mileva Maric, uma ex-companheira da Politecnica que ele co-
nheceu aos 17 anos de idade. O casamento gerou dois filhos, e revelou uma face
pouco divulgada e embaracosa de um candidato a mito. Varias cartas foram escritas
por ele durante esta epoca. Elas revelam a decadencia do relacionamento do casal
ate a sua separacao. Inicialmente Einstein se refere a Mileva como “uma criatura
igual a ele; forte e independente”, ou como em outra carta, onde ele se refere a
Mileva como “gatinha”, e declara: “sem a sua lembranca, eu nao conseguiria viver
no meio desse miseravel bando de humanos”.
A medida em que o relacionamento foi se deteriorando, o teor das cartas foi
mudando. Em uma delas Einstein escreve para sua prima Elsa, com quem se casaria
mais tarde: “Trato Mileva como uma empregada que nao posso demitir. Tenho meu
proprio quarto, e evito ficar sozinho com ela. Somente desta forma consigo suportar
nosso convıvio.”
Einstein chegou ao extremo de impor regras escritas a Mileva:
“A) voce se encarregara de: (1) que minhas roupas sejam mantidas em ordem;
(2) me servir tres refeicoes ao dia no meu quarto; (3) que meu quarto e minhas
coisas sejam mantidas em ordem sobre a minha mesa, e que nao sejam tocadas por
ninguem alem de mim.”
“B) Voce renunciara a qualquer relacionamento pessoal comigo, exceto quando
necessario, de modo que as aparencias sociais sejam mantidas. Em particular, voce
nao: (1) sentara ao meu lado em casa; (2) saira ou viajara comigo.”
“C) Voce tera que prometer as seguintes coisas: (1) nao esperar afeicao de
minha parte, e nao se aproximar de mim; (2) responder imediatamente quando eu
falar com voce; (3) sair do meu quarto imediatamente, sem protestar, quando eu
pedir.”
“D) Voce prometera nao denegrir a minha imagem aos olhos das criancas.”
124
2.7 Viagens no Tempo
A teoria da relatividade revelou o comportamento nao intuitivo de
relogios e reguas a altas velocidades. Mas, o que e um relogio senao
algo que marca o numero de vezes que determinado fenomeno se repete?
Um relogio de pulso marca o numero de voltas dadas pelos ponteiros
durante uma revolucao completa da Terra em torno de si mesma. A
rigor, qualquer fenomeno periodico serve como relogio. E se aplicarmos
a dilatacao temporal a seres humanos? As batidas de nosso coracao, por
exemplo, podem servir como relogio. Em 1911, 6 anos apos a publicacao
de seu artigo revolucionario, Einstein fez o seguinte comentario:
Se tivessemos um organismo vivo numa caixa, poderıamos
proceder de maneira que o organismo, depois de um voo
longo arbitrario retornasse ao ponto inicial, numa condicao
muito pouco alterada, enquanto que os organismos correspondentes,
que permaneceram em suas posicoes iniciais, haviam ha
muito cedido lugar a novas geracoes. Para o organismo em
movimento, o longo tempo de jornada foi um mero instante,
desde que o movimento tenha sido realizado com uma ve-
locidade proxima a da luz. (Compilado de Introducao a
Relatividade Especial, Robert Resnik, Ed. USP 1971).
Considere por exemplo uma outra experiencia pensada. Material
necessario: 2 pessoas gemeas, 2 relogios e um foguete capaz de viajar
com velocidade proxima a da luz. Um dos gemeos embarca no foguete e
faz uma viagem ate uma galaxia distante, enquanto o outro permanece
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 125
na Terra. Cada um dos gemeos ve o seu proprio relogio marcar as horas
normalmente, mas para o que permanece na Terra, o relogio do outro
se atrasa, como resultado da dilatacao temporal. Em outras palavras,
para ele, seu irmao envelhece mais lentamente. Quando a nave retornar
a Terra, o que viajou estara mais novo do que o que ficou na Terra!
Podemos pensar como se o do foguete tivesse feito uma viagem para o
futuro!
Ultima fotografia de Eistein, aos 79 anos de idade.
Obviamente tal experiencia nao e, por enquanto, possıvel de ser re-
alizada. Do material necessario, so dispomos dos gemeos e dos relogios,
mas nao da nave com as caracterısticas desejadas. No entanto, exis-
tem homens dispostos a tudo. Vimos anteriormente que a dilatacao do
126
tempo foi verificada em laboratorios utilizando partıculas subatomicas.
Se criarmos, por exemplo, dois muons e acelerarmos um deles a uma
velocidade de 0,9966c, permanecendo o outro em repouso, notaremos
que o primeiro existira por cerca de 26 µs, enquanto que o segundo
tera desaparecido apos 2,2 µs. O experimento acima, no entanto, diz
respeito nao a partıculas, mas a pessoas. Em outubro de 1977, Joseph
Hafele e Richard Keating resolveram testar a dilatacao temporal em
relogios macroscopicos, utilizando voos comerciais em torno do globo.
Neste nıvel de velocidades a dilatacao temporal e imperceptıvel para
o senso comum, e so pode ser medida devido a existencia de relogios
atomicos de altıssima precisao. Com isso Hafele e Keating verificaram
a dilatacao temporal prevista pela teoria da relatividade com um erro
menor do que 10%!
E este o estado das coisas. Somos seres nao relativısticos e nos-
sas percepcoes sao mais proximas a mecanica classica. No entanto, a
Natureza e muito mais do que as nossas percepcoes, como ficou evi-
dente neste capıtulo. Os tremendos “insights” de Einstein o colocaram
acima das proprias percepcoes, e no topo do mundo, entre os homens
mais brilhantes que ja existiram. A relatividade “baguncou” o palco
fundamental da mecanica classica, revelando propriedades dinamicas
ate entao insuspeitas do espaco e do tempo. Mas Einstein nao parou
por aı, e nem os desenvolvimentos da fısica no inıcio do seculo XX. Se
o leitor acha que este capıtulo ja esgotou a quota de coisas estranhas
que podem ser toleradas, sugiro que ele feche o livro e nao ouse ler o
proximo capıtulo, sob pena de que, caso insista em ir adiante, vir a
duvidar da sua propria existencia!
CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 127
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. O Anel Impossıvel de Einstein, Reuven Opher, vol. 8, no. 47, p 12.
2. Segredos do Jovem Einstein, Thomas F. Glick, vol. 11, no. 66, p. 60.
3. A Nova Estrela Binaria e a Relatividade, Joao Steiner, vol. 4, no. 20, p. 6.
4. Luz Lenta, H. Moyses Nussenzveig, vol. 25, no. 149, p. 19.
5. Um Manuscrito de Einstein no Brasil, Alfredo Tiomno Tolmasquim e Ildeude Castro Moreira, vol. 21, no. 124, p. 22.
128
Resumo - Capıtulo Dois
A Teoria da Relatividade foi publicada por Albert Einstein em 1905.A teoria e baseada sobre dois postulados fundamentais: 1) todos os sis-temas inerciais sao equivalentes, e 2) a velocidade da luz e a mesmaem qualquer sistema inercial. Como consequencia desses postulados, asnocoes de espaco e tempo absolutos introduzidas na mecanica classicativeram que ser abandonadas. Na relatividade, intervalos de tempo edistancias dependem do estado de movimento do observador. Quandoum observador se encontra em movimento, o tempo para ele e dilatadoem relacao a um observador parado, e o espaco e encolhido. O conceitode energia ganha um novo significado na relatividade. A famosa formula
E = mc2
expressa a equivalencia entre massa e energia. c e a velocidade da luzno vacuo. A relatividade representa uma generalizacao da mecanicanewtoniana, e a velocidades muito menores do que a velocidade da luz,as duas teorias se tornam equivalentes.
Chapter 3
A Mecanica Quantica
- Deus nao joga dados.
- Nao e nosso problema explicar a Deus como ele deve governar o
mundo.
Em Bruxelas Einstein traria toda manha para a mesa do cafe uma
nova objecao a incerteza. Durante a noite, Bohr, Heisenberg e outros
juntavam-se para desmontar seus argumentos. Incerteza violava suas
conviccoes mais profundas sobre a harmonia fundamental do Universo.
(Heisenberg’s War, Thomas Powers, Knopf 1993)
3.1 Havia uma Pedra no Caminho
O problema da velocidade da luz no eter nao era o unico a contradizer
os resultados classicos. Havia um outro que provocaria uma revolucao
ainda mais profunda que a teoria da relatividade de Einstein: amecanica
quantica. Einstein relutou em aceitar as consequencias desta teoria ate
seus ultimos dias de vida (ao final do capıtulo, pode ser que o leitor
se sinta solidario com a posicao adotada por Einstein!). Chegou a
129
130
afirmar que a mecanica quantica levaria a parapsicologia, e por isso
deveria ser abandonada1. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, deu
contribuicoes fundamentais para a sua formulacao e desenvolvimento.
Hoje, se por um lado ainda existe uma acalorada discussao a respeito
da interpretacao dos seus fundamentos, por outro a mecanica quantica
tornou-se uma especie de rainha da fısica, com seu espetacular poder
de previsao, e absoluta precisao nos resultados numericos dela obtidos.
Na batalha entre Bohr e Einstein quem venceu foi Bohr!
Passemos agora ao problema historico que deu origem a mecanica
quantica. Recordemos que para a fısica classica os fenomenos fısicos
pertenciam a duas categorias distintas: os mecanicos, envolvendo o
movimento de objetos massivos (planetas, macas, partıculas, etc.), e
os de natureza eletromagnetica. Dentro de cada uma dessas cate-
gorias existem os fenomenos ondulatorios; podemos tanto ter ondas
mecanicas propagando-se em um meio material (como o som, por exem-
plo), quanto ondas eletromagneticas, que nao dependem da existencia
de um meio para se propagar (como a luz, por exemplo). Ninguem em
sa consciencia imaginaria algo que misturasse propriedades tıpicas de
partıculas com propriedades ondulatorias.
Desde o seculo XIX havia o problema de como interpretar a energia
contida na radiacao emitida por um solido incandescente, a chamada
radiacao termica. Todos os corpos emitem e absorvem esse tipo de
radiacao. E por exemplo atraves da radiacao termica emitida por nossos
corpos que nos aquecemos embaixo de um cobertor em dias frios. O
1Esta foi outra previsao fantastica de Einstein. Basta dar uma olhada nas secoesde esoterismo das livrarias!
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 131
cobertor meramente evita que esta radiacao se espalhe pelo ambiente.
Para simular a emissao e absorcao de radiacao por um objeto, os fısicos
inventaram o que se chama de corpo negro, um objeto que absorve
toda a radiacao nele incidente. Um modelo idealizado de corpo negro e
uma caixa com um buraco pequeno. Toda radiacao que incide sobre o
buraco e capturada; a onda permanece refletindo nas paredes internas
da caixa sem conseguir escapar. Note que o corpo negro nao e a caixa
em si, mas apenas o buraco! Obviamente a radiacao que incide sobre
a caixa sera por ela refletida, mas aquela porcao que incidir sobre o
buraco sera absorvida e permanecera presa em seu interior. Os fısicos
do final do seculo XIX estavam interessados em descrever a distribuicao
de energia da radiacao emitida por um corpo negro e sua variacao
com a frequencia da radiacao e com a temperatura do corpo. Este
e um problema que claramente pertence a categoria dos fenomenos
ondulatorios, de natureza eletromagnetica.
A variacao da energia irradiada com a temperatura de um objeto
era uma lei bem estabelecida ao final do seculo XIX, chamada de lei
de Stefan-Boltzmann. Esta estabelece que a energia total emitida pela
radiacao, chamada radiancia, RT , e proporcional a quarta potencia da
temperatura do objeto, ou seja:
RT = σT 4
onde σ e a chamada constante de Stefan-Boltzmann, e vale 5, 67×10−8
W/m2K4 (W = watts, K = Kelvin). Essa lei diz que se duplicar-
mos a temperatura do objeto, a sua taxa de radiacao aumentara 16
vezes. Ela, contudo, nao diz como a energia esta distribuıda entre os
132
varios comprimentos de onda (ou frequencias) da radiacao emitida. No
inıcio do seculo XX, Rayleigh e Jeans fizeram este calculo, usando a
eletrodinamica classica. Eles encontraram o seguinte resultado:
ρT (f) =8πf 2kBT
c3
A funcao ρT (f) mede a quantidade de energia irradiada em uma dada
frequencia f , quando o corpo negro se encontra a uma temperatura
fixa T . Nessa formula, c e a velocidade da luz (ela aparece porque a
radiacao termica e um tipo de onda eletromagnetica), e kB e a cons-
tante de Boltzmann, com valor numerico kB = 1, 381 × 10−23 J/K. Por
exemplo, a T = 10000 K teremos:
ρT (f) =8π × 105 × 1, 381 × 10−23
27 × 1024f 2 = 1, 28 × 10−42f 2 J
Hzm3
Logo, para f = 1014 Hz, a densidade de energia eletromagnetica irradi-
ada por unidade de tempo sera igual a ρT (f) = 1, 28 × 10−42 × 1028 =
1, 28 × 10−14 J/Hz m3.
Vemos entao que a previsao de Rayleigh e Jeans e de que, para uma
dada temperatura, a energia aumenta com o quadrado da frequencia.
Isto significa que a energia contida em uma dada frequencia sera 4
vezes maior do que aquela contida em outra com a metade de seu
valor. Como a energia total e igual a soma (integral - Painel IV) sobre
todas as frequencias de zero ate infinito2, esta formula preve que a
energia irradiada total sera infinita! Quando comparada com dados
experimentais, houve uma discordancia tao espetacular com a previsao
2Esta faixa de variacao de frequencia e uma idealizacao, pois frequencias de ondaseletromagneticas sao sempre maiores que zero e menores que infinito. No entanto,do ponto de vista matematico, e conveniente considerarmos a situacao idealizada.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 133
teorica (ver figura), que o fato entrou para a Historia da Fısica com
o nome de catastrofe do ultravioleta! A catastrofe do ultravioleta era
entao uma pedra no caminho3.
3.2 Max Plank: Pacotes de Luz?!
Ao tentar solucionar o problema da catastrofe do ultravioleta, o fısico
alemao Max Planck inaugurou uma nova era da fısica. Seu trabalho
intitulado Sobre a Teoria da Distribuicao de Energia do Espectro Nor-
mal foi apresentado no dia 14 de dezembro de 1900 em uma reuniao da
Sociedade Alema de Fısica. Esta e a data celebrada como a do nasci-
mento da fısica quantica. Na epoca, contudo, o trabalho de Planck
recebeu pouca atencao. Foi somente depois da explicacao do efeito fo-
toeletrico dada por Einstein (efeito discutido a seguir), usando as ideias
de Planck, que o trabalho entrou em foco, e ganhou importancia.
Planck conseguiu explicar a distribuicao de radiacao de corpo negro
fazendo a hipotese de que a emissao e a absorcao de energia eletro-
magnetica se dao nao de forma contınua, como requer o eletromag-
netismo classico, mas em unidades discretas de uma quantidade mınima
∆E:
E = ∆E, 2∆E, 3∆E, ...
A fim de poder ajustar a sua teoria aos dados experimentais, ele supos
que a quantidade mınima, ou quantum de energia ∆E, era proporcional
3Para que se aprecie melhor a significancia deste resultado, e preciso lembrar quenada havia errado com os calculos de Rayleigh e Jeans; estes estavam rigorosamentecorretos dentro das premissa da fısica classica. Eram as premissas em si que estavamerradas!
134
a frequencia, f , da radiacao:
∆E = hf
A constante de proporcionalidade h e a famosa constante de Planck,
que numericamente vale 6, 626 × 10−34Js. A partir de sua hipotese
Planck deduziu a seguinte formula para a distribuicao de energia do
corpo negro (compare com a expressao obtida por Rayleigh e Jeans):
ρT (f) =8πh
c3f 3
ehf/kBT − 1
Essa expressao reproduz exatamente o que e observado experimental-
mente (veja figura)! Esta formula tambem leva corretamente a Lei de
Stefan-Boltzmann. Para efeitos de comparacao, vamos substituir va-
lores numericos e comparar com a formula de Rayleigh e Jeans:
ρT (f) =8π × 6, 626 × 10−34
27 × 1024×
× 1042
e6,626×10−34×1014/1,381×10−23×105 − 1= 1, 25 × 10−14 J.Hz
m3
A energia total de uma onda eletromagnetica com frequencia f sera,
de acordo com a hipotese de Plank, igual a um dado numero de vezes
a quantidade mınima hf :
E = nhf onde n = 0, 1, 2, 3, ...
Nesta expressao n o numero de quanta de radiacao com energia hf .
Este resultado esta em franca oposicao a eletrodinamica classica, para
a qual a energia de uma onda eletromagnetica varia continuamente e
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 135
nao em pacotes. Por exemplo, a frequencia da luz visıvel e da ordem
de 1015 Hz. Portanto, a energia de um quantum de luz visıvel e de
aproximadamente 6, 6 × 10−34 × 1015 ≈ 10−18 J. Se tivessemos 1020
quanta de luz, a energia total seria 10−18 × 1020 = 100 J.
Ao supor que a energia eletromagnetica nao e distribuıda continuamente, mas em“pacotes”, ou quanta, Planck foi capaz de explicar os dados experimentais sobre aradiacao de um corpo negro.
Durante anos o proprio Planck considerou a sua hipotese um “ato de
desespero”, alusao feita aos esforcos para explicar o espectro de radiacao
do corpo negro. Ele passou cerca de dez anos tentando conciliar a sua
hipotese com a fısica classica, mas nao obteve sucesso. Somente apos a
explicacao do efeito fotoeletrico por Einstein e que ele se convenceu da
realidade dos quanta de energia.
O efeito fotoeletrico e a ejecao de eletrons de uma superfıcie metalica
pela acao de uma luz incidente. Hoje este efeito tem varias aplicacoes na
136
industria atraves das chamadas celulas fotoeletricas. Podemos entender
o problema considerando o eletron preso na superfıcie de um metal
como estando dentro de um poco. So que nao se trata aqui de um poco
comum, mas do que os fısicos chamam de um poco de potencial (nos
tambem vivemos dentro de um poco de potencial; o poco de potencial
gravitacional gerado pela massa da Terra!). Essa denominacao vem do
fato de que o metal atrai o eletron para si. Na superfıcie do metal a
atracao nao e tao forte, e a luz que incide sobre ele fornece energia
suficiente para o eletron “escapar” do poco. Em geral, a energia e
suficiente nao so para arrancar o eletron, mas tambem para fornecer
a ele uma certa energia cinetica. De fato, se soubermos a energia da
luz incidente, e medirmos a velocidade do eletron ejetado, podemos
calcular a “profundidade” do poco.
Os dois aspectos principais do efeito fotoeletrico que nao podem ser
explicados pela teoria classica sao:
(i) A energia cinetica dos eletrons ejetados nao depende da inten-
sidade da luz incidente (proporcional ao quadrado do campo eletrico).
Isto esta em conflito com a ideia classica de que, como a forca que atua
sobre cada eletron e igual ao produto da carga pelo campo eletrico, eE,
a energia cinetica deveria aumentar sempre com o aumento do modulo
de E. Isso nao acontece;
(ii) Existe uma “frequencia de corte” para a luz incidente, abaixo
da qual o efeito deixa de ocorrer, independentemente da intensidade
do campo eletrico. Isso tambem esta em conflito com o eletromag-
netismo classico, para o qual o efeito deveria ocorrer qualquer que fosse
a frequencia da onda.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 137
Einstein deu a seguinte explicacao para o efeito fotoeletrico: a e-
nergia da onda que incide sobre o metal e quantizada, em unidades de
hf , como postulado por Planck. Mas Einstein introduziu uma ideia fun-
damental: ele tratou esses quanta de energia como se fossem partıculas
em si, ou seja, como se a onda eletromagnetica nao fosse contınua,
mas formada por “bolinhas de energia”, que os fısicos batizaram com o
nome de fotons. Entao, fotons sao quanta de energia eletromagnetica,
ou partıculas de radiacao. Einstein postulou que a energia cinetica do
eletron ejetado do metal era igual a diferenca entre a energia do foton,
hf e a profundidade do poco de potencial, W :
T = hf −W
Com essa hipotese, simples como ele proprio, Einstein explicou todos
os resultados experimentais envolvendo o efeito fotoeletrico. Voce sabe
quando foi que ele fez isso? Em 1905, o mesmo ano da publicacao da
teoria da relatividade!! Nao da pra competir com um cara assim, da?
Vejamos agora como esta hipotese resolve os dois pontos mencionados
acima.
138
.
Ao incidir sobre a superfıcie de alguns metais, radiacao eletromagnetica e capaz de“arrancar” eletrons do metal. Este e o efeito fotoeletrico.
Para que o eletron seja detectado, e preciso que ele seja ejetado
com uma certa energia cinetica, ou seja, possua T = 0. Da expressao
proposta por Einstein, vemos que se a frequencia for tal que hf = W , T
sera zero. Esta condicao nos da a frequencia de corte. Alem disso, se a
energia do foton, hf , for menor do que W , o efeito deixa de ocorrer pois
o eletron continuara preso ao metal. Isto so depende do valor de hf
em relacao ao valor de W , e nao da quantidade de fotons que estiverem
atingindo o metal, ou seja, independe da intensidade do campo eletrico.
Para o sodio, por exemplo, verifica-se que a frequencia de corte e f =
4, 39 × 1014 Hz, o que nos da a “profundidade” do poco para o Na:
W = 4, 39 × 1014 × 6, 63 × 10−34 = 1, 82 eV.
Certamente o leitor nao deixou passar a sentenca grifada acima:
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 139
partıculas de radiacao. Talvez mais importante do que a explicacao do
efeito fotoeletrico em si, a introducao deste conceito novo foi completa-
mente revolucionaria, e rompeu de vez com a fısica classica para a qual
partıcula e partıcula e onda e onda! Com essa ideia Einstein unificou a
Natureza em um nıvel fundamental, onde partıcula e onda se misturam
e se complementam4.
A radiacao eletromagnetica apresenta um carater ondulatorio e um carater corpus-cular. No primeiro caso dizemos que a potencia da onda e proporcional ao quadradodo campo eletrico, e no segundo que a potencia e proporcional ao numero de fotonscom uma dada frequencia.
4Ideias sobre a natureza corpuscular da luz sao de fato muito antigas, e haviamsido defendidas pelo proprio Newton. Contudo, apos o grande sucesso da teoriaondulatoria classica da radiacao, estas ideias foram de certa forma esquecidas, tendosido revividas somente apos o trabalho de Planck.
140
3.3 Louis de Broglie: Ondas de Materia?!
Como conciliar o carater ondulatorio da radiacao eletromagnetica (di-
fracao, interferencia, etc) com o carater de partıcula proposto por Eins-
tein para explicar o efeito fotoeletrico? Alem deste, existia ainda um
outro efeito que deixava inequıvoca a interpretacao de Einstein: o
chamado efeito Compton. Trata-se do espalhamento de radiacao eletro-
magnetica, por eletrons, em um alvo. O experimento consiste em fazer
incidir sobre um alvo, radiacao com direcao e energia bem determi-
nadas, e medir a direcao e energia da radiacao espalhada. Compton
chegou a conclusao de que os resultados experimentais so poderiam
ser explicados se a radiacao fosse considerada como um conjunto de
fotons. Isso quer dizer que o processo de espalhamento da radiacao
pelos eletrons teria que ser tratado algo como o choque entre bolas de
bilhar (uma das bolas sendo o foton, a outra sendo o eletron). Compton
foi outro que engordou a poupanca com o Estocolmo de 1927!
Mas o pior ainda estava por vir. Em 1924 o frances Louis de Broglie
apresentou uma ideia em sua tese de doutoramento que iria de uma
vez por todas consolidar o estado de confusao entao reinante: ondas de
materia. O “insight” de de Broglie foi, na opiniao do autor, o salto mais
decisivo para o desenvolvimento da moderna mecanica quantica. Ele
simplesmente completou a simetria que faltava: se fotons sao ao mesmo
tempo ondas e partıculas, entao partıculas (como eletrons, protons,
etc.) tambem devem ser ondas! Esta suposta onda de materia tambem
teria uma frequencia f (como qualquer onda que se preze!) e sua energia
seria, como no caso do foton, dada por
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 141
E = hf
E outras quantidades mecanicas que sao caracterısticas de partıculas,
como por exemplo o momento, p ? “No problem”, este, segundo de
Broglie, e dado por:
p =h
λ
onde λ e o comprimento de onda associada a partıcula, chamado de
comprimento de onda de de Broglie. Esta e mais uma daquelas ex-
pressoes magicas, tanto pela sua simplicidade, quanto pelo seu signifi-
cado. Do lado esquerdo temos o momento, uma quantidade tıpica de
partıcula, e do lado direito o comprimento de onda, tıpico de fenomenos
ondulatorios. A “interface” entre as duas quantidades e a constante de
Planck, a assinatura da mecanica quantica.
Vamos verificar se essa quantidade possui de fato dimensao de mo-
mento, ou seja kg m/s. A unidade de h e o joule vezes segundo, e a
unidade de λ e o metro. Acontece que joule e unidade de energia que
por sua vez e igual ao produto da forca (dada em newtons = massa ×aceleracao) pelo deslocamento. Logo teremos:
[p] =kg ×m× s−2 ×m× s
m= kg ×m/s
Ok., mas falar so nao adianta, pois o mundo esta mesmo cheio de
malucos querendo “aparecer”. Onde estao os fatos? Acontece que a
hipotese de de Broglie foi amplamente verificada experimentalmente
por varios cientistas! Em 1927 George Paget Thompson mostrou que
142
eletrons sofrem difracao, tal qual ondas eletromagneticas. A partir do
padrao de difracao obtido, ele mediu o comprimento de onda de de
Broglie, e verificou estar de acordo com a relacao λ = h/p. Por isso ele
faturou o Nobel de 1937. Este e um fato particularmente curioso na
Historia da Fısica: o pai de G.P. Thompson, Joseph John Thompson,
havia em 1897 descoberto o eletron, e embolsado o Nobel de 1906, 31
anos antes do filho! Eta famılia lascada! A respeito disso escreveu Max
James:
Podemos dizer que Thompson, o pai, foi agraciado com
o Nobel por mostrar que o eletron era uma partıcula, e
Thompson, o filho, por mostrar que ele era uma onda.
de Broglie, por sua vez, nao ficou de fora e abiscoitou o Estocolmo de
1929.
Nao somente eletrons, mas qualquer objeto material posui uma onda
associada. Acontece que este carater da materia so e manifesto se o
comprimento de onda de de Broglie se torna comparavel as dimensoes
envolvidas no experimento. Isso nao e novidade. Nos vimos no capıtulo
um que ondas sao difratadas em um anteparo com uma abertura se as
dimensoes da abertura forem da mesma ordem que o comprimento de
onda. Voce poderia entao pensar (a essa altura pode-se pensar qualquer
coisa!): por que entao quando eu atravesso a porta do quarto para a
sala eu tambem nao sofro difracao? E facil explicar: suponha que voce
se desloque com uma velocidade de 0,5 m/s, e tenha uma massa de 80
kg. Entao, o seu momento sera igual a p = 80 × 0, 5 = 40 kg m/s.
Consequentemente seu comprimento de onda de de Broglie sera: λ =
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 143
6, 6×10−34/40 = 1, 6×10−35 m. Como a abertura da porta e da ordem
de 0,7 m, o seu comprimento de onda de de Broglie e infinitamente
menor que o vao, e nessas condicoes o fenomeno nao e manifesto. Por
outro lado, partıculas microscopicas como eletrons podem ser acele-
radas a velocidades que tornem seus momentos e comprimentos de onda
de de Broglie tais que difracao pode ser observada, por exemplo, em
um solido cristalino (capıtulo 5). Neste caso, o espaco entre os atomos
que formam o solido e da mesma ordem que λ. Novamente aqui vemos
o papel das constantes fısicas para a nossa percepcao do mundo. Desta
vez estamos falando da constante de Planck. Se h nao tivesse um valor
tao pequeno, ao corrermos para atravessar a rua, serıamos difratados
por postes, carros e hidrantes!
Voltemos a pergunta feita inicialmente: como conciliar o carater on-
dulatorio com o carater de partıcula da materia? Resposta: dentro da
fısica classica nao ha conciliacao. Este e um aspecto da realidade que
simplesmente deve ser aceito! O fısico dinamarques Niels Bohr foi um
dos maiores promotores e defensores da emergente mecanica quantica.
Foi ele quem “costurou” o chamado princıpio da complementaridade:
partıcula e onda sao conceitos complementares (e nao opostos, como
classicamente!). Se em um experimento o carater de partıcula e ma-
nifesto (como por exemplo no efeito fotoeletrico ou no efeito Compton),
e impossıvel, atraves do mesmo experimento, observar seu carater on-
dulatorio. E vice-versa. O que determina a observacao de um carater
ou outro e a natureza do experimento. Se fizermos um experimento de
difracao ou interferencia, o carater ondulatorio e manifesto; se fizermos
um experimento de espalhamento Compton, e o carater de partıcula
144
localizada que aparece. E como se a Natureza revelasse para nos aquilo
que desejassemos ver! Note que situacao miseravel: nao temos sequer
um nome para expressar essas “coisas” que sao partıculas e ondas ao
mesmo tempo!
Temos ainda um problema: no mundo classico uma onda e algo bem
definido, detectavel, “palpavel”, (ai que saudades!) bem representada
matematicamente, por exemplo pelos campos E e B no caso de uma
onda eletromagnetica. E no caso das ondas de materia? Qual o analogo
dos campos eletrico e magnetico? Entra em cena Erwin Schrodinger.
3.4 Erwin Schrodinger e o Misterio ψ(r, t)
De acordo com a teoria eletromagnetica os campos E e B se propagam
pelo espaco sob a forma de ondas quando suas fontes sofrem aceleracao.
O que chamamos “fontes” sao distribuicoes espaciais de cargas eletricas,
que sao postas a oscilar. A configuracao espacial do campo eletro-
magnetico reflete a distribuicao de cargas da fonte. Mas de que modo,
dada uma distribuicao de cargas, podemos conhecer o campo eletro-
magnetico correspondente? Resposta: para isso temos que resolver
as equacoes de Maxwell. Dissemos no capıtulo um que foi Maxwell
quem sintetizou as leis do eletromagnetismo classico. Essa sıntese
esta contida em quatro equacoes, as chamadas equacoes de Maxwell,
que nao vamos reproduzir aqui devido a seu alto grau de complexi-
dade matematica. Basta sabermos que os campos E e B sao justa-
mente as solucoes destas equacoes. Agora, na medida em que o movi-
mento da materia tambem possui uma onda associada, qual sera o
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 145
analogo do campo eletromagnetico? Assim como os campos E(r, t) e
B(r, t) sao funcoes matematicas que descrevem ondas eletromagneticas,
deve haver o equivalente para ondas de materia, ou seja, uma funcao
matematica que descreva uma distribuicao de materia. E mais, como
obter tal funcao? Quem resolveu este problema foi o fısico alemao
Erwin Schrodinger. Petrus Debye, um importante fısico holandes da
epoca, mais tarde recordaria:
Entao de Broglie publicou seu trabalho. Na epoca Schro-
dinger era meu sucessor na Universidade de Zurique, e eu
estava na Universidade Tecnica, que e um Instituto Fe-
deral. Nos conversavamos sobre o trabalho de de Broglie, e
tınhamos chegado a conclusao que nao o compreendıamos.
Convidamos entao Schrodinger para dar um coloquio sobre
o assunto. Ao se preparar para o coloquio Schrodinger real-
mente se envolveu com o problema. Foi entao uma questao
de meses ate ele publicar o seu artigo
Schrodinger encacapou o Nobel de 1933.
A funcao que descreve as ondas de materia e a chamada funcao de
onda, representada por ψ(r, t). Ela e a solucao de uma famosa equacao
da fısica, chamada equacao de Schrodinger. E a funcao de onda a quan-
tidade equivalente aos campos E e B de uma onda eletromagnetica. No
caso geral, ψ(r, t) sera uma funcao complexa, ou seja uma funcao de
variaveis complexas (isso nao quer dizer que ela seja necessariamente
complicada!), contendo uma parte real e outra imaginaria. O comporta-
mento da funcao de onda e determinado pela energia total da partıcula,
146
ou seja, cinetica mais potencial. Para cada tipo de potencial, a funcao
de onda tera uma forma diferente. Por exemplo, para uma partıcula
livre o potencial e igual a zero em todo o espaco; para um oscilador
harmonico em 1 dimensao, o potencial e proporcional ao quadrado do
deslocamento da partıcula, e assim por diante. E importante ressaltar
que embora ψ(r, t) seja o analogo ao campo eletromagnetico, a funcao
em si nao possui uma “realidade fısica”, como E e B. Ou seja, nos
nao temos acesso experimental direto a funcao de onda. Que diabos
entao e ψ(r, t)? Quem deu a interpretacao a funcao de onda foi Max
Born, em 1926. Born postulou que a conexao entre as propriedades
ondulatorias de ψ(r, t) e as propriedades mecanicas de uma partıcula
associada estava nao na funcao em si, mas no seu modulo quadrado:
|ψ(r, t)|2 = ψ(r, t)∗ψ(r, t)
onde ψ(r, t)∗ e o complexo conjugado da funcao de onda, obtido sim-
plesmente trocando-se i por −i. O modulo quadrado da funcao de
onda e o equivalente a intensidade do campo eletromagnetico, que por
sua vez e proporcional a E2 e B2. Max Born interpretou a quanti-
dade |ψ(r, t)|2 como uma densidade de probabilidades, ou seja, pro-
babilidade por unidade de volume. Esta interpretacao implica em um
carater aleatorio intrınseco a Natureza, pelo menos no que diz respeito a
fenomenos envolvendo partıculas microscopicas. De acordo com ela, no
mundo microscopico so podemos falar de agora em diante de probabili-
dades: probabilidade de a partıcula estar em tal posicao, probabilidade
de a partıcula ter tal momento, ou tal energia, etc. |ψ(r, t)|2 repre-
senta a probabilidade de a partıcula ser encontrada na posicao r no
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 147
instante t. Essa ideia esta em franca oposicao com o quadro classico
onde a trajetoria e o momento de uma partıcula, r(t) e p(t), podem
ser conhecidos com precisao absoluta, bastando para isso resolvermos
a equacao F = ma. Cai por terra o determinismo classico!
A funcao de onda esta para as ondas de materia assim como os campos eletrico emagnetico estao para a radiacao eletromagnetica.
148
PAINEL VIII
FUNCOES DE DISTRIBUICAO DE PROBABILIDADES
Quando jogamos um dado para o alto, qual a probabilidade da face com 4 marcas
cair para cima? 1/6, todos sabemos. Esta probabilidade e a mesma para qualquer
outro resultado. Mas como se chega a esta conclusao? Probabilidade e um conceito
matematico; e o limite de uma sequencia de eventos. Para chegarmos ao numero 1/6,
temos que jogar o dado para o alto um certo numero N de vezes. Entao contamos
quantas vezes o numero 4 (ou qualquer outro numero) foi obtido (digamos N4 vezes)
e dividimos pelo numero total de jogadas. Chamemos essa razao de p(4):
p(4) =N4
N
A probabilidade e o limite desta razao quando N for um numero muito grande,
ou como dizemos em matematica, “tender para infinito”. E somente neste limite
que o resultado sera o mesmo para qualquer face do dado: 1/6.
Suponha agora que voce tenha uma caixa com 1 bola branca, 5 bolas vermelhas
e 2 bolas pretas. Qual a probabilidade de tirarmos a bola branca? Como o numero
total de bolas e 8, a probabilidade sera 1/8. E a de tirarmos uma bola vermelha?
Sera obviamente 5/8, pois temos 5 bolas vermelhas. Ou seja, a probabilidade de
tirarmos uma bola vermelha e 5 vezes maior do que a de tirarmos uma bola branca
e duas vezes e meia a de tirarmos uma preta. Ou seja, existe aqui uma distribuicao
de probabilidades.
As somas das probabilidades de todos os eventos possıveis tem que ser sempre
igual a 1. No caso do dado teremos:
16+16+16+16+16+16= 1
E no caso das bolas coloridas:
18+58+28= 1
Funcoes de distribuicao de probabilidades descrevem probabilidades de ocorrencia
de eventos aleatorios. No exemplo do dado, o evento aleatorio e o resultado da
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 149
jogada. Como a probabilidade e a mesma para qualquer resultado, a funcao de
distribuicao de probabilidades neste caso sera constante. No caso da caixa com
as bolas, o evento aleatorio e retirar-se uma bola de determinada cor. Neste caso
a funcao de distribuicao de probabilidades nao sera constante pois as cores tem
probabilidades distintas de serem retiradas.
Em muitas situacoes em fısica experimental os valores das quantidades medidas
devem ser considerados como variaveis aleatorias, pois quando se faz uma medida
o resultado pode estar sujeito a alteracoes causadas por fatores sobre os quais nao
temos controle. Por exemplo, pessoas diferentes usando multımetros diferentes po-
dem encontrar valores diferentes para a mesma resistencia de um resistor. Con-
sidere, como ilustracao, que 5 medidas da resistencia eletrica de um dado resistor
resultem em 100,4 Ω, 99,8 Ω, 100,1 Ω, 100,3 Ω, 99,8 Ω. Qual o valor “correto” da
resistencia? Neste caso, o melhor que podemos fazer e expressar o valor medio como
sendo o mais provavel: (100, 4 + 100, 1 + 100, 3 + 2× 99, 8)/5 = 100, 08Ω.A funcao de onda de uma partıcula microscopica, ou mais precisamente o seu
modulo quadrado, e uma funcao de distribuicao de probabilidades. |ψ(x)|2 repre-senta a distribuicao de probabilidades para a posicao da partıcula, que neste caso
e a variavel aleatoria. A diferenca e que aqui trata-se de uma variavel aleatoria
contınua. Se representarmos um intervalo infinitesimal ao longo do eixo x por dx,
a probabilidade de a partıcula ser encontrada dentro desse intervalo sera igual a
|ψ(x)|2dx
Neste caso, a soma sobre todas as probabilidades tambem e uma soma contınua, ou
seja, uma integral (veja Painel IV):
∫ ∞
−∞|ψ(x)|2dx = 1
Outras variaveis em mecanica quantica, contudo, podem ser discretas. Neste caso a
soma sobre todas as probabilidades e analoga aos casos do dado e das bolas coloridas.
A partir do conhecimento da funcao de onda, podemos calcular os valores medios
das variaveis dinamicas do problema, como posicao, momento, energia, etc.
150
Suponha, por exemplo, que um eletron se desloque livremente no
espaco. Para simplificar vamos considerar o problema unidimensional
sobre o eixo x. Como vimos no capıtulo um, classicamente as posicoes
do eletron seriam determinadas por x = x0 + vt, onde v e a velocidade
do eletron, e x0 sua posicao inicial. Se x0 = 0, e v = 10 m/s, saberıamos
com certeza que no instante t = 1 s, por exemplo, a posicao do eletron
seria x = 10 m. Quanticamente nada disso vale. A informacao sobre a
posicao do eletron seria dada em termos de probabilidades. O melhor
que poderıamos fazer seria, por exemplo, dizer que a probabilidade de
o eletron ser encontrado entre x = 9 e x = 11 metros e de 1/8 (este
numero nada tem de realıstico; ele foi escolhido ao acaso para este
exemplo). E assim por diante. Probabilidades e valores medios sao
os tipos de informacoes obtidas a partir do conhecimento da funcao de
onda do eletron. Na medida em que a funcao de onda depende da forma
funcional do potencial em que o eletron se move, as probabilidades
tambem dependerao.
Vamos considerar uma outra situacao simples, desta vez nao en-
volvendo posicoes, mas sim energias. Suponha que as energias de
uma partıcula sejam quantizadas, isto e, so possam adquirir certos va-
lores discretos. Imagine, por simplicidade, que so existam tres valores
possıveis, que vamos chamar de E1, E2 e E3. A mecanica quantica nos
diz que ao realizarmos uma medida da energia da partıcula, necessaria-
mente encontraremos um desses tres valores, e nenhum outro, cada um
deles com uma certa probabilidade. Valores que podem ser encontra-
dos na medida de alguma grandeza fısica, sao chamados em mecanica
quantica de autovalores. No caso especıfico em que a grandeza em
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 151
questao e a energia da partıcula, os autovalores sao chamados de au-
toenergias. A cada autoenergia esta associada uma autofuncao que
neste caso vamos representar por φ1, φ2 e φ3, correspondendo a E1,
E2 e E3, respectivamente. A autofuncao e a funcao matematica que
descreve o estado da partıcula, isto e, sua posicao, momento, energia,
etc., no instante da medida. Podemos pensar em uma autofuncao como
uma forma particular adquirida pela funcao de onda ψ no momento em
que a medida e realizada. De forma analoga, podemos pensar em uma
autoenergia como um valor particular de energia adquirido no instante
da medicao.
Suponha que facamos uma medida da energia do sistema e encon-
tremos, por exemplo, o valor E2. Isso quer dizer que logo apos a me-
dida, o sistema5 estava no estado descrito pela autofuncao φ2. E antes
de fazermos a medida, que energia tinha o sistema? Resposta: antes
da medida ele nao se encontrava em nenhum autoestado particular, ou
seja, nao possuia uma energia definida. Dizemos que ele se encontrava
em uma superposicao de autoestados. Tal superposicao e representada
matematicamente pela combinacao das funcoes φ1, φ2 e φ3:
ψ = a1φ1 + a2φ2 + a3φ3
Os coeficientes a1, a2 e a3 sao chamados de amplitudes de probabilidade.
Estes numeros sao quantidades complexas, e seu modulo quadrado
fornece a probabilidade do estado correspondente ser encontrado em
uma medida de energia. Por exemplo, |a1|2 = a1a∗1 e a probabilidade
5Usamos a palavra ‘sistema’ para denominar genericamente o nosso objeto deestudo: uma partıcula, um conjunto de partıculas, um atomo, etc.
152
do valor de energia E1 ser encontrado em uma medida de energia. Obvi-
amente sendo |a1|2, |a2|2 e |a3|2 probabilidades, e como so existem tres
valores possıveis de energia neste exemplo, a condicao seguinte deve
necessariamente ser satisfeita:
|a1|2 + |a2|2 + |a3|2 = 1
Esse ponto e tao importante, e ao mesmo tempo tao difıcil de enten-
der! O Premio Nobel americano Richard Feymann costumava dizer que
quem afirmasse haver entendido a mecanica quantica estaria mentindo!
Niels Bohr por sua vez gostava de dizer que se voce nao se espantar
com a mecanica quantica, e porque nao a compreendeu!
Vamos comparar o exemplo acima com uma situacao de probabili-
dades do nosso dia-a-dia: um jogo de cara-ou-coroa. Ao jogarmos uma
moeda para o alto, sabemos que so existem dois resultados possıveis:
cara ou coroa. Nao sabemos qual dos dois vai ocorrer, mas podemos as-
sociar 50% de chance para cada um deles. Este tipo de indeterminismo
e completamente diferente daquele que estamos falando em mecanica
quantica! De acordo com a mecanica classica, se soubessemos detalhes
como a massa da moeda, a forca aplicada, a inclinacao da mao na hora
de jogar, etc., poderıamos calcular exatamente o resultado da jogada.
Ou seja, a probabilidade neste exemplo da moeda e simplesmente uma
maneira de quantificarmos a nossa ignorancia a respeito das condicoes
exatas no inıcio do movimento da moeda! Na mecanica quantica o in-
determinismo, de acordo com a interpretacao de Born, e intrınseco ao
problema. Ou seja, em um nıvel microscopico, a Natureza e simples-
mente aleatoria! Nao ha como, antes da medida, sabermos o resultado
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 153
que vira, mesmo conhecendo todos os detalhes do problema. Temos
que conviver com uma especie de “ignorancia incuravel”!
Voltando a funcao ψ acima. Antes da medida o sistema estava no
estado geral representado por ψ. Logo apos a medida ser realizada, a
funcao de onda sera um dos autoestados possıveis φ1, φ2 ou φ3. Nos
referimos a esse processo como o colapso da funcao de onda; o sistema
colapsa do estado ψ para um dos autoestados φi. Nao podemos dizer
exatamente para qual autoestado ocorrera o colapso, mas se fizermos
um grande numero de medidas da energia, podemos calcular o seu valor
medio ( isto e o melhor que pode ser feito!). Como a probabilidade de
encontrar E1 e igual a |a1|2, analogamente para E2 e E3, o valor medio
da energia, representado por < E >, pode ser calculado de:
< E >= E1|a1|2 + E2|a2|2 + E3|a3|2
Em mecanica quantica, valores medios sao tambem chamados de valores
esperados. Por exemplo, suponha que E1 = 0, 5 eV, E2 = 3, 0 eV e E3 =
7, 2 eV. Suponha tambem que os tres autoestados sejam igualmente
provaveis, isto e: |a1|2 = |a2|2 = |a3|2 = 1/3. Se realizassemos um
grande numero de medidas da energia e depois calculassemos a media,
encontrarıamos:
< E >= 0, 5 × 1
3+ 3, 0 × 1
3+ 7, 2 × 1
3= 3, 57 eV
Se os autoestados nao fossem igualmente provaveis, mas distribuıdos
como |a1|2 = 1/2, |a2|2 = 1/5, e |a3|2 = 3/10 o valor esperado da
energia se tornaria:
< E >= 0, 5 × 1
2+ 3, 0 × 1
5+ 7, 2 × 3
10= 3, 01 eV
154
Retornando agora ao caso da partıcula livre; a funcao de onda mais
simples possıvel e aquela que descreve o movimento de uma partıcula
livre, ou seja, uma partıcula que se move sem a acao de um poten-
cial (classicamente esta situacao corresponde ao movimento retilıneo e
uniforme, o famigerado MRU). A funcao de onda neste caso e o que
chamamos de uma onda plana, representada por:
ψ(x) = eikx = cos(kx) + isen(kx)
onde k e o vetor de onda (estamos aqui interessados somente na parte
espacial, e o problema esta sendo considerado em apenas 1 dimensao).
O vetor de onda esta relacionado ao momento da partıcula. De fato,
recordando que k = 2π/λ, teremos da relacao de de Broglie:
p =h
λ=
h
2π
2π
λ= hk
onde, por convencao chama-se h = h/2π = 1, 05 × 10−34 Js (le-se ‘h
cortado’). A energia cinetica da partıcula sera:
T =p2
2m=h2k2
2m
Na verdade existe um probleminha com a funcao de onda acima.
A densidade de probabilidades relacionada a esta funcao e, de acordo
com Max Born:
ψ(x)∗ψ(x) = |ψ(x)|2 = e−ikxeikx = 1
ou seja, a densidade de probabilidades e constante e igual a 1. Isso
quer dizer que a partıcula (aquela coisa que no primeiro capıtulo era
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 155
imaginada ser uma bolinha localizada no espaco) tem igual probabili-
dade (de valor maximo) de ser encontrada em qualquer lugar, ou seja,
esta uniformemente espalhada por todo o espaco! Se por outro lado
tivessemos certeza que a partıcula estivesse confinada dentro de uma
caixa com volume V , a sua funcao de onda seria
ψ(r) =1√Veik·r
e neste caso a densidade de probabilidades seria
ψ(r)∗ψ(r) =1
V
Quanto maior for o volume da caixa, menor sera a probabilidade de en-
contrarmos a partıcula em uma dada posicao. Por exemplo, a probabil-
idade de encontrarmos a partıcula em um pequeno volume ∆V dentro
de V sera:
ψ(r)∗ψ(r) × ∆V =∆V
V
Se, por exemplo, o volume da caixa for V = 1 m3, a probabilidade
de encontrarmos a partıcula em um volume ∆V = 0, 01 m3 sera igual
a 0,01, ou 1%. Se ∆V for igual ao proprio volume V , a probabilidade
de encontrarmos a partıcula sera ∆V/V = V/V = 1, o que meramente
expressa o que ja sabıamos: o fato de termos certeza de que a partıcula
esta dentro da caixa.
E certo que para uma partıcula livre nao podemos dizer com certeza
a sua posicao, mas daı a estar espalhada por todo o espaco ja e um pouco
demais! A maneira formal de contornar o problema e representarmos
156
uma partıcula nesta situacao como uma superposicao de ondas planas,
que nada mais e do que uma soma do tipo:
ψ(x) = eik1x + eik2x + eik3x + · · · + eikNx
Este exemplo e particularmente ilustrativo, porque com ele pode-
mos comecar a desenvolver uma intuicao de como ondas representam
partıculas em mecanica quantica. A superposicao acima representa
uma soma de ondas planas com comprimentos de onda diferentes. Recorde-
mos do capıtulo 1 que a superposicao de varias ondas com comprimen-
tos de onda ligeiramente diferentes, resulta em interferencia destrutiva
em alguns pontos e construtiva em outros. As ondas se reforcam em
uma determinada regiao do espaco e tendem se anular em outras. A
partıcula tera maior chance de ser encontrada na regiao onde ocorrer
interferencia construtiva. Chamamos esta soma de pacote de onda. A
regiao do espaco onde existe interferencia construtiva, e representada
por ∆x, e e chamada dispersao do pacote. A dispersao do pacote clara-
mente diminui se aumentarmos o numero de termos na soma que o
representa. Se o intervalo de valores de k que compoem o pacote for
∆k, vimos no capıtulo 1 que, para ondas usuais, existe uma relacao do
tipo ∆x∆k ≈ 1. No caso das ondas de materia, foi Heisenberg quem
deduziu a relacao equivalente. Substituindo ∆k = ∆p/h obtemos
∆x∆p ≈ h
Este e o famoso princıpio de incerteza de Heisenberg. Ele nos ensina o
seguinte: se quisermos uma partıcula bem localizada no espaco teremos
que aumentar o numero de componentes k no pacote de ondas que
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 157
representa a partıcula. Isso aumenta a dispersao no momento ∆p (que
neste caso e chamado de “incerteza no momento”) da partıcula. Ao
contrario, se quisermos uma partıcula com momento bem definido, ou
seja, com ∆p pequeno, teremos que aumentar a incerteza na sua posicao
∆x. Note novamente o contraste com a mecanica classica, onde p e x sao
independentes, e podem ser conhecidos simultaneamente com absoluta
precisao. No caso quantico, se aumentarmos a certeza na posicao da
partıcula, perdemos informacao a respeito de seu momento, e vice-
versa. Em mecanica quantica a posicao e o momento de uma partıcula
estao vinculados atraves do princıpio de incerteza, e nao podem ser
conhecidos simultaneamente com precisao arbitraria.
Ufa! Conseguimos correlacionar as propriedades de partıcula com as
ondas de materia gracas a Max Born. Mas ficou faltando explicar o caso
eletromagnetico, ou seja, como conciliar as propriedades ondulatorias
do campo eletromagnetico com as do foton. Isso e feito fazendo o cam-
inho inverso: interpretamos agora os campos E e B como estando rela-
cionados a distribuicoes de probabilidades associadas ao foton. Assim,
a distribuicao de intensidades de uma onda eletromagnetica difratada
sobre um anteparo, representa a distribuicao de probabilidades de en-
contrarmos fotons sobre o anteparo! E como se o foton tivesse a sua
propria funcao de onda particular, a onda eletromagnetica.
158
PAINEL IX
A EQUACAO DE SCHRODINGER
Quando resolvemos uma equacao do tipo x2 − 1 = 0, encontramos os valores
da variavel x que satisfazem a igualdade (neste caso, x = ±1). Esta e um exemplo
de equacao algebrica. Em determinadas situacoes a nossa “incognita” nao e uma
variavel como x acima, mas uma funcao de x. Equacoes que relacionam funcoes e
suas derivadas, cujas solucoes sao funcoes, sao chamadas de equacoes diferenciais.
Uma equacao diferencial relaciona uma funcao com suas derivadas (veja Painel
III). A equacao de Schrodinger independente do tempo e uma equacao diferencial
ordinaria de segunda ordem6, cuja solucao e a funcao de onda ψ(x). Para uma
partıcula que se move em 1 dimensao sob a acao de um potencial V (x) a equacao
de Schrodinger e:
− h2
2md2ψ(x)dx2
+ V (x)ψ(x) = Eψ(x)
onde d2ψ/dx2 e a derivada segunda de ψ em relacao a x, e E a energia total da
partıcula. A solucao ψ(x) e determinada pela forma do potencial V (x) que depen-
dera do caso tratado. Para uma partıcula livre, V = 0, para um oscilador harmonico
V = kx2/2, etc. Existem tecnicas matematicas para resolucao de equacoes diferen-
ciais que, em geral, sao vistas em cursos de calculo avancado.
6Ou seja, que envolve a funcao ψ e sua derivada segunda.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 159
3.5 A Dubia Vida de um Pobre Gato
Vimos acima que em mecanica quantica quando realizamos uma medida
nao podemos saber com certeza qual sera o resultado. Temos apenas
uma distribuicao de probabilidades relacionada aos possıveis resulta-
dos. Quando aplicada a sistemas macroscopicos a mecanica quantica
leva a situacoes curiosas e muito difıceis de serem conciliadas com o
nosso senso comum de objetividade. Para exemplificar uma dessas
situacoes Schrodinger propos um daqueles experimentos pensados, que
ficou famoso com o nome de o gato de Schrodinger. Ele imaginou a
seguinte situacao: um gato, um frasco contendo um veneno mortıfero,
um suporte ao qual o frasco esta preso e que pode deixa-lo cair sob um
sinal, e um nucleo radioativo. Tudo isso dentro de uma caixa fechada.
Como veremos com mais detalhes no capıtulo sete, a radioatividade
ocorre em certos nucleos atomicos instaveis, que para livrarem-se do
excesso de energia deixam escapar partıculas (fotons, eletrons, etc.). A
este processo da-se o nome de decaimento nuclear. O decaimento nu-
clear e regido pelas leis da mecanica quantica, e portanto e um fenomeno
probabilıstico. Um nucleo radioativo como o da caixa no experimento
de Schrodinger tem uma probabilidade de decair a qualquer momento,
mas nao podemos dizer exatamente quando. Na situacao experimen-
tal imaginada por Schrodinger, o nucleo esta acoplado (de uma forma
cujos detalhes nao interessam) ao aparato que sustenta o frasco com
veneno. Se o nucleo decair, o mecanismo que sustenta o frasco com
veneno se abre, deixando o frasco cair e quebrar. O veneno escapa e o
gato “estica as canelas”. Se o nucleo nao decair, obviamente nada disso
160
acontece e o bichano continua vivo. Portanto, o gato serve como uma
especie de aparelho para detectarmos se o nucleo decaiu ou nao. De
acordo com a mecanica quantica, ate que uma medida seja feita (por
exemplo alguem abra a caixa e verifique se o gato morreu) a funcao
de onda do nucleo representara uma mistura de estados, ou seja, uma
combinacao do estado em que o nucleo decaiu e do estado em que ele
nao decaiu. E o gato, como ele fica nessa situacao? Ele estara vivo com
a mesma probabilidade do nucleo nao ter decaido, e estara morto com
a probabilidade do nucleo ter decaido. Ou seja, antes de alguem abrir
a caixa e olhar pra dentro dela, o gato nao estara vivo, mas tambem
nao estara morto! Quando alguem abre a caixa, automaticamente a
funcao de onda do nucleo “colapsa” para um dos dois estados (decaıdo
ou nao-decaıdo), e a “funcao de onda do gato” tambem (ψgato−morto ou
ψgato−vivo). A situacao se torna mais dramatica se imaginarmos uma
pessoa no lugar do gato. Quando a caixa estiver fechada qual sera a
sensacao do pobre diabo nesse estado morto-vivo?!
O leitor nao precisa ficar apavorado com o que leu acima. E claro
que no “nosso mundo” de assaltos, engarrafamentos, filas, INSS, fute-
bol, contas para pagar, etc., estes fenomenos nao sao observados. De
fato, superposicoes de estados quanticos so ocorrem em sistemas mi-
croscopicos isolados, isto e, que nao interagem com as vizinhancas.
Em sistemas macroscopicos (como e o caso de um gato) a inevitavel
interacao de objetos uns com os outros destroi a superposicao, ou
coerencia dos estados quanticos. Em sistemas microscopicos, contudo,
ela existe e pode ser observada. Mais recentemente, precisamente como
descrito no volume 403, pagina 269 da conceituadıssima Nature de
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 161
janeiro de 2000, C.J. Myatt e colaboradores observaram o fenomeno
da superposicao de estados quanticos e sua decoerencia em sistemas
mesoscopicos, ou seja, com grande numero de partıculas. Estes sistemas
sao maiores do que microscopicos, porem menores do que macroscopicos.
Pode ser que algum dia alguem invente uma maneira de produzir es-
tados coerentes em objetos macroscopicos. Neste dia o mundo sera
realmente enlouquecido!
3.6 Spin
O spin e uma das quantidades mais intrigantes da fısica. Para entender-
mos melhor o que e o spin de uma partıcula e preciso que voltemos um
pouco a fısica classica. Mencionamos no capıtulo 1 que cargas eletricas
quando em movimento interagem com campos magneticos. A expressao
matematica desta interacao e a forca de Lorentz. Uma situacao parti-
cularmente interessante surge quando o movimento da carga e circular.
Imagine uma carga q movendo-se em uma circunferencia de raio R com
velocidade v. A corrente eletrica I associada ao movimento da carga e
dada pela razao entre q e o perıodo do movimento, que chamaremos τ :
I =q
τ=ωq
2π
onde ω = 2π/τ e a frequencia angular da partıcula. Uma carga que
se move dessa maneira da origem a uma grandeza vetorial chamada de
momento de dipolo magnetico, representado por m. O dipolo magnetico
e simplesmente o produto da corrente I pela area, A, subtendida pelo
cırculo, ou seja πR2. Sua direcao e normal ao plano do cırculo:
162
m = IAn = IπR2n
onde n e o vetor unitario normal ao plano do cırculo. E conveniente
definir o vetor A = An, cujo modulo e igual a area do cırculo, e cuja
direcao e n. Com isso teremos:
m = IA
Um fato importante a ser notado e a proporcionalidade entre o mo-
mento magnetico e o momento angular7. Definimos o momento angular
de uma partıcula no capıtulo 1 como o produto vetorial entre a posicao8
R e o momento p:
L = R × p = mqR × v
onde usamos mq para a massa da partıcula a fim de que esta nao
seja confundida com o momento magnetico. Mencionamos no capıtulo
um que o momento angular esta associado a problemas envolvendo
movimento de rotacao. Pois este e precisamente o caso que estamos
tratando. O modulo de L no presente exemplo e dado por:
L = Rp senα = mqRv senα
onde α e o angulo entre as direcoes de R e p. Mas, como o movimento
e circular, p (e consequentemente v) e sempre tangencial a trajetoria,
de modo que α = π/2. Logo:
7Lembre que o momento angular e uma grandeza mecanica. O momentomagnetico, por sua vez, e uma grandeza eletromagnetica.
8Obviamente neste caso o vetor R e medido a partir do centro do cırculo.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 163
L = mqRv
Mas, o modulo da velocidade, v, sera igual a razao entre o comprimento
da circunferencia, 2πR e o perıodo de rotacao, τ : v = 2πR/τ = ωR.
Entao:
L = 2mqπR2
τ= mqωR
2
Multiplicando numerador e denominador da fracao acima pela carga q,
e usando a definicao de momento magnetico, obtemos:
L = 2mqπR2
τ× q
q= 2
mq
qAI ⇒ L =
2mq
qm
onde I = q/τ . Consequentemente, chamando de g a razao q/2mq,
obtemos a relacao entre o momento angular e o momento magnetico:
m = gL⇒ m = gL
O motivo para definirmos o dipolo magnetico esta no fato de que
na presenca de um campo magnetico B, a energia de interacao entre a
carga em movimento e B assume uma forma particularmente simples:
ela e dada pelo produto escalar entre m e B:
E = −m · B = −mBcosθ
O sinal negativo na frente da expressao e convencional. Nesta ex-
pressao, θ e o angulo formado por m e B. Vemos entao que se m estiver
alinhado paralelamente a B, teremos θ = 0 e a energia sera mınima e
164
igual a E = −mB. Se o dipolo estiver alinhado antiparalelamente a B,
o angulo sera θ = π, e a energia sera maxima E = +mB. Como entre
os valores extremos 0 e π, θ pode ter variar continuamente, havera um
intervalo de energias possıveis, igual a 2mB, dentro do qual E pode
ter qualquer valor. Por exemplo, se o angulo for θ = π/4, teremos
E = −√2mB/2; se for θ = π/2, E = 0, etc.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 165
.
O momento magnetico aparece do movimento de cargas que possuem momentoangular.
Submetido a um campo magnetico, um momento magnetico classico exibe um es-pectro contınuo de valores de energia limitado superior e inferiormente.
166
Em 1922 Stern e Gerlach estavam interessados em medir o momento
magnetico de atomos neutros. A estrutura do atomo sera descrita
com detalhes no proximo capıtulo, mas podemos adotar a ideia sim-
ples de que um atomo possui uma parte central, chamada de nucleo,
onde se concentra a carga positiva, e eletrons circundantes que car-
regam a carga negativa. Em um atomo neutro a carga negativa e a
positiva se compensam. Os eletrons girando em torno de um nucleo
podem ser considerados circuitos de corrente. Nesta situacao havera
momento angular e portanto momento magnetico atomico. Esta era
a grandeza que Stern e Gerlach queriam medir. Para isso eles fiz-
eram passar um feixe de atomos neutros (eles usaram originalmente
atomos de prata) por uma regiao onde existia um campo magnetico es-
pacialmente inomogeneo (ou seja, seu valor diferindo em cada ponto do
espaco). De fato, na configuracao de seu experimento, Stern e Gerlach
utilizaram um campo com variacao espacial ao longo de apenas uma
unica direcao, que podemos adotar como sendo a direcao z. Represen-
temos entao o valor do campo em um ponto ao longo dessa direcao por
B(z). De acordo com o que foi dito acima sobre a energia de interacao
de um momento magnetico com um campo magnetico, vemos que nesse
caso a energia sera tambem funcao da posicao: E(z) = −mB(z)cosθ.
Quando isso ocorre, surge uma forca magnetica sobre o dipolo.
Alem de depender da posicao do atomo no campo magnetico, a forca
magnetica sobre o momento sera tambem proporcional ao cosseno do
angulo θ entre ele o campo. Entao, angulos diferentes darao origem
a forcas diferentes, que por sua vez causarao deflexoes diferentes nos
atomos atravessando a regiao do campo. Stern e Gerlach concluiram,
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 167
que sendo possıvel qualquer valor de θ entre 0 e π, a forca magnetica
deveria ocasionar uma distribuicao contınua de atomos apos eles pas-
sarem pela regiao do campo. Em uma distribuicao contınua os atomos
deveriam ser encontrados com igual probabilidade em qualquer posicao
apos atravessarem o campo. Contudo, eles encontraram um resultado
surpreendente: os atomos, que no experimento eram coletados em uma
especie de anteparo, so alcancavam duas posicoes possıveis; era como
se o angulo θ so pudesse ter um dos dois valores extremos, 0 ou π, e
nenhum outro!
Mais tarde, em 1927, Phipps e Taylor repetiram o experimento
de Stern-Gerlach, desta vez usando atomos de hidrogenio ao inves de
atomos de prata. A razao para isso e que sob determinadas condicoes,
atomos de hidrogenio podem ser produzidos de modo que seu unico
eletron nao possua momento angular, ou seja, o atomo tera L = 0,
e consequentemente deveria ter momento magnetico m = 0. Como
os atomos tambem nao continham carga eletrica, era esperado que,
nesta situacao, os atomos passassem pelo campo sem sentir a sua pre-
senca. Resultado do experimento: mesmo que o anterior! Os atomos
condensavam-se somente em duas posicoes sobre o anteparo. A unica
maneira de explicar o resultado foi imaginar que os atomos possuiam
uma especie de momento magnetico intrınseco, Ms, que nao estivesse
ligado ao movimento orbital dos eletrons. Era este momento que es-
tava interagindo com o campo e provocando a deflexao dos atomos. Por
analogia, deveria entao haver tambem um momento angular intrınseco,
o qual foi batizado de spin, e representado pelo vetor S. Da mesma
forma que ocorre entre o momento angular orbital e o momento magnetico,
168
Ms e S sao proporcionais um ao outro:
Ms = gsS
onde gs e um fator de proporcionalidade, analogo ao fator g de propor-
cionalidade entre L e m.
Muitos autores fazem a analogia entre o spin e o movimento da
partıcula em torno de seu proprio eixo (alias, esta e a razao do nome
spin, que e a palavra inglesa para “girar”). De fato, uma partıcula
carregada que gira em torno de seu proprio eixo gera um momento
magnetico. Acontece que certas partıculas sem carga, como o neutron,
tambem possuem spin! A existencia do spin nao e prevista pela teoria
de Schrodinger da mecanica quantica. Foi P.M. Dirac quem em 1929
mostrou que a origem do spin e relativıstica! Dirac foi quem fundou a
Mecanica Quantica Relativıstica.
O spin deve ser visto como uma propriedade intrınseca da partıcula,
como sua massa e sua carga. Trata-se de uma grandeza que nao possui
analogo classico.
O que se mede em um experimento do tipo Stern-Gerlach e a com-
ponente do spin ao longo da direcao do campo magnetico. Esta com-
ponente e, em geral, representada por Sz (e convencional considerar z
como a direcao do campo magnetico). A unidade de spin e a mesma
que a de h, ou seja, o joule × segundo, que por sua vez e a unidade de
momento angular. Sz pode adquirir valores entre −Sh e +Sh, sendo
que a variacao de um extremo ao outro se da em unidades inteiras de
h. Em outras palavras, a constante de Planck e o quantum de momento
angular. Esses valores possıveis sao chamados de autovalores de spin.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 169
Em geral escrevemos:
Sz = msh onde ms = −S,−S + 1,−S + 2, · · · , S − 2, S − 1, S
Por exemplo, se uma partıcula possui S = 3h/2, entao, ms = −3/2,−1/2,+1/2,
+ 3/2. Se S = 2h, ms = −2,−1, 0,+1,+2. E comum, por questao de
“economia” de notacao, omitirmos o ‘h’ ao descrevermos os valores de
spin. Assim, ao inves de escrevermos S = 3h/2, escrevemos apenas
S = 3/2, ficando o ‘h’ implıcito. Daqui por diante, adotaremos esta
notacao. O ‘h’ pode ser restaurado sempre que necessario.
Atomos de hidrogenio, como os utilizados no experimento de Phipps
e Taylor, possuem apenas 1 eletron o qual por sua vez possue S = 1/2,
e portanto com autovalores de spin possıveis ms = −1/2,+1/2. As-
sociadas a esses autovalores, existem autofuncoes de spin. No caso
do eletron, por exemplo, existem duas autofuncoes, uma associada ao
autovalor −1/2, e a outra ao autovalor +1/2. A energia magnetica
associada ao spin do eletron, dada pelo produto escalar entre B e Ms,
sera entao quantizada em apenas dois nıveis (e nao distribuıda contin-
uamente como no caso classico):
E+1/2 = −1
2gsB; E−1/2 = +
1
2gsB
o que quer dizer que o spin de um unico eletron na presenca de um
campo magnetico so pode apontar paralela ou antiparalelamente ao
campo. Para um atomo com varios eletrons, os spins individuais se
somarao e o atomo podera adquirir valores de spin diferentes de 1/2,
como, por exemplo, S = 3/2. Neste caso, na presenca de um campo
magnetico, havera 4 nıveis de energia, e quatro direcoes possıveis para
170
S. E assim por diante; para um dado valor S qualquer, havera 2S + 1
nıveis de energia e um igual numero de direcoes possıveis de S em
relacao a direcao do campo.
Resumindo, S e uma especie de “momento angular interno” de uma
partıcula, e L e seu momento angular “externo”. Podemos fazer uma
partıcula com L = 0 passar para um estado em que L = 0. Mas nao
podemos fazer S = 0, se a partıcula tiver um spin nao nulo.
Para completar a analogia entre o spin e o momento angular orbital,
descobriu-se que os valores possıveis para L tambem sao quantizados em
unidades de h. Denotamos esses valores por l, e por ml as suas projecoes
sobre uma direcao do espaco, tomada como eixo de quantizacao (em
geral, a mesma de S). Por exemplo, tomando como z esta direcao,
teremos Lz = mlh. No entanto, ha uma diferenca importante: enquanto
S pode tanto ser inteiro quanto semi-inteiro, l so pode adquirir valores
inteiros: l = 0, 1, 2, · · ·. Para um dado valor de l, ml varia de −l ate
+l. Assim, se l = 2 podemos ter ml = −2,−1, 0, 1, 2. No proximo
capıtulo falaremos mais sobre spins e momentos angulares de atomos
com muitos eletrons, e como calcular essas quantidades.
3.7 O Princıpio de Exclusao de Pauli
Alguns dias depois, ao chegar no “hall” onde Sommer-
feld dava suas palestras, notei a presenca de um estudante
com cabelos negros e de expressao ligeiramente fechada sen-
tado na terceira fila. Sommerfeld tinha nos apresentado um
ao outro durante a minha primeira visita e tinha dito que
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 171
ele considerava aquele garoto um dos estudantes mais ta-
lentosos do grupo, alguem com quem eu poderia aprender
muita coisa. Seu nome era Wolfgang Pauli, e para o resto de
nossas vidas serıamos grandes amigos, embora muitas vezes
ele viesse a se tornar um crıtico demasiadamente severo.
(Physics and Beyond. Encounters and Conversa-
tions, Werner Heisenberg, Harper 1972)
O princıpio de exclusao de Pauli e um dos aspectos mais curiosos
da mecanica quantica. Ele se aplica a sistemas onde existe mais de
um eletron, ou de uma maneira geral, mais de um fermion. A palavra
fermion e uma denominacao para partıculas que possuem spin semi-
inteiro: S = 1/2, 3/2, 5/2, .... O eletron possui spin S = 1/2, e por-
tanto e um fermion. Existem outras partıculas que possuem spin in-
teiro, como por exemplo o foton, ou o nucleo do atomo de helio. Essas
partıculas sao chamadas de bosons. Esses nomes esquisitos nao tem
nada de especial; sao apenas homenagens a fısicos importantes. No
caso dos fermions, a homenagem e a Enrico Fermi, um fısico italiano.
No caso dos bosons e a Satyendranath Bose, um fısico indiano, a quem
a homenagem e prestada. Bosons e fermions possuem comportamentos
quanticos muito distintos, com importantes consequencias para as pro-
priedades de objetos macroscopicos, como sera visto nos capıtulos 5 e
6.
O princıpio de Pauli aparecera novamente no proximo capıtulo quan-
do estudarmos a estrutura do atomo. Trata-se de uma especie de versao
sofisticada da ideia de que dois corpos nao podem ocupar o mesmo lugar
no espaco ao mesmo tempo. Vimos que a informacao sobre o movimento
172
de uma partıcula esta contida na funcao de onda ψ(x). Por outro lado,
vimos acima que partıculas, alem de carga e massa possuem tambem
spin. Uma partıcula como o eletron possui spin S = 1/2, com autoesta-
dos possıveis de spin +1/2 e −1/2. Vamos representar esses autoestados
de spin por autofuncoes φ+ e φ−. Ou seja, se em uma medida do spin
de um eletron encontramos o valor +1/2, isso quer dizer que logo apos
a medida ser realizada a funcao de onda de spin do eletron era φ+.
Suponha agora que tenhamos 2 eletrons. Representemos as respec-
tivas funcoes de onda espaciais por ψ(x1) e ψ(x2). Por exemplo, para
eletrons livres essas funcoes poderiam ser escritas como
ψ(x1) = eik1x1 e ψ(x2) = eik2x2
Nao ha misterio nisso: as funcoes acima nos dizem simplesmente que
o eletron cuja coordenada espacial e representada por x1 encontra-se
em um estado quantico espacial9 representado por k1, cuja energia e
igual a E = h2k21/2m, o analogo para o eletron 2. De uma maneira
geral, vamos representar os estados quanticos por subındices a e b. Por
exemplo, ψa(x1) e a funcao de onda do eletron 1 no estado a. Como
temos dois estados e dois eletrons, temos quatro possibilidades:
ψa(x1) : eletron 1 no estado a
ψb(x1) : eletron 1 no estado b
ψa(x2) : eletron 2 no estado a
ψb(x2) : eletron 2 no estado b
9A palavra ‘espacial’ entra aqui somente para distinguir do estado quantico de‘spin’.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 173
Com as funcoes de spin teremos uma situacao analoga: φ+(1) ou
φ−(1) para o eletron 1 e φ+(2) ou φ−(2) para o eletron 2. Entao, se por
exemplo, o eletron 1 possuir funcao de onda orbital ψa, e funcao de onda
de spin φ+, isso quer dizer que ele se encontra em um estado quantico
caracterizado por a, e possui spin igual a +1/2. Agora o enunciado do
princıpio de exclusao esta muito proximo; so temos ainda que relembrar
o que sao funcoes simetricas e antissimetricas.
Uma funcao de duas variaveis e dita simetrica se ela nao trocar
de sinal sob um intercambio das variaveis. Caso contrario ela sera
antissimetrica. Por exemplo, a funcao
f(x, y) = x2 + y2
e simetrica, pois se trocarmos x por y e y por x ela continua identica
ao que era antes. Ja a funcao
g(x, y) = x2 − y2
e antissimetrica. De fato, trocando x e y um pelo outro obtemos:
g(y, x) = y2 − x2 = −(x2 − y2) = −g(x, y)
ou seja, a funcao trocou de sinal. E facil ver que o produto de uma
funcao simetrica por uma antissimetrica e outra funcao antissimetrica.
Por exemplo, seja h(x, y) o produto de f por g dadas acima:
174
.
Funcoes simetricas permanecem com o mesmo valor sob uma troca de sinal navariavel. Funcoes antissimetricas trocam de sinal sob a mesma operacao.
h(x, y) = f(x, y)g(x, y)
Logo, trocando x por y, e y por x teremos
h(y, x) = f(y, x)g(y, x) = f(x, y)[−g(x, y)] = −f(x, y)g(x, y) = −h(x, y)
Nos referimos a esta propriedade de troca ou nao de sinal de uma
funcao sob a troca de suas variaveis, como sua paridade. E importante
notar que nem toda funcao matematica possui paridade definida (ou
seja, e simetrica ou antissimetrica). Por exemplo, a funcao
u(x, y) = x2 − y2 + 3
nao e simetrica nem antissimetrica, pois trocando x por y e y por x o
resultado nao e simplesmente uma troca de sinal da funcao.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 175
Agora (finalmente!) o princıpio de exclusao: funcoes de onda totais
de eletrons (ou fermions de uma maneira geral) sao antissimetricas.
O leitor deve estar pensando: “so isso? Tanto bla, bla, bla, tanta
embromacao so pra dizer isso?” Pois me aguardem! Quem sobreviver
vera!
O enunciado do princıpio de exclusao de Pauli se refere a funcoes
de onda totais de um conjunto de fermions. Agora, a funcao de onda
total de um sistema com dois eletrons e dada pelo produto da funcao
de spin pela funcao espacial. Simbolicamente:
Ψtotal = ψ × φ
onde ψ descreve a parte espacial, e φ a parte de spin. O princıpio de ex-
clusao e uma imposicao sobre a funcao total Ψtotal. Ou seja, o produto
da parte espacial pela parte de spin tem que ser uma funcao antis-
simetrica. Isto significa que se a parte espacial ψ for simetrica, a parte
de spin tem que ser antissimetrica, e vice-versa. Para atender a este
princıpio, temos que, a partir das nossas funcoes genericas ψ (espacial)
e φ (spin), construir novas funcoes (tambem genericas) simetricas e an-
tissimetricas. Para a parte espacial teremos as seguintes combinacoes
possıveis:
ψS(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x2) + ψa(x2)ψb(x1)
ψA(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x2) − ψa(x2)ψb(x1)
Note que se na primeira funcao, ψS , trocarmos x1 por x2, ela continua
com o mesmo sinal, e portanto e simetrica. Ja na segunda, ψA, se
fizermos o mesmo ela trocara de sinal, e portanto e antissimetrica.
176
Para a parte de spin procedemos da mesma forma. So que agora
teremos tres possibilidades para a funcao simetrica e apenas uma para
a antissimetrica:
φ(1)S = φ+(1)φ+(2)
φ(2)S = φ−(1)φ−(2)
φ(3)S = φ+(1)φ−(2) + φ+(2)φ−(1)
φA = φ+(1)φ−(2) − φ+(2)φ−(1)
As tres primeiras funcoes sao simetricas, e a ultima antissimetrica. Note
que nenhuma das funcoes simetricas troca de sinal se trocarmos 1 por
2. Como o produto de uma funcao simetrica por uma antissimetrica
e sempre uma funcao antissimetrica, a funcao de onda total dos dois
fermions deve, de acordo com o princıpio de exclusao, ser portanto uma
das duas opcoes abaixo:
Ψtotal = ψAφS
ou
Ψtotal = ψSφA
Agora um gostinho das esquisitices que vem por aı como consequencia
do princıpio de exclusao: suponha que a parte de spins seja simetrica,
e consequentemente a parte espacial antissimetrica. Tente agora fazer
as partıculas se aproximarem, ou seja, faca x1 = x2. Teremos com isso:
ψA(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x1) − ψa(x1)ψb(x1) = 0
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 177
ou seja, a funcao espacial se anula (e consequentemente a distribuicao
de probabilidades correspondente)! Isso quer dizer que se a funcao
de spins for simetrica, os eletrons tendem a ficar afastados um do ou-
tro! Nao entendeu o que tem de esquisito nisso? Lembre que o spin e
uma variavel interna da partıcula, como a carga e a massa, e que em
princıpio nada deveria ter a ver com a posicao da partıcula no espaco.
E como se dissessemos que partıculas no mesmo estado de spin sim-
plesmente nao se aproximam uma da outra! Dizemos que o movimento
dos eletrons esta correlacionado com seus estados de spin. Mudando o
spin de um dos eletrons as posicoes deles mudam tambem. Isso ocorre
mesmo para eletrons livres, ou seja que nao interagem! E como se
um eletron “soubesse” que o “outro esta la”, mesmo nao havendo in-
teracao entre eles10. Note que uma outra maneira de “aproximarmos”
os eletrons um do outro e fazermos a = b, ou seja, coloca-los no mesmo
estado quantico espacial. Como veremos no proximo capıtulo, os es-
tados eletronicos em um atomo, que aqui representamos pelas letras
a e b, sao indexados por um conjunto de numeros quanticos. Entao,
uma outra maneira de enunciarmos o princıpio de exclusao e dizermos
que dois eletrons nao podem ocupar o mesmo estado quantico, ou ainda
dizer que eles nao podem ter o mesmo conjunto de numeros quanticos.
10Aqui recomendo uma certa calma aos mais afoitos! Nao vao comecar a achar quede fato um eletron “sabe que o outro ‘esta la’ ”. Eletrons nao sabem de nada. A cor-relacao entre o movimento espacial e o estado de spin e uma propriedade da funcaode onda do sistema, ou seja, uma propriedade intrınseca da funcao matematica queos descreve.
178
3.8 Einstein: “Deus nao Joga Dados”
Em 1911 um milionario quımico belga, chamado Ernest Solvay resolveu
reunir por conta propria em uma conferencia os mais importantes fısicos
da Europa da epoca. Essas reunioes ficaram conhecidas como Con-
ferencias Solvay e entraram para a Historia da Fısica Moderna como
um dos seus capıtulos mais fascinantes. Foram nessas conferencias onde
os dois maiores gigantes da fısica na epoca, Niels Bohr e Albert Einstein,
se enfrentaram numa espetacular batalha intelectual sobre a mecanica
quantica. A respeito daquela “epoca de ouro” Heisenberg escreveu em
1967:
A Conferencia Solvay em Bruxelas no outono de 1927
fechou um perıodo maravilhoso na historia da teoria atomica.
Planck, Einstein, Lorentz, Bohr, de Broglie, Born, e Schro-
dinger, e da nova geracao Kramers, Pauli e Dirac, reuniam-
se aqui e logo centralizavam as discussoes nos duelos entre
Einstein e Bohr. Nos nos reunıamos no hotel a mesa do
cafe da manha e Einstein comecava a descrever um expe-
rimento imaginado onde as contradicoes da teoria seriam
expostas. Seguıamos juntos do hotel para o predio da con-
ferencia e eu ouvia a entusiasmada discussao entre esses
dois homens com atitudes filosoficas tao distintas. Em geral
Bohr analisava o experimento de Einstein durante o dia, e
a discussao recomecava na mesa de jantar. Ehrenfest, que
era amigo de Bohr e Einstein, dizia: “estou envergonhado
de voce, Einstein. Voce esta se colocando na mesma posicao
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 179
dos seus oponentes, quando tentaram refutar a teoria da re-
latividade”. As discussoes se estendiam de uma conferencia
para a outra. Na conferencia de 1930, na mesa do cafe,
Einstein propos o famoso experimento em que a cor de um
quantum de luz deveria ser determinada pesando-se a fonte
antes e depois da emissao. Como o problema envolvia gravi-
dade, nos tivemos que usar a teoria da relatividade geral
para analisa-lo. Foi um triunfo para Bohr ao final do dia
mostrar para Einstein, usando sua propria teoria, que a
interpretacao de Copenhague estava correta. (Quantum
Theory and Measurement, Ed. J.A. Wheeler e W.H.
Zurek, Princeton 1983)
A interpretacao da mecanica quantica dada por Bohr (em termos
de incertezas, colapsos, valores medios, etc.) foi a que prevaleceu. Ela
ficou conhecida como interpretacao de Copenhague, uma homenagem
a Cidade Natal de Bohr. Einstein passou a vida sem aceitar essa in-
terpretacao. Sua famosa frase “Deus nao joga dados com o Universo”
era uma alusao feita ao seu desconforto para aceitar que os fenomenos
da Natureza, em um nıvel fundamental, sao governados por leis prob-
abilısticas. Sua arma mais poderosa consistia em tentar produzir ex-
perimentos imaginados que levassem a paradoxos na teoria, e portanto
revelassem sua inconsistencia. O mais famoso desses experimentos pen-
sados foi publicado em um artigo de 1935, com Boris Podolsky e Nathan
Rosen. O tıtulo do artigo: Can Quantum-Mechanical Description of
Reality be Considered Complete? (Pode-se Considerar Completa a Des-
cricao Quantica da Realidade?). Este artigo entrou para a Historia da
180
Fısica como o paradoxo de EPR (‘E’ para Einstein, ‘P’ para Podolsky
e ‘R’ para Rosen). Abaixo reproduzimos o resumo do artigo, traduzido
e adaptado para este texto:
Em uma teoria completa existe um elemento correspon-
dendo a cada elemento de realidade. Uma condicao sufi-
ciente para a realidade de uma quantidade fısica, e a pos-
sibilidade de predize-la com certeza, sem alterarmos o sis-
tema. Na mecanica quantica, no caso de quantidades fısicas
que estao relacionadas pelo princıpio de incerteza, o co-
nhecimento de uma delas impede o conhecimento da outra.
Entao, ou (1) a descricao da realidade dada pela funcao
de onda na mecanica quantica nao e completa, ou (2) es-
sas duas quantidades nao “possuem realidade” simultane-
amente. Considerando o problema de uma predicao sobre
um sistema que previamente interagiu com outro, obtemos
o resultado de que se (1) e falso, entao (2) tambem e falso.
Somos entao levados a concluir que a descricao da realidade
como dada pela funcao de onda nao e completa.
No artigo de EPR os autores analisam uma situacao em que duas
partıculas que em um dado momento estao proximas uma da outra, se
afastam. De acordo com a mecanica quantica, havera uma funcao de
onda que descrevera o comportamento das partıculas como um todo,
nao importando a distancia entre elas. Para EPR era concebıvel que
estando as partıculas proximas e interagindo uma com a outra (por
exemplo, via interacao eletrostatica), a alteracao de qualquer grandeza
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 181
em uma delas (por exemplo seu momento ou posicao) poderia alte-
rar o estado da outra. Mas o que dizer quando as partıculas estivessem
longe uma da outra, sem qualquer possibilidade de interacao entre elas?
De acordo com a teoria elas continuariam correlacionadas, ou seja, a
medida de uma variavel em uma delas, alteraria o estado da outra!
De alguma forma a informacao da medida em uma das partıculas se-
ria passada instantaneamente para a outra! Acontece que a teoria da
relatividade, como vimos, estabelece um limite superior para as veloci-
dades possıveis de serem alcancadas na Natureza, que e a velocidade
da luz. Consequentemente a propagacao instantanea de informacao em
tal experimento viola este princıpio.
A tese defendida no artigo EPR e que a mecanica quantica e uma
teoria incompleta. Isto quer dizer que para aqueles ilustres autores de-
veriam existir variaveis que determinariam o estado das partıculas de
um sistema fısico com certeza, mas essas variaveis (que ficaram con-
hecidas como variaveis ocultas) nao estariam incluıdas no formalismo
da mecanica quantica. A situacao seria analoga ao problema do dado,
onde nao podemos afirmar com certeza o resultado de uma jogada,
simplesmente porque nao temos o conhecimento de todas as variaveis
envolvidas no problema, e nao porque o problema e intrınsecamente
probabilıstico. Vejamos alguns desdobramentos do artigo EPR.
182
3.9 Correlacoes Estranhas: Afinal, Deus
Joga Dados?
O artigo de EPR foi publicado em 1935. Para Einstein a medida de
uma propriedade fısica realizada em um equipamento de laboratorio nao
poderia influenciar a medida em outro equipamento. Se, por exemplo,
um equipamento A se encontra longe o suficiente de outro equipamento
B, de tal forma que as medidas feitas em A eB ocorram em um intervalo
de tempo pequeno o suficiente para que um feixe luminoso nao cubra
a distancia entre eles, nao podera haver, de acordo com o pensamento
de Einstein, nenhuma influencia de um resultado sobre o outro. Nessas
condicoes nao ha como o resultado de A ser transmitido para B a
tempo de influencia-lo antes que a medida em B tenha terminado. Em
fısica chamamos de teorias realısticas locais aquelas teorias que levam
em consideracao este princıpio. A mecanica quantica e portanto uma
teoria nao local pois permite que haja influencia instantanea a distancia.
Em 1964 vinte e nove anos depois da publicacao do artigo de EPR, e
nove apos a morte de Einstein, John S. Bell publicou um trabalho a
respeito deste problema considerado por alguns fısicos como sendo um
dos mais importantes resultados ja obtidos na Historia da Fısica.
Bell estava preocupado em estabeler um criterio que pudesse decidir
sobre a validade da interpretacao de Copenhague da mecanica quantica.
Mais especificamente, ele queria encontrar sob que condicoes a mecanica
quantica poderia ser modificada para se tornar uma teoria realıstica
local, mas, ao mesmo tempo, preservando o enorme sucesso de sua
estrutura matematica. Para isso ele considerou a situacao proposta
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 183
por EPR aplicada ao caso de dois spins. Vamos apresentar aqui uma
versao simplificada devida a David Bohm.
Suponha que, por meio de algum metodo (que nao vem ao caso),
partıculas sejam criadas com spins opostos, e viajem em direcoes opostas.
O valor do spin de qualquer uma das partıculas e medido ao longo de
uma dentre tres direcoes possıveis, as quais vamos denominar pelos ve-
tores unitarios n1, n2 e n3. Dois magnetos separados por uma certa
distancia podem ter seus campos magneticos orientados ao longo de
uma dessas tres direcoes. Vamos chamar de ‘+’ e ‘−’ os resultados
possıveis para a medida do spin em cada partıcula. Suponha que no
magneto A uma medida seja feita ao longo da direcao n1, e que no B a
medida seja ao longo de n2. Representemos a probabilidade de encon-
trarmos o resultado ‘+’ em ambos os aparelhos por P (n1+; n2+). Bell
encontrou que para uma teoria realıstica local a seguinte desigualdade
deveria ser obedecida:
P (n1+; n2+) ≤ P (n2+; n3+) + P (n1+; n3+)
Ou seja, a probabilidade de encontrarmos o resultado ++ ao longo de
n1 e n2 e menor ou igual a soma das probabilidades de encontrarmos
o mesmo resultado ao longo das outras direcoes. Esta e uma versao
simplifcada da famosa desigualdade de Bell. Repetindo, ela e deduzida
sob os criterios impostos por uma teoria local. Bell mostrou que se
a mecanica quantica fosse uma teoria local, a desigualdade acima as-
sumiria a seguinte forma:
sen2(θ122
) ≤ sen2(θ232
) + sen2(θ132
)
184
onde θ12 e o angulo entre as direcoes n1 e n2, θ13 entre n1 e n3, e θ23
entre n2 e n3. Mas como as orientacoes dos campos magneticos nos dois
aparelhos que medem os spins podem ser escolhidas arbitrariamente,
se fizermos a escolha
θ13 = θ23 =1
2θ12
usando a identidade sen2(x) = 4sen2(x/2)cos2(x/2), chegamos ao re-
sultado
cos2(θ132
) ≤ 1
2
que claramente e violado para valores dentro do intervalo11:
0 <1
2θ13 <
π
4
Em outras palavras, de acordo com Bell, a mecanica quantica viola os
princıpios impostos por uma teoria realıstica local.
11Por exemplo, se escolhermos θ13 = π, obtemos da desigualdade o resultado0, 5 < 0, 25, o que e obviamente falso.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 185
.
Determinados estados quanticos exibem correlacoes nao-locais. Estes estados saochamados de emaranhados ou estados de Bell ou ainda estados EPR. Em tais esta-dos, a medida de uma propriedade fısica em um dos componentes, afeta o compor-tamento de outros componentes.
A conclusao deste trabalho e a de que a nossa escolha sobre o
tipo de medida a fazer sobre uma das partıculas afeta, de acordo com
a mecanica quantica, o comportamento da outra partıcula em uma
posicao remota! Por exemplo, se posicionarmos o aparelho de modo
que obtenhamos o resultado ‘+’ para o spin da primeira partıcula, o
outro aparelho encontrara ‘−’ para o valor do spin ao longo da mesma
direcao. Mas se girassemos os campos magneticos dos dois aparelhos
e medıssemos ‘−’ no primeiro, o resultado da outra passaria a ser ‘+’ !
E mais, se posicionassemos os campos magneticos perpendicularmente
186
um ao outro, digamos, um ao longo de z e o outro ao longo de y,
o resultado ‘+’ em um deles levaria a uma indeterminacao no resul-
tado do outro, pois, de modo analogo ao que ocorre com a posicao e
o momento de uma partıcula, o princıpio de incerteza proibe que duas
componentes perpendiculares do spin sejam conhecidas com certeza!
Como o spin medido em um dos aparelhos pode “saber” a orientacao
do outro aparelho colocado em uma posicao remota? Bell conclui que
a informacao sobre o resultado de uma das medidas deve ser transmi-
tida instantaneamente, e portanto contrariando um dos princıpios da
relatividade. A mais contundente prova de violacao da desigualdade
de Bell foi realizada em um experimento em 1982 por um grupo de
cientistas franceses.
Experimental Realization of Einstein-Podolsky-Rosen-Bohm Gedan-
kenexperiment: a new Violation of Bell’s Inequalities, ou “Realizacao
Experimental do Experimento Pensado de Einstein-Podolsky-Rosen-
Bohm: nova Violacao das Desigualdades de Bell”. Autores: Alain
Aspect, Phillipe Grangier e Gerard Roger. Neste trabalho as partıculas
utilizadas pelos autores sao fotons com comprimentos de onda λ1 =
551, 3 e λ2 = 442, 7 nanometros (1 nanometro = 1 nm = 10−9 metros)
emitidos por uma fonte de calcio 40. A desigualdade de Bell e expressa
em uma forma mais geral, em termos de uma quantidade S, que seria
o equivalente ao angulo θ13 na expressao simplificada acima. Sob a
forma, a desigualdade de Bell e escrita como:
−2 ≤ S ≤ 2
Lembremos mais uma vez que esta relacao e a previsao feita obede-
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 187
cendo as imposicoes de uma teoria realıstica local. A previsao feita
pela mecanica quantica para o valor da quantidade S, no arranjo es-
pecıfico do experimento de Aspect e seus colaboradores era de:
SMQ = 2, 70
que portanto viola a desigualdade imposta pela teoria local. O va-
lor experimental medido foi espantosamente proximo da previsao da
mecanica quantica:
Sexp = 2, 697 ± 0, 015
Entao, o experimento de Aspect e seus colaboradores mostrou sem som-
bra de duvidas que as previsoes da mecanica quantica estao corretas, e
portanto a interpretacao de Copenhague!
3.10 Existe um Mundo la Fora?
Do que foi dito acima o leitor sabera avaliar o que Bohr quiz dizer com
a frase: quem nao se espantar com a mecanica quantica e porque nao
a compreendeu. Alguns cientistas preferem tratar a mecanica quantica
como uma mera “maquina de calcular”. Usam-na para obter resultados
praticos, fazer previsoes, etc., sem se envolver com as discussoes acerca
do seu significado filosofico. Alias, diga-se de passagem, assim como
a teoria da relatividade, nao fosse sua espetacular capacidade de pre-
ver novos fenomenos e explicar resultados experimentais, a mecanica
quantica nao teria sobrevivido ao tempo. Em fısica quem dita as regras
do jogo sao os resultados experimentais. De pouco ou nada adianta fa-
zer previsoes ou inventar teorias impossıveis de serem refutadas, que a
188
tendencia para essas e cair no esquecimento e desaparecer. E sempre a
Natureza quem decide o que fica e o que cai no esquecimento!
Einstein nao era um homem do tipo “pratico”, e acreditava que a
mecanica quantica era uma teoria incompleta. Para ele existia uma
objetividade no mundo, ou seja, os fenomenos da Natureza existindo
independentemente das pessoas (que, diga-se de passagem, sao tambem
fenomenos da Natureza!). Para ele existia “um mundo la fora”. Em
suas notas autobiograficas, aos 70 anos de idade, escreveu a respeito de
conviccoes que cultivava quando ainda jovem:
Alem de mim, fora de mim, estava o mundo imenso, que
existe independente dos seres humanos e que se nos apre-
senta como um enorme e eterno enigma, em parte acessıvel
a nossa observacao e ao nosso pensamento. A conquista
mental desse mundo extra-individual dentro dos limites da
capacidade humana se me apresentava meio consciente e
meio inconscientemente como o objetivo supremo.(Notas
Autobiograficas, Ed. Nova Fronteira, 1982)
Para a mecanica quantica parece nao ser bem assim. O resultado de
uma medida fısica em um sistema microscopico so se concretiza quando
alguem faz a leitura no aparelho de medicao. E como na situacao
dramatizada no experimento do gato de Schrodinger: o gato so morre
ou continua vivo quando alguem abre a caixa e olha para dentro dela.
Essa aparente necessidade da presenca de alguem e talvez o aspecto
mais intrigante da teoria. A respeito disso, Eugene Wigner, Premio
Nobel de Fısica de 1963, defende a ideia de que de algum modo o
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 189
conceito de consciencia deveria ser incorporado a fısica. Dentro desta
visao nos nao serıamos meros espectadores dos fenomenos naturais,
mas participantes ativos em sua realizacao. Em outras palavras, nao
haveria “um mundo la fora”. Pauli teria certa vez expressado este sen-
timento com uma pergunta um tanto poetica: a Lua existe quando
ninguem esta olhando para ela? Estas questoes obviamente nao afe-
tam o nosso dia-a-dia, e muitos fısicos consideram que tal problema
nao merece tanta atencao. Muitos outros, contudo, arriscam-se a pro-
por interpretacoes alternativas da mecanica quantica, algumas ate bem
bizarras! E interessante notar que, nesse campo, a habilidade tecnica de
cada um para resolver problemas matematicos ou experimentais parece
pouco importar; trata-se tao somente de “opinioes”, mais ou menos
bem fundamentadas12. Alguns desses depoimentos foram compilados
em um pequeno livro chamado The Ghost in the Atom, (Ed. P.C.W.
Davies & J.R. Brown, Cambridge 1986 ). Alem das duas abordagens ja
mencionadas (a puramente utilitaria, que ve a mecanica quantica como
uma “maquina de calcular”, e a ideia de que e a presenca de um obser-
vador que faz a funcao de onda colapsar), existe ainda a interpretacao
dos “universos multiplos”, sugerida por Hugh Everett, como uma das
mais originais e estranhas. De acordo com Everett a interpretacao de
Copenhague esta correta quando afirma que antes de uma medida ser
realizada um sistema quantico se encontra em uma mistura de estados,
formada por uma superposicao de possibilidades para o resultado da
12O autor deste livro presenciou em certa ocasiao o ilustre fısico brasileiro, profes-sor Mario Schemberg, em uma memoravel palestra proferida no CBPF, afirmar queso havia conseguido compreender a mecanica quantica apos ter estudado as artes efilosofias orientais.
190
medida. Quando alguem realiza a medida, cada uma das varias possi-
bilidades e concretizada, so que em universos diferentes! Por exemplo,
suponha que a medida a ser realizada seja a do spin de um eletron.
Temos dois estados possıveis, φ+ e φ−. A funcao de onda antes da
medida sera uma superposicao desses dois estados:
ψ = a+φ+ + a−φ−
onde |a+|2 e a probabilidade de encontrarmos o sistema em φ+ no mo-
mento da medida, o analogo para |a−|2. De acordo com a interpretacao
de Everett, quando realizarmos a medida, o universo se desdobrara nas
duas possibilidades, ou duas copias identicas: em um deles o autoes-
tado φ+ e encontrado, e no outro φ−. E a pessoa que mede, o que
ocorre com ela? Tambem e duplicada! O universo se desdobra em duas
copias identicas, com tudo que tem direito, a unica diferenca sendo
o estado de spin. Cada observador, no seu proprio universo, pensa
que e unico, mas na verdade existem muitas de suas copias (em certas
situacoes poderia ser ate vantajoso se de fato o mundo fosse bizarro a
esse ponto. Ontem, dia 12 de julho de 1998 a Franca goleou o Brasil
por 3 x 0 na final da Copa do Mundo, mandando o “sonho do penta”
por agua abaixo. Resta como consolo a possibilidade de que em algum
outro universo tenha ocorrido ao contrario!). Ca pra nos, esta inter-
pretacao e de lascar! As vezes, por razoes de sobrevivencia, um fısico
deve ser igual a um polıtico: um autentico cara-de-pau! Mas, talvez
algumas dessas propostas sejam “atos de desespero”, do mesmo modo
que o foi a hipotese de Planck em 1900 sobre a quantizacao da radiacao
eletromagnetica.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 191
Vejamos, para terminar a secao, algumas opinioes de importantes
fısicos sobre o assunto:
Voce acredita que a mente tem um papel fundamental na fısica?
John Bell (CERN) - Nem acredito, nem desacredito. Acho que a
mente e um fenomeno muito importante no universo, pelo menos para
nos. Se e necessario introduzı-la na fısica neste ponto eu nao sei. Os
fatos experimentais que em geral sao apresentados como argumento
para essa possibilidade nao nos convencem de que tenha que ser assim.
E uma hipotese que certamente devemos explorar, mas nao e a unica.
Sobre a interpretacao de Everett dos multiplos universos:
John Wheeler (Universidade do Texas) - A ideia da interpretacao
de Everett e considerar a funcao de onda para todo o universo, e nao
somente para partıculas microscopicas. Pelo fato de que tal funcao de
onda inclui o proprio observador, nao existira mais o chamado “ato
da medida” que colapsa a funcao de onda na visao de Bohr. Nessa
interpretacao, se um eletron possui igual chance de ir para a direita ou
para a esquerda, o universo se divide; em um deles o observador ve o
eletron indo para a direita, o outro para a esquerda.
Voce acredita que se nos nao olharmos para uma mesa, talvez porque
estejamos em um outro comodo, a mesa ainda estara realmente la?
Sir Rudorf Peierls (Universidade de Oxford) - Claro. Porque
existem varias maneiras pelas quais a mesa se faz sentir. No dia-a-dia
da fısica classica, a observacao nao interfere com o objeto observado,
e esses problemas nao existem. Mas em mecanica quantica e diferente
porque a observacao interfere com o observado.
192
Na interpretacao dos universos multiplos, onde estao os outros uni-
versos?
David Deutsch (Universidade de Oxford) - De certo modo nos
compartilhamos o mesmo espaco e tempo com eles. Mas, ao mesmo
tempo eles estao em “algum outro lugar”, porque a teoria que prediz a
existencia desses universos, tambem diz que so podemos detecta-los de
modo indireto. Nunca poderemos ir la e nos comunicarmos com eles de
uma maneira ampla.
Na interpretacao dos multiplos universos, cada observacao realizada divide o uni-verso em tantas copias quantas forem as possibilidades para o resultado da ob-servacao.
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 193
3.11 Teletransporte
E agora as utimas notıcias sobre as mais recentes esquisitices quanticas
(as 12h22min do dia 23 de abril de 1998 diretamente da minha sala no
CBPF): teletransporte quantico. Einstein parece que acertava mesmo
quando errava! Seu artigo de 1935 levou a uma discussao intensa sobre
os fundamentos da mecanica quantica. Em 1968 Bell estabeleceu um
criterio de localidade violado pela teoria, e em 1982 Alain Aspect, com
seus colaboradores, demonstrou de maneira irrefutavel que o mundo
quantico e dramaticamente diferente da nossa realidade do dia-a-dia.
E o avanco demolidor dessa deusa chamada Fısica! Mas nao pense que
essa turma se satisfaz so com isso nao! Eles querem mais! Em 1993, 38
anos apos a morte de Einstein, Charles H. Bennet da IBM Research Di-
vision e colaboradores, sugeriram que seria possıvel transmitir o estado
quantico de uma partıcula para uma outra localizada remotamente em
relacao a primeira. Caro leitor, se voce ja teve saco e coragem para
vir ate aqui, pare um minuto e pense: se eu consigo transmitir o exato
estado de uma partıcula que se encontra na posicao A para outra que
se encontra na posicao B, afastada de A, eu terei de algum modo recon-
struıdo o objeto que se encontrava em A, na posicao B; a informacao
quantica sobre o estado do objeto em A e teletransportada para o ob-
jeto em B. Sabe como? Usando exatamente as ideias que Einstein
inventou em 1935 para tentar derrubar a mecanica quantica! O feitico
virou contra o feiticeiro! O experimento foi demonstrado em 1997 por
Dik Bouwmeester e colaboradores em um grupo austrıaco.
Vamos expor a ideia simplificadamente. Para isso vamos evocar
194
nossos velhos colaboradores, Eduardo e Monica (pode ser que algum
leitor ou leitora nao esteja satisfeito com esses colaboradores. Pois
sintam-se a vontade para escolher outros: Batman e Robin, Zorro e
Tonto, Bacamarte e Chumbinho, Pink e Cerebro, etc. Da certo do
mesmo jeito). Suponha que Monica consiga, por algum metodo, pro-
duzir uma partıcula em um estado quantico ψ1, e que ela queira passar
a informacao contida em ψ1 para Eduardo, que se encontra em uma lo-
calizacao remota. Para que isto seja feito, ambos devem compartilhar
duas outras partıculas que tenham sido produzidas em uma especie de
fonte de EPR. Como vimos acima, partıculas produzidas dessa forma
tornam-se correlacionadas de tal modo que a medida de alguma quan-
tidade fısica em uma delas altera o estado da outra. Dizemos que elas
se encontram em um estado quantico entrelacado. Recordando: ao
todo temos 3 partıculas: 1 no estado ψ1 com Monica, e duas em um
estado entrelacado, cada uma dessas com um dos nossos experimenta-
dores. Vamos chamar de a a partıcula no estado ψ1 que se encontra
com Monica, e b e c o par EPR entrelacado, b tambem com Monica, e c
com Eduardo. Sabemos que se uma medida for feita em b, c “sentira”
o resultado. O teletransporte consiste em Monica passar o estado ψ1
de a para c. Para isso ela realiza uma medida de tal modo que a e b se
tornem entrelacadas tambem. Mas, como sabemos que o estado inicial
de a era ψ1, e que c “sentira” qualquer coisa que ocorra com b, e possıvel
mostrar que o entrelacamento entre a e b pode ser realizado de modo
a c colapsar no estado ψ1. Esta realizado o teletransporte! Ao tornar
a entrelacada com b, a informacao original contida em ψ1 se perde
para Monica, e aparece para Eduardo. O experimento de Bouwmeester
CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 195
demonstrou o fenomeno para fotons, mas em princıpio seria possıvel
realizar tais experimentos com objetos maiores que partıculas, como
por exemplo moleculas, ou objetos macroscopicos. Nada nos impede
de sonhar!
Pois e, caro leitor. Esta e a nossa situacao. Em uma centena e
meia de paginas saimos de um mundo classico, seguro, determinista,
quentinho, aconchegante, com estruturas absolutas, para um mundo de
incertezas, com o espaco encolhendo, os relogios enlouquecidos, e uma
serie de fenomenos que se correlacionam de um modo estranho. E o
mundo em que eu, voce, a minha avo, e o Manoel da padaria vivemos; e
a Natureza. Parece que Deus, de fato, e mesmo chegado a uma jogatina!
Nos proximos capıtulos vamos explorar algumas consequencias destas
ideias para a vida do pedestre do seculo XX.
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. Caos na Mecanica Quantica?, Alfredo M. Ozorio de Almeida, vol. 14, no.80, p. 48.
2. A Estranha Natureza da Realidade Quantica, Harvey Brown, vol. 2, no. 7,p. 24.
3. A Mecanica Quantica e a Comunicacao Secreta, Luiz Carlos B. Ryff, vol.14, no. 79, p. 15.
4. Mecanica Quantica, um Desafio a Intuicao, Vincent Buonomano e Ruy H.A.Farias, vol. 14, no. 83, p. 17.
5. Tormenta no Vazio. O Vacuo Quantico e o Efeito Casimir, Marcus VeniciusCongo-Pinto, Carlos Farina e Alexandre Tost vol. 25, no. 146, p. 26.
6. O Gato de Schrodinger. Do Mundo Quantico ao Mundo Classico, LuizDavidovich, vol. 24, no. 143, p. 26.
7. Teletransporte: uma Solucao em Busca de um Problema, Luiz Davidovich,vol. 23, no. 137, p. 8.
196
Resumo - Capıtulo Tres
A Mecanica Quantica surgiu com o trabalho de Max Planck no anode 1900 para explicar o espectro de emissao de radiacao de um corpo ne-gro. Para isso Planck postulou que a energia eletromagnetica era emitidaem “pacotes”, ou quanta, e nao continuamente como na eletrodinamicaclassica. Planck considerou essa hipotese um “ato de desespero”. Eins-tein utilizou o postulado de Planck para explicar o efeito fotoeletrico, eso a partir daı a ideia dos quanta ganhou popularidade entre os cientistas.Louis de Broglie teve um papel fundamental ao postular que partıculasmateriais tambem possuem um aspecto ondulatorio. Partıculas comoeletrons, protons, etc., sofrem difracao e interferencia, tal como ondasem geral. Deve-se entender que o carater de partıcula ou onda e reveladopelo tipo de experimento. Estes sao aspectos do mundo microscopicoconsiderados complementares, e nao opostos. Alem de Niels Bohr, Er-win Schrodinger e Werner Heisenberg sao outros dois nomes centrais damecanica quantica. A funcao que descreve o comportamento de umapartıcula microscopica e a chamada funcao de onda, e representada porψ(r, t). Esta e uma funcao complexa, e seu modulo quadrado nos da umadistribuicao de probabilidades. Microscopicamente nao podemos sabercom certeza os valores de quantidades que caracterizam o movimento departıculas, tais como o seu momento e a sua posicao; podemos conhecerapenas os valores medios destas quantidades. Partıculas microscopicaspossuem um momento angular intrınseco, batizado de spin. O princıpiode exclusao de Pauli diz que a funcao de onda total de um sistema departıculas com spin semi-inteiro (fermions) e antissimetrica. Os conceitosintroduzidos pela mecanica quantica destruiram a ideia de determinismoda mecanica classica, e geraram um grande debate que persiste ate os diasde hoje. A interpretacao dada a mecanica quantica, principalmente de-vida a Niels Bohr, e chamada de interpretacao de Copenhague. Einsteinfoi o principal opositor desta interpretacao, porque se recusava a acredi-tar em um aspecto probabilıstico intrınseco da Natureza. Varios debatesentre Einstein e Bohr foram travados durante as conferencias Solvay, emBruxelas. Apenas muito recentemente, experimentos altamente sofisti-cados comprovaram importantes previsoes da mecanica quantica, feitasa partir da interpretacao de Copenhague.
Chapter 4
Como Construir um Atomo
Rutherford ja havia ganho o Premio Nobel de 1908 pelas suas “inves-
tigacoes sobre o decaimento dos elementos e...a quımica de substancias
radioativas”. Ele trabalhava duro e era um fısico muito talentoso, cheio
de disposicao e auto-confianca. Em uma carta que escreveu em certa
ocasiao, o ja entao Lord Rutherford, revela: “estive lendo alguns de
meus primeiros trabalhos e, voce sabe, quando terminei eu disse para
mim mesmo, ‘Rutherford, meu garoto, voce era um bocado esperto’ ”.
Embora estivesse satisfeito por ter ganho o Nobel, nao o estava com o
fato de ter sido um premio de quımica, e nao um de fısica (qualquer
pesquisa com elementos era considerada quımica e nao fısica). Em
seu discurso de recebimento do Premio Nobel, enfatizou que durante o
seu trabalho observou muitas transformacoes com radioatividade, mas
nenhuma tao rapida quanto a de si proprio, de fısico para quımico!
(Quantum Physics of Atoms, Molecules, Solids, Nuclei and
Particles, R. Eisberg e R. Resnick, John Wiley and Sons, New York,
1974)
197
198
4.1 A Estrutura do Atomo
A ideia de que a materia e formada por partıculas muito pequenas e
“indivisıveis”, ou atomos, e muito antiga. Democrito, que viveu quase
400 anos antes de Cristo, ja pensava nessas coisas. Ele propos um
modelo atomico onde os atomos se encaixavam mais ou menos como
as pecas de um Lego. Mas, a verdadeira estrutura do atomo so foi
revelada no inıcio do seculo XX com o trabalho de Rutherford. Hoje
o atomo nao pode ser compreendido sem a mecanica quantica (e como
diz a maxima: “fora da mecanica quantica nao ha salvacao!”).
No modelo do “pudim de passas” os eletrons atomicos distribuem-se uniformementeem um substrato contınuo positivo.
No inıcio do seculo XX ja se “apostava” que existiam eletrons den-
tro dos atomos; so nao se sabia como eles se distribuıam. Havia um
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 199
modelo devido a J.J. Thompson, conhecido como o modelo do pudim
de passas. Neste modelo os eletrons, partıculas com carga negativa,
eram distribuıdos em uma massa uniforme com carga positiva. Os
eletrons seriam as “passas”, e a massa o “pudim”. Ernest Ruther-
ford, ingles originario da Nova Zelandia, tentava descobrir como estas
cargas se distribuıam dentro do atomo bombardeando folhas metalicas
muito finas com partıculas alfa, e observando os desvios nas suas tra-
jetorias. Partıculas alfa, como descoberto posteriormente, nada mais
sao do que atomos de helio duplamente ionizados, ou seja, que perde-
ram dois eletrons. Portanto, partıculas alfa possuem uma carga posi-
tiva igual a +2e. A ideia por detras dos experimentos de Rutherford
era muito simples. Imagine que voce tenha uma partıcula de carga Q
parada, fixa em uma posicao. Voce arremessa (de alguma forma!) e
tenta acertar nesta partıcula uma outra com carga q. Como sabemos
do capıtulo um, partıculas carregadas exercem forcas eletricas umas
sobre as outras, sendo a forca proporcional ao produto das cargas e
inversamente proporcional ao quadrado da distancia entre elas. Entao,
a carga q que voce arremessou interagira eletricamente com a carga fixa
Q de acordo com a forca:
F =1
4πε0
r2er
Se q e Q tiverem o mesmo sinal (ambas positivas ou ambas negativas),
a forca sera repulsiva; caso contrario sera atrativa. Obviamente em se
tratando de partıculas microscopicas, e muito difıcil acertar uma na
outra, pois para inıcio de conversa, sequer conseguimos enxergar essas
coisas! Por isso o negocio tem que ser feito na base da “tentativa e
200
erro” . Traduzindo: bombardeia-se o alvo com um feixe de partıculas
alfa; algumas delas vao ser mais desviadas do que outras. Do outro
lado do alvo posicionam-se detectores de partıculas cuja finalidade e
medir os desvios nas trajetorias das partıculas que atravessam o alvo.
Esses desvios sao quantificados por uma grandeza chamada angulos
de espalhamento. Finalmente, faz-se uma analise estatıstica dos re-
sultados (a proposito, a seguinte frase e atribuıda a Rutherford: “se
o seu experimento precisa de estatıstica, e melhor voce fazer outro”).
Mas, imagine por simplicidade, que voce consiga acelerar a partıcula
com carga q exatamente na direcao daquela com carga Q. Conforme a
distancia r entre elas for encurtando, a forca eletrica F aumentara, e
se elas chegarem muito proximas uma da outra, F se tornara imensa,
e causara um grande desvio na trajetoria da partıcula com carga q. A
partir das medidas dos angulos de espalhamento, Rutherford tentava
“adivinhar” como era a distribuicao de partıculas com carga Q do alvo.
Os alvos utilizados por Rutherford em seus experimentos eram fo-
lhas metalicas muito finas. A ideia era que, ao penetrar na folha, as
cargas das partıculas alfa interagiriam com a distribuicao de cargas dos
atomos da folha, e sairiam do outro lado dela com um certo angulo de
espalhamento em relacao a direcao de incidencia. Dentro do modelo
do pudim de passas o espalhamento causado por um atomo da folha
era estimado ser da ordem de apenas 0,0057 graus. No entanto, ao
atravessar a folha, uma determinada partıcula alfa sofre espalhamento
causado por diversos atomos. O desvio total das partıculas emergindo
do outro lado da folha nao era esperado ultrapassar angulos em torno de
3 graus. Qual nao foi a surpresa de Rutherford ao verificar que nao so o
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 201
angulo de espalhamento de algumas partıculas era muito maior do que
o previsto pelo modelo de Thompson, mas algumas delas chegavam ate
mesmo a ser refletidas pela folha de volta sobre a direcao de incidencia,
ou seja, sofriam espalhamento de 180 graus! Mais tarde ele compararia
a situacao como se jogassemos um tijolo sobre uma folha fina de papel
e o tijolo fosse rebatido de volta!
Em um experimento de espalhamento, um feixe de atomos incide sobre um alvo.A interacao dos atomos do feixe com os atomos do alvo ocasiona o desvio, ouespalhamento, do feixe incidente.
A partir da analise de seus dados, Rutherford foi levado a conclusao
inevitavel de que o atomo teria uma carga positiva concentrada em um
nucleo com dimensoes incrivelmente pequenas, da ordem de 10−15 m (=
1 femtometro), e a carga negativa, os eletrons, estaria distribuıda em
uma regiao da ordem de 10−10 m (= 1 angstron). Era uma conclusao
bastante bizarra para a epoca. Se comparassemos o nucleo com uma
202
bolinha com 1 cm de diametro, a eletrosfera teria um raio de cerca de 1
km. Ou seja, o atomo encontrado por Rutherford era um grande vazio!
Obviamente os resultados de Rutherford foram debatidos exaustivamente
ate que se chegasse a um quadro de consenso. A ideia que temos de
atomo hoje em dia e o resultado dessas discussoes. Um atomo pos-
sui um nucleo que concentra praticamente toda a sua massa, e retem
a carga positiva. O diametro de um atomo e cerca de 100 000 vezes
o diametro do seu nucleo. O nucleo e circundado por eletrons, que
sao os portadores de carga negativa. A massa do eletron e igual a
9, 10939× 10−31 kg. O nucleo e composto por dois tipos de partıculas:
os protons, e os neutrons. Os neutrons nao possuem carga eletrica e
portanto nao interagem eletricamente com os protons do ncleo, mas
exercem um papel fundamental na sua estabilidade. Um proton possui
uma carga igual a do eletron, mas de sinal contrario: +1, 602×10−19 C;
sua massa e de 1, 67262× 10−27 kg, cerca de 1836 vezes maior do que o
eletron. A massa do neutron, por sua vez, e muito proxima a do proton:
1, 67482×10−27 kg. O numero total de protons no nucleo e chamado de
numero atomico, em geral representado pela letra Z. Portanto, a carga
eletrica total de um nucleo com numero atomico Z e igual a +Ze. O
numero de protons mais o numero de neutrons (representado por N)
de um nucleo e igual ao seu numero de massa, representado por A:
A = Z +N
Em seu estado normal, um atomo e sempre neutro, ou seja, nao pos-
sui carga eletrica. Isso obviamente ocorre porque o numero de eletrons
e igual ao numero de protons. Nao e muito difıcil arrancar eletrons
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 203
de certos atomos (contudo e extremamente difıcil arrancar protons!).
Cada eletron que sai do atomo aumenta a carga deste de +e (correspon-
dendo a carga do proton que ficou em excesso). Um atomo carregado e
chamado de ıon. As vezes tambem e possıvel que um atomo neutro cap-
ture um eletron, tornando-se negativo. Atomos com excesso de carga
positiva sao chamados de cations, e com excesso de carga negativa de
anions. Entao, ıons podem ser cations ou anions.
Se voce quer saber, eu acho estas definicoes todas um “saco”, mas
elas sao necessarias para a classificacao dos atomos. Imagine, tudo
que vemos em volta da gente nesse mundao de Deus: plantas, animais,
carros, o mar, o Sol, cerveja, o ar, a Lua, feijoada, balas juquinha, e
ate aquela vizinha boazuda do 907 e construıdo a partir de uns poucos
tipos de atomos!
4.2 Orbitais Quanticos
Assim como qualquer outro objeto microscopico, atomos devem ser
descritos pela mecanica quantica. Como dissemos no capıtulo anterior,
todas as informacoes sobre uma partıcula que se move em um potencial
V estao contidas na sua funcao de onda ψ. No caso de um atomo, cada
eletron esta sujeito a acao da forca coulombiana exercida pela carga
do nucleo. Por sua vez, os protons e neutrons que compoem o nucleo
tambem estao sujeitos a um potencial, chamado potencial nuclear, que
determina a forma da funcao de onda do nucleo. Na secao 4.8 voltare-
mos ao problema do nucleo. No momento queremos entender somente
como os eletrons de um atomo se comportam.
204
Os estados eletronicos em um atomo sao descritos por orbitais quan-
ticos. No capıtulo anterior representamos uma partıcula com coorde-
nada x em um estado quantico a por ψa(x). O subındice ‘a’ representa
um estado generico; ele bem poderia ser o vetor de onda k de uma
partıcula livre com momento p = hk e energia E = h2k2/2m. Neste
caso, indexarıamos a funcao de onda com k: ψk(x). O subındice k rep-
resenta o estado quantico da partıcula neste caso. O modulo quadrado
|ψk(x)|2 representa a distribuicao de probabilidades (no espaco) para o
estado k. Numeros que representam estados quanticos de partıculas sao
chamados de numeros quanticos. Indexamos os orbitais de um eletron
em um atomo de modo semelhante. So que agora as energias nao sao
indexadas por k, mas por numeros inteiros n, chamados de numeros
quanticos principais. O caso mais simples e o de um atomo que so pos-
sui 1 unico eletron. Este poderia ser o caso do atomo da substancia
mais simples e mais abundante do Universo, o hidrogenio. O atomo de
hidrogenio consiste em um eletron orbitando em torno de um proton.
Mas, podemos tambem pensar em um atomo cujo nucleo possua uma
carga Ze com apenas um eletron orbitando a sua volta. Qualquer que
seja o caso, as energias possıveis dos eletrons no atomo serao dadas por:
En = − µZ2e4
2(4πε0)2h2n2
sendo µ uma quantidade chamada de massa reduzida, definida por:
µ =mM
m+M
onde m e a massa do eletron, e M a do nucleo. Usa-se esta quantidade
ao inves da massa do eletron pura e simples porque o nucleo tambem se
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 205
move sob a acao da interacao coulombiana, e nao so o eletron. Contudo,
o movimento do nucleo e pequeno comparado ao do eletron, devido
a sua massa ser muito maior. Se, por exemplo, considerassemos o
nucleo muito mais pesado que o eletron, ou seja, M m, poderıamos
desprezar m no denominador, e a massa reduzida seria igual a massa
do eletron. Para o atomo de hidrogenio, com um unico proton no seu
nucleo, M ≈ 1836m, e a massa reduzida se torna:
µ ≈ 1836m2
1837m= 0, 9995m
ou seja, a massa reduzida do atomo de hidrogenio e cerca de 99,95% a
massa do eletron. Tudo se passa como se uma partıcula com a carga do
eletron, mas com uma massa ligeiramente menor do que a dele orbitasse
em torno de um nucleo parado1.
Os eletrons de um atomo se distribuem em orbitais quanticos. Cada orbital repre-senta uma distribuicao de probabilidades.
1Eventualmente o leitor tera notado a semelhanca entre a expressao da massareduzida e aquela da resistencia equivalente a dois resistores ligados em paralelo!
206
Outro comentario a respeito da formula para En: o fator 4πε0 no
denominador daquela formula e proveniente da expressao da interacao
coulombiana (capıtulo 1): V = −Ze2/4πε0r.O numero n no denominador de En e chamado numero quantico
principal. Ele so pode adquirir valores naturais nao negativos: n =
1, 2, 3, .... A cada um desses valores corresponde uma energia En. Note
que quanto maior for o valor de n, menor sera o valor de En. Note
tambem o sinal negativo de En: ele representa o fato de que o eletron
esta preso ao nucleo. Quanto mais negativa for a energia, mais preso
estara o eletron. O estado de energia mais baixo e aquele correspon-
dente a n = 1. Quando o eletron ocupa este estado de energia, dizemos
que o atomo esta em seu estado fundamental. Um eletron no estado
fundamental estara mais fortememente ligado ao nucleo do que outro
com energia E10 (n = 10). Se n for muito grande, En tende a zero,
e o eletron se liberta do atomo. Os nıveis de energia mais baixos sao
bem separados uns dos outros; a medida que n aumenta eles vao se tor-
nando cada vez mais proximos um do outro, ate formar um contınuo
de energia. Como ilustracao vamos calcular a energia do estado fun-
damental do atomo de hidrogenio. Basta substituirmos os seguintes
valores numericos na formula de En:
n = 1
µ = 0, 99m = 0, 99 × 9, 11 × 10−31 = 9, 02 × 10−31 kg
e4 = (1, 60 × 10−19)4 = 6, 55 × 10−76 C4
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 207
1
(4πε0)2=
1
(4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12)2= 8, 09 × 1019 N2m4
C2
1
h2 =1
(1, 05 × 10−34)2= 0, 91 × 1068 J−2s−2
Com isso obtemos:
E1 = −43, 50 × 10−19 J
Este valor e melhor expresso em unidades de eletronvolts. 1 eletronvolt
(1 eV) e definido como a energia que um eletron adquire ao atravessar
uma diferenca de potencial de 1 volt, e numericamente e igual a carga
do eletron:
1 eV = 1, 60 × 10−19 J
Logo, em unidades de eV, o valor de E1 sera:
E1 = −43, 50 × 10−19
1, 60 × 10−19= −13, 6 eV
Esta e a energia necessaria para ionizar um atomo de hidrogenio, ou
seja, remover completamente seu eletron.
E as funcoes de onda correspondentes aos valores de En? O leitor
“esperto” ja tera adivinhado que essas deverao ser indexadas pelos mes-
mos numeros quanticos: ψn. Contudo, faltam ainda algumas “coisi-
nhas” a serem ditas. O primeiro fato a ser notado e que agora temos
um problema em 3 dimensoes, e isso nao da para simplificar (atomos
unidimensionais feito uma linha, tambem ja e demais, nao e? Pois
208
aguarde ate o fim do livro!). Logo ψn dependera de x, y e z, e nao
apenas de x. Acontece que, por razoes tecnicas, e mais vantajoso ex-
pressarmos ψn nao em termos de coordenadas retangulares x, y e z, mas
em termos de coordenadas esfericas r, θ e ϕ (se voce ainda nao sabe
o que e isto, reclame com o MEC e de uma olhada no painel X). As
relacoes entre x, y e z, e r, θ e ϕ sao:
x = rsenθcosϕ
y = rsenθsenϕ
z = rcosθ
r =√x2 + y2 + z2
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 209
PAINEL X
COORDENADAS RETANGULARES vs. ESFERICAS
A posicao de qualquer objeto pontual no espaco (como um eletron em um
atomo) e completamente determinada por 3 numeros, ou coordenadas. De uma
maneira geral representamos estas coordenadas por x, y e z. O sistema de coorde-
nadas mais usual e aquele em que, a partir de uma origem, simplesmente fornecemos
as distancias ao longo dos tres eixos coordenados mutuamente perpendiculares. Por
exemplo, suponha que estejamos em um quarto cujas dimensoes sejam de 3 m ×3 m × 3 m. Podemos dizer que a posicao da lampada no centro do teto do nosso
quarto, tomando como origem um dos cantos do comodo e dada pelo vetor:
r =32i+
32j+ 3k
A distancia da lampada a origem do sistema de coordenadas e dada pelo modulo
de r:
|r| = r =√94+94+ 9 = 3, 67 m
Se tomassemos como origem o centro do quarto, justamente em baixo da lampada,
terıamos r = 0i+ 0j+ 3k, e a distancia da lampada ate a origem seria obviamente
igual a 3m.
Em muitos problemas esta representacao retangular das coordenadas e incove-
niente. Por exemplo, se quisessemos descrever as posicoes de uma formiga que anda
em cima de uma bola, o sistema retangular seria complicado pelo fato de que sobre
uma superfıcie esferica as coordenadas x, y e z nao sao mais independentes uma da
outra, mas estao relacionadas por:
R2 = x2 + y2 + z2
onde R e o raio da bola. Seria muito mais facil neste caso fornecermos os angulos
azimutal θ e meridional ϕ associados a posicao da formiga. O angulo θ varia de 0 a
π, e ϕ varia de 0 a 2π. Assim, suas coordenadas seriam dadas por R, θ e ϕ (sendo R
constante), ao inves de x, y e z. Estas coordenadas sao chamadas de esfericas. No
210
caso em que ha variacao do raio da esfera teremos tambem que fornecer o valor de
r, alem dos angulos θ e ϕ. Podemos sempre transformar de coordenadas esfericas
para retangulares, e vice-versa, atraves das relacoes:
x = rsenθcosϕ
y = rsenθsenϕ
z = rcosθ
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 211
Portanto, a funcao de onda do eletron sera representada por ψn(r, θ, ϕ);
ela descreve o eletron que se encontra no estado de energia En, e pos-
sui coordenadas r, θ e ϕ. O modulo quadrado |ψn(r, θ, φ)|2, repre-
senta, como antes, a distribuicao de probabilidades de encontrarmos
um eletron, com coordenadas r, θ e φ, no estado quantico n. Mas ainda
falta algo (nao se desespere! Nada de panico!). Para uma mesma ener-
gia, ou seja, para um valor fixo de n, o eletron pode “girar” de varias
maneiras diferentes em torno do nucleo, ou seja, pode ter diferentes mo-
mentos angulares. Para cada uma dessas maneiras havera uma funcao
de onda diferente. O que falta e especificarmos na funcao de onda o
estado de momento angular do eletron. Vimos no capıtulo anterior que
os estados de momento angular de uma partıcula sao especificados por
l e ml, e que para cada valor de l podemos ter 2l+ 1 valores de ml, que
sao dados por ml = −l,−l + 1, · · · , l− 1, l. Entao, para especificarmos
completamente o estado orbital do eletron no atomo temos que incluir
l e ml na funcao de onda, que se torna entao indexada por 3 numeros
quanticos (l e ml sao respectivamente chamados de numeros quanticos
orbital e azimutal). A funcao de onda fica portanto indexada por tres
numeros quanticos:
ψnlml(r, θ, ϕ)
Estas funcoes de onda sao chamadas de orbitais quanticos, ou orbitais
atomicos. E instrutivo neste ponto fazermos uma comparacao entre a
visao quantica e a visao classica do atomo. Em um atomo classico o
estado do eletron seria especificado por 3 componentes de posicao x(t),
y(t) e z(t), e 3 de momento: px(t), py(t) e pz(t). A energia correspon-
212
dente seria dada por:
E =p2x + p2
y + p2z
2m− Ze2
4πε0r
Todas estas quantidades seriam obtidas a partir da segunda lei de New-
ton. Na mecanica quantica o estado e especificado nao pelas variaveis
dinamicas r e p, mas por numeros quanticos associados a funcoes de
onda. Dados os numeros n, l e ml sabemos descrever qual a regiao
do espaco onde um eletron pode ser encontrado (calculando |ψ|2), seu
momento angular, momento linear, energia, etc.
Note que a funcao de onda do estado depende de n, l e ml, mas
sua energia so depende de n. Isso quer dizer que para um dado valor
de energia havera, em geral, varios orbitais quanticos possıveis para
um eletron. Lembre que cada uma dessas funcoes representa uma dis-
tribuicao de probabilidades; elas descrevem a “regiao do espaco” onde
os eletrons em um dado estado especıfico podem ser encontrados. Al-
guns exemplos de funcoes de onda atomicas sao:
ψ100 = Ae−Zr/a0
ψ210 = Bre−Zr/2a0cosθ
ψ32±2 = Cr3e−Zr/3a0sen2θe±2iϕ
onde A, B e C sao constantes. As amplitudes de probabilidade cor-
respondentes a estes orbitais sao dadas por:
|ψ100|2 = A2e−2Zr/a0
|ψ210|2 = B2r2e−Zr/a0cos2θ
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 213
|ψ32±2|2 = C2r6e−2Zr/3a0sen4θ
Note que ψ32±2 depende da variavel φ, mas |ψ32±2|2 nao.
Leitor (aos prantos): “Mas que diabos! Ta pensando que eu to
maluco? De onde sairam essas funcoes esquisitas? Vou jogar essa
droga de livro fora!” Calma, calma. O calculo para a obtencao dessas
funcoes e muito complicado; elas estao simplesmente sendo apresen-
tadas ao leitor como exemplos. Tecnicamente falando, estas funcoes
sao solucoes da equacao de Schrodinger para um potencial coulom-
biano. So isso. Nao e minha culpa que elas parecam tao complicadas;
e culpa da Natureza, de Deus, sei la!
Seque as suas lagrimas e coloque a arma de volta na gaveta. Vamos
resumir a situacao: o atomo e composto por um nucleo que concentra
praticamente toda sua massa. Essa massa e a soma das massas dos
neutrons (partıculas sem cargas) e dos protons (partıculas com carga
positiva). Como o nucleo e positivamente carregado, ele exerce uma
forca coulombiana atrativa sobre os eletrons que orbitam a sua volta.
Como resultado dessa atracao entre o nucleo e os eletrons, surgem os
orbitais quanticos. Cada orbital e caracterizado por uma energia En,
e uma funcao de onda ψnlm(r, θ, ϕ). Os numeros quanticos n, l e m
especificam os estados de um eletron no atomo.
Existem relacoes entre os valores que os numeros quanticos podem
adquirir. Para cada valor de n existem n valores possıveis para l, que
variam de 0 a n − 1; e para cada valor de l, existem 2l + 1 valores
possıveis para ml. Por exemplo, se n = 2, teremos duas possibilidades
para l: l = 0 ou l = 1. Para l = 0, a unica possibilidade para ml
e ml = 0. Por outro lado, para l = 1 teremos tres possibilidades
214
para o numero quantico azimutal: ml = −1, 0, 1. Entao, para n = 2
existem 4 funcoes de onda possıveis: ψ200, ψ21−1, ψ210, e ψ211. Cada uma
desses funcoes descreve uma distribuicao espacial de probabilidades.
Um eletron cuja funcao de onda seja ψ211 podera ser encontrado em
uma regiao do espaco diferente de outro com funcao ψ210. Mas, como
as funcoes representam o mesmo estado n, as energias dos dois eletrons
serao iguais. Quando um dado estado de energia tem a ele associado
mais de uma funcao de onda, dizemos que ele e degenerado. No exemplo
acima de n = 2, a degenerescencia do estado e igual a 4.
Ate este ponto da discussao nao mencionamos o spin dos eletrons.
Alem dos numeros quanticos n, l e ml, o eletron possui um numero
quantico que caracteriza seu spin, ms, que pode ser ±1/2. Esse numero
deve tambem ser incluıdo como subındice da funcao de onda, comple-
tando assim a especificacao do estado quantico:
ψnlmlms(r, θ, φ)
Devemos manter em mente, contudo, que o spin e uma variavel interna
das partıculas, independente dos valores de n, l,ml.
Quando falamos em spin, devemos falar de princıpio de exclusao
de Pauli. Vimos no capıtulo anterior que os estados orbitais de dois
eletrons so podem ser iguais se os spins forem opostos. Poderıamos
enunciar isso da seguinte maneira: “duas partıculas (fermions) nao po-
dem ter o mesmo conjunto de numeros quanticos”. Isso obviamente
inclui o spin. Entao, se o estado de um eletron no atomo for2 ψ211+,
ou seja, n = 2, l = 1, ml = 1 e ms = +1/2, a unica maneira de
2O subındice ‘+’ aqui representa o estado de spin ms = +1/2.
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 215
outro eletron ocupar o mesmo estado orbital n, l e ml, e ele possuir
spin ms = −1/2. A funcao correspondente sera ψ211−. Ou seja, cada
conjunto n, l,ml pode acomodar no maximo dois eletrons.
Com excecao do hidrogenio, todos os atomos possuem mais de um
eletron. Dados N eletrons, como eles se distribuem no atomo? E facil:
comecamos a preencher os estados a partir daquele com energia mais
baixa (n = 1), e vamos aumentando as energias, sempre obedecendo o
princıpio de exclusao. Por exemplo, suponha que queiramos distribuir
5 eletrons. O estado n = 1 possui l = 0 e ml = 0, e pode acomodar dois,
dos cinco eletrons. Sobram tres. Passamos entao para o nıvel n = 2,
que possui l = 0, 1 e ml = 0 (relativo a l = 0) ou ml = −1, 0, 1 (relativo
a l = 1). Entao, no nıvel n = 2 temos um total de 4 possibilidades, e
portanto 8 vagas para os 3 eletrons restantes.
De uma maneira geral, para um valor qualquer de l, podemos ter ate
2× (2l+ 1) eletrons. E comum representarmos os estados de momento
angular l pelas letras s, p, d, f , etc., correspondendo respectivamente a
l = 0, 1, 2, 3, · · ·. Note que l = 3 pode acomodar ate 2× (2×3+1) = 14
eletrons. Por outro lado, e comum representarmos os valores de n
pelas letras maiusculas K, L, M , etc. Assim, representamos o es-
tado com n = 1 e l = 1 por 1s2, onde o sobrescrito ‘2’ representa o
numero maximo de eletrons que o orbital pode acomodar. Esta classi-
ficacao pode ser resumida no familiar esquema de ocupacao eletronica
nos atomos que aprendemos nos cursos elementares de quımica:
216
n1 K s2
2 L s2 p6
3 M s2 p6 d10
4 N s2 p6 d10 f 14
5 O s2 p6 d10 f 14
6 P s2 p6 d10
7 Q s2
Agora ficou simples; dado um atomo com, por exemplo, 9 eletrons,
como esses se distribuem nos orbitais quanticos? Comecamos a preencher
os orbitais da energia mais baixa, ou seja, n = 1, obedecendo ao
princıpio de exclusao. Colocamos primeiramente dois eletrons no estado
1s (estes dois eletrons terao momento angular zero, e spins opostos).
Depois colocamos mais 2 no estado 2s, e 5 no estado 2p. A configuracao
do atomo sera entao 1s22s22p5. Note que ainda caberia 1 eletron no
nıvel 2p.
O estado fundamental de um atomo com muitos eletrons e obtido
distribuindo-se os eletrons nos nıveis de energia do mais baixo para o
mais alto, obedecendo ao princıpio de exclusao. Podemos retirar um
atomo de seu estado fundamental promovendo um eletron para um
nıvel de energia mais alto; dizemos neste caso que o atomo esta em um
estado excitado. Por exemplo, o atomo de hidrogenio em seu estado
fundamental possui a configuracao eletronica 1s1. Todos os estados
acima deste sao estados excitados. Se por algum meio fornecermos
energia para o eletron “pular” do estado 1s para o 2p, o atomo estara em
um estado excitado. A energia necessaria para se induzir uma transicao
igual a esta pode ser facilmente calculada. Ela e dada simplesmente pela
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 217
diferenca E2 − E1:
E2 − E1 = − µe4
2(4πε0)2h2
(1
4− 1
)=
3µe4
2(8πε0)2h2
Acontece que a Natureza detesta deperdıcio de energia. Observa-se
que um eletron excitado nao permanece no estado de energia mais alta,
mas “decai” apos um certo intervalo de tempo. No exemplo acima, ele
volta para o estado com energia E1, e o atomo retorna ao seu estado
fundamental. A energia que o eletron possuıa no estado excitado e
liberada sob a forma de um foton cuja frequencia e dada por (vide
Capıtulo 3):
ω =E2 − E1
h=
3µe4
2(8πε0)2h3
Obviamente esta frequencia pode ser calculada para quaisquer pares
de estados. Vamos fazer uma estimativa numerica. Substituindo µ ≈9, 11× 10−31 kg (= massa do eletron), e = 1, 60× 10−19 C, ε0 = 8, 85×10−12 C/Nm2, h = 1, 05 × 10−34 Js obtemos:
ω =3 × 9, 11 × 10−31 × (1, 60 × 10−19)4
2(8 × 3, 14 × 8, 854 × 10−12)2 × (1, 05 × 10−34)3
ω ≈ 1, 5 × 1016 rad/s ⇒ f =ω
2π≈ 25 × 1014 Hz
Esta frequencia esta proxima daquela da luz visıvel.
4.3 A Materia do Universo em uma Tabela
A materia de que somos feitos (e o resto das coisas) comecou a ser criada
durante os primeiros 500 000 anos do Universo, apos o “Big Bang”, ou
218
Grande Explosao, que teria ocorrido ha cerca de 15 bilhoes de anos
(pode ser que alguns dos atomos de seu cerebro tenham pertencido a
algum dinossauro que viveu ha milhoes de anos!). Esta e apenas uma
minuscula fracao de tempo se comparada a idade do Universo. Desta
“engenharia atomica” surgiram 92 elementos estaveis, sendo o mais
simples ( e mais abundante) o hidrogenio, e o mais complexo o uranio.
Mas qual a diferenca entre o hidrogenio e o uranio? Simplesmente o
numero de protons, neutrons e eletrons; o hidrogenio e formado por
um unico proton, circundado por um unico eletron. Ou seja, o nucleo
do hidrogenio nao possui neutrons. Seu numero atomico e Z = 1,
que e igual ao seu numero de massa. No estado fundamental do H, esse
eletron ocupa o estado de energia mais baixa, ou seja, n = 1, um orbital
s, com momento angular zero. A distribuicao eletronica do hidrogenio
e entao 1s1. O isotopo estavel mais abundante do uranio, por outro
lado, possui um nucleo com 92 protons e 146 neutrons, e portanto seu
numero de massa e A = 238. Seus eletrons se distribuem da seguinte
maneira: 1s22s22p63s23p64s23d104p65s24f 105p66s24f 145d106p67s25f 4.
Consideremos agora um segundo elemento, o lıtio (Li), que possui
3 protons e 4 neutrons no seu nucleo. Sua configuracao eletronica e
1s22s1. Portanto, o Li possui o orbital mais interno 1s completo, e 1
eletron solitario em um orbital externo 2s. O elemento seguinte em
complexidade e o sodio (Na), com Z = 11 e N = 23, com seus eletrons
distribuıdos de acordo com 1s22s22p63s1. Novamente aqui temos as
camadas internas 1s, 2s e 2p cheias, e 1 unico eletron na camada externa
3s. A mesma coisa ocorre com o potassio (K), o rubıdio (Rb), o cesio
(Cs) e o francio (Fr). Todos terminam com um unico eletron s no orbital
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 219
mais externo. Este fato torna esses elementos muito parecidos do ponto
de vista quımico, pois sao os eletrons mais externos que formam ligacoes
quımicas. Este tipo de regularidade e encontrada tambem entre outros
elementos, e sugere um esquema classificatorio dos elementos.
Embora as primeiras tentativas de se alcancar tal classificacao dos
elementos de acordo com as suas semelhancas quımicas datem do seculo
XVIII, com os trabalhos de Lavoisier na Franca, foi um cientista russo
que viveu entre 1834 e 1907, chamado Dimitry Ivanovitch Mendeleiev,
quem descobriu que se os elementos fossem organizados de uma deter-
minada maneira em uma tabela, interessantes propriedades periodicas
seriam evidenciadas. A tabela que Mendeleiev organizou ficou con-
hecida como tabela periodica dos elementos. Um fato historico inter-
essante e que ao organizar sua tabela, Mendeleiev notou lacunas nas
posicoes correspondentes aos elementos de numero atomico Z = 21 e
Z = 32, que ainda nao eram conhecidos na epoca. A tabela periodica,
entao, estava de certa forma prevendo a existencia de tais elementos,
que de fato foram descobertos posteriormente. Estes foram o escandio
(Sc) e o germanio (Ge).
O grande triunfo da tabela de Mendeleiev foi nao somente sua ca-
pacidade de acomodar os elementos conhecidos na epoca em um es-
quema que ressaltava as suas semelhancas quımicas, mas tambem (e
principalmente!) de fazer previsoes sobre a existencia de elementos que
ainda nao eram conhecidos. Com isso, a tabela ultrapassou os limites de
um mero esquema classificatorio de substancias quımicas, para se tornar
um instrumento de pesquisa cientıfica! Cada vez que um novo elemento
era descoberto, a tabela tinha que ser revisada a fim de acomoda-lo.
220
Particularmente interessante foi a descoberta do argonio (Ar) em 1894
por William Ramsay e John William Strutt (Lord Rayleigh). O argonio
e um dos gases nobres, assim chamados por serem pouco reativos quimi-
camente. Nos anos subsequentes foram descobertos o helio (He), o
neonio (Ne), o criptonio (Kr) e o xenonio (Xe). Como Mendeleiev nao
havia previsto a existencia desses elementos com a sua tabela, pensou-
se que eles nao fizessem parte do sistema periodico. Foram seis anos
de pesquisa e intensa discussao ate que os quımicos da epoca pudessem
finalmente encaixar os gases nobres na tabela periodica.
4.4 Esticando a Tabela Periodica
Em 1934, Enrico Fermi, trabalhando na Universidade de Roma, propos
que novos elementos poderiam ser criados bombardeando-se nucleos
atomicos com neutrons. Sob certas condicoes, neutrons podem ser cap-
turados por nucleos. Uma vez dentro do nucleo, o neutron capturado
decai emitindo um eletron e se transforma em um proton. Este pro-
cesso e chamado de decaimento beta. Ao se transformar em um proton,
o “ex-neutron” acaba por aumentar de 1 unidade o numero atomico do
atomo que o capturou, fazendo-o “pular” uma casa para a direita na
tabela periodica.
Utilizando a tecnica de captura de neutrons, seguida de decaimento
beta, Edwin McMillan e Phillip Abelson, trabalhando na Universidade
de Berkeley, produziram em 1940 o primeiro elemento transuranico, o
netunio (Np), de numero atomico Z = 93. Durante as decadas de 40
e 50 os elementos plutonio (Pu, Z = 94), amerıcio (Am, Z = 95),
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 221
curio (Cm, Z = 96), berquelio (Bk, Z = 97), californio (Cf, Z = 98),
einstenio (Es, Z = 99) e fermio (Fm, Z = 100), foram produzidos
utilizando a mesma tecnica. Foi por esta epoca que o mitologico Niels
Bohr afirmou que o fermio seria o ultimo elemento da tabela periodica.
Errou feio.
Logo percebeu-se que acima de Z = 100, a tecnica de captura
de neutrons nao produziria novos elementos. Passou-se entao a uti-
lizar a tecnica de fusao, na qual dois nucleos colidem a altas energias,
e fundem-se formando um nucleo mais pesado. Esta tecnica utiliza
aceleradores de partıculas (capıtulo nove), que sao equipamentos alta-
mente sofisticados e caros. Em 1955 o grupo de Berkeley produziu o
mendelevio (Md, Z = 101), fundindo um atomo de helio (He, Z = 2)
com um de einstenio (Es, Z = 99). Entre 1958 e 1974 foram cri-
ados, com a mesma tecnica, o nobelio (No, Z = 102), o laurencio
(Lr, Z = 103), e os elementos com Z = 104 (candidato a se chamar
rutherfordio, Rf ), o de numero atomico Z = 105 (candidato a se
chamar dubnio, Db ) e o com Z = 106 (candidato a seaborgio, Sg).
Neste ponto descobriu-se que este seria o provavel limite para a tecnica
de fusao usual.
No inıcio dos anos 80 Peter Armbruster e Fritz Peter Hessberger,
trabalhando em Darmstadt, na Alemanha, desenvolveram uma nova
tecnica de fusao que eles chamaram de fusao fria. Esta tecnica nada
tem a ver com o suposto fenomeno de fusao fria alardeado ha uns anos
atras por dois quımicos americanos pouco cautelosos! Com a tecnica
inventada por eles, Armbruster e Hessberger conseguiram produzir os
elementos com Z = 107, Z = 108 e Z = 109 (que eventualmente virao a
222
se chamar borio [Bh], hassinio [Hs] e meitnerio [Mt], respectivamente).
Para dar uma ideia da complexidade da tecnica, para produzir 1 unico
atomo de meitnerio, foram necessarias duas semanas ininterruptas de
experimento! Entre 1994 e 1996 os mesmos autores produziram novos
elementos (ainda sem propostas de nomes; vamos torcer para que nao
sejam chamados de ‘armsbrusteresio’, ‘herssbergerıcio’, ou coisas do
genero!) com Z = 110, 111, 112 e 113. No momento eles tentam pro-
duzir um novo elemento com Z = 114. Deve-se mencionar que todos
estes elementos sao extremamente instaveis, e decaem em bilionesimos
de segundo. Ha, contudo, razoes teoricas para se acreditar que alguns
deles sobreviveriam em uma “ilha de estabilidade”.
O leitor pode, com muita razao, estar se perguntando: para que
serve isso? Para que criar elementos que a Natureza eliminou ao longo
do caminho? A resposta para essa pergunta possui muitas facetas,
e de certa forma se aplica a toda ciencia basica, de um modo geral.
Primeiramente, novos elementos possuem novas propriedades fısicas e
quımicas. Pode ser que algumas dessas propriedades venham a se tornar
uteis para producao de novos materiais, substancias farmacologicas, etc.
Em segundo lugar, a complexidade envolvida na producao desses novos
elementos, forca o desenvolvimento tecnologico com a criacao de novos
aparelhos de medidas, producao de campos magneticos, programas de
computador, eletronica de detectores, etc. Mas para um fısico, a razao
fundamental para essas pesquisas tem um carater menos utilitario, e
mais profundo: ate onde podemos ir? Qual o nosso limite? Pense nisso!
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 223
4.5 Ligacoes Quımicas
A partir dos 92 atomos estaveis da tabela periodica, a Natureza cons-
troi a imensa variedade de objetos que existem, vivos ou inanima-
dos. Os atomos de carbono no grafite de um lapis sao identicos aos
atomos de carbono nos neuronios do seu cerebro. Mas como a Na-
tureza faz esse truque? Resposta: ligando os atomos de maneiras dife-
rentes. Atomos se combinam para formar objetos maiores, chamados
de moleculas. Moleculas, por sua vez, se combinam para formar ob-
jetos macroscopicos. Por exemplo, quando dois atomos de hidrogenio
se combinam com um atomo de oxigenio, criam uma molecula muito
especial para nos seres vivos: a molecula de agua, representada simboli-
camente por H2O. A agua que bebemos (sem contar a inevitavel sujeira
misturada) e o resultado da ligacao de uma infinidade de moleculas de
H2O.
O que determina o tipo de ligacao quımica entre dois ou mais atomos
sao as suas configuracoes eletronicas; sao os eletrons mais externos dos
atomos que participam das ligacoes quımicas. Por exemplo, considere
o atomo de cloro (Cl), que possui 17 eletrons, distribuıdos em uma
configuracao que termina com os orbitais 3s23p5. Considere, por ou-
tro lado, o atomo de sodio (Na) com seus 11 eletrons distribuıdos de
modo que o utimo orbital e 3s1. Quando um atomo de sodio chega
perto de um de cloro, se torna energeticamente mais favoravel para o
conjunto se o eletron 3s do sodio “pular” para o orbital 3p do cloro. O
que queremos dizer com energeticamente mais favoravel e que ha uma
“economia” de energia no processo. Ou seja, a energia do sistema dos
224
dois atomos juntos sera menor do que se eles estiverem separados, se
o eletron pular do Na para o Cl. O cloro entao ficara com uma carga
negativa (ou seja, se transformara no anion Cl−), e o sodio ficara po-
sitivo (se transformara no cation Na+). Como cargas de sinais opostos
se atraem, o Cl− “grudara” no Na+ e formara a molecula ionica NaCl,
conhecida popularmente como sal de cozinha. Este tipo de ligacao
e chamada de ligacao ionica, por razoes obvias. Outros exemplos de
substancias formadas atraves da ligacao ionica sao o CsCl, o CsBr, e o
RbBr.
Mas a ligacao ionica nao e o unico tipo de ligacao quımica entre
atomos. Quando, por exemplo, aproximamos atomos de sodio entre
si, algo curioso acontece. Os eletrons dos orbitais 3s de cada atomo
de desprendem de seus atomos originais e comecam a “passear” en-
tre os ıons de sodio (Na+). Em uma linguagem mais precisa, dizemos
que isso ocorre porque as funcoes de onda dos eletrons destes orbitais
(que poderıamos representar por ψ300) se superpoem, permitindo que o
eletron de um dado atomo passe para o outro, e do outro para o outro,
etc. Este tipo de ligacao quımica e chamada de ligacao metalica. Nesta
ligacao os eletrons mais externos dos atomos ficam livres para se deslo-
car dentro do material. E como se todos os eletrons pertencessem a to-
dos os atomos, formando uma especie de “geleia negativa”, responsavel
pela coesao do metal. Isto e o que ocorre com o metal da moeda no seu
bolso, ou na tampa da sua marmita! Que chique, hein! Imagine voce
dizendo pros colegas que as funcoes de onda dos eletrons da tampa da
sua marmita se superpoem, e e por isso que a tampa e daquele jeito! A
gororoba fica ate mais gostosa!
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 225
Outro tipo de ligacao quımica tanto importante quanto esquisita e
a ligacao por pontes de hidrogenio. Este tipo de ligacao esta associ-
ada a algumas caracterısticas proprias do hidrogenio. Como vimos, o
atomo de hidrogenio possui somente um proton no seu nucleo, com
um eletron girando em volta. Nao e facil arrancar esse eletron do
hidrogenio, mas quando um H chega perto de um atomo que possui
“apetite” para eletrons3, o seu eletron e fortemente atraıdo fazendo
com que o hidrogenio “cole” na superfıcie do outro atomo. Um terceiro
atomo pode entao ser atraıdo por este hidrogenio “careca”. Neste tipo
de ligacao os dois atomos grandes quase se tocam; devido ao pequeno
tamanho do proton em comparacao aos outros atomos, torna-se im-
possıvel para um quarto atomo se juntar ao grupo. Entao, nas pontes de
hidrogenio o proton e sempre “sanduichado” por dois atomos grandes.
O melhor exemplo de substancia formada por pontes de hidrogenio e a
agua, principalmente na sua fase solida (gelo). No gelo, cada atomo de
oxigenio e cercado por outros quatro, formando um tetraedro; a ligacao
entre esses tetraedros se da por pontes de hidrogenio.
Existe um tipo de ligacao quımica que sob certos aspectos se parece
com a ligacao metalica: a ligacao covalente. Assim como na metalica,
a ligacao covalente ocorre devido ao compartilhamento de eletrons por
atomos proximos, ou, tecnicamente falando, devido a superposicao de
funcoes de onda de atomos vizinhos. A diferenca e essencialmente no
carater das funcoes que se superpoem. No caso metalico, a super-
posicao e muito maior, cobrindo varias posicoes atomicas, enquanto
que na covalente esta superposicao e menor, envolvendo apenas atomos
3Os quımicos chamam esta propriedade de ‘eletronegatividade’.
226
vizinhos proximos. Enquanto que a metalica em geral envolve eletrons
em orbitais s (ou seja, com momento angular zero), a covalente envolve
eletrons do tipo p (l = 1) e do tipo d (l = 2). Quanto maior o momento
angular do eletron (ou seja, quanto maior for o valor de l), menor sera o
raio da funcao de onda correspondente, portanto diminuindo as chances
de superposicao para a formacao de ligacoes quımicas. Por exemplo,
funcoes de onda do tipo f (l = 3) nao se superpoem, e consequente-
mente os eletrons que ocupam esses orbitais permanecem praticamente
inalterados, quando os atomos se juntam para formar uma molecula
em uma substancia. Exemplos de substancias que apresentam ligacao
covalente sao o silıcio (Si) o germanio (Ge) e o carbono (C) sob a forma
de diamante.
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 227
.
Em um metal simples como o sodio, os eletrons se distribuem uniformemente entreos atomos.
A principal caracterıstica da ligacao covalente e seu aspecto “direcional”. Oseletrons concentram-se em certas regioes entre os atomos.
228
4.6 ADN: uma Molecula muito Especial
Do ponto de vista da fısica teorica, e desejavel que todos os fenomenos
da Natureza sejam descritos atraves das mesmas leis, se possıvel em
numero mınimo. No entanto, existe uma abismal e obvia diferenca
entre os fenomenos que ocorrem em “objetos inanimados”, como gases,
lıquidos, solidos, atomos, etc., e fenomenos que ocorrem com “objetos
vivos”, como plantas, animais e pessoas. Os primeiros sao objetos de
estudo da fısica, e os segundos sao tradicionalmente estudados pela
biologia. A fısica atual possui metodos capazes de explicar todas as
propriedades de um cristal de diamante ou de um pedaco de cobre, mas
nao tem a menor ideia de como funciona uma ameba! Como definir o
que esta vivo e o que nao esta a partir de equacoes matematicas que
descrevem movimento?
Em princıpio, o fato de que uma ameba (ou qualquer outro sis-
tema vivo) nao possa no momento ser descrita atraves das equacoes da
fısica, nao quer dizer - repito, em princıpio - que ela nao seja gover-
nada pelas leis da fısica. Pode ser que as dificuldades sejam meramente
tecnicas, tais como a ausencia de computadores suficientemente rapidos
ou de metodos matematicos suficientemente poderosos. Descrever uma
ameba do ponto de vista da fısica teorica significaria resolver um con-
junto inimaginavel de equacoes interdependentes, que descrevessem o
movimento de cada atomo constituinte da ameba. As solucoes de tal
sistema colossal de equacoes, em tese, descreveria o comportamento
do animal. Isto pode ser tecnicamente impossıvel de ser realizado - e
talvez, de fato, nunca venhamos a realizar completamente - mas em
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 229
princıpio poderia ser feito. Esta ideia de que todos os fenomenos da
Natureza podem em ultima instancia ser descritos pelas leis da fısica e
chamada de reducionismo.
Mais recentemente comecou-se a explorar a ideia de que certas pro-
priedades de conjuntos muito grandes de moleculas (como e o caso da
ameba, um animal unicelular) nao podem ser compreendidas a par-
tir das propriedades dos seus constituintes individuais isolados; sao
propriedades do todo. Segundo essa visao, sistemas complexos con-
tendo um numero muito grande de partes interagentes adquirem certos
“padroes de funcionamento” que nao podem ser explicados a partir do
comportamento das partes isoladamente. Assim, nao adiantaria, por
exemplo, esmiucarmos uma molecula fora de um organismo porque isto
nada nos informaria a respeito do funcionamento do organismo como
um todo. Para fazer uma analogia, seria mais ou menos como uma pin-
tura em um quadro, que nao e apenas um conjunto de cores misturadas,
tanto quanto uma peca musical nao e apenas uma sequencia de notas e
acordes. Inspirados por abordagens deste tipo, alguns cientistas defen-
dem a ideia de que talvez nao seja possıvel reduzir o comportamento de
um ser vivo ao mero movimento individual dos atomos e moleculas que
o compoe, e levantam a interessante questao se a biologia nao deveria
ter leis proprias, independentes das leis da fısica!
Este tipo de interconexao entre as partes de um sistema complexo
que gera padroes globais de funcionamento e observada em ecossis-
temas, sistemas economicos, fenomenos atmosfericos, etc., e tem re-
centemente chamado a atencao de muitos cientistas, estimulando dis-
cussoes tecnicas e filosoficas que resultaram no que ficou conhecido
230
como Complexidade4. Embora esta seja uma area que tem gerado bons
frutos, vale lembrar que o tradicional metodo analıtico empregado pela
fısica, que esmiuca e isola sistemas, e ate agora o que tem gerado resul-
tados praticos, gerado tecnologia, alem de oferecer uma compreensao
objetiva da Natureza. Nada impede que a visao que hoje se tem sobre
esta abordagem dos fenomenos naturais venha a mudar. Mas, quais-
quer que sejam os metodos de investigacao cientıfica do futuro, eles
necessariamente se basearao sobre os atuais.
Cadeias de moleculas sao sistemas fısicos infinitamente mais simples
do que um ser vivo, como uma ameba. Ainda assim, podem apresentar
um grau de complexidade que torna sua descricao teorica muito difıcil,
senao impossıvel. Dentre estas cadeias, esta o ADN, uma molecula
muito especial.
Somente seis elementos basicos formam as moleculas de organis-
mos vivos: carbono (C), hidrogenio (H), oxigenio (O), nitrogenio (N),
fosforo (P) e enxofre (S). Estes elementos constituem moleculas muito
pequenas, como o dioxido de carbono (CO2), a agua (H2O) e o oxigenio
(O2), que por sua vez sao a base de outros quatro tipos de moleculas im-
portantes para a vida: carbohidratos, proteınas, lipıdios e acidos nucle-
icos. Cada uma destas ultimas possui um papel diferente no organismo.
Carbohidratos sao uma especie de “gasolina” do organismo; fornecem
4A chamada “Complexidade” surgiu como uma area interdisciplinar que logoatraiu fısicos, biologos, quımicos, matematicos, etc. Apesar do grande entusiasmoinicial em torno deste novo ramo da ciencia, parece haver no momento um certoceticismo em torno deste tipo de abordagem, pelo menos no que diz respeito a sis-temas biologicos. A razao reside justamente na dificuldade em se modelar sistemasbiologicos matematicamente sem introduzir simplificacoes que os tornem meras cu-riosidades numericas, distantes da realidade.
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 231
energia, e tambem formam tecidos. Proteınas formam tecidos e desem-
penham um papel importante no metabolismo celular. Elas sao feitas
de cadeias contendo 300 a 400 aminoacidos, moleculas formadas a partir
de atomos de hidrogenio e nitrogenio. Existem milhares de tipos dife-
rentes de proteınas, cada uma delas com um papel especıfico. Acidos
nucleicos possuem a informacao crucial para a operacao da celula. E-
xistem dois tipos: o chamado acido desoxiribonucleico, ou ADN, e o
acido ribonucleico (ARN). Ambos sao formados por imensas cadeias
de moleculas menores chamadas nucleotıdeos, sendo que o ARN possui
dezenas de milhares de moleculas, enquanto que o ADN possui milhoes
delas.
E precisamente o ADN que faz a diferenca entre o que esta vivo e o
que nao esta. E nele onde a Natureza escreveu o manual de instrucoes
de, por exemplo, “como fazer uma ameba”. A sua estrutura pode ser
comparada (abusando da simplicidade) a estrutura de uma frase. Se
eu escrevo uma sequencia de letras como esta:
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
e pergunto a voce qual seu significado, voce diz: “ora bolas, uma
sequencia de letras ‘A’ ”. Mas, se eu escrevesse a sequencia:
O MENGAO E O MELHOR DO BRASIL.
voce responderia: “esta e uma frase da lingua portuguesa escrita por
um doido mal informado”. A diferenca entre as duas sequencias esta na
variedade de letras utilizadas, e na maneira como elas sao organizadas.
Com as mesmas letras poderıamos ainda ter escrito a estranha frase:
232
O LADRAO E O MEMBRO LEGHONIS.
(eventualmente “Leghonis” sera o nome ou sobrenome de alguem! Se
eu for azarado a tal ponto, registro aqui os meus pedidos de desculpa).
Embora a terceira frase seja mais esdruxula do que a segunda, ela trans-
mite uma ideia clara - a de que algum infeliz com o nome “Leghonis”,
faz parte de alguma associacao ou comite, e roubou alguma coisa -,
totalmente diferente daquela contida na segunda.
A variedade de letras na segunda ou terceira sequencias permite a
codificacao de mais informacoes do que no caso da primeira (que de fato
nao permite codificacao alguma!). Com o ADN ocorre algo semelhante.
A molecula e formada por duas cadeias que se entrelacam formando
uma helice. Os dois lados da cadeia sao ligados entre si atraves de
quatro tipos de moleculas que os biologos representam pelas letras: A,
G, C e T. Por razoes de afinidade quımica, moleculas do tipo ‘A’ so se
ligam com as do tipo ‘T’, e as do tipo ‘C’ com as do tipo ‘G’. Todo
o truque do ADN esta na sequencia com que essas ligacoes (ou letras)
aparecem ao longo da cadeia. Durante a divisao da celula, a sequencia
e duplicada, e as caracterısticas daquele organismo sao transmitidas
para outro. Se durante a duplicacao uma “letra” sai fora do lugar, a
nova celula sai ligeiramente diferente.
Nos seres humanos o ADN se encontra distribuıdo entre os 46 cro-
mossomos que existem dentro do nucleo de cada celula (existem cerca
de 5 trilhoes de celulas em uma pessoa adulta). Na medida em que
cada um de nos se desenvolve a partir de uma unica celula (zigoto),
cada uma das 5 trilhoes de celulas que formam o nosso corpo possui
exatamente a mesma informacao genetica. Um dos misterios atuais
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 233
da biologia molecular e exatamente a respeito da diferenciacao celular
ao longo do desenvolvimento. Como, em um dado momento, celulas
identicas comecam a dar origem a tecidos diferentes no organismo?
Para dar uma ideia de quao compactadas as moleculas de ADN
estao dentro do nucleo, se pudessemos esticar e enfileirar todas elas,
retirando-as de uma unica celula, o comprimento total seria de quase
dois metros! Isso quer dizer que cada ser humano possui cerca de 10
bilhoes de quilometros de ADN, o que daria para cobrir a distancia
entre a Terra e o Sol quase 100 vezes! E realmente notavel como tal
estrutura consegue se organizar com uma forma geometrica tao simples
quanto a de uma helice, e ainda participar de uma serie de reacoes
quımicas durante a divisao celular cujo resultado final sera uma replica
perfeita de si mesmo.
O ADN e um sistema fısico imensamente complexo, cuja historia
tem a ver com um famoso fısico que ja conhecemos: Erwin Schrodinger.
No ano de 1943 Schrodinger proferiu uma serie de palestras na univer-
sidade de Dublin na Irlanda, onde ocupava a catedra de fısica teorica.
O tıtulo daquelas palestras era algo audacioso mesmo para um fısico
do porte de Schrodinger: O que e vida? Ele estava fundamentalmente
interessado no modo pelo qual caracterısticas hereditarias eram trans-
mitidas de geracao para geracao. Schrodinger sugeriu que estas in-
formacoes estariam contidas em cristais aperiodicos, que de alguma
forma as armazenavam em sua estrutura. As palestras foram publi-
cadas em 1944 sob a forma de um pequeno livro chamado What is
Life? pela Cambridge University Press, que logo se tornou uma das
obras mais lidas e influentes da historia da ciencia. No prefacio do livro
234
Schrodinger se justifica:
Espera-se que um cientista conheca completa e perfeita-
mente um dado assunto, e portanto normalmente nao es-
creva sobre algo que nao domine. Isto e considerado um
‘compromisso nobre’. Para o presente proposito, eu renun-
cio a ‘nobreza’, se e que existe alguma, e me liberto deste
compromisso.
Em 1953 Francis Crick e James Watson desvendaram o segredo
dos cristais aperiodicos propostos por Schrodinger: eram o que hoje
chamamos ADN. Portanto, as ideias de Schrodinger sobre hereditariedade
acabaram se tornando o centro da biologia molecular moderna, emb-
ora ate hoje nao se tenha uma resposta satisfatoria para a principal
pergunta enderecada nas suas palestras.
4.7 Magnetismo do Atomo
Deixemos de lado a biologia e voltemos a fısica. Por que certos mate-
riais sao magneticos e outros nao? O ıma gruda na geladeira, mas a
moeda nao. Qual a diferenca entre os materiais que formam o ıma e
a moeda? Nao e tudo feito de atomos? E preciso distinguir a origem
do magnetismo nos atomos da origem do magnetismo nos materiais
macroscopicos, embora obviamente os dois fenomenos estejam estreita-
mente relacionados.
O magnetismo nos atomos surge dos eletrons nos orbitais quanticos.
Quando falamos em spin no capıtulo anterior, introduzimos a ideia
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 235
de momento magnetico. Relembrando, o momento magnetico e uma
grandeza proporcional ao momento angular, seja ele extrınseco (L) ou
intrınseco (S). O atomo sera magnetico se possuir momento magnetico
total diferente de zero, e portanto momento angular total diferente
de zero. Considere, por exemplo, o atomo de hidrogenio. No seu es-
tado fundamental, o seu unico eletron ocupa um orbital s. Portanto,
l = 0 e S = 1/2 para este atomo. Consequentemente, o atomo de
hidrogenio nao tera um momento magnetico orbital, mas tera um mo-
mento magnetico de spin. Logo, o atomo de hidrogenio e magnetico.
Isso vale para o estado fundamental; se o eletron fosse promovido
para um orbital p, por exemplo, o atomo adquiriria um momento
magnetico orbital que se somaria ao de spin. Considere agora o atomo
de magnesio (Mg). A sua ultima camada tem a configuracao 3s2 e,
portanto, esta completa. Ambos os eletrons terao l = 0, e novamente
o momento magnetico orbital neste atomo e nulo. Mas agora, alem
disto, o princıpio de exclusao obriga os dois eletrons a possuirem spins
opostos, um deles no estado +1/2 e o outro no estado −1/2. Con-
sequentemente o spin total (igual a soma dos spins individuais) sera
zero, anulando o momento magnetico de spin. Entao, o atomo de
magnesio no seu estado fundamental nao possui momento magnetico,
de spin ou orbital, e portanto e nao magnetico. Considere agora um
exemplo curioso: o atomo de ferro (Fe). Ele possui uma configuracao
eletronica externa igual a 3d64s2. Ou seja, a sua camada eletronica
mais externa (s) esta completa e portanto nao contribui para o mo-
mento magnetico do atomo, mas a camada mais interna (d), que pode
acomodar ate 10 eletrons, so possui 6, e portanto esta incompleta. Esta
236
camada contribui tanto para o momento magnetico de spin quanto para
o orbital. Como os eletrons se distribuem nos estados dentro desta ca-
mada? Primeiramente notamos que como l = 2 para um orbital d,
podemos ter ml = −2,−1, 0, 1, 2. Temos entao 6 eletrons para serem
distribuıdos em 5 estados orbitais, que podem acomodar no maximo 10
eletrons. Para sabermos o momento angular e de spin totais neste caso,
distribuimos os eletrons nesses estados ml obedecendo ao princıpio de
exclusao, e a duas importantes regras chamadas de regras de Hund:
Primeira regra de Hund: Distribua os eletrons nos
estados ml de modo a maximizar o spin total (ou seja, na
medida do possıvel tente manter todos os spins apontando
para a mesma direcao).
Segunda regra de Hund: Mantendo a primeira regra
mandatoria, distribua os eletrons nos estados ml de modo
a maximizar o momento angular total (ou seja, mantenha
a soma dos valores de ml a maior possıvel).
Aplicando as regras no caso do Fe, comecamos colocando 1 eletron com
spin S = +1/2 no estado ml = 2. Para maximizar o spin total (primeira
regra) o segundo eletron nao pode entrar no mesmo orbital, pois nesse
caso ele teria que ter S = −1/2. Colocamo-lo entao no segundo orbital
ml = 1, tambem com spin S = +1/2. Assim por diante ate chegarmos
em ml = −2. Entao, a distribuicao dos 5 primeiros eletrons sera:
ml −2 −1 0 1 2S +1/2 +1/2 +1/2 +1/2 +1/2
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 237
Se so tivessemos 5 eletrons, a tarefa estaria terminada. O momento
angular total, L, seria a soma dos valores de ml, ou seja −2 − 1 + 0 +
1+2 = 0, e o spin total seria a soma dos spins: S = +1/2+1/2+1/2+
1/2 + 1/2 = 5/2. Este e de fato o caso do atomo de manganes (Mn),
que e vizinho do Fe, e possui uma configuracao eletronica externa igual
a 3d54s2. Mas, o Fe tem 1 eletron a mais. De acordo com a segunda
regra de Hund, este eletron deve entrar em ml = 2. Porem, por causa
do princıpio de exclusao ele tera spin igual a −1/2. Ficamos entao com
a seguinte distribuicao:
ml −2 −1 0 1 2S +1/2 +1/2 +1/2 +1/2 +1/2
−1/2
Consequentemente o momento angular total sera L = −2− 1 + 0 + 1 +
2 + 2 = 2 e o momento de spin total sera S = +1/2 + 1/2 + 1/2 + 1/2 +
1/2 − 1/2 = 2.
Em um atomo os spins dos eletrons se acoplam para produzir o spin do atomo.
238
Com essas duas regras podemos obter os valores de L e S para
qualquer numero de eletrons em uma camada eletronica de um atomo
isolado. Mas, como momentos angulares se somam vetorialmente, se
um atomo possui momento de spin, S, e momento orbital, L, ambos
diferentes de zero, podemos definir uma nova grandeza, o seu momento
angular total, denotado por J:
J = L + S
Esta quantidade e muito util para o estudo do magnetismo nos materiais
(capıtulo seis).
A partir do calculo de L e S atraves das duas regras de Hund acima,
como obtermos o valor da magnitude do momento angular total J? O
maior valor possıvel sera aquele para o qual S e L estao paralelos. Neste
caso, J = L + S. Ao contrario, o menor valor possıvel correspondera
a S e L antiparalelos, e neste caso J = |L− S| (o modulo e necessario
porque J e sempre positivo). Mas, dada uma configuracao eletronica,
como sabermos qual entre essas duas possibilidades sera o valor de J?
Para isso aplicamos a terceira regra de Hund:
Terceira regra de Hund: Se o numero de eletrons
na camada for maior do que a metade do numero total de
estados, o valor de J sera igual a L + S; caso contrario, o
valor sera J = |L− S|.
Aplicando ao caso do Fe, como o numero de eletrons na camada d e
igual a 6, e a camada comporta no maximo 10, ela esta mais da metade
cheia, e teremos J = L+S = 2+2 = 4. No caso do atomo de Mn, como
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 239
L = 0, teremos J = S = 5/2. Este sera o caso de qualquer camada com
um numero de eletrons exatamente igual a metade de sua capacidade
total.
Agora, como o magnetismo dos atomos se relaciona com o mag-
netismo na materia macroscopica, como por exemplo, em um ıma?
Uma das condicoes para que um material seja magnetico (como um
ıma) e que haja momento magnetico nos atomos. Mas essa condicao
nao e suficiente. Em um ıma permanente os momentos magneticos
atomicos dentro do material apontam na mesma direcao, dando origem
a uma grandeza macroscopica que chamamos de magnetizacao, M. A
magnetizacao de um material e definida como o numero de momen-
tos magneticos por unidade de volume do material. Simbolicamente
escrevemos:
M =1
V
∑i
mi
onde mi e o momento magnetico do i-esimo atomo, e V o volume do
material. Note que enquanto o momento magnetico e uma grandeza
microscopica, ou seja, diz respeito ao atomo, a magnetizacao e uma
grandeza macroscopica, ou seja, diz respeito ao material. No capıtulo
seis veremos o que faz os momentos magneticos dos atomos em um
material magnetico como um ıma apontarem para a mesma direcao.
4.8 Forca Nuclear
Podemos dizer que o que mantem um atomo coeso, isto e, os eletrons
presos aos nucleos, e a forca coulombiana exercida pelo nucleo sobre
240
os eletrons. Mas, o que mantem o nucleo em si coeso? Nucleos sao
formados de protons e neutrons, cada proton carregando uma carga
igual a +e. E claro que sendo os protons partıculas com cargas de
mesmo sinal, havera dentro do nucleo uma forca coulombiana repulsiva
entre eles. Vamos estimar a magnitude desta forca para dois protons
separados por uma distancia de r ≈ 10−14 m, a ordem de grandeza para
o diametro de um nucleo:
F =(1, 60 × 10−19)2
4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × (10−14)2≈ 2 N
Vamos comparar com a forca entre um proton e um eletron separados
por uma distancia de 10−10 m, a ordem de grandeza para distancias
atomicas:
F = − (1, 60 × 10−19)2
4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × (10−10)2≈ 2 × 10−8 N
Ou seja, a forca repulsiva entre protons no nucleo e imensamente maior
(cerca de 100 milhoes de vezes) do que a forca atrativa entre o nucleo
e os eletrons do atomo. Diante desta forca repulsiva enorme, porque os
nucleos simplesmente nao “explodem”? Resposta: por causa da forca
nuclear.
A forca nuclear esta associada a chamada interacao forte, uma das
quatro interacoes fundamentais da Natureza (capıtulo nove). As outras
tres sao: a gravitacional, a eletromagnetica e a interacao fraca. A forca
nuclear possui algumas caracterısticas muito peculiares:
(i) A distancias pequenas a forca nuclear e muito maior que a
coulombiana, mas cai muito rapidamente com o aumento da distancia.
Ela atua praticamente somente na regiao do nucleo (10−15 − 10−14 m);
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 241
(ii) A forca nuclear e independente da carga da partıcula. Entao,
enquanto a forca coulombiana repulsiva dentro do nucleo so atua entre
os protons, a forca nuclear ocorre tanto entre protons, quanto entre
neutrons ou entre protons e neutrons;
(iii) A forca nuclear entre duas partıculas no nucleo depende do spin
das partıculas;
(iv) Eletrons sao imunes a forca nuclear, ou seja, os eletrons do
atomo nao sentem a presenca desta forca.
Vamos resumir a situacao ate aqui: o atomo e formado por um
nucleo positivo e eletrons negativos que orbitam a sua volta. O que
mantem os eletrons em suas orbitas e a interacao coulombiana entre
eles e o nucleo. Esta interacao e de natureza eletromagnetica, e de
longo alcance. As partıculas do nucleo sao protons e neutrons, e sao
mantidas unidas pela acao da forca nuclear, uma interacao de curto
alcance e muito mais intensa do que a interacao coulombiana.
Podemos ate certo ponto descrever o comportamento de protons
e neutrons dentro do nucleo, da mesma forma que foi feito para os
eletrons no atomo. A forca nuclear esta associado um potencial nuclear
V que da origem a orbitais quanticos nucleares (equivalentes aos or-
bitais quanticos eletronicos do atomo), que sao ocupados pelos protons
e neutrons, obedecendo ao princıpio de exclusao. Isso da origem a
uma estrutura de camadas semelhante aquela dos eletrons atomicos
(protons e neutrons possuem spin 1/2 e portanto sao fermions). Em
particular, os spins e momentos angulares dessas partıculas do nucleo
se combinam para dar origem a um momento angular nuclear total, e
consequentemente a um momento magnetico nuclear. Como veremos
242
no capıtulo seis, e a existencia de momento magnetico nos nucleos o que
possibilita a observacao da ressonancia magnetica nuclear, importante
fenomeno, base da tomografia por ressonancia magnetica nuclear.
4.9 O Indivisıvel pode ser Dividido!
A palavra “atomo” significa indivisıvel. Isto quer dizer que nao pode-
mos dividir um atomo? Nao. Um atomo pode ser dividido, e se transfor-
mar em outro. Cada elemento e classificado de acordo com seu numero
atomico, ou seja, seu numero de protons. Assim, o uranio (U), por
exemplo, e aquele elemento que possui Z = 92. Acontece que para um
mesmo numero atomico, uma dada especie atomica pode ter numeros de
massa diferentes (ou seja, Z se mantem, mas N varia). Chamamos de
isotopos atomos que possuem o mesmo numero atomico, mas numeros
de massa diferentes. No caso do uranio existem varios isotopos difer-
entes. Um deles e o isotopo com A = 238, que dissemos ser o atomo
estavel mais pesado da tabela periodica. E comum representarmos um
isotopo com o seu sımbolo quımico e seu numero de massa sobrescrito.
Por exemplo, o isotopo 238 do uranio e representado por:
238U
Outros isotopos do uranio sao:
232U 233U 234U 235U 236U 237U 239U
Todos eles possuem Z = 92, mas o numero de neutrons aumenta de 1
em 1 de N = 140 ate N = 147.
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 243
Acontece uma coisa curiosa com alguns isotopos: nem todos “vivem”
para sempre. Alguns espontaneamente se transformam em outros atomos
(capıtulo sete), sofrendo uma transmutacao. Diz-se dos atomos que
apresentam esta propriedade que sao “instaveis”5. O processo pode
levar milhoes de anos para alguns, e fracoes de segundos para outros.
Chamamos de meia-vida o tempo caracterıstico para um atomo instavel
sofrer uma transmutacao ou decaimento. Por exemplo, o 233U possui
uma meia-vida de 0,16 milhao de anos, enquanto a do 237U e de apenas
6,75 dias. Ja o 239U tem uma meia-vida de 23,5 minutos.
Existem basicamente tres tipos de decaimento nuclear: por emissao
alfa, por emissao beta e por emissao gama. Partıculas alfa, como ja
mencionamos, sao nucleos de atomos de helio, ou atomos de helio du-
plamente ionizados. Possuem dois protons e dois neutrons (Z = 2,
N = 2, A = 4). Portanto, quando um nucleo emite uma partıcula alfa,
sua carga (e portanto seu numero atomico) decresce de 2 unidades,
enquanto sua massa decresce de 4 unidades. Um exemplo tıpico de
emissor alfa e o 232U, que tem meia- vida de 72 anos. Ao emitir uma
partıcula alfa, sua massa passa de 232 para 228 e seu numero atomico
de 92 para 90, se transformando no torio (228Th). No capıtulo sete
falaremos mais sobre este e os outros tipos de decaimento.
Os isotopos que “vivem para sempre” sao chamados de isotopos
estaveis. No caso do uranio existem dois isotopos estaveis, o 235U e o
238U, mas eles nao existem na mesma proporcao na Natureza; o primeiro
representa apenas 0,72% do total, e o segundo 99,275%. Chamamos de
5Esta instabilidade e uma propriedade do nucleo, como veremos com mais de-talhes no capıtulo sete.
244
abundancia isotopica estes percentuais. O isotopo 235U e muito espe-
cial, e sera explorado posteriormente no capıtulo sete, quando falarmos
de energia nuclear. Ele possui a capacidade de capturar neutrons e se
dividir, em um processo chamado de fissao nuclear. Cada vez que se
divide, libera energia, e mais neutrons, que podem ser capturados no-
vamente por outros isotopos do mesmo tipo, levando por sua vez a mais
energia e mais neutrons. Este fenomeno e a base para o funcionamento
de uma bomba nuclear (ou bomba atomica) ou de um reator nuclear.
Mais sobre isso no capıtulo sete.
Nucleos instaveis emitem partıculas de diversos tipos. O fenomeno e chamadode radioatividade, porque foi primeiro observado no elemento quımico radio. Suaexistencia prova que o atomo nao e indivisıvel, como a palavra sugere.
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. Caos no Mundo Atomico e Subatomico, H. Moyses Nussenzveig, vol. 14, no.
CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 245
80, p 6.
2. Os Segredos do Atomo, Vanderlei Salvador Bagnato, vol. 10, no. 60, p 10.
3. Atomos a Vista, George G. Kleiman, vol. 5, no. 28, p. 22.
4. Controlando Atomos com Luz, Vanderlei Salvador Bagnato e Sergio C. Zılio,vol. 9, no. 53, p. 41.
5. Colorindo o Invisıvel: quando os Atomos se Somam, Gilberto Fernandes deSa e Petrus d’Amorim Santa-Cruz, vol. 7, no. 38, p. 34.
6. Prisao de Luz para os Atomos, Luiz Davidovich, vol. 23, no. 134, p. 15.
7. O Eletron faz 100 Anos, Vicente Pleitzer e Rogerio Rosenfeld, vol. 22, no.131, p. 24.
8. Raios X. Descoberta Casual ou Criterioso Experimento?, Carlos Alberto dosSantos, vol. 19, no. 114, p. 26.
9. Controle do Atomo: Passos em Direcao aos Avancos do Proximo Seculo ,Vanderlei S. Bagnato, Maria Tereza de Araujo, Ilde Guedes, Debora Milori e SergioC. Zilio vol. 17, no. 101, p. 28.
246
Resumo - Capıtulo Quatro
Atomos sao compostos por duas partes principais: o nucleo e aeletrosfera. O nucleo e formado por protons e neutrons. Protons saopartıculas carregadas positivamente, enquanto que neutrons nao pos-suem carga. Praticamente toda a massa de um atomo esta concentradano seu nucleo. O numero de protons do nucleo de um atomo e chamadode numero atomico, e representado por Z. O numero de neutrons e rep-resentado por N , e a quantidade Z + N e chamada numero de massa,e representada por A. A interacao que mantem os protons e neutronsligados no nucleo e chamada de interacao forte; esta forca e muito in-tensa na regiao do nucleo, ou seja dentro de um diametro da ordem de10−15 m, e cai muito rapidamente fora dele. Ela nao distingue carga,e atua igualmente entre protons e neutrons. A forca que mantem oseletrons ligados ao atomo e a interacao coulombiana entre a carga neg-ativa dos eletrons e a positiva do nucleo. Portanto, essa forca e denatureza eletromagnetica. Diametros de atomos sao da ordem de 10−10
m, ou angstrons (A). Entao, diametros atomicos sao cerca de 100 000vezes maiores que diametros nucleares. Os eletrons em torno do nucleoocupam orbitais atomicos. Cada orbital e caracterizado por uma funcaode onda que descreve uma distribuicao espacial de probabilidades paraas posicoes do eletrons naquele orbital. Atomos se ligam entre si paraformar moleculas e objetos maiores. O tipo de ligacao depende das carac-terısticas dos eletrons que ocupam os orbitais mais externos dos atomosenvolvidos. Eletrons em atomos possuem momento angular orbital, alemdo momento angular intrınseco, ou spin. Esses momentos angulares sesomam para dar origem a um momento angular total do atomo. Estepor sua vez confere ao atomo um momento magnetico. Atomos nao saoindivisıveis, como o nome sugere. A emissao espontanea de partıculaspelos nucleos de certos atomos e uma prova disso.
Chapter 5
Dos Atomos aosComputadores
Uma multidao lotava o Grande Auditorio para assisitir a inicializacao
do novo computador ‘Ultronico’. Presidente Pollo terminara seu dis-
curso. Estava bastante satisfeito: nao se importava muito com essas
ocasioes, e sequer entendia de computadores, mas sabia que este em
particular iria lhe economizar um bocado de tempo. Os fabricantes
asseguraram-lhe que dentre as tarefas que Ultronico seria capaz de
realizar, ele poderia tomar aquelas difıceis decisoes de Estado que o
deixavam tao aborrecido.
Adam sentia-se privilegiado por estar na cerimonia. Sentou-se na
terceira fila. Duas filas a sua frente estavam sua mae e o tecnocrata-
chefe responsavel pelo projeto de Ultronico. Seu pai, como sempre,
tambem estava la - sem convite, atras no salao, e cercado de guardas.
No ultimo minuto tentara explodir o computador. Esta tarefa havia
lhe sido atribuıda como iniciacao em uma faccao de um pequeno grupo
de ativistas que se auto-intitulava: O Grande Conselho da Consciencia
247
248
Psıquica. Ao tentar entrar na sala com explosivos, foi detectado por
inumeros sensores eletronicos e quımicos. Agora, como parte de sua
punicao era obrigado a assisitir a cerimonia de inicializacao de Ultronico.
Adam nao sentia muita afeicao pelos pais. Sentimentos assim nao
lhe diziam respeito. Durante os treze anos de sua vida havia sido edu-
cado em meio a grande luxo material, quase que exclusivamente por
computadores. Podia ter qualquer coisa que desejasse simplesmente
apertando uma tecla: comida, bebida, companhia, diversao, e tambem
educacao, sempre que julgasse necessario.
Agora o Projetista Chefe estava terminando o seu discurso:“...possui
mais de 1017 unidades logicas. E mais do que o numero de neuronios
em todos os cerebros do paıs! Sua inteligencia sera inimaginavel. Mas,
felizmente, nao precisamos tentar imagina-la. Todos teremos o pri-
vilegio de agora assistı-la ao vivo: eu convido a Primeira Dama, senhora
Isabella Pollo, para ligar o nosso fantastico Computador Ultronico!”
A esposa do Presidente aproximou-se. Um pouco nervosa e de-
sajeitada, apertou a tecla ‘on’. Fez-se um grande silencio. Algumas
luzes piscaram quase que imperceptivelmente quando as 1017 unidades
logicas foram ativadas. Todos olhavam sem saber direito o que viria a
seguir. “Alguem na plateia gostaria de iniciar o nosso Sistema Ultronico
fazendo a primeira pergunta?” perguntou o Projetista Chefe. To-
dos sentiam-se acanhados, e com medo de parecer estupidos diante da
plateia - e diante da Nova Onipresenca. Havia silencio. “Certamente
havera alguem”, ele insistiu. Todos estavam amedrontados, como que
diante de uma nova consciencia toda poderosa. Com excecao de Adam.
Ele havia crescido entre computadores, e sabia quase como um deveria
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 249
se sentir. Adam levantou a mao. “Ah, sim”, disse o Projetista Chefe.
“O rapaz na terceira fila. Voce tem uma pergunta para o nosso - ah
- novo amigo?” (The Emperor’s New Mind - A Nova Mente do
Imperador - R. Penrose, Vintage 1990)1
5.1 Objetos Macroscopicos
O leitor achara curioso olhar a sua volta e observar a diversidade de ma-
teriais que o cerca. No momento em que escrevo este texto reconheco
as varias partes de plastico que formam o teclado do meu computa-
dor, o metal que forma a cabine, o vidro do monitor, e imagino os
materiais que formam os fios, as resistencias, capacitores, indutores,
chips, e outros componentes dentro da cabine. Alem disso, a mesa
de madeira, a parede de tijolos, a cortina de tecido, etc. Nossa vida
e absolutamente dependente da nossa capacidade de criar e manusear
materiais, para adapta-los as nossas necessidades. O plastico do teclado
do meu computador, deve ter propriedades diferentes do plastico de um
saco de lixo. Materiais possuem propriedades fısicas distintas: alguns
sao condutores eletricos (como o cobre dos fios), outros sao isolantes
(como o plastico do teclado), alguns sao magneticos (como a agulha
de uma bussola), uns sao duros (como o diamante), outros maleaveis
(como o chumbo), etc. Como esses materiais se formam e como eles
adquirem essas propriedades? Este e um vasto campo de pesquisa, mas
fundamentalmente as propriedades fısicas de objetos macroscopicos re-
fletem as especies atomicas que formam o material, os tipos de ligacoes
1A surpreendente pergunta de Adam para o computador voce ficara sabendo aofinal do Capıtulo.
250
quımicas entre os atomos, e as estruturas espaciais nas quais os atomos
e moleculas se arranjam para formar o material.
A parte da fısica que se ocupa do estudo dos materiais e chamada
Fısica da Materia Condensada. E preciso distinguir a abordagem dada
pelos fısicos de outras abordagens, como por exemplo, a do engenheiro.
Este ultimo esta essencialmente interessado nos aspectos praticos e
utilitarios dos materiais. Se, por exemplo, um engenheiro mecanico
precisa de uma peca de metal que seja boa condutora de eletricidade,
e ao mesmo tempo ma condutora de calor, para ser utilizada como
parte de um motor, ele simplesmente pode ir a sua oficina e fazer al-
guns testes com varios metais, ate encontrar o que precisa. O fısico
da materia condensada esta interessado em saber como e porque um
determinado metal consegue conduzir mais calor ou eletricidade do que
outro. Para isso ele procura descrever as propriedades de conduzir
calor e eletricidade a partir da compreensao que possui das interacoes
entre os atomos e os eletrons que formam o material. Ou seja, tenta
explicar propriedades macroscopicas dos materiais a partir dos mode-
los teoricos criados para o mundo microscopico. Mas, como vimos nos
ultimos dois capıtulos, o mundo microscopico e governado pelas leis da
mecanica quantica. Portanto, para o fısico da materia condensada, a
mecanica quantica e uma ferramenta de trabalho da qual ele se utiliza
para descrever as propriedades fısicas dos materais. Aqui uma con-
statacao notavel: ao tentarmos “reconstruir” o mundo macroscopico a
partir do microscopico utilizando as leis da mecanica quantica, e de se
esperar que as propriedades fısicas resultantes como, por exemplo, a de
conduzir corrente eletrica, ou conduzir calor, de certa forma guardem
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 251
uma “memoria quantica”. Por exemplo, podemos compreender porque
ao aquecermos a ponta de um garfo, o calor chega ate a outra ponta e
queima a nossa mao, enquanto o mesmo nao acontece com um pedaco
de vidro, utilizando as leis da mecanica quantica!
Um tipo de material em particular e o responsavel por uma re-
volucao tecnologica que alterou as nossas vidas de maneira drastica e
definitiva: os semicondutores. Estes sao a “materia prima” do “cerebro”
de um computador.
5.2 Periodicidade na Natureza
As propriedades fısicas dos materiais estao em grande parte relacionadas
ao modo como os atomos que os compoem se organizam espacialmente.
Podemos imaginar os atomos em um solido ligados quimicamente entre
si como se fossem pequenas bolas presas por hastes de arame, for-
mando uma estrutura. O comprimento de cada haste representa a
distancia interatomica. Em certos tipos de materiais este arranjo espa-
cial e aleatorio. E como se cada haste tivesse um comprimento difer-
ente da outra, e estivesse orientada de modo aleatorio no espaco. Estes
tipos de materiais sao chamados de amorfos. Um exemplo de material
amorfo e o vidro comum (desses que usamos em janelas). Em outros
tipos de materiais algo surpreendente acontece: os atomos se arranjam
espacialmente de uma maneira absolutamente regular. Tais materiais
sao chamados de cristalinos. O diamante e os metais sao exemplos de
materiais cristalinos. Somente materiais solidos apresentam cristalin-
idade; lıquidos e gases sao sempre amorfos. Todas as substancias da
252
tabela periodica se solidificam com algum tipo de cristalinidade, e para
cerca de 2/3 dos elementos, o material formado e um metal. Nao e de
surpreender a importancia dos metais para a nossas vidas!
Chamamos de rede cristalina esta estrutura espacial regular de ato-
mos. A regularidade e responsavel por varias propriedades importantes
dos solidos. Imagine uma rede cristalina como uma repeticao de uma
estrutura basica contendo alguns ıons presos a ela, por todo o espaco.
Por exemplo, imagine um cubo de aresta a onde em cada vertice existe
um ıon preso. A rede cristalina consiste na repeticao do cubo por
todo o espaco. Se colocarmos a origem de um sistema de coordenadas
sobre um atomo na base do cubo, os atomos nas direcoes x, y e z
podem ser localizados pelos vetores ai, aj e ak. Se tivessemos um
paralelepıpedo com arestas a, b e c, ao inves de um cubo, terıamos ai,
bj e ck. Chamamos esses vetores de vetores de base, e de uma maneira
geral os representamos por a1, a2 e a3. Qualquer atomo (ou ıon) em
uma rede cristalina pode ser localizado a partir de um certo numero
inteiro desses vetores de base. Representamos por R a posicao generica
de um ıon em uma rede cristalina:
R = n1a1 + n2a2 + n3a3
onde n1, n2 e n3 sao numeros inteiros. Por exemplo, em uma rede qual-
quer, o ıon da origem possui (n1, n2, n3) = (0, 0, 0); o ıon na posicao
adjacente sobre o eixo x possui (n1, n2, n3) = (1, 0, 0). O que se encon-
tra sobre o eixo z a dez cubos acima da origem possui (n1, n2, n3) =
(0, 0, 10); o primeiro ıon sobre a diagonal do cubo tera (n1, n2, n3) =
(1, 1, 1), e assim por diante.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 253
A distancia de um dado atomo ate a origem e dada pelo modulo
do vetor2 R: |R| = R =√n2
1|a1|2 + n22|a2|2 + n2
3|a3|2. Os modulos
dos vetores de base variam de alguns angstrons a algumas dezenas de
angstrons, dependendo do cristal, mas tipicamente estes valores estao
entre 5 e 15 angstrons. Entao, em um cristal cubico, para o qual |a1| =
|a2| = |a3| = 8, 5A, o atomo em (n1, n2, n3) = (2, 5,−7) (ou seja, com
vetor posicao R = 2i+5j−7k) dista da origem de R =√
4 + 25 + 49×8, 5 ≈ 75, 1A.
Um material cristalino contrasta com um amorfo por apresentar regularidade espa-cial no arranjo de seus atomos.
Agora vamos discutir um pouco a ideia que temos sobre os metais.
A caracterıstica mais marcante de um metal e a sua capacidade de con-
duzir corrente eletrica. Todos os fios que passam por dentro das paredes
das nossas casas, e que sao ligados a lampadas, tomadas, eletrodomesticos,
2Supoe-se um sistema de coordenadas triortogonal.
254
etc. sao feitos de algum tipo de metal. Alem disso, metais sao maleaveis,
o que os torna apropriados a moldagem, como por exemplo em um
parafuso, um alicate, uma panela ou ate mesmo em uma escultura. Se
elevarmos sua temperatura acima de um valor crıtico, metais podem
ser fundidos, ou seja, tornam-se lıquidos. Colocados em um molde e
resfriados, adquirem a forma do molde. Ao retornar ao estado solido, o
metal continua com as mesmas caracterısticas fısicas que tinha antes da
fusao. Estes sao exemplos de propriedades macroscopicas dos metais
que os tornam uteis a nossa vida. Mas, como compreender estas pro-
priedades de um ponto de vista microscopico? Ou seja, como as leis da
mecanica quantica conferem aos metais suas propriedades? A resposta
esta em parte relacionada a periodicidade espacial dos atomos na rede,
e em parte ao princıpio de exclusao de Pauli.
Uma rede cristalina tridimensional e construıda a partir da repeticao de uma celulabasica no espaco.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 255
5.3 Porque a Lata Difere do Diamante?
No capıtulo anterior falamos brevemente da ligacao metalica; dissemos
que os eletrons de um metal se deslocam livremente entre os ıons. Sao
os ıons que formam a estrutura cristalina. Ou seja: em um metal os ıons
podem ser considerados em posicoes fixas e regulares, formando a rede
cristalina, enquanto que os eletrons se movem livremente entre eles.
Tudo se passa como se os eletrons formassem um gas cujas partıculas
se movessem entre os ıons, ocasionalmente se chocando com eles. De
fato, esta imagem do gas e muito utilizada para compreendermos certas
propriedades dos metais. Contudo, devemos lembrar que trata-se aqui
de um gas especial: um gas de eletrons (lembre que estes eletrons ocu-
pavam as camadas mais externas dos atomos antes deles constituirem o
metal). Mas, como vimos, eletrons sao partıculas com spin semi-inteiro,
S = 1/2, e por isso sao chamados de fermions. Nos referimos entao aos
eletrons nos metais como formando um gas de Fermi. Outra coisa a ser
lembrada do capıtulo anterior e que nem todos os eletrons dos atomos
que formam metais se tornam “livres” para compor este gas. De fato,
a grande maioria permanece preso aos proprios atomos de origem, e so
aqueles das camadas mais externas conseguem se libertar.
Sao os eletrons do gas de Fermi os responsaveis pela corrente eletrica
nos metais. Como eles sao livres para se deslocar, ao aplicarmos um
campo eletrico a um pedaco de metal (por exemplo ligando um pedaco
de fio de cobre aos terminais de uma bateria), os eletrons do gas ficam
sujeitos a uma forca eletrica F = −eE, e se deslocam na direcao do
campo. O que evita o aumento indefinido da corrente sao precisamente
256
as colisoes entre os eletrons e os ıons. Deste ponto de vista, a unica
diferenca entre um metal como o alumınio de um garfo, e um isolante
como o diamante, e a existencia de um gas de Fermi no primeiro. Mas
so com isso ainda nao podemos compreender porque em alguns casos
os eletrons mais externos dos atomos se libertarao para formar o gas, e
em outros nao. Ou seja, o que determina, em ultima instancia, se um
material e condutor ou isolante? Com a palavra, Sua Exa., a Mecanica
Quantica.
5.4 Autoestados em uma Caixa Periodica
A ideia mais simples que podemos ter a respeito de eletrons em um
metal, e a de uma caixa cubica contendo um numero muito grande de
partıculas carregadas, que podem se mover livremente.
Vimos no capıtulo tres que a energia de um eletron que se desloca
livremente pelo espaco e dada por:
E =p2
2m=h2k2
2m
onde k = p/h e o modulo do vetor de onda do eletron, e pode ter
qualquer valor. Temos agora que considerar o que acontece com essas
energias quando o eletron se desloca dentro de um material cristalino,
ao inves de livremente. Vimos que a rede cristalina e constituıda por
varias “caixinhas” que se justapoem preenchendo o espaco. Entao, um
bom ponto de partida para resolver o nosso problema e estudar o que
ocorre com um eletron dentro de uma caixa. Como veremos abaixo, a
caixa limita o movimento do eletron, e isso altera os valores de energia
que ele pode adquirir.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 257
Imagine uma caixa cubica com aresta L e com volume V = L3.
Como dentro da caixa o eletron esta livre, a funcao de onda associada
a cada estado eletronico k dentro dela sera:
ψk(r) =1√Veik·r
ou, em termos das componentes cartesianas de r e k:
ψk(x, y, z) =1√Veikxx+ikyy+ikzz =
1√Veikxxeikyyeikzz
Note que a probabilidade por unidade de volume de encontrarmos um
eletron em qualquer posicao dentro da caixa e constante (ou seja, in-
depende de x e k) e igual a
|ψk(r)|2 = ψ∗k(r)ψk(r) =
1√Veik·r × 1√
Ve−ik·r =
1
V
Agora devemos nos perguntar o que acontece com um eletron que chega
perto de uma das faces do cubo, ou seja, em x = L, y = L ou z = L. E
intuitivo pensarmos que, como temos certeza que o eletron esta dentro
do volume V , a sua funcao de onda deve se anular para esses valores
de x, y e z. Caso contrario estarıamos afirmando que o eletron poderia
ser encontrado do lado de fora da caixa! Consequentemente, devemos
impor a condicao de que a funcao de onda se anule nessas posicoes, ou
seja:
ψk(L, y, z) = ψk(x, L, z) = ψk(x, y, L) = 0
Consequentemente:
eikxLeikyyeikzz = eikxxeikyLeikzz = eikxxeikyyeikzL = 0
258
Cada uma dessas tres condicoes se aplica independentemente das outras
duas. Tomemos, por exemplo, a condicao eikxLeikyyeikzz = 0. Como
ky, kz e y, z sao arbitrarios, a condicao acima implica em
eikxL = cos(kxL) + isen(kxL) = 0
Para que esta equacao seja satisfeita, e preciso que os termos do lado
direito da primeira igualdade se anulem individualmente. Acontece
que nao existe nenhum valor do argumento kxL tal que isto ocorra! Se
tivessemos somente a parte real ou somente a imaginaria desta equacao,
a condicao imposta seria respectivamente satisfeita para kxL = nxπ/2
ou kxL = nxπ, onde nx e ımpar no primeiro caso, e qualquer inteiro
no segundo. Podemos repetir o argumento para as componentes y e z
de ψ. Entao, neste caso, a condicao que impusemos sobre a funcao de
onda obriga que ela seja uma funcao senoidal (ou cossenoidal) simples:
ψk(x, y, z) = Asen(kxx)sen(kyy)sen(kzz)
onde A e uma constante. A funcao acima se anula nas paredes da caixa,
sob as condicoes de que kxL, kyL e kzL sejam iguais a multiplos inteiros
de π. Esta funcao portanto descreve apropriadamente um eletron preso
dentro de uma caixa. Note que agora a distribuicao de probabilidades
nao e mais uniforme, mas dada por:
|ψk(x, y, z)|2 = A2sen(kxx)2sen(kyy)2sen(kzz)2
Esta imposicao feita sobre a funcao de onda leva as seguintes condicoes
sobre as componentes do vetor de onda:
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 259
kx =π
Lnx, ky =
π
Lny, kz =
π
Lnz
onde nx, ny, nz sao numeros inteiros3 Ou seja, tal imposicao leva a uma
quantizacao das componentes do vetor de onda k:
k =π
L(nxi + nyj + nzk)
(nao confunda o vetor de onda k do lado esquerdo como vetor unitario
k da direcao z do lado direito. A situacao de escassez e tao grave
que esta comecando a faltar ate letra!). Consequentemente, as energias
possıveis dentro da caixa tambem se tornam quantizadas:
E =h2k2
2m=
h2π2
2mL2(n2
x + n2y + n2
z)
Este e o efeito geral de prendermos um eletron dentro de uma caixa:
tornarmos quantizados os seus nıveis de energia, que caso contrario
formariam um espectro contınuo.
Por exemplo, para nx = ny = 0, e nz = 1:
E =h2π2
2mL2
Se, por outro lado, nx = ny = nz = 1 a energia do eletron sera:
E = 3h2π2
2mL2
e assim por diante. nx, ny e nz sao numeros quanticos que caracterizam
os estados eletronicos dentro da caixa.
3Note que desta forma teremos kxx = xnxπ/L. Ou seja, quando x = L, kxx =nxπ e a funcao de onda se anula. O mesmo ocorre para as outras componentes.
260
Uma outra maneira de abordar o problema e ao inves de modificar-
mos a funcao de onda, mantermos a sua forma exponencial, e modifi-
carmos as condicoes impostas sobre ela nas paredes da caixa. E neste
ponto onde o problema do eletron em uma caixa evolui para o prob-
lema de um eletron em um cristal. Poderıamos imaginar o cristal como
varios cubos, cada qual com volume V , justapostos, de maneira que
quando um eletron chegar em uma das faces, ele simplesmente “entra”
no cubo vizinho. Como todos os cubos sao identicos, posicoes equiva-
lentes em cubos diferentes terao associadas os mesmos valores da funcao
de onda4. Ou seja, a funcao de onda se tornara uma funcao periodica
espacialmente, com perıodo igual ao comprimento L. Tal periodicidade
e expressa matematicamente por:
ψk(x, y, z) = ψk(x + L, y, z)
ψk(x, y, z) = ψk(x, y + L, z)
ψk(x, y, z) = ψk(x, y, z + L)
Estas condicoes podem parecer menos intuitivas que as anteriores, mas
elas sao mais convenientes, pois com elas a forma de exponencial com-
plexa da funcao de onda pode ser mantida. Como veremos abaixo, isso
nao modifica substancialmente os estados de energia dentro da caixa.
As vezes em fısica temos que deixar de lado a intuicao em benefıcio das
conveniencias matematicas! Substituindo a primeira condicao acima na
forma exponencial da funcao de onda, obtemos:4Mais precisamente, e o modulo quadrado de ψ que se repetira dentro do cristal.
Suponha, hipoteticamente, que tenhamos L = 10A, e que |ψ(x = 3A, y = 0, z =0)|2 = 0, 01. Como os cubos sao equivalentes, deveremos ter |ψ(x = 3, y = 0, z =0)|2 = |ψ(x = 13, y = 0, z = 0)|2 = |ψ(x = 23, y = 0, z = 0)|2 = 0, 01, etc.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 261
eikxxeikyyeikzz = eikxLeikxxeikyyeikzz ⇒ eikxxeikyyeikzz(eikxL − 1) = 0
que leva a:
eikxL = 1
Esta condicao e satisfeita para5 kxL = 2nxπ ou kx = 2nxπ/L com nx
um inteiro. Chegamos entao a um resultado semelhante ao anterior,
somente mudando as condicoes sobre as funcoes de onda. Repetindo
o procedimento para as outras componentes obtemos ky = 2nyπ/L e
kz = 2nzπ/L. Note que a unica diferenca entre os dois casos e o fator
‘2’ multiplicativo. As energias nesse caso se tornam:
E =h2k2
2m=
2h2π2
mL2(n2
x + n2y + n2
z)
E importante lembrar que ambas funcoes de onda representam eletrons
livres em uma caixa. No entanto, a funcao exponencial complexa des-
creve uma distribuicao de probabilidades uniforme, enquanto que a
funcao senoidal nao. Em se tratando de eletrons em cristais e preferıvel
trabalhar com a forma exponencial. Mas, o importante no momento nao
e a forma da funcao de onda, e sim os valores possıveis para as energias
dos eletrons dentro da caixa. Definindo a quantidade ε = 2h2π2/mL2,
podemos escrever as energias acima sob a forma
E = ε(n2x + n2
y + n2z)
5Note que agora nao temos de escolher entre o seno ou o cosseno da funcao deonda.
262
Cada estado eletronico continua sendo caracterizado por tres numeros
quanticos, nx, ny e nz, e pode, de acordo com o princıpio de exclusao,
acomodar no maximo dois eletrons, com spins opostos. A tıtulo de
exercıcio, vamos calcular a quantidade ε. Substituindo o valor 10A =
10−9 m para L, obtemos:
ε =2 × 1, 052 × 10−68 × 3, 142
9, 11 × 10−31 × 10−18= 2, 39 × 10−19 J = 1, 5 eV
Se o gas possui N eletrons, cada par ocupara um estado. Por exem-
plo, a energia mais baixa e dada por nx = ny = nz = 0, que corresponde
a E = 0. Neste estado podemos colocar 2 eletrons. O estado imediata-
mente acima corresponde a E = ε. Para este valor de energia temos 6
possibilidades distintas:
(nx, ny, nz) = (±1, 0, 0); (0,±1, 0); (0, 0,±1)
Podemos acomodar entao 12 eletrons com energia ε. O proximo nıvel
de energia e E = 2ε, para o qual podemos ter
(nx, ny, nz) = (±1,±1, 0); (±1, 0,±1); (0,±1,±1)
num total de 12 estados onde cabem 24 eletrons. E assim por diante,
ate chegarmos ao ultimo dos N eletrons do gas. Note a semelhanca
entre este problema e aquele do preenchimento dos nıveis de energia
do atomo: la tambem tınhamos 3 numeros quanticos, n, l e ml, e para
cada um desses conjuntos poderıamos colocar ate 2 eletrons. E como
se a nossa caixa com volume V e N eletrons fosse um enorme atomo!
O ultimo eletron do gas ocupara o estado de maior energia possıvel,
que obviamente tera a ele associado o maior valor possıvel de vetor
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 263
de onda. Este valor dependera do numero total de eletrons N . Se
N = 2, somente o estado E = 0 estara ocupado, e o vetor de onda
associado sera kmax = 0; se N = 4, a maior energia sera E = ε, e o
respectivo vetor de onda kmax =√
2mε/h, e assim por diante. Para um
gas de eletrons em um metal, o valor de N e monstruosamente grande,
algo da ordem de 1023. O valor da energia mais alta possui um nome
especial (e pouco imaginativo!): energia de Fermi, representada por
EF . Associada a energia de Fermi esta o vetor de onda de Fermi: kF .
A relacao entre as duas quantidades e dada por:
EF =h2k2
F
2m
Nos metais o valor de EF varia entre 5 e 10 eletronvolts, e kF e tipica-
mente da ordem de 1, 5 × 1010 m−1.
A esfera de Fermi representa a configuracao de menor energia de um numero muitogrande de eletrons que nao interagem entre si.
264
5.5 O Mundo e Quantico!
Na secao anterior vimos que os autoestados de um eletron dentro de
uma caixa periodica sao quantizados de zero ate um valor maximo EF .
Note que esta e uma consequencia somente da periodiciade da caixa
e do princıpio de exclusao. O que vamos considerar agora e o que
acontece quando os ıons sao inseridos nestas caixas para formar a rede
cristalina.
Imagine um eletron deslocando-se entre os ıons positivos que for-
mam a rede cristalina. Como o eletron possui carga negativa, ele sentira
a presenca dos ıons atraves da interacao coulombiana. Chamamos esta
acao dos ıons da rede cristalina sobre os eletrons de potencial crista-
lino. Se so houvesse 1 unico ıon, a interacao seria aquela que ja vi-
mos, proporcional ao produto das cargas e inversamente proporcional a
distancia. Mas o que temos agora nao e um unico ıon, e sim um arranjo
periodico de ıons. Esta periodicidade se reflete no potencial cristalino,
que tambem se torna uma funcao periodica da posicao dos ıons. Por
exemplo, para simplificar vamos imaginar uma rede cristalina unidi-
mensional ao longo do eixo x, com os ıons separados por uma distancia
a. A posicao de qualquer ıon nesta rede especial sera dada por R = nai,
com n inteiro. O ıon da origem correspondera a n = 0, o primeiro ıon
a esquerda n = −1, o segundo da direita n = 2, e assim por diante.
Considere entao um eletron que se encontra em uma posicao x, medida
a partir da origem, por exemplo, x = a/3. Nesta posicao o eletron
“sente” um certo valor do potencial cristalino, devido a todos os ıons
da rede. Considere entao um eletron e o desloque da posicao x para a
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 265
posicao x+ a = 4a/3. Ora, exatamente devido a periodicidade da rede
cristalina, o eletron nao distinguira essa nova posicao da anterior. Isto
quer dizer que o potencial cristalino que ele sente em x sera identico
ao que ele sentira em x + a. Ou seja, o potencial sera uma funcao
periodica, cujo perıodo e exatamente o espacamento entre os ıons. Se
representarmos por V (x) a energia potencial do eletron na posicao x,
podemos expressar matematicamente esta periodicidade por:
V (x) = V (x + a)
Para um cristal real em tres dimensoes, substituimos x por r, e a por
R; o primeiro vetor e a posicao do eletron no espaco, o segundo e a
posicao de um ıon qualquer na rede. A expressao acima se torna neste
caso:
V (r) = V (r + R)
Potencial periodico em 1 dimensao. Ao se deslocar da posicao x para x + a, umeletron percebera exatamente a mesma vizinhanca, e consequentemente o mesmopotencial.
266
Esta propriedade de periodicidade do potencial e de suma importancia
para as propriedades fısicas dos solidos cristalinos. Note que sequer
mencionamos a forma funcional de V , ou seja, como V varia com r,
mas apenas que a funcao V (r) possui periodicidade espacial. Se o
eletron fosse livre, seu espectro de energia seria contınuo, e ele poderia
ter qualquer valor de energia, ou equivalentemente estar em qualquer
estado k. Ao contrario, na caixa este espectro se torna quantizado, em
unidades de uma quantidade mınima ε. Ao considerarmos o potencial
cristalino, como efeito geral da sua periodicidade, o espectro ja quan-
tizado pela caixa, e adicionalmente desdobrado em regioes permitidas
e regioes proibidas de energia. Ou seja, o potencial faz com que algu-
mas regioes do espectro de energia nao existam mais. As regioes com
estados de energias disponıveis sao chamadas de bandas de energia, e
as regioes proibidas de hiatos ou lacunas (‘gaps’, em ingles). Dentro
de uma banda de energia os autoestados podem ainda ser escritos com
uma forma semelhante a do eletron livre, apenas com um novo sımbolo
para a massa do eletron:
E =h2k2
2m∗
onde agora, ao inves de m, utilizamos m∗ para a massa do eletron. Esta
quantidade e chamada de massa efetiva.
Vamos fazer uma pausa para discutirmos esta interessante ideia de
massa efetiva. Para entende-la vamos recorrer ao oscilador harmonico.
Suponha que voce queira medir a massa de um objeto observando suas
oscilacoes quando preso a uma mola. Voce prende o objeto na mola,
cuja constante elastica k voce conhece. Poe o sistema para oscilar, e
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 267
com a ajuda de um cronometro mede o perıodo de oscilacao, τ . A par-
tir do perıodo, voce calcula a frequencia angular ω = 2π/τ . Mas por
outro, lado voce sabe que a frequencia angular e dada por ω =√k/m,
e na medida em que k e conhecida, a massa pode ser obtida da relacao
m = k/ω2. O que aconteceria se a experiencia fosse repetida dentro de
um lıquido, como por exemplo dentro de um tanque com agua? Obvia-
mente o perıodo de oscilacao mudaria, e consequentemente o valor me-
dido da massa. Qual o significado desse novo valor de massa? De certa
forma esse novo valor refletira as propriedades do lıquido; se colocar-
mos alcool ou oleo ao inves de agua, o valor medido da massa mudara.
Em ultima analise, o valor da massa medido desta maneira embute as
interacoes do objeto que se move com o meio no qual ele esta inserido.
Dizemos entao que medimos uma massa efetiva. A massa efetiva e a
massa real do objeto, revestida das interacoes entre ele e o meio. E uma
maneira de levarmos em conta interacoes cujos detalhes nao conhece-
mos! Em fısica e assim: tratamos com pompa e detalhes matematicos
o que conhecemos; ao que nao conhecemos associamos uma letra qual-
quer, damos um nome pomposo, e incluimos nos calculos. E barbaro!
O mesmo ocorre com o eletron no metal. Como nao conhecemos os
detalhes das interacoes entre ele e os ıons da rede, varremos tudo isso
para debaixo do tapete, quer dizer, para dentro da massa do eletron,
que passa entao a ser chamada de massa efetiva. Os fısicos adoram in-
ventar nomes extravagantes para essas coisas (talvez para dar um tom
de nobreza a carreira e compensar a baixa remuneracao!): dizemos que
a massa do eletron foi renormalizada.
268
.
O conceito de massa efetiva e uma maneira de levarmos em consideracao as in-teracoes de um objeto se movendo em determinado meio. Os efeitos do meio sobreo movimento se refletem na massa “aparente” do objeto.
Resumindo: eletrons que se deslocam dentro de caixas periodicas
possuem um espectro de energia quantizado. Quando ıons positivos
sao colocados nessas caixas para formar a rede cristalina, eles geram
sobre os eletrons um potencial eletrostatico que possui a periodicidade
da rede. O efeito deste potencial sobre os nıveis de energias dos eletrons
e dividir o espectro em bandas de energias, separadas por hiatos. Para
um eletron em um nıvel de energia dentro de uma dessas bandas, o
efeito da interacao pode ser incorporado a sua massa, que entao passa
a ser chamada de massa efetiva.
Devemos agora considerar o que acontece se tivermos nao somente
um, mas N eletrons. Os estados de energia dentro das bandas deverao
ser ocupados de acordo com o princıpio de exclusao de Pauli. O resul-
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 269
tado dessa ocupacao explica as diferencas entre materiais condutores e
isolantes.
5.6 Metais, Isolantes e Semicondutores
Vimos que o efeito geral do potencial cristalino e criar bandas de ener-
gias intercaladas por hiatos. Dados N eletrons, preenchemos os nıveis
de energia do mais baixo para o mais alto. Para simplificar, vamos
imaginar que temos somente duas bandas separadas por um hiato.
Dado um numero N de eletrons, como distribuı-los nos nıveis de energia
dentro de uma banda? Sabemos do princıpio de exclusao que cada es-
tado k pode acomodar no maximo dois eletrons. Podemos entao dividir
o problema em 3 situacoes possıveis: (i) N/2 e menor que o numero de
estados disponıveis na banda de energia mais baixa; (ii) N/2 e maior
que o numero de estados de energia disponıveis na banda mais baixa, e
(iii) N/2 e exatamente igual ao numero de estados disponıveis na banda
mais baixa.
Como estamos interessados em descrever a corrente eletrica nos ma-
teriais, devemos considerar o que ocorre em cada um dos casos acima
quando um campo eletrico e aplicado. A aplicacao do campo resulta
em um acrescimo de energia para cada eletron. Este acrescimo de
energia, por sua vez, implica em cada eletron mudar de seu estado, ini-
cialmente caracterizado por k, para outro caracterizado por k′ > k. No
caso (i) como os N eletrons nao chegam a preencher todos os nıveis da
banda mais baixa, nao ha problema. Os eletrons mais energeticos, com
k = kF passam para os estados vazios imediatamente acima e deixam
270
vagos seus estados anteriores para serem ocupados pelos eletrons ime-
diatamente abaixo, e assim por diante ate o estado com k = 0. Esta
e a situacao de um metal simples como o lıtio ou o sodio. O que
acontece no caso (ii)? Tambem nao ha problema. Como o numero de
eletrons ultrapassa os estados de energia disponıveis na banda inferior,
ao completa-la, simplesmente “pulamos” sobre o hiato e continuamos
preenchendo os estados na banda superior com o restante dos eletrons.
Para os eletrons da banda superior tudo se passa como no caso (i). Mas,
e para os eletrons que preencheram completamente a banda inferior?
Ao sentirem o campo eletrico eles tentam se mover, mas como a banda
esta completa, nao existirao estados disponıveis que eles possam ocu-
par. Consequentemente esses eletrons simplesmente nao se movem! A
condutividade eletrica neste caso e realizada apenas pelos eletrons que
estao na banda superior. Este tambem e um caso metalico, um pouco
mais complexo que o caso (i). Nao e difıcil imaginar o que ocorre no
caso (iii) onde o numero de eletrons preenche exatamente os estados
da banda inferior. Neste caso nao havera condutividade, e o material
sera um isolante! Entao, no que diz respeito a condutividade eletrica,
as diferencas entre metais e isolantes sao consequencias do modo como
as bandas de energias sao preenchidas nestes materiais.
Antes de prosseguirmos, vamos resumir o que foi dito ate aqui: os
dois ingredientes fundamentais para entendermos porque alguns ma-
teriais conduzem corrente eletrica e outros nao, sao: (a) o potencial
periodico da rede cristalina que cria uma estrutura de bandas de ener-
gia separadas por hiatos onde nao existem estados eletronicos e (b) o
princıpio de exclusao de Pauli que dita a maneira pela qual os estados
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 271
dentro de cada banda devem ser preenchidos.
O caso (iii) acima, onde o numero de eletrons preenche exatamente a
banda inferior e o importante caso dos isolantes, mas tambem descreve
a situacao dos materiais chamados semicondutores. Semicondutores
sao a materia prima de diodos e transistores, e possuem vastıssimas
aplicacoes na industria eletronica, principalmente na industria de in-
formatica. A diferenca entre o isolante e o semicondutor e basicamente
o tamanho do hiato de energia que separa as duas bandas. Se este
for muito grande, temos um isolante, mas se ele for suficientemente
pequeno, temos um semicondutor. Mas, o que significa ser suficiente-
mente pequeno? Significa que eletrons que ocupam estados no topo da
banda inferior (inicialmente preenchida) podem ser facilmente promovi-
dos para os primeiros estados da banda superior. Esta transferencia
de eletrons pode ocorrer meramente por um efeito de temperatura; a
agitacao termica dos eletrons faz com que alguns deles pulem do topo
da banda de baixo para o fundo da banda de cima.
Na proxima secao veremos como o numero de eletrons na “banda de
cima” de um semicondutor pode ser controlado, deste modo conferindo
a esses materiais suas propriedades eletricas especiais.
272
.
A classificacao de materiais em isolantes e semicondutores depende da estrutura debandas de energia de cada um e do preenchimento dos estados dentro das bandas.
5.7 Juncoes, Diodos e Transistores
Circuitos eletronicos sao conjuntos de pecas construıdas de materiais
e formas diferentes, ligadas eletricamente entre si, e que servem para
executar determinadas tarefas. Para entrarem em funcionamento, os
circuitos eletronicos precisam ser percorridos por uma corrente eletrica.
Como vimos, uma corrente eletrica flui sempre que houver um campo
eletrico aplicado a um material que possui cargas livres que possam
se mover. Na pratica, para termos um campo eletrico aplicamos uma
diferenca de potencial, como os 127 volts das tomadas de nossas casas,
ou aqueles 1,5 volts de uma pilha pequena. Por exemplo, um radio e um
circuito eletronico cuja finalidade e transformar a informacao contida
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 273
em uma onda eletromagnetica captada por sua antena, em ondas sono-
ras que possam ser ouvidas e compreendidas por nos. Se o nosso cerebro
tivesse a capacidade de detectar e decodificar ondas eletromagneticas,
nao precisarıamos de radio! Para o radio realizar esse truque e pre-
ciso que ele seja alimentado por uma bateria, ou seja, e preciso que
uma corrente eletrica percorra os seus componentes eletronicos. Cada
um desses componentes possui caracterısticas proprias, e responde de
determinada forma a passagem da corrente. Essas caracterısticas sao
expressas por curvas de voltagem versus corrente eletrica. Por exemplo,
um pedaco de fio pode ser considerado o componente eletronico mais
simples que se pode ter. Se ligarmos as pontas do fio aos terminais de
uma bateria de 1,5 volts, aparecera uma corrente percorrendo o fio. Se
colocarmos duas baterias em serie, de modo a obter 3 volts, a corrente
aumentara proporcionalmente, e assim por diante. Esta proporcionali-
dade e expressa pela famosa lei de Ohm:
V = RI
onde V e a voltagem aplicada, I e a corrente que percorre o fio, e R e
a sua resistencia. Note que a voltagem V e controlada externamente, e
portanto independe da forma, do tamanho ou diametro do fio. A cor-
rente I e o efeito que surge como consequencia da aplicacao de V , e a re-
sistencia R e uma caracterıstica do material e da sua forma geometrica,
que no caso de um fio comum e a de um cilindro. Mantendo-se a forma
do fio, ou seja, seu diametro e comprimento, materiais diferentes terao
valores de R diferentes. R esta tambem relacionada a processos mi-
croscopicos de colisoes dos eletrons com a rede cristalina ao se deslo-
274
carem dentro do material. Para um fio, R e inversamente proporcional a
area da secao transversal (ou seja ao quadrado do raio) do fio, A = πa2,
onde a e o raio da secao transversal do fio, e diretamente proporcional
ao seu comprimento l. Estes sao fatores geometricos; R e tambem pro-
porcional a resistividade, ρ, uma grandeza intrınseca ao material. Para
um fio, a expressao matematica da resistencia e:
R =l
Aρ
Para fios do mesmo material, se dobrarmos a area da secao transversal
R fica reduzida a metade, enquanto que se dobrarmos o seu compri-
mento, R tambem dobra. Podemos dizer grosso modo que o engenheiro
esta interessado em R, enquanto o fısico da materia condensada em ρ.
Para um metal comum como o cobre, esta quantidade, e dada por:
ρ =m∗
ne2τ
onde m∗ e a massa efetiva do eletron no material, n a densidade de
eletrons (ou seja, o numero de eletrons por unidade de volume de ma-
terial), e e o valor da carga do eletron. O parametro τ tem unidade de
tempo, e representa o fato de que ao se deslocarem sob a acao do campo
eletrico, os eletrons colidem com os ıons da rede. O significado fısico de
τ e o tempo medio entre duas colisoes sucessivas entre um eletron e os
ıons da rede. Note entao que ao medirmos R, sabendo o diametro e o
comprimento do fio, podemos calcular ρ, e consequentemente ter acesso
a quantidades microscopicas, como m∗ e τ ! Em fısica experimental e
sempre assim: mede-se alguma coisa, sabe-se a priori uma segunda, e
calcula-se uma terceira!
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 275
O fio metalico e o exemplo de resistor mais simples de todos. Sua
curva V vs. I e uma reta cuja inclinacao nos da o valor de R. O resistor
e um exemplo do que se chama em eletronica componente linear passivo.
Linear porque a corrente varia linearmente com a voltagem, e passivo
porque o valor de I nao depende de mais nenhuma outra voltagem alem
daquela aplicada aos seus terminais. Nem todos os objetos terao uma
curva simples assim. De fato, e precisamente a nao-linearidade de certos
componentes eletronicos que os torna uteis em eletronica. Particular-
mente importantes sao os transistores, objetos cuja curva V versus I
pode ser controlada por um sinal eletrico aplicado em um eletrodo de
controle. Transistores sao feitos de materiais semicondutores, e repre-
sentam o mais importante exemplo de componente eletronico ativo.
Recordando, um semicondutor e um material que possui uma banda
de energia completamente ocupada, um hiato de energias proibidas, e
outra banda com estados eletronicos disponıveis acima. A largura do
hiato e pequena o suficiente para que eletrons possam passar da banda
inferior para a banda superior. Chamamos de banda de valencia a
banda inferior, e banda de conducao a superior. Se o hiato for muito
grande, teremos um isolante ao inves de um semicondutor. Exemplos
de materiais semicondutores sao o germanio (Ge), o silıcio (Si), o ar-
seneto de galio (GaAs), o oxido de zinco (ZnO), entre outros. No Ge,
por exemplo, o hiato de energia entre a banda de valencia e a banda
de conducao e de 0,72 eV (1 eV = 1 eletronvolt e a energia adquirida
por um eletron ao atravessar uma diferenca de potencial de 1 volt). No
Si o hiato e de 1,1 eV. De maneira geral, a largura do hiato em semi-
condutores esta entre 1 e 3 eV. Esses materiais sao exemplos de semi-
276
condutores intrınsecos. Sao assim chamados porque sao substancias
puras, e suas caracterısticas de semicondutividade sao devidas somente
a propriedades intrınsecas dos elementos que os constituem. Acontece
que as propriedades eletricas de semicondutores intrınsecos podem ser
dramaticamente alteradas (e controladas!) se outros elementos forem
adicionados a rede cristalina semicondutora. Esses elementos “exter-
nos” sao incluıdos em quantidades extremamente pequenas, e por essa
razao sao chamados de impurezas (nao confunda ‘impureza’ com ‘su-
jeira’). Para entendermos como funciona uma juncao, um diodo e um
transistor, e preciso entender os efeitos de impurezas adicionadas a
semicondutores intrınsecos.
Semicondutores cujas propriedades eletricas sao controladas pela
adicao de impurezas em semicondutores intrınsecos, sao chamados de
extrınsecos. Tomemos como exemplo o Ge e o Si. Os atomos desses ele-
mentos possuem configuracoes eletronicas externas muito semelhantes:
o Ge termina com as camadas eletronicas 4s24p2, e o Si com 3s23p2.
Eventualmente o leitor tera notado que na coluna desses elementos na
tabela periodica todos os elementos terminam com 4 eletrons, dois em
um orbital p e dois em um orbital s. Sao esses eletrons que formam as
ligacoes covalentes no semicondutor. Portanto, em um cristal de Ge,
cada atomo contribui com 4 eletrons para a banda de valencia. Suponha
agora que um dos atomos de Ge seja substituıdo por um atomo de
arsenio (As). A configuracao eletronica do arsenio termina com 4s24p3,
ou seja, o As possui 1 eletron a mais que o Ge. Esse eletron extra nao
encontra vaga na banda de valencia da rede de Ge, e consequentemente
e obrigado a pular para a banda de conducao. Entao, a inclusao de uma
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 277
impureza de As em uma rede de Ge resulta em 1 eletron na banda de
conducao. Obviamente nao se consegue colocar 1 unico atomo em uma
rede, mas a concentracao de impurezas pode ser controlada com grande
precisao, o que permite o controle fino no numero de transportadores
de carga na banda de conducao de um semicondutor. Uma impureza
que doa um eletron para a banda de conducao, como o faz o As no
Ge, e chamada de doadora de eletrons, e o semicondutor assim formado
e chamado de tipo n (o ‘n’ tendo o significado de ‘negativo’, porque
cargas negativas foram doadas a rede original).
A inclusao de um atomo de Ga em uma rede de Ge resulta na remocao de umeletron da banda de valencia do material, deixando um buraco em seu lugar.
Na tabela periodica o As possui 1 eletron a mais do que o Ge e
esta a sua direita. Ao contrario, o galio (Ga) esta a esquerda do Ge, e
possui configuracao eletronica externa 4s23p1, ou seja, com 1 eletron a
278
menos que o Ge. O que acontece se ao inves de As colocarmos Ga em
uma rede de Ge? Exatamente o oposto: um dos eletrons da banda de
valencia originalmente pertencente ao Ge, ocupara uma vaga no atomo
de Ga, deixando um buraco na banda. Agora respire fundo e prepare a
sua paciencia, porque aqui acontece uma daquelas coisas que dao von-
tade de a gente largar a fısica e ir criar galinhas: buracos conduzem
eletricidade! E isso aı mesmo que voce acabou de ler; um buraco se
comporta como uma carga positiva dentro da banda de valencia, tanto
quanto um eletron se comporta como uma carga negativa na banda
de conducao, e se move sob a acao de um campo eletrico. No fundo,
no fundo, nao e tao estranho assim; com o tempo a gente se acos-
tuma e passa a considerar essas maluquices coisas normais. Imagine
uma banda de valencia totalmente ocupada, com excecao de uma unica
posicao eletronica que esta vazia. Este e o buraco. Suponha que um
campo eletrico seja aplicado. Cada eletron da banda ficara sujeito a
uma forca F = −eE. Se todas as posicoes estivessem ocupadas, o
princıpio de exclusao proibiria o surgimento de corrente eletrica. Mas
como existe uma vaga livre, um eletron proximo a essa vaga pode se
mover e pular para ela, deixando por sua vez a sua posicao vaga para
outro eletron se mover, etc. Assim, o movimento dos eletrons para um
lado, equivale ao movimento do buraco para o lado oposto. Temos com
isso uma corrente de buraco! Fısica e a ciencia mais economica que
existe: ate a ausencia de alguma coisa (como se supoe a respeito de um
buraco ) contribui para as propriedades fısicas de objetos. Para efeitos
de calculo, cada buraco se comporta como uma partıcula com massa,
carga, etc. E uma coisa de louco! Impurezas que criam buracos na
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 279
banda de valencia sao chamadas de receptoras de eletrons, e o material
semicondutor formado desse jeito e chamado de tipo p (o ‘p’ de ‘pos-
itivo’). Resumindo, a corrente eletrica em semicondutores do tipo n e
devida ao movimento de eletrons na banda de conducao, e em semi-
condutores do tipo p, devida a buracos na banda de valencia. Damos o
nome de dopagem ao processo controlado de introducao de impurezas
em semicondutores intrınsecos. Alias, voltando a essa historia de bu-
racos, eles normalmente estarao tambem presentes nos semicondutores
intrınsecos. Como dissemos, devido ao fato do hiato de energia ser
pequeno, eletrons no topo da banda de valencia pulam para a banda
de conducao por efeito da temperatura6. Se a temperatura for tal que
essa quantidade se torne da ordem do hiato, os eletrons da banda de
valencia podem pular para a banda de conducao, deixando buracos
para tras. Ao aplicarmos um campo eletrico, havera duas correntes:
uma de eletrons na banda de conducao, e outra de buracos na banda
de valencia. Cada uma para um lado!
6Lembre que a energia termica e medida por kBT , onde kB e a constante deBoltzmann. A temperatura ambiente, por exemplo, T = 300K, a energia termicae igual a 1, 38 × 10−23 J/K ×300 K = 4, 14 × 10−21 J, ou 0,026 eV. Se em umsemicondutor o hiato entre a banda de conducao e a de valencia for da ordemdeste valor, eletrons podem pular de uma banda para a outra por mero efeito datemperatura.
280
.
Em um semicondutor, o movimento de um eletron para uma direcao equivale aomovimento de um buraco para a outra. O buraco se comporta como uma partıculacom a mesma massa do eletron, porem com carga contraria.
Considere agora o que ocorre quando, no mesmo cristal semicon-
dutor, uma regiao e dopada com doadores de carga, e a outra com
receptores. Ou seja, o cristal e dividido em uma regiao do tipo n e
outra do tipo p. A regiao de juncao entre essas duas regioes e chamada
juncao pn. Juncoes pn sao a base de diodos e transistores semicon-
dutores. Os eletrons da regiao n tendem a fluir para a regiao p, e os
buracos da regiao p tendem a fluir para a regiao n. Na medida em
que isso ocorre, as cargas se acumulam dos dois lados, e um poten-
cial eletrostatico aparece, fazendo diminuir o fluxo. O resultado geral
deste acumulo de cargas negativas no lado p e positivas no lado n e
o aumento do potencial eletrostatico no lado p em relacao ao lado n.
Note que este potencial e uma propriedade intrınseca do material, e
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 281
so depende das concentracoes de impurezas p e n, e das caracterısticas
do semicondutor antes da dopagem. E facil ver que se tentarmos fazer
passar uma corrente eletrica por uma juncao pn, o resultado dependera
da direcao em que o campo eletrico e aplicado, ou, da polaridade do
potencial aplicado. Por exemplo, se aplicarmos um potencial positivo
no lado negativo, e negativo no lado positivo, a diferenca de potencial
interno sera acentuada, e nao havera fluxo de corrente. Se, por outro
lado, revertermos a polaridade, ou seja, potencial positivo aplicado no
lado positivo e negativo no lado negativo, a juncao conduzira. Temos
com isso um elemento de circuito nao linear, ou seja, sua curva V vs. I
diferente de uma reta. Note o contraste com o caso do fio metalico, para
o qual a corrente so depende do valor da voltagem, e nao da direcao
do campo eletrico. O que acabamos de descrever e o comportamento
de um diodo semicondutor, que so conduz para voltagens aplicadas em
determinada direcao.
Uma das aplicacoes mais comuns de juncoes pn sao os chamados
diodos LEDs, do ingles Light Emitting Diodes, ou diodos de emissao
de luz. Como vimos no capıtulo quatro, quando um eletron em um
atomo faz uma transicao de um nıvel de energia mais alto para um
mais baixo, ele emite um foton de energia. Nos LEDs ocorre algo
semelhante: a voltagem interna na juncao pn e construıda de modo
que o foton emitido por um eletron que decaia da banda de conducao
para a banda de valencia esteja na regiao do visıvel.
Transistores por sua vez nada mais sao do que duas juncoes pn (ou
dois diodos) justapostas7 . Podem ser do tipo pnp ou do tipo npn, de-
7Transistores construıdos desta forma sao chamados de transistores bipolares.
282
pendendo da maneira como os diodos sao conectados. Sao o exemplo
mais importante de componentes ativos em eletronica, ou seja, com-
ponentes que quando alimentados por um sinal externo, controlam a
corrente eletrica em circuitos. As aplicacoes praticas dos transistores
sao infindaveis, e obviamente este nao e o espaco apropriado para dis-
cutı-las. Vamos apenas mencionar a propriedade que faz os transistores
tao uteis para a eletronica. Considere, por exemplo, um transistor npn.
Este e geralmente um objeto com 3 terminais, chamados de emissor,
base e receptor. Esses terminais estao eletricamente ligados as regioes
npn (ou pnp) do material semicondutor. A utilidade dos transistores
vem do seguinte fato: quando ligado de maneira apropriada, a corrente
que flui do coletor para o emissor pode ser controlada, e e proporcional
a corrente que flui pela base, ou seja:
Icoletor = αIbase
onde α vale tipicamente 100. Entao, uma pequena corrente na base
controla uma corrente muito maior no coletor. Por conta desta pro-
priedade, transistores podem atuar em circuitos eletronicos como am-
plificadores de corrente.
Essas propriedades dos materiais semicondutores tornaram possıvel
a construcao nao so de diodos e transistores como elementos de cir-
cuitos individuais, mas circuitos eletronicos completos dentro de um
unico cristal semicondutor. A deposicao controlada de varias regioes
npn no mesmo semicondutor resulta em resistores, diodos e transis-
tores conectados entre si, alguns podendo conter o estonteante numero
Existem, contudo, outros tipos de transistores cujo princıpio de funcionamento ediferente.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 283
de 10 mil transistores dentro de um pequeno pedaco de silıcio. Cir-
cuitos construıdos dessa maneira sao chamados de circuitos integrados,
e na sua forma final, encapsulado e exibindo apenas os terminais para
conexoes eletricas, sao apelidados de chips. Para algumas aplicacoes
especiais, circuitos integrados podem chegar a ter milhoes de compo-
nentes eletronicos em um unico chip!
Um LED, do ingles Light Emitting Diode e uma das inumeras aplicacoes dos semi-condutores na eletronica.
5.8 O que sao Computadores?
Computadores invadiram a nossa vida. Aos poucos foram se popula-
rizando, e ja e impossıvel pensarmos em viver sem eles. Ha pouco tempo
atras o uso de computadores estava restrito aos centros de pesquisas e
as universidades, e sua tarefa principal era a realizacao de calculos
284
cientıficos complicados que tomariam muito tempo, para serem feitos a
mao. O avanco na tecnologia dos computadores foi (e ainda esta sendo)
tao rapido, que muita gente nao conseguiu acompanhar, e acabou fi-
cando de fora dessa nova era. Hoje, com a proliferacao dos computa-
dores pessoais, usamos o computador nao so para fazer contas e graficos,
mas como maquina de escrever, como telefone, fax, secretaria eletronica,
correio, livro, televisao, despertador, maquina de vıdeo-game, enci-
clopedia, aparelho de som, para mencionar umas poucas aplicacoes.
Mas, como os computadores conseguem fazer tudo isso? No fundo a
ideia e muito simples, e esta baseada no fato de que numeros e operacoes
matematicas podem ser representados por nıveis de voltagens em cir-
cuitos eletronicos. Por razoes de estabilidade e reprodutibilidade, ao
inves de varios, usa-se somente dois nıveis de voltagem. Vamos fazer
a seguinte analogia: imagine varias tomadas em uma parede da sua
casa, por exemplo, quatro. Essas tomadas estao ligadas a disjuntores
que podem estar ligados ou desligados. Voce tem um voltımetro, e quer
verificar quais tomadas estao ligadas. Atencao: nao interessa o valor
da voltagem em cada uma delas (se 100 volts, 50 volts, etc.), mas so-
mente um ‘sim’ ou ‘nao’. Imagine que as 4 tomadas estao dispostas
em uma linha, e voce comece a medir da esquerda para a direita. A
cada tomada que estiver polarizada voce associa o dıgito ‘1’, e a cada
uma que estiver desligada voce associa o dıgito ‘0’. Entao, um possıvel
resultado da sua medida seria ‘1011’, significando que a primeira, a
terceira e a quarta tomadas estao polarizadas, e a segunda nao. Esta
sequencia de dıgitos pode ser considerada uma representacao de um
numero na base 2, ou seja, um numero em um sistema numerico que
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 285
possui somente dois dıgitos, 0 e 1. Tal sistema numerico e chamado de
binario. O nosso sistema numerico possui 10 dıgitos (incidentalmente
porque possuimos 10 dedos nas maos!), de zero a nove, e por isso e
chamado de sistema decimal. Para transformar a sequencia ‘1011’ para
decimal procedemos da seguinte forma: multiplicamos cada dıgito da
sequencia pela potencia de dois relativa a sua posicao, e somamos tudo.
As posicoes comecam a ser contadas da direita para a esquerda, sendo
0 associado a primeira. Por exemplo, na sequencia ‘1011’ o primeiro
dıgito e 1, e ocupa a quarta posicao. Portanto, a sua representacao
decimal sera 1×23 = 8, o segundo sera 0×22 = 0, o terceiro 1×21 = 2
e o ultimo 1 × 20 = 1. Assim teremos:
1011 ⇒ 8 + 0 + 2 + 1 = 11
Ou seja, ‘1011’ em binario e igual a ‘11’ em decimal. Voce pode re-
presentar o numero ‘11’, ou qualquer outro, atraves das tomadas da
sua casa!
Se voce acha isso esquisito demais, e porque ainda nao notou que
no sistema decimal procedemos da mesma maneira. Por exemplo, con-
sidere o numero 528. Esse numero pode ser decomposto exatamente da
mesma forma na base decimal:
528 = 5 × 102 + 2 × 101 + 8 × 100
Substitua agora as tomadas por circuitos integrados em chips onde
transistores polarizados representam ‘1’ e nao-polarizados represen-
tam ‘0’, e voce tem a base para o funcionamento de um computa-
dor. Podemos nao somente representar numeros, mas realizar operacoes
286
matematicas de todo tipo, apenas com esses ‘zeros’ e ‘uns’, polarizando
e despolarizando (ou seja, ligando e desligando) transistores em chips
construıdos especialmente para esta finalidade: os chamados micropro-
cessadores.
Podemos entao esquematicamente resumir a evolucao do atomo ao
computador:
elementos tetravalentes (Ge, Si) ⇒ cristais semicondutores
intrınsecos ⇒ dopagem e cristais semicondutores extrınse-
cos tipo ‘p’ e tipo ‘n’ ⇒ juncoes pn ⇒ diodos ⇒ juncoes
pnp ou npn ⇒ transistores ⇒ circuitos integrados ⇒ mi-
croprocessadores ⇒ computadores
Na logica binaria o que importa e se um determinado elemento do circuito esta“aceso” ou nao. O estado “aceso” representa o dıgito logico ‘1’, e o estado “apagado”o dıgito logico ‘0’.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 287
5.9 Bits & Bites: o Basico
Um Computador e um complexo emaranhado de circuitos eletronicos
organizados para executar operacoes logicas. Essas operacoes sao re-
alizadas atraves de combinacoes de sequencias de sinais eletricos que
representam os bits ‘0’ e ‘1’. Uma sequencia de oito bits e chamada um
bite. Microprocessadores sao caracterizados pela quantidade de bits
com que operam. Por exemplo, os velhos microprocessadores 8088 e
80286 operavam com sequencias de 16 bits, ou seja, 2 bites. Neste
caso, o maior numero decimal possıvel de ser representado em tais pro-
cessadores e:
1111111111111111 ⇒ 215 + 214 + 213 + 212 + 211 + 210 + 29 + 28 + 27+
+26 + 25 + 24 + 23 + 22 + 21 + 20 =
= 32768 + 16384 + 8192 + 4096 + 2048 + 1024 + 512 + 256 + 128+
+64 + 32 + 16 + 8 + 4 + 2 + 1 = 65.535
Qualquer numero maior do que 65.535 precisa ser “quebrado” em numeros
menores para ser processado nestes microprocessadores. Computadores
baseados nos processadores 80386, 80486 e Pentium operam com uma
sequencia de 32 bits ao inves de 16, o que os permite operar diretamente
com numeros ate 4.294.967.295.
Basicamente um computador pode ser dividido em cinco partes dis-
tintas: entrada (input), saıda (output), memoria, unidade de controle,
e as unidades logica e aritmetica. O teclado, por exemplo, representa
uma das unidade de entrada de dados, e a tela uma das de saıda. Resul-
tados de operacoes sao armazenados na memoria. O papel da unidade
288
de controle e interpretar comandos e configurar os circuitos eletronicos
de acordo para que a operacao desejada seja executada. As unidades
de controle e logica e aritmetica sao organizadas em um unico bloco
chamado unidade central de processamento (UCP).
A grande utilidade de um computador reside no fato de que podemos
“ensina-lo” a executar tarefas logicas. Essas tarefas sao ditadas a ele
sob a forma de sequencias de instrucoes, ou programas. Programas de
computador podem ser escritos em varias linguagens diferentes, como
por exemplo, o FORTRAN, o PASCAL, o C++, etc. Cada linguagem
tem suas peculiaridades, vantagens ou desvantagens, dependendo da
tarefa a ser realizada. Aprender uma linguagem de computador con-
siste em aprender os seus comandos e sua sintaxe, ou seja, as regras
sob as quais os comandos devem ser escritos. O programa abaixo e um
exemplo de programa escrito em FORTRAN que instrui o computa-
dor a ler dois numeros de entrada, calcular e exibir na tela as medias
aritmetica e geometrica entre eles:
PROGRAM MEDIAS
PRINT*, ’Entre com dois numeros’
READ*, XN1, XN2
ARI = 0.5*(XN1+XN2)
GEO = SQRT(XN1*XN2)
PRINT*, ’Media aritimetica:’, ARI
PRINT*, ’Media geometica:’, GEO
STOP
END
O mesmo programa poderia ter sido escrito em PASCAL ou C++,
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 289
ou ainda qualquer outra linguagem (as vezes, linguagens de computa-
dores sao como times de futebol: provocam acaloradas discussoes entre
os “experts”. Portanto, desde ja me confesso um programador medıocre
e rogo clemencia aos inimigos do FORTRAN por este exemplo cretino
de programacao).
O computador nao tem como compreender os comandos acima na
forma como eles estao escritos. O comando ’PRINT*,’ (’imprimir’, em
ingles), por exemplo, instrui o computador a exibir na tela o que vier
depois da vırgula (no caso da segunda linha do programa acima, a
frase ’Entre com dois numeros’). Para que o computador entenda o
comando, e preciso que ele seja traduzido para uma sequencia de bits.
Quem faz este trabalho de interprete entre as palavras do mundo dos
humanos para as palavras do mundo dos computadores e um programa
chamado de compilador. Portanto, para que o programa acima possa
ser executado em um computador, e preciso que nele esteja instalado
um compilador FORTRAN. Se o programa fosse escrito em C++, seria
preciso ter instalado um compilador C++, e assim por diante.
A simplicidade do programa acima pode ate insultar a inteligencia
de alguns. De fato, para que tanta tecnologia so para calcular medias
aritmetica e geometrica entre dois numeros? Para isso usamos uma
maquina de calcular de bolso. Muito bem, e que tal calcularmos os
autoestados de energia de um atomo de uranio, cujo nucleo possui 238
protons e neutrons? Ou ainda as autofuncoes de um eletron em uma
rede de silıcio? E para isso que servem os computadores; executar
tarefas que nao podemos realizar com instrumentos mais simples! E
obvio que um programa que calcule autoestados de um atomo sera
290
consideravelmente mais complexo que o do exemplo acima!
Para que um programa de computador, com seu compilador, possam
ser executados, e preciso que um outro programa esteja em operacao.
Este e uma especie de administrador do computador; ele e chamado
de sistema operacional. Os sistemas operacionais mais conhecidos para
microcomputadores na atualidade sao o MS-DOS, LINUX, UNIX e o
WINDOWS. Sistemas operacionais sao programas que devem ser li-
dos pelo computador a partir de algum meio de gravacao (como, por
exemplo, um disquete). Mas, para ter condicoes de executar qual-
quer comando de um programa, o computador necessita executar antes
operacoes ainda mais elementares. Estas operacoes sao de fato os co-
mandos que “trazem o computador a vida”. E mais ou menos como
ao acordarmos de manha apos uma noite de sono pesado: abrimos
os olhos, e comecamos aos poucos a nos mexer antes de executarmos
tarefas mais complexas, tais como escovar os dentes ou tomar banho.
Quando ligamos o computador, umas poucas linhas de comando que
estao gravadas permanentemente em sua memoria o instruem a execu-
tar uma serie de testes preliminares, como a verificacao da alimentacao
dos circuitos eletricos, reconhecimento do teclado, drives, a unidade de
CD, etc., e so entao buscar o sistema operacional, que finalmente o
tornara apto a executar tarefas. Este programa inicial, que transforma
o computador de um monte de fios e pedacos de semicondutores sem
vida, em um poderoso, fiel e incansavel aliado, e chamado bootstrap, ou
simplesmente boot. Esta palavra denota o fato de que o computador,
ao ser ligado, “acorda” com o proprio esforco, sem intervencao externa.
O uso de computadores revolucionou a pesquisa cientıfica, em par-
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 291
ticular a pesquisa em fısica. Com eles podemos nao so realizar calculos
complicados, impossıveis de serem feitos a mao, como tambem simular
o comportamento de sistemas sob as mais variadas condicoes e com-
parar com o comportamento de sistemas reais. Por exemplo, podemos
simular reacoes quımicas na ausencia de gravidade, o que e obviamente
impossıvel de ser realizado em um laboratorio na Terra. Podemos cal-
cular os nıveis de energia dos eletrons em um atomo isolado de carbono
e comparar com aqueles de eletrons em uma rede cristalina de carbono.
E assim por diante. E impossıvel pensar em pesquisa cientıfica nos dias
de hoje sem o auxılio de um computador.
5.10 A Internet
Alem de realizarem calculos complicados, tocarem musica, exibirem
filmes, trabalharem como maquinas de escrever, simuladores, etc., com-
putadores possuem uma outra caracterıstica que os torna ainda mais
uteis: podem ser interligados de modo a se comunicarem uns com os
outros. Um conjunto de computadores ligados entre si forma uma rede
(“net”, em ingles). Esta interconexao e realizada atraves de cabos
eletricos especiais que conduzem os bits e bites de um computador para
outro sob a forma de sinais eletricos. Desta forma podemos transferir
dados de uma maquina para a outra. Mas, para que um computador
possa aceitar documentos enviados de um outro, ambos devem com-
preender o formato da mensagem enviada. Ou seja, deve existir um
protocolo obedecido por todas as maquinas ligadas a uma determinada
rede.
292
Interconexoes entre grupos de redes de computadores sao chamadas
de “inter-redes”, ou internet. A Internet (com “I” maiusculo) e sim-
plesmente a melhor e maior internet (com “i” minusculo) ja montada.
A ideia de redes de computadores nasceu de um projeto militar
americano desenvolvido durante os anos de Guerra Fria pela agencia
ARPA (Advanced Research Projects Agency) com a finalidade de di-
ficultar o acesso a informacoes sigilosas. Os dois tipos de servicos que
se tornaram imediatamente importantes com a criacao das redes foram
o Telnet, que permitiu computadores de grande porte serem acessados
e utilizados por usuarios disponibilizados remotamente, e o endereco
eletronico (e-mail) que agilizou a circulacao de informacoes entre os
usuarios da rede.
Com a sua criacao, enderecos eletronicos tornaram-se rapidamente
populares no meio academico, onde cientistas de todo o mundo pas-
saram a trocar ideias sobre temas de interesse comum usando este
veıculo de comunicacao. Porem, a transferencia de material muito ex-
tenso, como artigos de revistas especializadas, provou ser muito ine-
ficiente atraves do e-mail usual. A fim de transferir arquivos muito
extensos, foi criado um servico chamado FTP (File Transfer Protocol
- protocolo de transferencia de arquivos). Atraves do FTP, pessoas do
mundo inteiro passaram a acessar documentos, programas, textos, fi-
guras, etc., localizados remotamente em algum arquivo de computador,
em uma biblioteca, centro de pesquisa, etc. Contudo, a maneira como o
FTP foi concebido exigia um certo grau de desembaraco do usuario com
computadores, e portanto pouco amigavel para o leigo. Alem disso, a
visualizacao de um documento adquirido via FTP nao pode ser feita
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 293
antes da aquisicao estar completa.
Contudo, no inıcio dos anos 90 uma nova revolucao ocorreu: Tim
Berners-Lee, trabalhando no CERN, inventou um novo protocolo, chamado
HTTP (HyperText Transfer Protocol - protocolo de transferencia de
hipertextos), que permitiu o desenvolvimento de uma nova maneira
pela qual dados podiam ser lidos e exibidos na tela de um computador
de modo simples para o usuario leigo. A invencao permitiu a criacao
da WWW (World Wide Web) e o desenvolvimento da Internet como a
conhecemos hoje.
Suponha que dois computadores, Eduardo e Monica, estejam ligados
entre si. Eduardo possui uma serie de documentos, fotografias, textos,
etc., guardados em sua memoria. Monica esta localizado em outra
parte, e deseja acessar alguns desses documentos. Para que Monica
tenha acesso aos documentos de Eduardo, e preciso que um programa
especial, chamado de servidor, esteja sendo executado em Eduardo.
Quando Monica envia alguma mensagem requerendo um documento
de Eduardo, o servidor localiza o pedido e envia o resultado da busca
de volta. O documento e entao exibido na tela de Monica.
A Internet e a maior rede de computadores do mundo. Atraves
dela podemos, por exemplo, acessar a Biblioteca da Universidade de
Harvard, participar de um jogo em um cassino em Las Vegas, visitar
obras de arte em exposicao no Louvre em Paris, acompanhar as imagens
obtidas pela sonda “Pathfinder” em Marte, comprar um livro ou um
CD em uma loja em Berlin, visitar o Vaticano em Roma, etc. E o maior
(e mais democratico!) veıculo de difusao de informacao e conhecimento
ja inventado pelo homem!
294
5.11 O ADN Computa!
Computadores sao maquinas que executam instrucoes codificadas em
sequencias de dıgitos ‘0’ e ‘1’. ADNs sao moleculas que executam in-
strucoes codificadas como sequencias de moleculas menores denomi-
nadas ‘C’, ‘G’, ‘A’ e ‘T’ (secao 4.6). Uma instrucao de computa-
dor pode ser algo como ‘1100001010010100010010100111. . . ’, enquanto
uma instrucao de ADN pode ser algo como ‘CCGTTGATTTAAAAC-
CCATGG. . . ’. Computadores executam instrucoes atraves de com-
binacoes de sinais eletricos em circuitos eletronicos. ADNs executam
instrucoes atraves de combinacoes de reacoes quımicas que ocorrem
dentro das celulas de organismos. Uma operacao tıpica realizada por
computadores e: “some estes dois numeros”. Uma operacao tıpica
realizada por ADNs e: “faca esta proteına”. Vemos que existem semel-
hancas obvias entre computadores e ADNs! Seria possıvel instruir
moleculas de ADN para realizarem uma operacao de computador como:
“encontre a solucao para tal problema”?
Leonard M. Adleman e pesquisador profissional em ciencia da com-
putacao e biologo amador. Ele e professor da Universidade da Cali-
fornia do Sul, em Los Angeles. Estudando problemas matematicos
envolvendo moleculas de ADN em 1993, ele teve a ideia de fazer um
computador biologico, onde moleculas de ADN seriam instruıdas para
resolver problemas matematicos. As variaveis do problema seriam co-
dificadas em sequencias de moleculas ‘C’, ‘G’, ‘A’ e ‘T’; as operacoes se-
riam realizadas atraves das reacoes quımicas envolvendo essas moleculas,
e a resposta viria tambem sob a forma de uma sequencia de ADN. A co-
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 295
dificacao das variaveis em moleculas de ADN e possıvel porque nos dias
de hoje (acreditem!) pode-se literalmente encomendar moleculas com
qualquer sequencia desejada a laboratorios comerciais por um preco
irrisorio! Viva a tecnologia!
Adleman demonstrou a realizacao de sua ideia resolvendo um pro-
blema matematico que pode ser exemplificado atraves da seguinte situacao
simples: imagine que existam voos comerciais entre quatro cidades:
Rio, Belo Horizonte, Sao Paulo e Vitoria. As regras do jogo sao: existem
voos diretos (isto e, sem escala) entre Rio-Belo Horizonte, Vitoria-Sao
Paulo, Sao Paulo-Belo Horizonte, Vitoria-Belo Horizonte, e Rio-Vitoria.
Com excecao deste ultimo, os outros voos so existem na ordem citada
das cidades. Por exemplo: o voo Sao Paulo-Belo Horizonte existe, mas
o Belo-Horizonte-Sao Paulo nao. O trajeto Rio- Vitoria e o unico em
que existem voos de ida e volta. Pois bem, dadas as regras, o problema
a ser resolvido e: como viajar do Rio para Belo Horizonte passando
somente uma vez por cada uma das cidades? Com um simples esboco
em uma folha de papel imediatamente concluimos que a unica resposta
possıvel e: Rio-Vitoria-Sao Paulo-Belo Horizonte. Este problema tri-
vial se complica dramaticamente quando o numero de cidades aumenta.
Para dar uma ideia, se tivessemos 100 cidades conectadas ao inves de
quatro, para encontrar a trajetoria correta dos voos indo de uma cidade
a outra passando somente uma vez por cada uma delas, com a ajuda de
um computador como os que usamos atualmente, levaria mais tempo
do que a idade do Universo!
Os nomes das cidades foram codificados nas seguintes sequencias de
moleculas (obviamente Adleman utilizou nomes de cidades americanas
296
em seu experimento):
RIO DE JANEIRO: ACTTGCAG
VITORIA: TCGGACTG
SAO PAULO: GGCTATGT
BELO HORIZONTE: CCGAGCAA
O leitor se recordara o que foi dito no capıtulo quatro, que cada uma
dessas moleculas so se liga ao seu complemento, sendo ‘A’ o comple-
mento de ‘T’ (e vice-versa) e ‘G’ o complemento de ‘C’ (e vice-versa).
Entao, cada “cidade-molecula” tera um complemento. Por exemplo, o
complemento do Rio de Janeiro sera TGAACGTC, o de Belo Horizonte
GGCTCGTT, etc. As trajetorias dos voos foram codificadas tomando-
se as quatro ultimas letras da cidade de origem e juntando-as com as
quatro primeiras da cidade de destino. Por exemplo, o codigo do voo
Rio-Vitoria sera: GCAGTCGG.
Por cerca de 20 dolares, Adleman obteve tubos contendo aproxi-
madamente 1014 moleculas de cada sequencia. Misturou-as em solucao
e cerca de 1 segundo depois tinha a resposta para o problema dentro
do tubo (na verdade ele usou sete cidades, e nao quatro, mas a dis-
cussao fica mais simples se usarmos apenas quatro). As reacoes ocorrem
da seguinte maneira: imagine que uma molecula do tipo Rio-Vitoria
(GCAGTCGG) encontre uma molecula que e o complemento de Vitoria
(AGCCTGAC). Como AGCC e o complemento de TCGG, as duas
moleculas sao ligadas uma a outra, ficando a terminacao TGAC do com-
plemento livre. Quando o complexo formado encontra uma molecula
Vitoria-Sao Paulo (ACTGGGCT), novamente ocorre uma reacao, pois
ACTG e complemento de TGAC. Dessa forma as “moleculas-voos” vao
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 297
se ligando entre si atraves das moleculas-complemento. A solucao do
problema estara codificada nas moleculas que apresentarem a sequencia:
GCAGTCGGACTGGGCTATGTCCGA. Tal sequencia leva menos de
1 segundo para surgir dentro do tubo, o que representa um tempo muito
menor do que aquele necessario para resolvermos o problema de cabeca!
Utilizando tecnicas fısico-quımicas, Adleman separou as moleculas
que continham a resposta do problema das outras (o que levou 1 se-
mana!).
A possibilidade de construir computadores utilizando reacoes quımicas
entre moleculas de ADN representaria um ganho de velocidade e ca-
pacidade de armazenamento incomparavelmente maiores do que os e-
xistentes hoje com computadores usuais (a proposito, serıamos nos -
juntamente os outros seres vivos - diferentes solucoes, encontradas por
ADNs, de um imenso problema matematico? Pense nisso!). Um grama
de ADN pode guardar tanta informacao quanto 1 trilhao de CDs. Os
varios trilhoes de reacoes quımicas que ocorrem simultaneamente den-
tro do tubo representam uma capacidade de processamento paralelo
que torna os supercomputadores da atualidade meras reguas de calculo!
Adleman estima que serao necessarios outros 50 anos de pesquisa e in-
vestimentos para se alcancar tal objetivo.
5.12 Computadores podem Pensar?
- Como ele se sente?
- Como ele se sente? Oh,...uma pergunta interessante meu rapaz....tam-
bem gostaria de saber a resposta. Bem, vamos ver o que o nosso amigo
298
diz... e estranho...er...Ultronico diz que ele nao ve...nao pode sequer
entender o que voce quer saber!
Os murmurios e risos na plateia transformaram-se em uma algazarra.
Adam sentiu-se terrivelmente embaracado. O que quer que fizessem,
eles nao deveriam ter rido daquele jeito. (The Emperor’s New Mind
- A Nova Mente do Imperador - R. Penrose, Vintage 1990)
O crescente progresso feito na tecnologia da informatica tem le-
vantado questoes instigantes e dividido opinioes na comunidade cientıfica.
A pergunta ultima que se coloca e: ate que ponto computadores po-
dem se aproximar das capacidades do cerebro humano? Computadores
algum dia poderao pensar como uma pessoa? Poderao ter consciencia
como nos? Se apaixonar, sentir dor, ironizar, compreender, desenvolver
aptidoes para as artes, ciencias, religiao, etc.? Serao capazes de expe-
rimentar compaixao, ganancia, orgulho, egoısmo? Como sera o “ego”
de um computador? Terao medo da morte? Terao lacos de famılia?
Desenvolverao doencas mentais? E preciso que se reconheca que no
que diz respeito a uma serie de tarefas, computadores ja ultrapassaram
em muito o cerebro humano. Por exemplo, um simples PC como o que
uso no momento para escrever esta secao (Pentium MMX 200 MHz)
e capaz de realizar milhoes de operacoes matematicas por segundo, o
que e obviamente impossıvel para mim ou para qualquer outra pessoa
fazer. Uma parte dos cientistas que estudam a chamada Inteligencia
Artificial (IA) defendem uma posicao extrema: a de que para um com-
putador alcancar o cerebro humano com todas as suas capacidades, e
uma questao de tempo, rapidez, e espaco de memoria. Uma corrente
ainda mais radical da IA acredita que, de fato, computadores vao no
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 299
futuro superar o cerebro em todas as suas qualidades, e terao como nos
experiencias de auto-consciencia! De outro lado encontram-se aqueles
que rejeitam essa ideia. Alguns cientistas que entendem mais de cerebro
do que de informatica chegam a considerar sem sentido a simples com-
paracao entre um computador e um cerebro humano (pelo menos com
a tecnologia atual).
Entre os fısicos-matematicos de nossa epoca que mais contunden-
temente tem se oposto as ideias da IA, esta Roger Penrose, do Insti-
tuto de Matematica da Universidade de Oxford. Penrose e autor do
best seller The Emperor’s new Mind. Concerning Computers,
Minds, and the Laws of Physics (A Nova Mente do Imperador.
A Respeito de Computadores, Mentes, e as Leis da Fısica). Penrose e
partidario do segundo grupo, ou seja, nao acredita que a maneira de
“pensar” de um computador possa se igualar a maneira do cerebro hu-
mano. De fato, nao acredita que um computador possa sequer imitar
um cerebro em qualquer um de seus aspectos. Penrose nao define (como
ninguem o faz) consciencia, mas a associa a compreensao, em particu-
lar a compreensao matematica. Ou seja, para ele o ato de compreender
alguma coisa necessariamente envolve uma experiencia consciente. Em
seu livro ele tenta argumentar que o cerebro, ao contrario dos com-
putadores, nao funciona por algoritmos matematicos. Um algoritmo e
um procedimento atraves do qual um calculo e realizado. Por exem-
plo, o algoritmo de Euclides (300 AC) e usado para encontrar o maior
fator comum entre dois numeros8. Para exemplificar o algoritmo de
Euclides tomemos os numeros 1365 e 3654. Qual o maior inteiro que
8Um fator comum e um numero que divide outros dois em partes inteiras.
300
divide esses dois numeros? Para sabermos a resposta dividimos o maior
numero pelo menor, e tomamos o resto da divisao. Esse resto sera o
divisor do menor numero entre os dois primeiros. O procedimento e
repetido ate chegarmos a resto zero:
3654 ÷ 1365 = 2 com resto 924
1365 ÷ 924 = 1 com resto 441
924 ÷ 441 = 2 com resto 42
441 ÷ 42 = 10 com resto 21
42 ÷ 21 = 2 com resto 0
Logo, o maior divisor comum de 3654 e 1365 e 21: 3654 ÷ 21 = 174,
e 1365 ÷ 21 = 65. O procedimento acima e o algoritmo de Euclides.
Qualquer operacao realizada em um computador e feita segundo um
algoritmo. Penrose argumenta que a maneira segundo a qual o cerebro
humano funciona e essencialmente diferente, ou seja, e nao algoritmica,
e portanto computador e cerebro sao coisas fundamentalmente dife-
rentes. Recentemente ele voltou ao topico em um capıtulo do livro
O que e Vida? Os Proximos Cinquenta Anos. Especulacoes
sobre o futuro da biologia (Ed. Brasileira Unesp 1997), uma come-
moracao aos 50 anos das palestras de Schrodinger realizadas em Dublin
(veja capıtulo tres). Para terminar o capıtulo, transcrevo abaixo os dois
primeiros paragrafos da traducao brasileira.
A mentalidade humana tem muitas facetas. Pode ser
ate que algumas delas possam ser explicadas pelos conceitos
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 301
da fısica atual e, alem disso, estar potencialmente abertas a
simulacao em computadores. Os defensores da inteligencia
artificial (IA) afirmariam que tal simulacao com certeza e
possıvel - pelo menos no que diz respeito a muitas das qua-
lidades mentais basicamente relacionadas com a nossa in-
teligencia. E mais, ela poderia ser utilizada para capacitar
um robo a comportar-se, especificamente nesses aspectos, do
mesmo modo que um ser humano. Os defensores do IA forte
iriam mais longe e sustentariam que toda qualidade mental
pode ser imitada - e eventualmente suplantada - pelas acoes
dos computadores eletronicos. Eles tambem afirmariam que
essa mera acao computacional deve provocar, no computa-
dor ou no robo, o mesmo tipo de experiencias conscientes
pelas quais nos passamos.
Por outro lado, existem muitas pessoas que argumen-
tariam o contrario: que certos aspectos da nossa mental-
idade nao podem ser tratados apenas em termos de com-
putacao. De acordo com essa visao, a consciencia humana
seria tal qualidade - ou seja, ela nao e uma mera mani-
festacao da computacao. Na verdade, eu mesmo vou de-
fender este argumento; mais do que isto, porem, vou argu-
mentar que as acoes que nossos cerebros realizam de acordo
com nossas deliberacoes conscientes devem ser coisas que
nao podem nem mesmo ser simuladas em um computador -
entao, com certeza, a computacao e incapaz, por si mesma,
de gerar algum tipo de experiencia consciente.
302
PAINEL XI
ALAN TURING
O ingles Alan Turing e considerado um dos principais precursores dos computa-
dores digitais e da Inteligencia Artificial. Nasceu em Londres, no dia 23 de junho de
1912. Sua carreira de matematico teve inıcio em 1931, quando ingressou no Kings
College, em Cambridge.
Em 1928, o matematico alemao David Hilbert, um dos mais importantes do
seculo XX, lancou o seguinte desafio em um congresso internacional de matematica9:
existiria algum procedimento “mecanico”, de carater geral, que pudesse ser aplicado
na resolucao de qualquer problema matematico de uma determinada classe? Alan
Turing se interessou pelo desafio, e ao tentar formalizar o conceito de “procedimento
mecanico”, chegou ao que ficou conhecido como aMaquina de Turing, uma maquina
imaginaria que “compreenderia” as proposicoes de um dado problema em termos
de sequencias de “zeros” e “uns”, e apos operar na mesma base, daria a resposta
tambem sob a mesma forma. Fundou assim as bases para o funcionamento dos
modernos computadores digitais!
Durante a Segunda Guerra, Turing usou suas habilidades matematicas para aju-
dar os britanicos no esforco de decifrar o sistema de codigos utilizado pelos alemaes.
Esses codigos eram gerados por um aparelho eletromecanico, uma especie de com-
putador rudimentar chamado Enigma, que constantemente criava novos codigos
tornando a tarefa de decodificacao virtualmente impossıvel para seres humanos.
Turing, com outros cientistas britanicos, construiu um aparelho, denominado Colos-
9Hilbert gostava de desafios. Ele tinha um projeto de formular toda amatematica a partir de uns poucos axiomas. Em 1931, enquanto Hilbert tentavaalcancar tal formulacao, um jovem matematico austrıaco, chamado Kurt Godel,provou um teorema bombastico que implodiu o sonho de Hilbert, e o deixou, juntocom os outros matematicos da epoca, sem respiracao. O Teorema de Godel, apon-tado por alguns como o mais importante teorema da matematica, de certa formaestabelece os limites da propria matematica. Ele afirma essencialmente que nemtudo o que e verdade sobre numeros pode ser demonstrado matematicamente! Ouseja, dada qualquer estrutura matematica, formulada a partir de teoremas, axiomas,etc., sempre existirao propriedades numericas que nao serao demonstraveis a partirdaquela formulacao.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 303
sus, capaz de realizar a tarefa de decodificacao. Foi um dos primeiros passos em
direcao aos computadores digitais.
Turing acreditava que o cerebro humano, a despeito de sua complexidade,
funcionava essencialmente como uma maquina e, consequentemente, poderia ser
imitado por computadores. Em 1950, motivado por acaloradas discussoes com seus
colegas cientistas a respeito do futuro da computacao, ele escreveu um artigo onde
propos um experimento que ficou famoso como o Teste de Turing, uma especie de
teste de inteligencia para computadores. O teste consiste em uma pessoa propor
perguntas a uma outra pessoa e a um computador, estes ultimos estando separa-
dos visualmente do interrogador. Turing achava que se apos algumas perguntas o
interrogador fosse incapaz de diferenciar, a partir das respostas dadas, a pessoa do
computador, a este poderia ser atribuıda certa forma de inteligencia.
Turing tambem trabalhou no National Physical Laboratory, em um projeto que
visava construir um computador inteiramente ingles. Contudo, desapontou-se com a
demora e complicacoes do trabalho, e abandonou o projeto antes do fim, mudando-se
para Manchester. Naquela universidade engajou-se no projeto MADAM, Manch-
ester Automatic Digital Machine. Perseguido por sua homosexualidade foi preso em
1952 por “indecencia”, e obrigado a frequentar sessoes de psicoanalise que visavam
“cura-lo”. No dia 7 de junho de 1954, durante uma crise de depressao, suicidou-se
comendo uma maca envenenada. Segundo os medicos que o examinaram, a causa da
morte foi a “ingestao de cianureto de potassio durante uma crise mental”. Sua mae,
contudo, deu uma outra versao, a de que Turing costumava fazer testes caseiros com
novas substancias, e simplesmente foi descuidado.
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. Como Multiplicar Sequencias de ADN, Salete Newton, vol. 12, no. 72, p. 9.
2. Criogenia: quanto mais Frio Melhor, Eugenio Lerner, vol. 3, no. 13, p. 88.
3. O Efeito Hall Quantico, Francisco Claro, vol. 6, no. 31, p. 36.
4. Super-Redes: Harmonia das Bandas Cristalinas, Eduardo de Campos Val-adares, Marcus Vinıcius B. Moreira, Jose Carlos Bezerra Filho e Ivan FredericoLupiano Dias, vol. 6, no. 35, p. 44.
304
5. Dispositivos Eletronicos em Escala Atomica, Eduardo C. Valadares, Luiz A.Curi e Mohamed Henini, vol. 18, no. 106, p. 40.
6. Quasepartıculas: Estados Coletivos da Materia, Carlos Alberto Aragao deCarvalho Filho, vol. 25, no. 145, p. 11.
CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 305
Resumo - Capıtulo Cinco
Objetos macroscopicos sao formados a partir de combinacoes entreatomos. Eles podem ser amorfos ou cristalinos. Nos amorfos a dis-tribuicao espacial dos atomos nao possui regularidade, ao passo que noscristalinos os atomos estao organizados em uma rede regular. Esta regu-laridade espacial dos atomos nos materiais cristalinos e responsavel porvarias propriedades macroscopicas importantes. Para entendermos asdiferencas entre metais, isolantes e semicondutores precisamos de doisingredientes: a regularidade da rede cristalina, e o princıpio de exclusaode Pauli. A regularidade da rede faz com que o potencial eletrico geradopelos ıons seja periodico espacialmente. Esta periodicidade, por sua vez,divide o espectro de energias dos eletrons dentro do material em bandasseparadas por hiatos. Os nıveis de energia de uma banda sao preenchidospelos eletrons obedecendo o princıpio de exclusao de Pauli. Ao chegar notopo de uma banda, o proximo nıvel disponıvel estara no fundo da bandasuperior adjacente. Semicondutores sao materiais que resultam de umtipo especial de preenchimento de bandas de energias que possuem hiatosrelativamente pequenos. A utilidade dos semicondutores vem do fato deque com eles podemos construir dispositivos eletronicos onde a correnteeletrica pode ser controlada com grande precisao. Exemplos de tais dis-positivos sao transistores e chips de computadores. ‘Chip’ e um apelidopara circuitos integrados, que sao dispositivos eletronicos com milharesde componentes menores interconectados eletricamente no mesmo cristalsemicondutor. Caracteres numericos e operacoes matematicas podem serrepresentados como nıveis de voltagens em circuitos eletronicos. Com-putadores utilizam chips para realizar estas operacoes. O rapido desen-volvimento da tecnologia de informatica tem levado alguns cientistas aestudar a capacidade de computadores para imitar o cerebro humano.Essa area de pesquisa e chamada de Inteligencia Artificial.
Chapter 6
Magnetismo
A Nacao que controla o magnetismo, controla o Universo (Dick Tracy).
6.1 Origem do Magnetismo na Materia
Ate tu Dick Tracy...
Materiais magneticos ocupam uma posicao de destaque na industria.
Suas aplicacoes vao de enfeites e fechaduras, passam por nucleos de mo-
tores e transformadores, ate discos rıgidos e outros meios de gravacao
e leitura magnetica. A industria do magnetismo e ainda mais rica do
que a de semicondutores! Alem disso, o fenomeno do magnetismo e tao
fascinante quanto complexo, e tem sido o “ganha-pao” de muita gente.
Do ponto de vista tecnico, este capıtulo talvez seja o de mais difıcil
leitura deste livro. Varios conceitos, como funcoes de onda simetrica
e antissimetrica, spins, redes cristalinas, etc., que foram desenvolvi-
dos nos ultimos tres capıtulos, sao postos juntos no presente capıtulo.
Recomendo ao leitor uma rapida olhada nos resumos dos capıtulos an-
teriores antes de prosseguir com este.
307
308
O estudo do magnetismo e uma sub-area da Materia Condensada
(assim como a fısica dos semicondutores). Dentro desta sub-area ex-
istem varias especializacoes: tem gente que estuda metais magneticos,
tem gente que estuda isolantes magneticos, ha aqueles que estudam o
magnetismo somente do ponto de vista macroscopico, ha outros que so
querem saber da abordagem microscopica, tem gente somente interes-
sada nas aplicacoes praticas do magnetismo, outros que so estudam o
magnetismo nuclear, etc. No entanto, assim como as diferencas entre
metais, isolantes e semicondutores estudadas no capıtulo anterior nao
podem ser compreendidas classicamente, com o magnetismo ocorre o
mesmo: a diferenca entre um material magnetico e nao magnetico, e as
diferencas de propriedades entre aqueles que sao magneticos nao podem
ser compreendidas com a fısica classica. O mundo e de fato quantico!
No capıtulo quatro falamos do magnetismo no atomo. A grandeza
fundamental do magnetismo na materia e o momento magnetico m. Se
um atomo possui momento magnetico diferente de zero, este e um bom
comeco para que um solido formado a partir desses atomos venha a
ser magnetico, embora somente isso nao seja suficiente. Recordando, o
momento magnetico de um atomo possui duas origens: uma asociada ao
seu momento angular orbital, L, e outra associada ao spin, S. Em uma
camada atomica vazia ou totalmente cheia, ambos, S e L, se anulam.
Em uma semi-cheia, somente L se anula. Nos outros casos S e L sao
diferentes de zero. Podemos escrever essas duas contribuicoes para o
momento magnetico de um atomo como:
mL = gLL
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 309
mS = gsS
onde gL e gs sao fatores de proporcionalidade. O momento magnetico
total de um atomo sera simplesmente a soma vetorial das duas con-
tribuicoes:
m = mL + mS
Em um atomo os momentos angulares de spin e orbital se combinam para dar origemao momento angular total J. O mesmo acontece com o momento magnetico totaldo atomo.
Podemos ir um pouco mais adiante definindo o momento angular
total de um atomo, J, como a soma do seu momento orbital com o spin:
J = L + S
Com esta definicao e possıvel escrever o momento magnetico total do
atomo como:
310
m = gJJ
onde gJ , como anteriormente, e um fator de proporcionalidade. Note
que ate agora nao fizemos mais do que definir quantidades atomicas
como somas vetoriais. Imagine entao uma rede cristalina onde cada
atomo possui um momento magnetico diferente de zero. Para poder-
mos afirmar se o material e magnetico ou nao, precisamos definir uma
grandeza macroscopica, chamada magnetizacao, M. Esta e simples-
mente o numero de momentos magneticos por unidade de volume1:
M =1
V
∑i
mi
onde mi e o valor do momento magnetico do i-esimo atomo na rede, e V
e o volume do material. Dizemos que o material esta magneticamente
ordernado ou possui ordem magnetica se a magnetizacao for diferente de
zero. A definicao acima nos sera util, embora ela nao seja rigorosa. Em
alguns casos especiais M pode ser zero, e mesmo assim existir ordem
magnetica.
A partir de sua definicao vemos que existem duas possibilidades
para que M seja zero: ou a soma sobre os momentos magneticos mi
e zero, ou cada momento mi se anula individualmente (lembre que
mesmo que cada mi seja diferente de zero, sua soma pode se anular).
1Mais precisamente, a magnetizacao e o limite desta expressao quando o volumetende a zero:
M = limV →0
1V
∑i
mi
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 311
O caso em que cada momento magnetico se anula individualmente e
desinteressante do ponto de vista do magnetismo; sao materiais nao
magneticos, como agua ou o sal de cozinha. O caso em que os atomos
possuem momento magnetico, ou seja, mi = 0, mas M e igual a zero, e
chamado de paramagnetismo2. Dizemos entao que o material com esta
propriedade e paramagnetico. Finalmente, o caso em que M e diferente
de zero e o mais interessante do ponto de vista do magnetismo. Dizemos
que o material e magneticamente ordenado. Este e, por exemplo, o caso
do ferro metalico.
Diz-se que um material apresenta ordenamento magnetico se os momentos atomicosestiverem espacialmente ordenados.
Existem diversos tipos de ordem magnetica, algumas das quais
serao revistas na proxima secao. No momento o que nos preocupa e a
2Existe, contudo, um interessante caso em que M = 0, mas existe ordemmagnetica, como sera mencionado adiante.
312
seguinte pergunta: qual a condicao para que os momentos magneticos
dos atomos de um material se tornem espacialmente ordenados? Por e-
xemplo, no estranho composto Gd(C2H5SO4)3·9H2O, um sal de gadolınio
(Gd), os atomos de Gd possuem momento magnetico diferente de zero,
mas a magnetizacao e igual a zero, ou seja, o material e paramagnetico.
Ja o gadolınio, na sua forma metalica, possui ordem magnetica. Por
que os momentos magneticos do Gd no sal acima nao se ordenam, mas
no metal eles se ordenam? Nao e facil respoder a esta pergunta, porque
a origem da ordem magnetica nos materiais e inteiramente quantica,
e consideravelmente sutil. De fato, a origem da ordem magnetica nos
materiais esta associada a interacao coulombiana entre os eletrons de
atomos vizinhos na rede cristalina (ou seja, uma interacao eletrica!) e
ao princıpio de exclusao de Pauli. Repare como o princıpio de exclusao
e recorrente! Ele e necessario para entendermos a ocupacao dos nıveis
de energia em um atomo (capıtulo quatro), para explicar as diferencas
entre metais, isolantes e semicondutores (capıtulo cinco), e agora para
explicar a origem do magnetismo. A razao e que em todos esses pro-
blemas estamos lidando com varios eletrons, e consequentemente temos
que evocar o princıpio de exclusao.
Considere dois eletrons pertencentes a atomos vizinhos em uma rede
cristalina, com vetores de posicao r1 e r2, e funcoes de onda atomicas
ψα e ψβ , onde α e β designam genericamente estados quanticos dos
eletrons. A distancia entre os eletrons, representada por r12, sera dada
por r12 = |r1 − r2|. Sabemos do princıpio de exclusao que, independen-
temente de os eletrons interagirem ou nao entre si, a funcao de onda
total do sistema tem que ser antissimetrica. Mesmo sem especificarmos
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 313
as formas funcionais das funcoes espaciais ψα e ψβ, podemos construir
a partir delas uma funcao simetrica e outra antissimetrica, que vamos
denotar, respectivamente, por ψS e ψA :
ψS = ψα(r1)ψβ(r2) + ψα(r2)ψβ(r1)
ψA = ψα(r1)ψβ(r2) − ψα(r2)ψβ(r1)
Vemos que ψA troca de sinal sob uma permuta de r1 com r2, mas
o mesmo nao acontece com ψS. Como a funcao total tem que ser
antissimetrica, se os eletrons estiverem no estado representado por ψS,
a sua funcao de spin tera que ser antissimetrica, o que significa que os
spins serao opostos. Analogamente, se o estado orbital for dado por
ψA, a funcao de spin tera que ser simetrica, ou seja, os dois spins serao
paralelos. Tudo isso ja havia sido comentado no capıtulo tres.
Vamos agora considerar o que acontece quando incluimos a interacao
eletrostatica entre os eletrons. Sabemos do capıtulo um que a interacao
coulombiana entre dois eletrons e dada por:
V =1
4πε0
e2
r12
onde r12 e a distancia entre eles, definida acima. Acontece que nem
posicoes nem distancias possuem valores precisos em mecanica quantica,
mas somente suas medias. Se medıssemos r12 varias vezes, encon-
trarıamos valores diferentes em cada medida (os autovalores), e o que
teria significado seria a media desses valores. Consequentemente, como
a energia potencial V e uma funcao de r12, ela tambem possuira um
314
valor medio. Mas como vimos no capıtulo tres, valores medios sao calcu-
lados usando-se funcoes de distribuicao de probabilidades, que por sua
vez sao dadas pelos modulos quadrados das funcoes de onda. Como
no caso que estamos tratando temos duas possibilidades para a funcao
de onda, ψS ou ψA, teremos tambem duas funcoes de distribuicao de
probabilidades:
|ψS|2 ou |ψA|2
Obviamente o resultado para o valor medio de V , calculado a partir
dessas distribuicoes dependera da escolha da funcao. Designaremos o
valor medio da energia potencial V por < V >. A maneira formal para
calcularmos esta quantidade seria multiplicarmos V por |ψS|2 (ou |ψA|2)e somarmos sobre todas as posicoes dos eletrons. O procedimento de
soma e complicado, pois como as posicoes dos eletrons variam continu-
amente no espaco, terıamos que utilizar o procedimento de integracao
de uma funcao, descrito no Painel IV (capıtulo um). No entanto, para
os nossos propositos, e suficiente usarmos um argumento apenas semi-
quantitativo.
Do que foi dito vemos que o valor medio da energia potencial entre
os eletrons dependera do estado do conjunto ser simetrico ou antis-
simetrico. Mas, se o estado orbital for simetrico, a funcao de spin
tera que ser antissimetrica; e se o estado orbital for antissimetrico, a
funcao de spin tera que ser simetrica. Consequentemente, a energia
coulombiana media entre os eletrons dependera do seu estado de spin.
Note a magica deste argumento: comecamos com uma interacao que so
depende das posicoes relativas entre os eletrons, r12, e acabamos desco-
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 315
brindo que o seu valor esperado tambem depende do spin! Isso ocorre
precisamente por causa do princıpio de exclusao.
Podemos ir um pouco mais adiante com as duas distribuicoes de
probabilidades acima. Por simplicidade vamos supor que ψα e ψβ sao
funcoes reais, ou seja, ψ∗α = ψα, e ψ∗
β = ψβ. Consequentemente:
|ψS|2 = ψ∗SψS = ψ2
S =
= [ψα(r1)ψβ(r2) + ψα(r2)ψβ(r1)]2
= ψα(r1)2ψβ(r2)
2 + ψα(r2)2ψβ(r1)
2 + 2ψα(r1)ψβ(r2)ψα(r2)ψβ(r1)
Cada um desses termos representa uma parcela da distribuicao de pro-
babilidades para as posicoes das partıculas 1 e 2 no estado ψS. O
primeiro termo, por exemplo:
ψα(r1)2ψβ(r2)
2
representa uma distribuicao de probabilidades onde o eletron 1 se en-
contra no estado α e o eletron 2 no estado β. Da forma analoga, o
segundo termo
ψα(r2)2ψβ(r1)
2
representa uma distribuicao em que cada eletron esta em um estado
distinto: o eletron 1 em β e o eletron 2 em α. Quando usados para
calcular o valor medio de V , esses dois termos fornecem o analogo
classico do potencial eletrostatico3. Vamos chamar este termo de V0:
3Ou seja, fornecem um valor para a energia eletrostatica igual ao que seria obtidose os dois eletrons fossem tratados como partıculas classicas.
316
V0 =e2
4πε0
1
< r12 >
onde < r12 > e o valor medio de r12, calculado a partir dos dois
primeiros termos de |ψS|2.A grande novidade aparece quando consideramos a contribuicao do
ultimo termo:
2ψα(r1)ψβ(r2)ψα(r2)ψβ(r1)
Este termo e uma consequencia direta do princıpio de exclusao. Ele
representa uma situacao estranha em que o eletron 1 se encontra par-
cialmente no estado α, atraves da funcao ψα(r1), e parcialmente no
estado β, atraves de ψβ(r1), o mesmo ocorrendo para o eletron 2. Ou
seja, este termo descreve uma troca de estados dos eletrons 1 e 2 entre
os estados quanticos α e β. Sua contribuicao para o valor medio de V ,
e chamada de energia de troca (a origem do nome e evidente!). A ener-
gia de troca e um efeito de natureza puramente quantica, ou seja, nao
possui analogo classico. Representaremos a energia por Jtroca. Entao,
agrupando todos os termos, e tendo em conta que os dois primeiros
contribuem com o mesmo valor V0, podemos escrever a energia coulom-
biana media, < V >, como:
< V >= 2V0 + 2Jtroca
Se tivessemos usado ψA ao inves de ψS , terıamos obtido o seguinte
resultado:
< V >= 2V0 − 2Jtroca
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 317
Este e um resultado importante, pois ele mostra que o valor medio da
energia coulombiana sera aumentado ou reduzido de 2Jtroca, em relacao
a 2V0, dependendo da simetria da funcao de onda. Mas, como a simetria
da funcao de onda depende do estado de spin dos eletrons, podemos
dizer que o valor de < V > dependera em ultima instancia dos spins
S1 e S2. Este fato sugere que talvez pudessemos obter uma expressao
para < V > escrita explicitamente em termos dos spins dos eletrons.
A interacao de troca aparece da superposicao de funcoes de onda de atomos proximos.Este efeito puramente quantico e a base para a compreensao da ordem magneticanos materiais.
Podemos de fato escrever < V > como funcao dos spins eletronicos.
Como estamos lidando com dois eletrons, teremos S1 = S2 = 1/2.
Utilizando o produto escalar entre S1 e S2, e facil ver que as duas
expressoes acima podem ser reunidas em uma unica expressao para
< V > da seguinte forma:
318
< V >= 2V0 − 8JtrocaS1 · S2
De fato, como os spins sao iguais a 1/2, chamando de θ o angulo entre
eles, teremos S1 · S2 = S1S2cosθ = cosθ/4. Consequentemente:
< V >= 2V0 − 2Jtrocacosθ
Se os spins forem paralelos, θ = 0, e teremos de volta a expressao
< V >= 2V0 − 2Jtroca. Mas, spins paralelos significam que a funcao
de onda de spins e simetrica e, consequentemente, a espacial e antis-
simetrica. Se eles forem antiparalelos, θ = π; a funcao de spin sera
antissimetrica e a espacial simetrica, e teremos < V >= 2V0 + 2Jtroca.
Heisenberg foi quem primeiro notou que o termo −2JtrocaS1 · S2
descreveria a ordem magnetica nos materiais. Mesmo que os spins nao
sejam 1/2, como no exemplo acima, nao ha problema; o importante
e a dependencia funcional de < V > em relacao aos spins. Qualquer
diferenca no fator numerico multiplicativo pode ser incorporada no va-
lor de Jtroca. Este termo de energia que depende do produto escalar
entre os spins e conhecido como interacao de Heisenberg, e e a base dos
modelos de ordem magnetica nos materiais. Denotamos a interacao de
Heisenberg por H:
H = −2JtrocaS1 · S2
Se supusermos que Jtroca > 0, veremos que a energia sera mınima
quando os spins forem paralelos, ou seja θ = 0. Por outro lado, se
Jtroca < 0, a configuracao de menor energia sera aquela para a qual
θ = π, ou seja, spins antiparalelos.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 319
.
A interacao de troca ocasiona um aumento ou decrescimo na energia eletrostaticado sistema, dependendo da direcao relativa dos spins. O sistema buscara sempre oestado de menor energia, resultando em alguma forma de ordenamento magnetico.
6.2 Tipos de Ordem Magnetica
Considere agora nao somente dois spins, mas uma rede cristalina com
N ıons, cada um com um spin. Vamos chamar Si o valor do spin do
ıon na posicao i. Para simplificar, vamos supor que a nossa rede e
linear. Cada spin interage com o seu vizinho proximo, de acordo com
a interacao de Heisenberg. Por exemplo, o spin na posicao 5, denotado
por S5, interage com S4 e S6:
−2JtrocaS5 · S4 − 2JtrocaS5 · S6 = −2Jtroca(S5 · S4 + S5 · S6)
De uma maneira mais geral, um spin na posicao i interagira com aqueles
nas posicoes i+ 1 e i−1. A energia de troca total sera a soma de todos
320
os pares de spins proximos, ou seja:
H = −2Jtroca∑i
Si · Si+1
Como vimos acima, se Jtroca for positiva, os spins se alinham par-
alelamente, pois desta forma a energia do conjunto sera minimizada.
Esse tipo de ordem magnetica e chamada de ferromagnetismo, e e o
que acontece, por exemplo com o ferro metalico, ou com o composto
CrO2, entre varios exemplos. E tambem o que acontece com o gadolınio
metalico.
Se Jtroca for menor do que zero, a energia sera mınima para uma
configuracao em que os spins se alinham antiparalelamente. Este tipo
de ordem e chamada de antiferromagnetismo. Exemplos de materiais
antiferromagneticas sao o MnO, o FeCl2, o NiO, entre outros.
Tanto no ferromagnetismo quanto no antiferromagnetismo, os spins
possuem a mesma magnitude. E interessante ressaltar que no caso do
antiferromanetismo, devido ao fato de que os spins vizinhos apontam
em direcoes antiparalelas alternadamente, a magnetizacao total sera
nula, embora haja ordem magnetica. Este e um dos “casos especiais”
mencionados na secao anterior em que mi = 0, mas M = 0. E possıvel
ocorrer tambem o caso em que na mesma rede existam ıons com spins
de magnitude diferentes, levando a situacoes mais complexas. Por ex-
emplo, na magnetita, um oxido de ferro natural com formula quımica
Fe3O4, existem dois tipos de ıons de ferro: os duplamente ionizados
Fe2+, e os triplamente ionizados Fe3+. Os primeiros possuem S = 2, e
os segundos S = 5/2. Os que possuem spin maior se alinham antifer-
romagneticamente, e os que possuem spin menor se alinham ferromag-
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 321
neticamente. Tudo dentro do mesmo cristal! Isso se deve basicamente
as variacoes da energia de troca entre os ıons na magnetita, e serve para
exemplificar a riqueza do fenomeno do magnetismo. A magnetita e um
exemplo do que chamamos de ferrimagnetos. Existem ainda varios
outros exemplos de ordem magnetica que nao vamos mencionar aqui.
Resumindo: a interacao de Heisenberg e a origem microscopica do
magnetismo na materia. Ela resulta de dois fatores: (i) a interacao
coulombiana entre os eletrons, e (ii) o princıpio de exclusao. Nunca
e demais enfatizar o fato pouco intuitivo que a ordem magnetica na
materia resulta de uma interacao de natureza eletrica. A Fısica sempre
nos surpreende!
Em uma rede cristalina a interacao de troca entre os atomos leva ao ordenamentomagnetico do material.
Porem, somente a interacao de Heisenberg nao explica porque al-
guns materiais se ordenam magneticamente e outros nao; ela mera-
322
mente preve a existencia de ordem magnetica. Alias, qualquer material
que possua ordem magnetica, a perde se for aquecido a uma tempe-
ratura suficientemente alta. Para o ferro metalico, por exemplo, essa
temperatura e da ordem de 1000 graus, e para o Gd metalico ela e da
ordem de 300 graus Kelvin. A temperatura na qual um material perde
a ordem magnetica e uma caracterıstica intrınseca de cada material,
e chamada de temperatura crıtica, denotada por Tc. Temos entao de
um lado a interacao de troca que tende a fazer com que o material se
ordene magneticamente, e de outro o efeito da temperatura, ou ener-
gia termica que tende a destruir a ordem magnetica. E a competicao
entre essas duas formas de energia (magnetica e termica) que diz se
o material sera ordenado magneticamente ou nao. A energia termica
associada a uma temperatura T e igual a kBT , onde kB e a constante
de Boltzmann. Se a temperatura do material estiver acima da tem-
peratura crıtica, a energia termica kBT sera maior do que a energia
de troca, e o material nao estara ordenado magneticamente. Se o ma-
terial for resfriado, quando T estiver se aproximando de Tc, comeca a
surgir ordem magnetica. Quando T = Tc, a energia termica se torna
da mesma magnitude que a energia de troca, e o material se ordena
magneticamente. Entao, para que a ordem magnetica se mantenha, e
necessario que a temperatura do material seja tal que:
Jtroca ≥ kBT
Se substituirmos T = Tc nesta expressao, obtemos uma estimativa para
Jtroca. Por exemplo, para o Gd metalico,
Jtroca ≈ 300 K × 1, 38 × 10−23 J/K = 0, 026 eV
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 323
.
Qualquer material ordenado magneticamente, o deixa de ser a uma dada temper-atura chamada de temperatura crıtica, Tc. Acima desta temperatura os momentosatomicos se desordenam. A temperatura crıtica e uma medida da intensidade dainteracao de troca.
6.3 Magnetismo Nuclear
A maior parte dos nucleos dos atomos da tabela periodica possui spin
diferente de zero. Assim como no caso atomico, o spin nuclear, que rep-
resentaremos por I, e o resultado da distribuicao de protons e neutrons
dentro do nucleo, nos orbitais quanticos nucleares. Ao spin do nucleo
associa-se um momento magnetico nuclear, que chamaremos mn:
mn = gnI
onde gn e uma constante de proporcionalidade. Nucleos diferentes pos-
suem spins diferentes. Por exemplo, o proton, que e o nucleo do atomo
324
de hidrogenio, possui spin I = 1/2. O isotopo 59Co do cobalto possui
I = 7/2, e o 157Gd (gadolınio) possui I = 3/2. De fato, o spin nuclear I
e a grandeza equivalente ao momento angular total J no caso atomico,
e nao ao spin propriamente dito, S.
A maioria dos nucleos possui momento angular, e portanto momento magnetico,que da origem ao magnetismo nuclear.
Contudo, o magnetismo nuclear e muito mais fraco do que o mag-
netismo atomico4. Isso quer dizer que os momentos magneticos dos
nucleos contribuem pouco para a magnetizacao de um material para-
magnetico ou ferromagnetico. Como vimos no capıtulo tres, momen-
tos magneticos tendem a se alinhar com campos magneticos. Ao apli-
carmos um campo magnetico em um material qualquer, como a uma
amostra de agua, criamos uma magnetizacao nuclear, como efeito do
4Isto esta fundamentalmente relacionado ao fato de a massa do eletron ser muitomenor do que a massa do proton.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 325
alinhamento dos momentos magneticos nucleares com o campo. Obvi-
amente, ao retirarmos o campo, os momentos voltam a apontar para
direcoes aleatorias, e a magnetizacao desaparece. No caso dos materi-
ais que possuem ordem magnetica, como o Fe metalico, por exemplo,
acontece algo mais interessante. Abaixo da temperatura crıtica, os mo-
mentos magneticos atomicos do Fe apontam para a mesma direcao.
Mas, cada momento magnetico atomico por sua vez cria um campo
magnetico que, na posicao do nucleo, e paralelo ao momento do atomo.
Este campo magnetico tende a alinhar os momentos nucleares ao longo
da mesma direcao. Entao o que se observa nesses materiais e uma
magnetizacao nuclear permanente causada pela ordem magnetica dos
momentos atomicos do material.
O magnetismo nuclear e muito mais fraco do que o atomico e, em condicoes nor-mais, nao se observa ordenamento magnetico nuclear espontaneo. No entanto, nosmateriais que apresentam ordem magnetica, os momentos nucleares tendem a sealinhar com os momentos atomicos.
326
Um dos avancos mais notaveis da fısica experimental nos ultimos
cinquenta anos foi o desenvolvimento de tecnicas experimentais que
possibilitaram o estudo do magnetismo nuclear. Exatamente pelo fato
de este ser muito pequeno, essas tecnicas sao de certa forma “espe-
ciais”, e se utilizam de um importante fenomeno que mencionamos
no capıtulo um: o fenomeno da ressonancia. Relembrando, de uma
maneira geral, a ressonancia e um fenomeno de absorcao de energia de
modo seletivo. Para haver ressonancia precisamos de dois ingredientes
basicos: um sistema onde exista uma frequencia natural ou modo nor-
mal de vibracao (veja capıtulo um), e um agente externo que atue sobre
o sistema nesta mesma frequencia. O exemplo usado no capıtulo um
foi o sistema massa-mola. A frequencia natural e neste caso dada por
f = (2π)−1√k/m, onde k e a constante elastica da mola, e m a massa
do objeto a ela presa. Vimos ainda o caso da ressonancia de cıclotron,
onde a frequencia de ressonancia e dada por qB/m. No sistema massa-
mola, o agente externo pode ser uma pessoa, que faz a mola oscilar
para cima e para baixo. Se a frequencia associada ao movimento da
mao for igual a frequencia natural do sistema, este absorvera grande
quantidade de energia (neste caso, energia mecanica do movimento da
mao), e a amplitude do movimento sera maior. No sistema carga-campo
magnetico, o agente externo pode ser um campo eletrico oscilante.
No caso que vamos tratar agora o sistema fısico compreende os
momentos magneticos nucleares que entram em ressonancia com um
campo eletromagnetico externo, mais especificamente, a parte magnetica
do campo. O fenomeno e chamado ressonancia magnetica nuclear ou
RMN.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 327
6.4 Ressonancia Magnetica Nuclear
Sabemos que momentos magneticos interagem com campos magneticos.
Um nucleo com spin I e momento magnetico mn = gnI, na presenca de
um campo magnetico B tera uma energia magnetica dada pelo produto
escalar de mn com B (veja capıtulo tres):
E = −mn · B = −gnI · B
Vamos imaginar que o campo magnetico aponte na direcao z, ou seja:
B = Bk. Nesse caso, a energia magnetica do nucleo se torna:
E = −gnBIz
onde Iz e a componente z do spin nuclear. Mas, sabemos do capıtulo
tres que componentes de momentos angulares, como Iz, so podem
adquirir um conjunto discretos de valores, que no presente caso chamaremos5
de m. Os valores que m pode assumir sao: m = −I,−I + 1, . . . , I −1, I. Como consequencia os nıveis de energia magnetica do momento
magnetico nuclear no campo magnetico serao discretos (ou quantiza-
dos), e dados por:
Em = −gnBm
Estes sao os valores possıveis de E (ou, como denominados no capıtulo
tres, autovalores de energia). Para o proton, por exemplo, I = 1/2,
e consequentemente m = −1/2,+1/2. Logo, so existirao dois valores
possıveis de energia magnetica para o proton:5No capıtulo tres usamos ms e ml, respectivamente, para as componentes z do
spin e do momento angular orbital.
328
E+1/2 = −1
2gnB e E−1/2 = +
1
2gnB
Para um nucleo como o do isotopo 155Gd, que possui I = 3/2, teremos
m = −3/2,−1/2,, +1/2,+3/2, e portanto 4 nıveis de energia possıveis:
E+3/2 = −3
2gnB
E+1/2 = −1
2gnB
E−1/2 = +1
2gnB
E−3/2 = +3
2gnB
E assim por diante. De um modo geral, um nucleo com spin I tera
2I + 1 nıveis de energia.
Embora ate aqui nao tenhamos explicitado, o fator de proporciona-
lidade gn e uma caracterıstica de cada nucleo. Ele e proporcional a
constante de Planck h, e escrito mais comumente como:
gn = γnh
onde γn e chamado de fator giromagnetico nuclear, uma especie de
identidade magnetica do nucleo. Essa quantidade nos diz que nucleos
diferentes, quando sujeitos ao mesmo campo magnetico, terao valores
diferentes de energia. No SI a unidade de γn e Hz/T (hertz por tesla),
mas por razoes praticas e normal expressarmos esta quantidade em
MHz/kG (megahertz por kilogauss).
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 329
Podemos agora re-escrever os valores de Em como6:
Em = −γnhBm
Considere como exemplo o nucleo do 157Gd, para o qual I = 3/2 e
γn = 1, 713 MHz/T. Em um campo B = 10 T, os quatro nıveis de
energia magnetica deste nucleo serao:
E−3/2 = +1, 69 × 10−9 eV
E−1/2 = +0, 56 × 10−9 eV
E+1/2 = −0, 56 × 10−9 eV
E+3/2 = −1, 69 × 10−9 eV
A conveniencia de escrevermos a energia desta forma, proporcional a
constante de Planck, se tornara aparente abaixo.
Vamos calcular a separacao (em energia) entre dois nıveis consecu-
tivos de energia, ou seja Em − Em−1 (ou Em+1 −Em):
Em − Em−1 = −γnhBm− γnhB(m− 1) = γnhB
Donde, dividindo por h obtemos:
Em − Em−1
h= γnB
6O interesse em escrevermos gn desta forma, esta no fato de que assim a constantede Planck, que e a unidade fundamental de momento angular, fica explicitada.
330
Mas, a quantidade do lado esquerdo possui dimensao de frequencia
angular (o numerador tem dimensao de joule, e o denominador de joule
vezes segundo, dividido por 2π). Esta quantidade e especial para a
RMN: ela e chamada de frequencia de Larmor, e representada por ωL.
Entao:
ωL = γnB
Substituindo γn para o 157Gd em um campo de 10 T, obtemos ωL =
17, 13 rd MHz, ou fL = ωL/2π = 2, 73 MHz.
A frequencia de Larmor e a frequencia natural do sistema de nucleos
em um campo magnetico, tanto quanto√k/m e a frequencia natural
do sistema massa-mola, ou qB/m do sistema carga-campo magnetico.
No sistema massa-mola, a frequencia natural ω =√k/m tem uma
interpretacao fısica obvia: e a frequencia de oscilacao da massa. E no
presente caso, qual o significado fısico de ωL? Uma frequencia e algo
que caracteriza o movimento periodico de um sistema fısico. Embora
a deducao de ωL acima tenha sido feita via mecanica quantica, existe
uma imagem classica simples que nos ajuda a entender o significado
de ωL. Um momento magnetico na presenca de um campo magnetico
adquire um movimento de precessao em torno da direcao do campo.
A frequencia de Larmor e a frequencia desta precessao. A situacao
e semelhante a de um giroscopio (piao): quando em movimento de
rotacao possui um “spin” que precessiona em torno da direcao do campo
gravitacional.
Suponha agora que tenhamos um unico spin I = 1/2 em um campo
magnetico. Como vimos acima, havera dois nıveis de energia, E+1/2
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 331
e E−1/2, sendo que o primeiro e mais baixo que o segundo. Suponha
que o spin se encontre no nıvel E+1/2. A distancia, em energia, do
nıvel acima e igual a hωL. Se irradiarmos esse sistema com fotons cuja
energia por partıcula, hω, seja exatamente igual a separacao entre os
nıveis, o nucleo pode absorver um foton e mudar de nıvel de energia.
Isso equivale a componente z do spin passar do estado m = +1/2 para
o estado m = −1/2, ou seja “virar de cabeca para baixo” 7. Este e o
fenomeno da ressonancia magnetica nuclear. O nucleo absorve energia
ressonantemente da onda eletromagnetica. Se a frequencia da onda for
diferente de ωL nao havera absorcao.
Um spin I = 1/2 em um campo magnetico apresenta dois nıveis de energia. Aoirradiarmos os sistema com fotons com energia hω = ∆E/h, onde ∆E e a distanciaem energia entre os dois nıveis, havera absorcao de fotons. Este e o fenomeno daressonancia magnetica nuclear.
7Atencao: e preciso tomar cuidado com certas imagens excessivamente classicascomo a que estou usando agora. Um medico formado, certa vez me disse - comaquela seguranca que caracteriza os medicos - que na RMN o atomo virava decabeca para baixo! Felizmente ele entendia mais de doenca do que de RMN! Emborarepresentemos a imagem do spin por uma seta, essa quantidade nao e exatamentecomo uma agulha no nosso espaco tridimensional; esta “virada de cabeca parabaixo” a que nos referimos se da no espaco dos spins!
332
E o que ocorre se nao tivermos apenas 1 spin, mas uma amostra
de agua, com cerca de 1023 spins por cm3? Esta e uma pergunta im-
portante, pois experimentos em laboratorios lidam com quantidades de
nucleos desta ordem. Em um copo com agua, cada nucleo de hidrogenio
tera spin I = 1/2. Por sua vez, o isotopo de oxigenio 16O, que e 99,76%
abundante, e portanto de longe o mais presente na agua, possui I = 0.
Consequentemente, este isotopo nao contribui para a magnetizacao nu-
clear e, para fins de RMN, nao e importante. Como todos os nucleos
de H possuem o mesmo spin 1/2, ainda havera somente dois nıveis de
energia acessıveis para cada um deles. Na Natureza, nıveis mais baixos
de energia tem preferencia para ocupacao. Entao, havera mais spins no
nıvel E+1/2 do que no nıvel E−1/2. Quando o copo com agua (no campo
magnetico) for irradiado por uma onda eletromagnetica na frequencia
de Larmor, os spins que estao em baixo “pulam” para cima8. Mas, o
fenomeno e tal que a onda tambem pode fazer os spins de cima “pu-
larem” para baixo. Isso ocorre porque do ponto de vista quantico, a
probabilidade de uma transicao de baixo para cima e igual a uma de
cima para baixo. Cada vez que um spin pula de cima para baixo, ele
emite um foton, ao passo que cada vez que um spin pula de baixo para
cima ele absorve um foton. Como inicialmente havia mais spins em
baixo do que em cima, havera mais absorcao do que emissao de fotons.
Ao irradiarmos continuamente o sistema, havera uma tendencia a
igualarmos o numero de spins no nıvel superior com o numero de spins
no nıvel inferior. No limite em que os dois nıveis possuem o mesmo
8Atencao aqui. Trata-se de um “pulo” no “espaco das energias”, cujo significadoe um aumento ou um decrescimo de um quantum de energia.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 333
numero de spins, a magnetizacao nuclear sera zero, pois os spins apon-
tam para direcoes opostas. Se desligarmos o campo eletromagnetico,
o sistema re-adquire o equilıbrio, com a maioria dos spins retornando
para o nıvel de energia mais baixo, e portanto recuperando a magne-
tizacao nuclear. O tempo entre o momento em que desligamos o campo
e a recuperacao do equilıbrio e um importante parametro na RMN: ele
e chamado de tempo de relaxacao spin-rede, e representado por T1. E
simples entender a razao para esse nome. Quando desligamos a onda
eletromagnetica, a maioria dos spins que estao no nıvel de cima de-
caem para o nıvel de baixo, emitindo fotons. Estes fotons sao quantuns
da energia que esta sendo liberada pelos nucleos, e eles devem ir para
“algum lugar”. Dizemos que eles sao absorvidos pela rede (aqui em-
pregamos a palavra “rede” como uma denominacao generica para o
meio em torno dos nucleos). Se o sistema de nucleos nao estivesse em
contato com a rede nao haveria como liberar energia e os spins conti-
nuariam no nıvel superior de energia. A situacao e semelhante ao caso
de um copo de isopor contendo agua fervendo dentro de uma vasilha
com grande quantidade de gelo. O isopor isola termicamente a agua
fervendo do gelo que esta do lado de fora. Resultado: a agua nao es-
fria, porque esta isolada da “rede” (nesse caso representada pelo gelo).
Por outro lado, se colocarmos a agua em um copo de alumınio, ela
se resfriara rapidamente, pois o alumınio faz contato termico entre a
agua fervendo e o gelo. No caso dos nucleos ocorre algo semelhante:
quando o nıvel de cima esta mais populoso, os sistema esta “quente”.
Quando desligamos a radiacao eletromagnetica, as interacoes entre os
nucleos e a rede estabelecem um “contato termico” e fazem com que
334
eles decaiam, “esfriando” o sistema nuclear.
Ao ser irradiado continuamente com fotons na frequencia de ressonancia, um sistemade spins nucleares tende a igualar as populacoes dos nıveis de energia. Quando aonda eletromagnetica e desligada, os spins retornam ao equilıbrio termico em umtempo caracterıstico T1, chamado “tempo de relaxacao spin-rede”.
Existe ainda um outro parametro temporal importante em RMN,
chamado de tempo de relaxacao spin-spin, representado por T2. Este
e um pouco mais sutil, mas nao chega a ser difıcil de entender. Este
tempo esta ligado as interacoes dos spins entre si. Ele se refere ao tempo
que as interacoes entre os spins levam para distribuir internamente a
energia absorvida da onda. T2 e, em geral, menor do que T1 porque,
de certa forma, as interacoes entre dois spins sao mais eficientes em
distribuir a energia entre eles do que entre cada spin separado e a
rede. Vamos recorrer a outra analogia: agua em uma panela de metal
colocada no fogo. Suponha que uma panela grande de metal esteja
cheia de agua. Colocando a panela no fogo, o metal aquecera mais
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 335
rapidamente do que a agua que esta dentro da panela. Isso porque o
contato termico entre as partes de metal e tal que o calor se distribui
mais rapidamente na panela do que entre esta e a agua. Imagine a
panela como o sistema de spins nucleares, e a agua dentro dela como
a rede. Ao colocarmos a panela no fogo, o calor se distribui no metal
com um tempo T2, e depois para a agua com um tempo T1.
Esses tempos possuem tambem uma interpretacao em termos do
movimento da magnetizacao nuclear em torno do campo aplicado. E
importante entendermos essas imagens, pois elas nos serao uteis para
entender um fenomeno importantıssimo que sera discutido na secao 6.6:
os ecos de spin.
6.5 O Sistema Girante
A RMN e um dos mais impressionantes exemplos de como a fısica
basica pode se converter em tecnologias que revolucionam outras areas
do conhecimento e da tecnica. Tendo surgido na decada de 40, como
poderiam os cientistas da epoca imaginar que o novo fenomeno seria um
dia utilizado para gerar imagens do interior do corpo humano em pleno
funcionamento! Hoje os chamados tomografos de RMN se espalharam
pelas clınicas e hospitais de todo o mundo, e sao um poderoso auxiliar
para o diagnostico de tumores, hematomas, etc. Para entendermos
como funciona a “magica”, e preciso entender antes uma variacao do
que foi exposto na secao anterior, a RMN pulsada.
Vimos que o fenomeno da RMN se da quando uma onda eletro-
magnetica, com frequencia igual a sua frequencia de Larmor, incide
336
sobre um sistema de momentos magneticos nucleares em um campo
magnetico estatico. Embora nao tenhamos entrado em detalhes, mais
precisamente e a parte magnetica da onda que causa o fenomeno. Sabe-
mos que uma onda eletromagnetica possui um campo eletrico e um
campo magnetico que oscilam no espaco e no tempo (veja capıtulo um).
Para efeitos da RMN, podemos desprezar o campo eletrico, e conside-
rarmos o campo magnetico espacialmente uniforme. Matematicamente
representamos tal campo como:
B1(t) = B1[cos(ωt)i + sen(ωt)j]
onde usamos a notacao B1 para diferenciar do campo estatico B que,
vamos supor, atua ao longo da direcao z. Note que este campo possui
uma forma especial: o seu movimento pode ser visualizado como o de
um vetor girando com velocidade angular ω no plano xy. Embora essa
forma de escrever o campo oscilante nao seja a unica, ela e a mais con-
veniente do ponto de vista matematico, como ficara claro logo abaixo.
Alem disso, campos oscilantes com esta dependencia temporal podem
ser facilmente produzidos experimentalmente. Repetindo: temos dois
campos magneticos: um estatico, de magnitude B ao longo do eixo z,
e outro oscilante, de magnitude B1, que gira no plano xy. B serve para
estabelecer uma frequencia natural no sistema, enquanto que B1 serve
para levar o sistema a ressonancia. Normalmente, o campo B1 e muito
menor do que o campo B. O campo magnetico total atuando sobre
os momentos magneticos nucleares sera simplesmente a soma dos dois
campos:
Btotal = Bk +B1[cos(ωt)i + sen(ωt)j]
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 337
Queremos descrever o movimento da magnetizacao nuclear sujeita
ao campo magnetico acima. Sabemos que momentos magneticos giram
em torno da direcao de campos magneticos. Mas, no caso acima fica
difıcil visualizarmos tal movimento, pois o campo total tambem esta
girando. Felizmente existe uma saıda elegante (e fantastica!) para o
problema.
Obviamente o campo magnetico acima e aquele visto por um ob-
servador em um referencial inercial, ou seja, em um referencial em que
os vetores unitarios i, j e k estao parados em relacao a ele. Mas, na
medida em que o termo dependente do tempo representa um vetor gi-
rando no plano xy, podemos perfeitamente imaginar um novo sistema
de referencia que gire com este vetor. Um observador neste novo sis-
tema de referencia vera o campo parado no tempo. Vamos chamar de
i′, j′ e k′ os vetores unitarios no novo sistema (daqui por diante vamos
nos referir ao sistema inercial como sistema de laboratorio e ao outro
como sistema girante), sendo que a rotacao se da em torno de k, que
portanto coincide com k′. Podemos imaginar que o campo B1 esteja
fixo sobre o eixo x′ no sistema girante. E facil ver que em termos de i
e j o versor i′ pode ser escrito como9:
i′ = cos(ωt)i + sen(ωt)j
ou seja, no sistema girante o campo total se torna:
Btotal = Bk′ +B1i′
e portanto independente do tempo.9Imagine i′ como um vetor no plano formado por i e j, fazendo um angulo ωt
com o eixo i.
338
Imaginar um sistema girante pode parecer um pouco abstrato a
primeira vista, mas nao e difıcil. Pegue uma pedra amarrada em um
barbante e gire-a sobre a sua cabeca. Voce pode fazer isso de duas
maneiras: ou voce gira somente o braco que impulsiona a pedra, man-
tendo o resto do corpo parado, ou voce tambem gira junto com ela.
No primeiro caso voce vera a pedra girar, ou seja, estara no referencial
de “laboratorio”. No segundo voce a vera parada, ou seja, estara no
sistema “girante”. E claro que para ver a pedra parada, e preciso girar
com ela! Felizmente, no caso da RMN nao precisamos girar milhoes
de vezes por segundo junto com os nucleos para estar no referencial
girante. O fenomeno e detectado por equipamentos que ja fazem este
truque eletronicamente.
Mas a historia nao termina por aı. Se B1 for muito pequeno com-
parado a B, um observador no laboratorio vera a magnetizacao nuclear
girar com uma velocidade angular aproximadamente igual a ωL = γnB
em torno do eixo z. Por outro lado, um observador no sistema gi-
rante, que roda com uma velocidade ω no mesmo sentido de rotacao
dos nucleos, nao ve a mesma frequencia de precessao ωL, mas sim a
diferenca10 ωL−ω. Isso e intuitivo, pois se o observador no sistema gi-
rante rodar exatamente com ωL, ele vera a magnetizacao parada, como
no exemplo da pedra. Por outro lado, se para ele a frequencia de pre-
cessao e diferente daquela vista pelo observador parado, tambem o sera
o campo magnetico, pois o movimento da magnetizacao se da exata-
mente devido a acao do campo! De fato, para o observador no sistema
10A situacao e inteiramente analoga ao problema do movimento relativo discutidono capıtulo um. A diferenca e que aqui adicionamos frequencias angulares, e naovelocidades.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 339
girante, tudo se passa como se o campo magnetico atuando na direcao
z fosse dado, nao somente por B, mas por
B − ω
γn
Note que se multiplicarmos essa expressao por γn obtemos a frequencia
correta ωL−ω vista pelo observador no sistema girante. Chamamos de
campo magnetico efetivo o campo magnetico total visto pelo observador
no sistema girante:
Bef = B1i′ + (B − ω
γn)k′
As vezes, a quantidade ω/γn e chamada de campo magnetico fictıcio,
por nao se tratar de um campo magnetico real, mas apenas de um efeito
da rotacao do sistema de coordenadas.
Algo notavel agora acontece. Suponha que o campo oscilante tenha
uma frequencia exatamente igual a ωL = γnB, ou seja, esteja em res-
sonancia com o sistema. O campo magnetico na direcao z′ neste caso
se torna:
B − ωLγn
= B − γnB
γn= B − B = 0
Ou seja, para o observador no sistema girante, na ressonancia, o campo
na direcao z′ se anula! Este e o efeito da ressonancia. A magica disso
esta exatamente no fato de que supomos de partida que B B1, e no
entanto, por um efeito de ressonancia, B desaparece para o observador
no sistema girante que passa a ver somente B1! Estamos agora com as
“ferramentas” para entendermos a RMN pulsada e os ecos de spin.
340
6.6 Ecos de Spin
Toda a discussao se passa no sistema girante. Inicialmente temos um
campo B estatico ao longo de z′. Repentinamente, um campo B1 e
aplicado na direcao x′, com frequencia ω = ωL, fazendo “desaparecer”
o campo B para o observador no sistema girante. A magnetizacao
nuclear, que inicialmente precessionava em torno da direcao z′, pas-
sara a girar em torno de B1 com uma frequencia angular ω1 = γnB1.
Esta frequencia e para o observador no sistema girante o equivalente a
frequencia de Larmor para o observador no laboratorio, com a diferenca
de que como B1 B, teremos ω1 ωL. Apos um intervalo de tempo
τ , a magnetizacao tera girado de um angulo θ igual a:
θ = ω1τ = γnB1τ
B1 e τ sao parametros que podem ser controlados, ou seja, aumentados
ou diminuidos arbitrariamente pelo experimentador. Podemos pensar
entao que, para B1 fixo, o angulo θ acima pode ser controlado simples-
mente variando-se a duracao τ . Poderıamos, por exemplo, controlar
τ de modo que θ = π/2, ou π, ou imaginar uma sequencia, em que
primeiro B1 e aplicado por certo tempo, de modo que θ = π/2, desli-
gado por um intervalo ∆τ , e ligado novamente de modo que θ = π.
Qualquer sequencia e possıvel. Com isso podemos controlar a posicao
da magnetizacao nuclear. Esta maneira de aplicar o campo oscilante
em intervalos fixos de duracao, ou, como no jargao da RMN, sob a
forma de pulsos, caracteriza a RMN pulsada.
A RMN pulsada da origem a um fenomeno peculiar: os ecos de spin.
Ecos de spin estao relacionados as componentes x e y da magnetizacao
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 341
nuclear no sistema girante (vamos omitir a ‘linha’ pois daqui por diante
so estaremos falando de sistema girante). E muito facil entender o
fenomeno, mas antes e preciso introduzir mais uns ingredientes.
Para que haja ecos de spin, e necessario que haja inomogeneidade
no campo estatico B, ou seja, e preciso que o campo varie espacial-
mente. Esta inomogeneidade de B, que denotaremos por ∆B, se re-
fletira na frequencia de Larmor dos spins, que tambem passara a ter
uma distribuicao de valores ∆ωL = γn∆B. Isso quer dizer que mo-
mentos magneticos nucleares em posicoes diferentes dentro do material
precessarao com velocidades angulares diferentes. Como consequencia,
um campo magnetico oscilante, aplicado sob a forma de um pulso,
normalmente nao agira de forma ressonante sobre todos os spins, mas
somente sobre uma parte deles. A esta fracao dos spins que “sente” a
atuacao do pulso, da-se o nome de pacote de spins11.
Vamos entao imaginar que inicialmente a magnetizacao aponta para
a direcao z. As frequencias de Larmor estao distribuidas na faixa
∆ωL = γn∆B. Um pulso magnetico e aplicado ao longo de x faz
girar todos os momentos que precessionam dentro de um determinado
pacote de spins. Vamos supor que trata-se de um pulso π/2, e que toda
a magnetizacao seja girada, o que sera verdade sempre que ∆ωL nao
for grande. Entao, a magnetizacao que apontava ao longo de z, passa
a apontar ao longo de y. O pulso e desligado; o que acontece com a
11Se a inomogeneidade ∆B nao for muito grande, e possıvel que todos os spinssejam excitados pelo pulso. Neste caso o pacote de spins seria igual a totalidadedos spins. Se, contudo, a inomogeneidade for muito grande, para que todos os spinssejam excitados, sera preciso variar a frequencia do campo oscilante em torno deωL.
342
magnetizacao? Na ausencia do pulso os momentos magneticos preces-
sionarao em torno do campo estatico B. Mas como este e inomogeneo,
alguns momentos precessionarao mais rapido do que outros, causando
uma dispersao da magnetizacao no plano xy. Apos um intervalo de
tempo ∆τ , um outro pulso e aplicado, de modo a girar a magnetizacao
de um angulo π em torno de x. Um “milagre” entao acontece: o sen-
tido de rotacao dos momentos dispersos e invertido, e a magnetizacao
no plano xy e refocalizada! Esta refocalizacao e o que se chama de
eco de spins. Nos referimos a esta sequencia particular de pulsos como
π/2 − ∆τ − π.
Vamos agora interpretar os tempos de relaxacao T1 e T2 em termos
do movimento da magnetizacao nuclear. O tempo de relaxacao T1 cor-
responde ao tempo para a recuperacao da magnetizacao de equilıbrio
apos a remocao dos pulsos. O tempo T2 corresponde ao tempo gasto
para a magnetizacao no plano xy desaparecer. Essa perda da magne-
tizacao no plano ocorre devido a interacao entre os spins, causando sua
dispersao total. Verifica-se que T2 e sempre menor ou igual a T1.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 343
PAINEL XII
RMN E COMPUTACAO QUANTICA
No inıcio da decada de 80, Richard Feynman, um dos fısicos americanos mais im-
portantes do seculo XX, afirmou que seria impossıvel simular sistemas quanticos de
forma completa, utilizando ferramentas classicas. Como as bases de funcionamento
de um computador comum sao classicas, isto significaria que sistemas quanticos
nao poderiam ser simulados em um computador, a menos que este tambem fun-
cionasse com bases quanticas, ou seja, fosse um computador quantico. As ob-
servacoes de Feynman resultaram numa busca de como deveria funcionar um com-
putador quantico. O resultado foi surpreendente: um computador quantico teria
uma capacidade computacional que transformaria os mais poderosos computadores
da atualidade em meras reguas de calculo.
Como sabemos, computadores classicos operam com sinais eletricos sob a forma
de pulsos que representam dois estados logicos: 0 e 1. Estes dois dıgitos sao a base
do sistema numerico binario. Todas as maravilhosas tarefas executadas pelos com-
putadores atuais podem, em ultima instancia, ser traduzidas como uma imensa
sequencia de “zeros” e “uns”. O “estado logico” de um computador classico pode-
ria parecer algo como: 1001011100011110000111110000110... Uma caracterıstica
fundamental desta tecnologia e o fato de dois estados logicos serem mutuamente
excludentes: em uma dada posicao da sequencia, ou aparece o dıgito “1” ou o
dıgito “0”, mas nunca os dois ao mesmo tempo. No mundo quantico e diferente.
Suponha que tenhamos duas partıculas com spin 1/2 em um campo magnetico.
Cada uma delas pode ter projecao ±1/2 ao longo da direcao do campo. Existementao 4 configuracoes possıveis para o spin do sistema: ↑↑, ↑↓, ↓↑ e ↓↓. Cada umadessas configuracoes e representada por uma autofuncao, que podemos escrever
como: φ↑↑, φ↑↓, φ↓↑ e φ↓↓.
Podemos interpretar o estado quantico “spin para baixo” como um estado
logico, por exemplo, “0”. Analogamente, podemos interpretar o estado quantico
“spin para cima” como “1”. Com isto, os estados de spin acima seriam represen-
tados, respectivamente, por 11, 10, 01 e 00, e as autofuncoes correspondentes φ11,
344
φ10, φ01 e φ00. Assim como a unidade de informacao classica e o “bit” (do ingles
binary digit), a unidade de informacao quantica e o “qubit” (quantum binary digit).
Como vimos no capıtulo 3, estados quanticos sao representados por super-
posicoes de autoestados. Podemos entao pensar no seguinte estado para o sistema
de dois spins:
ψ = a11φ11 + a10φ10 + a01φ01 + a00φ00
onde |a11|2 e a probabilidade de encontrarmos o estado φ11 em uma medida, analoga-
mente para os outros coeficientes.
E precisamente a possibilidade de superpor estados que torna a computacao
quantica imensamente superior a classica. Em termos logicos, o estado acima rep-
resenta a possibilidade de operarmos com os quatro estados 11, 10, 01 e 00 simul-
taneamente, o que e impossıvel classicamente. Se tivessemos n spins, ao inves de
2, terıamos 2n estados, ao inves de 4. Um computador quantico operaria simul-
taneamente com todos eles. Em outras palavras, todos os estados logicos de um
computador quantico poderiam ser acessados simultaneamente!
Operar com estados em um computador quantico significa manipular os spins.
E aqui que entra a RMN. Em tese, qualquer sistema quantico com nıveis discretos
de energia poderia ser utilizado como computador quantico, mas ate o momento
somente a RMN foi capaz de demonstrar a realizacao da ideia na pratica. Varios
algoritmos quanticos ja foram realizados experimentalmente atraves da RMN apli-
cada em moleculas com dois e tres spins. Apesar da simplicidade desses “computa-
dores rudimentares”, e das discussoes sobre a utilizacao pratica de computadores
quanticos, ha muito otimismo quanto ao futuro da computacao quantica. Um dia
voce vai ver um computador quantico na prateleira de uma loja!
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 345
6.7 Imagens do Corpo Humano;
uso Medico da RMN
A amplitude do eco de spins depende do numero de momentos magneticos
no pacote de spins que, por sua vez, depende da inomogeneidade de B.
Quanto maior for ∆B, menor sera o numero de momentos magneticos
no pacote de spins, e menor a amplitude do eco. Tambem e verdade que
a amplitude do eco depende do numero total de momentos magneticos
no material. Ou seja, quanto maior a concentracao de spins nucleares,
maior sera o eco. Poderıamos, por exemplo, somente olhando as am-
plitudes dos ecos de protons da agua contida em 2 frascos diferentes,
dizer qual deles tem mais agua. Suponha que ao inves de 2 frascos,
tenhamos um objeto com diferentes concentracoes de agua dentro dele.
Se pudessemos controlar a inomogeneidade do campo ∆B dentro do
material poderıamos, atraves da analise das amplitudes dos ecos, dizer
que regiao tem mais agua. Ou seja, podemos “fotografar” a distribuicao
de lıquidos dentro do objeto. Imagine agora que tal objeto seja sub-
stituıdo por uma pessoa, ou parte dela, como a cabeca ou a perna.
Poderıamos, a partir da analise das amplitudes dos ecos, determinar
as concentracoes de lıquidos dentro do meio, e a partir daı construir
uma imagem interna daquela parte do corpo. Este e o princıpio da
tomografia por RMN!
Embora entre a deteccao do eco de spins e a exibicao de uma i-
magem interna do objeto no qual ele foi gerado haja muito trabalho
matematico, o princıpio fısico que possibilita a construcao dessas i-
magens e simples, e vale a pena ser discutido com mais detalhes. O
346
“truque” esta no controle da inomogeneidade do campo magnetico
estatico ∆B. Campos magneticos podem ser produzidos de modo a
apresentarem variacao espacial ao longo de uma direcao no espaco.
Por exemplo, poderıamos imaginar um campo cujo valor varie ao longo
de um eixo x da seguinte forma: em x = 0 o valor do campo e de 5000
gauss (1 gauss = 0,0001 tesla ), em x = 50 cm B seria 4000 gauss, e em
x = 100 seria de 3000 gauss. Ou seja, o campo diminui de 1000 gauss a
cada meio metro. Dizemos que existe um gradiente de campo ao longo
de x. Representemos o gradiente pela letra G. Entao:
G = −1000 gauss
50 cm= −20
gauss
cm
O sinal negativo indica que o campo diminui quando x aumenta.
Com isso, o valor do campo magnetico em qualquer ponto ao longo
de x pode ser escrito como:
B = B0 − xG
onde B0 e o valor de B em x = 0 (no exemplo acima 5000 gauss). A
inomogeneidade referida acima pode ser identificada como a diferenca
B−B0 = −xG. Com essa expressao podemos calcular o valor do campo
em qualquer ponto do eixo x. Por exemplo, em x = 6, 5 cm teremos,
utilizando os valores do exemplo acima:
B = 5000 − 6, 5 × 20 = 4870 gauss
Podemos a partir daı calcular a frequencia de Larmor em qualquer
posicao. Como B depende de x, ωL tambem dependera:
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 347
ωL(x) = γB(x) = γB0 − γxG
Suponha, por exemplo, que um nucleo hipotetico tenha γ = 2 × 104
Hz/gauss. Em x = 0 a frequencia de ressonancia desse nucleo seria:
ωL(x = 0) = 2 × 104 × 5000 = 108 Hz = 100 MHz
Se o mesmo nucleo estivesse em x = 6, 5 cm a sua frequencia de res-
sonancia seria:
ωL(x = 6, 5) = 2 × 104 × 4870 = 97, 4 MHz
Esta correspondencia entre a frequencia de ressonancia e a posicao
do nucleo dentro do material e o que permite a construcao das im-
agens. Note que se nao houvesse gradiente de campo, ou seja, se
G = 0, todos os nucleos da mesma especie responderiam com a mesma
frequencia. Tendo em conta que a amplitude do sinal de RMN depende
da concentracao dos nucleos que estao ressoando, pode-se transformar
a informacao frequencia vs. posicao em concentracao de material vs.
posicao. A partir daı algorıtmos de computador para tratamento de
imagens entram em acao e a imagem final e obtida.
Mas, como um medico pode chegar ao diagnostico de uma doenca
baseado nas imagens? Neste ponto os tempos de relaxacao T1 e T2
desempenham um papel fundamental. De fato, embora imagens pos-
sam ser contruıdas apenas a partir da informacao sobre as diferencas
de concentracoes de protons (hidrogenio) nos tecidos, o quadro obtido
dessa forma nao e completamente livre de ambiguidades. A razao e que
348
tecidos saudaveis podem apresentar concentracoes de protons proximas
a de tecidos nao saudaveis. Por outro lado, tecidos saudaveis apresen-
tam tempos de relaxacao diferentes dos nao saudaveis. Nao e difıcil
imaginarmos a razao para isto se entendermos que tecidos saudaveis
e nao-saudaveis possuem composicoes quımicas diferentes; na medida
em que os tempos de relaxacao estao relacionados as trocas de ener-
gia entre os spins dos nucleos ressonantes e as suas vizinhancas, eles
serao sensıveis ao ambiente quımico onde o nucleo se encontra. Faz-se
entao uma especie de ponderacao da amplitude do sinal de RMN com
os tempos de relaxacao T1 e T2. Vamos discutir este ponto com um
pouco mais de detalhes.
Normalmente um eco de spins e composto por uma superposicao de
sinais relativos a spins que relaxam rapido e outros que relaxam mais
lentamente. A amplitude do eco depende tanto de T1 quanto de T2.
Se uma sequencia de dois pulsos for aplicada muito rapidamente, o eco
sera formado basicamente pelos spins dos nucleos que relaxam rapido
(T1 curto). Se, por outro lado, esperarmos um tempo suficientemente
longo para repetir a sequencia de pulsos, os nucleos que relaxam rapido
ja terao alcancado o equilıbrio, e o eco sera formado por aqueles que
relaxam mais lentamente (T1 longo). O mesmo ocorre com T2: em uma
sequencia de dois pulsos, se aproximarmos os pulsos no tempo, o eco
sera formado basicamente por spins que possuem T2 curto, ao passo
que se separarmos os pulsos no tempo, so contribuirao aqueles spins
que possuem T2 longo. Associe agora T1 e T2 curtos ou longos a tecidos
saudaveis ou nao, e voce tem uma maneira de distinguir tecidos dentro
do corpo!
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 349
Apos a deteccao dos sinais de RMN, e a devida ponderacao pe-
los tempos de relaxacao, as imagens sao construıdas. As amplitudes
dos ecos estao associadas ao brilho na imagem. Por exemplo, regioes
mais claras representam sinais com maior intensidade, e mais escuras
de menor intensidade. E preciso manter em mente que o brilho de
uma determinada regiao em uma imagem depende do tipo de medida
realizada (e de fato do operador do tomografo!). Consequentemente a
mesma regiao pode aparecer mais clara ou mais escura, dependendo
se o sinal de RMN que a representa foi ponderado por T1 ou T2, ou
ainda da sequencia de pulsos utilizada. Por exemplo, uma regiao es-
cura em uma imagem ponderada por T1 pode representar a presenca
de um tumor, uma inflamacao ou edema. Regioes claras na mesma
imagem podem representar gordura, baixo fluxo sanguıneo, etc. Ossos,
ligamentos, cartilagem, etc., apresentam baixa intensidade em sinais
ponderados tanto por T1 quanto por T2. Tumores, inflamacoes e ede-
mas, em geral, apresentam baixa intensidade em sinais ponderados por
T1, e alta intensidade em sinais ponderados por T2. Qualquer que seja
a situacao, varias medidas serao normalmente necessarias a fim de que
se chegue a um diagnostico seguro.
6.8 A Fauna Quantica: Fotons, Fonons,
Magnons, Plasmons, e outros ‘ons’
No proximo capıtulo falaremos um pouco mais desta parceria Fısica-
Medicina. No momento vamos deixar as doencas de lado, e retornar
aos fenomenos basicos da Natureza.
350
Imagine um solido cristalino, magnetico e metalico, como o Fe ou o
Gd. Em cada ponto da rede existe um ıon com um momento magnetico
que aponta para uma direcao fixa. Cada ıon esta ligado ao seu vizinho e,
“passeando” entre eles esta o gas de eletrons. Como vimos no capıtulo
anterior, estes eletrons ocupam estados em uma banda de conducao, e
suas massas sao diferentes daquela do eletron livre; sao massas efetivas,
m∗, que refletem as interacoes do eletron com a rede cristalina. As vezes
nos referimos a essas partıculas com massas renormalizadas como quase-
partıculas. Ou seja, uma quase-partıcula e uma partıcula “revestida”
de uma interacao.
Se a temperatura do solido fosse zero, cada ıon da rede estaria prati-
camente parado, assim como cada momento magnetico estaria fixo, to-
dos apontando para a mesma direcao. Mas, a uma temperatura finita
e diferente de zero, a agitacao termica faz a rede vibrar. Se a temper-
atura nao for muito alta, as vibracoes ocorrerao sob a forma de ondas
que se propagam pelo solido. Por exemplo, imagine os ıons como se fos-
sem bolas ligadas entre si por molas. As molas representam as ligacoes
quımicas entre eles. Fazendo uma das bolas vibrar, o movimento sera
transmitido a todas as outras, que tambem passarao a vibrar, propa-
gando uma onda elastica pelo solido. Analogamente as ondas eletro-
magneticas que possuem como contrapartida quantica o foton, ondas
elasticas dentro de um solido possuem um quantum associado: o fonon.
Podemos afirmar que o fonon esta para as ondas elasticas (vibracoes
dos ıons em um solido) assim como o foton esta para as ondas eletro-
magneticas.
Considere agora o caso dos momentos magneticos. Neste caso as
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 351
molas nao sao ligacoes quımicas, mas a interacao de Heisenberg (secao
6.1). Da mesma forma que os ıons, o movimento de um momento
magnetico fara, atraves da interacao de Heisenberg, com que todos
os momentos se mexam, criando uma onda magnetica que atravessa o
solido. O correspondente quantico da onda magnetica e chamado de
magnon.
De uma maneira geral, qualquer movimento oscilatorio que ocorra
em um solido tera um quantum associado. Um outro exemplo ocorre
com o proprio gas de eletrons. A quantizacao das vibracoes desse gas
leva aos plasmons (a palavra vem de “plasma”, denominacao dada a um
gas neutro formado por partıculas carregadas - ou seja, com partıculas
positivas e negativas em igual numero). Existem ainda outro bichos
quanticos estranhos, como os helicons, os excitons, e vai por aı afora.
Cada uma dessas partıculas, ou como as vezes nos referimos, excitacoes
elementares da rede, participa da dinamica das interacoes dentro do
solido. Sob certo aspecto e como se o solido fosse um “ecossistema”
onde estranhos “animais” da fauna quantica co-existem, conferindo a
ele suas caracterısticas macroscopicas proprias.
352
.
Oscilacos dos atomos em uma rede cristalina em torno de suas posicoes de equilıbrioocorrem, por exemplo, quando o som atravessa o material. Assim como ondas eletro-magnetica sao quantizadas em fotons, tais oscilacoes nos solidos sao quantizadas emfonons.
De forma analoga as oscilacoes elasticas descritas na figura anterior, oscilacoesmagneticas podem ser descritas em termos de “partıculas magneticas” chamadasde magnons.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 353
6.9 Trens que Flutuam!
Nesta secao vamos falar de um dos fenomenos mais bizarros e espeta-
culares da materia condensada: a supercondutividade. Esta e outra
importante area de especializacao que tem gerado importantes resulta-
dos, com vastas possibilidades de utilizacao pratica.
Embora a supercondutividade seja um fenomeno historicamente as-
sociado a perda de resistencia eletrica de um material, ela tambem pode
ser encarada como um estado magnetico muito especial da materia.
Para entender o que e supercondutividade, vamos recordar o que vem
a ser condutividade eletrica. Esta e “moleza”: esta associada a lei de
Ohm:
V = RI
Aplica-se uma voltagem V a um pedaco de fio, e aparece uma corrente
I proporcional a V . R e a resistencia, que esta em parte associada a
geometria do material, e em parte as suas caracterısticas intrınsecas.
Para recordar o que foi dito no capıtulo anterior:
R =l
Aρ
onde l e o comprimento, A a area da secao transversal, e ρ a resistivi-
dade. E nesta ultima quantidade que estamos interessados. O inverso
da resistividade e a condutividade σ:
σ =1
ρ=ne2τ
m∗
Os sımbolos da fracao mais a direita ja foram definidos anteriormente.
Queremos aqui discutir especificamente o significado de τ . Este e
354
definido como o tempo medio entre colisoes sucessivas dos eletrons com
a rede. Mas, o que sao exatamente essas colisoes? Em uma visao
classica e muito simples entender: os eletrons se chocam com os ıons
da rede como se fossem bolas de gude se chocando contra bolas de
boliche. Quanticamente a coisa e mais complicada. Eletrons podem
interagir com fonons, magnons, e outros ‘ons’ da rede; cada tipo de
interacao representa uma fonte potencial de espalhamento eletronico12,
e portanto contribui para a resistividade do material. Quanticamente
nao dizemos que os eletrons se chocam com os ıons, mas sim que os
eletrons sao espalhados pelas excitacoes da rede. Obviamente em um
cristal nao magnetico nao havera magnons, mas fonons estarao sempre
presentes. De fato, fonons sao, em geral, a principal fonte de resistivi-
dade dos solidos cristalinos metalicos. Neste contexto, o tempo τ esta
associado as interacoes entre eletrons e fonons.
Passemos entao aos supercondutores. Considere um solido, metalico
e nao magnetico, como por exemplo, o chumbo (Pb). Ao aplicarmos
uma voltagem a um fio de chumbo, aparecera uma corrente eletrica,
que obedecera a lei de Ohm, V = RI. O principal mecanismo de
resistividade neste caso e o espalhamento dos eletrons por fonons. No
entanto, se diminuirmos a temperatura do chumbo abaixo de 8 K (cerca
de -265 celsius), algo surpreendente acontece: a resistividade eletrica
do chumbo desaparece, e ele se transforma em um supercondutor. E
como se os fonons tivessem desaparecido subitamente, ou deixassem por
12Aqui, a palavra “espalhamento” significa que a interacao do eletron com os“ons” da rede, leva a uma mudanca de estado quantico do eletron. Por exemplo,se o estado do eletron antes da interacao ocorrer for representado por um vetor deonda k1, apos a interacao ele tera sido espalhado para um outro estado k2.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 355
alguma razao de espalhar os eletrons, que entao se deslocam livremente.
Um supercondutor e capaz de transportar corrente eletrica mesmo sem
voltagem aplicada!
Aqui vale um comentario: assim como a ordem magnetica nos mate-
riais, a supercondutividade e antes um estado da materia. Estritamente,
nao devemos dizer que este ou aquele material e supercondutor, mas
que apenas esta em um estado supercondutor. O mesmo cometario vale
para os materiais magneticos. E mais correto dizermos que tal material
esta em um estado ferromagnetico, e nao que ele e ferromagnetico. No
entanto, na medida em que soubermos do que estamos falando, esse
detalhe nao sera importante.
Em um metal normal, a resistividade eletrica decai de forma suave com o decrescimoda temperatura. Em um supercondutor, a resistividade cai abruptamente para zeroem uma temperatura caracterıstica de cada material.
O chumbo nao e o unico elemento da tabela periodica a apresentar
356
supercondutividade. Mais de 26 outros elementos se tornam supercon-
dutores abaixo de uma certa temperatura crıtica, que e caracterıstica de
cada material. Mas como o “milagre” acontece? Nao e tao simples de
entender. So para dar uma ideia, embora a supercondutividade tenha
sido descoberta em 1911 (no mercurio), o fenomeno permaneceu sem
uma explicacao satisfatoria ate 1957, quando entao tres fısicos amer-
icanos, Bardeen, Cooper e Schriffer propuseram uma teoria quantica
que explicou o fenomeno. Esta teoria ficou conhecida como a teoria
BCS da supercondutividade.
Existem dois ingredientes fundamentais na teoria BCS: os chamados
pares de Cooper, e a existencia de um hiato de energia entre o estado
normal e o estado supercondutor. Vamos entender o que e isto.
Considere um eletron que se desloca em uma rede cristalina. Como
o eletron possui carga negativa, ele atrai para si os ıons positivos da
rede. Ao fazer isso, o eletron acaba por criar uma densidade de car-
gas positivas a sua volta (1 eletron atrai varios ıons simultaneamente).
Um segundo eletron que estiver passando por perto se sentira atraıdo
para essa regiao. Tudo se passa como se os ıons da rede intermedi-
assem uma interacao entre os dois eletrons. A novidade e que essa
interacao e atrativa! Os eletrons ligados desse jeito formam um par de
Cooper. Veja como o mundo e cheio de surpresas: aprendemos a vida
inteira que cargas de mesmo sinal, como dois eletrons, se repelem. No
entanto, dentro de um solido, e sob certas condicoes, eletrons se com-
portam como se atraıssem um ao outro! A medida que os eletrons do
par se deslocam pela rede, a deformacao local que ele cria tambem se
propaga. Mas como vimos, deformacoes da rede sao ondas elasticas,
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 357
que na linguagem da mecanica quantica se tornam fonons. Portanto
podemos afirmar que sao os fonons que servem de “cola” para unir os
eletrons em um par de Cooper. Um metal que contenha n eletrons por
unidade de volume, podera formar no maximo n/2 pares de Cooper.
E interessante ressaltar o papel singular dos fonons para a dinamica
da rede: no estado normal eles espalham os eletrons e sao responsaveis
pela resistividade do material; no estado supercondutor eles formam
os pares de Cooper, e levam ao desaparecimento da resistividade do
material.
Resumindo: em um supercondutor quem transporta a corrente ele-
trica nao sao eletrons, mas sim pares de Cooper, formados por dois
eletrons e 1 fonon. A teoria BCS mostra que os pares de Cooper se
formam preferencialmente entre eletrons com spins opostos.
Um par de Cooper e uma partıcula composta por dois eletrons de spins opostos,ligados por um fonon. Esta estranha partıcula e o ingrediente essencial para com-preendermos a supercondutividade. Ela e formada porque ao se deslocar pela rede,um eletrons atrai para si os ıons positivos que estao a sua volta, criando uma regiao
358
com densidade de carga positiva em excesso, que por sua vez atrai outro eletron.
Agora vem o segundo ingrediente fundamental da supercondutivi-
dade: por que os pares de Cooper podem se mover livremente sem
serem espalhados, enquanto que eletrons normais nao? Se um par de
Cooper fosse espalhado, ele ganharia energia, e portanto passaria para
outro estado. A teoria BCS mostra que no estado supercondutor os
pares de Cooper se encontram em um nıvel de energia abaixo daqueles
nıveis correspondentes aos eletrons independentes. Ou seja, energeti-
camente e mais economico formar pares de Cooper. A teoria mostra
tambem que entre o estado de pares de Cooper, e de eletrons normais,
existe um hiato de energia13. Para espalhar um par de Cooper e preciso
que este ganhe energia suficiente para passar por cima do hiato e por-
tanto romper a ligacao entre os eletrons do par! A baixas temperaturas
a ocorrencia desse processo e muito improvavel, mesmo na presenca
de um campo eletrico aplicado. Consequentemente os pares de Cooper
nao sao espalhados, e podem se mover livremente na direcao do campo,
com resistividade zero!
13A situacao e de certa forma semelhante a dos semicondutores. Contudo, nossemicondutores hiatos separam estados normais eletronicos em bandas distintas;nos supercondutores o hiato separa os estados normais do estado supercondutor.
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 359
.
A principal descoberta da teoria BCS da supercondutividade foi a existencia deum hiato de energia entre o estado normal e o estado supercondutor dos eletrons.Quando no estado supercondutor, a probabilidade dos eletrons sofrerem espal-hamento vai para zero, consequentemente fazendo “explodir” a condutividade eletrica.
Mas, o que isso tudo tem a ver com magnetismo? Acontece que su-
percondutores possuem uma outra caracterıstica importante alem da
resistividade eletrica zero. Eles expelem campos magneticos de seu
interior. Se voce aproximar um ıma de um metal comum, o campo
magnetico gerado pelo ıma penetra no metal, mas nao penetra em um
supercondutor. E como se o supercondutor se comportasse como um
outro ıma com a mesma polaridade (como todo mundo sabe, o polo
norte de um ıma atrai o polo sul e repele outro polo norte). Este
fenomeno, chamado de efeito Meissner (Meissner e o sobrenome do
cidadao que descobriu o efeito. Como voce ja deve ter notado, os fısicos
adoram batizar novos efeitos com nomes de fısicos. E uma questao de
360
modestia.), esta associado a existencia da supercorrente. Ao tentarmos
aproximar o ıma do supercondutor, a corrente supercondutora comeca
a formar espiras de corrente dentro do material, de modo a gerar um
campo magnetico que exatamente cancele o campo do ıma. Essa re-
pulsao tem um efeito interessante: ao largarmos um pedaco de um ıma
sobre a superfıcie de um supercondutor, a repulsao magnetica devida
ao efeito Meisser, fara com que o ıma flutue no espaco! Nao e mar-
avilhoso? Tem gente por aı que tambem diz saber flutuar (alem fazer
chover e ventar - mediante irrisorias gratificacoes). Vai ver que essas
pessoas possuem pares de Cooper nas solas dos pes!
O efeito Meissner e a base da levitacao magnetica. Um supercondutor abaixo dasua temperatura crıtica expele linhas de inducao magnetica de seu interior. Se umıma for colocado sobre a superfıcie de um supercondutor, o efeito fara com que oıma flutue.
Supercondutores sao obviamente materiais que possuem grande po-
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 361
tencial tecnologico. A possibilidade de transportar corrente eletrica de
um ponto a outro de um fio sem perdas (isto e, com resistencia zero) e
fantastica! O principal empecilho, contudo, ainda nao foi transposto: as
baixas temperaturas necessarias. Materiais simples, como o chumbo,
o vanadio (V), o alumınio (Al) entre outros, so se tornam supercon-
dutores a temperaturas extremamente baixas. Manter um fio a esta
temperatura sai mais caro do que a perda de energia eletrica que seria
evitada.
Um outro tipo de aplicacao tecnologica com supercondutores uti-
liza o efeito Meissner: trens que flutuam! Se o trilho de um trem for
magnetico, e o seu fundo supercondutor, em princıpio poderia flutuar.
De fato, tal “milagre” ja foi realizado, como provavelmente voce ja viu
na televisao. No Japao, pesquisas sobre motores de propulsao linear de
veıculos que nao fazem contato com o solo comecaram no inıcio dos anos
60. Nos anos 70 os japoneses estudavam sistemas de levitacao eletro-
magnetica utilizando supercondutores, e no inıcio dos anos 80 puseram
um trem desses para andar a 517 km/h! O programa se desenvolveu,
para o que hoje eles chamam de Maglev. No Maglev o supercondutor
esta dentro do trem, enquanto que na pista estao espiras especiais que
geram um campo magnetico, que fazem o trem flutuar.
Desde 1986 novos materiais supercondutores tem sido descobertos.
Os chamados novos supercondutores possuem temperaturas crıticas muito
mais elevadas que os supercondutores tradicionais. Eles, em geral,
possuem formulas quımicas pavorosas, como por exemplo, o composto
Tl2Sr2Ca2Cu3O10, cuja temperatura crıtica e de 125 K (- 148 C). Um
fato curioso e que a temperaturas normais esses materiais nao sao con-
362
dutores, mas isolantes! A fısica desses materiais continua obscura, e
nao se sabe bem como se da o fenomeno da supercondutividade neles.
Nao se sabe tambem se sera possıvel alcancar a supercondutividade a
temperaturas que tornem esses materiais de utilizacao pratica trivial,
como por exemplo, a confeccao de um fio. Se isso acontecer, estaremos
diante de uma nova revolucao tecnologica!
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. A Danca dos Spins, Sergio M. Rezende, vol. 14, no. 80, p. 28.
2. Os Ferrofluidos, Antonio Martins Figueiredo Neto, vol. 4, no. 23, p. 9.
3. Tomografia por Ressonancia Magnetica Nuclear: Novas Imagens do Corpo,Horacio Panepucci, Jose Pedro Donoso, Alberto Tannus, Nicolau Beckman e TitoBonagamba, vol. 4, no. 20, p. 46.
4. Vidros de Spin: Novos Desafios do Magnetismo, Mucio Continentino, vol.3, no. 16, p. 72.
5. Mais um Premio para a Supercondutividade, Ney F. Oliveira Jr., vol. 7, no.39, p. 10.
6. Supercondutividade, Carlos Balseiro e Francisco de la Cruz, vol. 9, no. 49,p. 26.
7. Uma Surpresa na Supercondutividade, Mucio Amado Continentino, vol. 13,no. 75, p. 8.
8. Supercondutores: a Batalha dos Nanossegundos, Virgılio Augusto F. deAlmeida, vol. 5, no. 25, p. 62.
9. Novos Supercondutores: Revolucao Tecnologica a Vista, Eugenio Lerner, vol.6, no. 33, p. 10.
10. Ecos de Corrente: Novos Desafios a Fısica Experimental, Ivan S. Oliveira,vol. 22, no. 130, p. 58.
11. Computacao Quantica: a ultima fronteira da informacao, Ivan S. Oliveira
12. Superpoderes dos Nanomagnetos, Marcelo Knobel, vol. 27, no. 159, p. 32
13. Desmagnetizacao Adiabatica: opcao economica e ecologica para refrig-eracao, Pedro J. von Ranke, vol. 26, no. 155, p.34
14. Biomagnetismo: Nova Interface entre a Fısica e a Biologia, D. Barros deAraujo, A.A. Oliveira Carneiro, E.R. Moraes e O. Baffa, vol. 26, no. 156, p. 24
CAPITULO 6 - MAGNETISMO 363
Resumo - Capıtulo Seis
Dois ingredientes fundamentais sao necessarios para entendermos omagnetismo na materia: a existencia de momentos magneticos atomicos,e o princıpio de exclusao de Pauli. Momentos magneticos atomicosoriginam-se do movimento orbital de eletrons no atomo, e do momentoangular de spin. Dizemos que um dado material possui ordem magneticase os momentos atomicos estiverem apontados, na media, para direcoesregulares no espaco. A ordem magnetica dos materiais pode ser expli-cada atraves da interacao de Heisenberg, uma interacao de origem in-teiramente quantica, sem analogo classico. Ela e sempre destruıda acimade uma certa temperatura, chamada de temperatura crıtica. A tempe-ratura crıtica nos da uma nocao da intensidade da interacao de troca, res-ponsavel pela ordem magnetica. A maioria dos nucleos atomicos possuimomento magnetico. O magnetismo nuclear e muito mais fraco do que omagnetismo atomico, mas nem por isso e menos importante. Momentosmagneticos nucleares quando em um campo magnetico adquirem umafrequencia natural chamada de frequencia de Larmor. Nesta situacao,eles podem absorver energia de uma onda eletromagnetica que incida so-bre o sistema com a mesma frequencia; este e o fenomeno da ressonanciamagnetica nuclear, ou RMN. Dentre as varias aplicacoes da RMN, pode-mos gerar imagens internas de objetos, inclusive de organismos vivos emfuncionamento. Um tipo muito especial de material magnetico sao os su-percondutores. Em um supercondutor, sob determinadas condicoes, oseletrons se ligam aos pares formando uma partıcula chamada de par deCooper. Pares de Cooper praticamente nao sofrem espalhamento ao sedeslocarem dentro do material, o que faz com que a resistividade eletricade um supercondutor seja zero. Supercondutores possuem a propriedadede expelir campos magneticos de seu interior. Esta caracterıstica e uti-lizada para fazer levitacao magnetica de objetos, como trens. Uma dasdificuldades para a utilizacao pratica dos supercondutores sao as baixastemperaturas crıticas, o que encarece a manutencao do estado supercon-dutor. A partir do final da decada de 80 novos materiais supercondutoresforam descobertos. Estes possuem temperaturas crıticas mais elevadasdo que os supercondutores tradicionais. Embora haja um grande numerode investigacoes experimentais acerca desses novos supercondutores, naoexiste no momento uma compreensao teorica satisfatoria sobre os meca-nismos de supercondutividade nesses materiais.
Chapter 7
Energia Nuclear
Pense nas criancas mudas
Telepaticas
Pense nas meninas cegas
Inexatas
Pense nas feridas como rosas
Calidas
Mas! nao se esqueca da rosa, da rosa
Radioativa
Estupida
Invalida
Sem cor
Sem perfume
Sem nada
(Rosa de Hiroshima - Vinıcius de Moraes)
No dia 6 de agosto de 1945 o mundo assistiu com horror a mais
funesta aplicacao pratica da fısica de toda a sua historia: a explosao
365
366
de uma bomba atomica, pelos Estados Unidos, sobre a cidade de Hi-
roshima no Japao, matando mais de 80 mil pessoas, e ferindo outras
75 mil. Apenas 3 dias depois desta tragedia, os Americanos largaram
uma segunda bomba sobre a cidade de Nagasaki, matando outras 40
mil pessoas. Foi a inauguracao tragica da era nuclear. Esta, e outras
utilizacoes da energia nuclear, tornou-se possıvel gracas a compreensao
de certos processos fısicos que ocorrem em nucleos instaveis.
7.1 Instabilidade Nuclear
No que diz respeito a estabilidade, existem dois tipos de nucleos atomicos
na Natureza: os estaveis e os instaveis. Nucleos estaveis sao aqueles
que nao sofrem nenhum tipo de transmutacao com o tempo, ou seja,
nao decaem emitindo partıculas subatomicas. Ao contrario, os nucleos
instaveis emitem diversos tipos de partıculas.
Quando olhamos para uma tabela periodica, as informacoes que
nela lemos dizem respeito a isotopos estaveis dos elementos. E comum
que cada elemento tenha mais de um isotopo estavel, e varios isotopos
instaveis. Por exemplo, o hidrogenio, o elemento mais simples do Uni-
verso, possui Z = 1, ou seja, seu nucleo so possui 1 unico proton. Alem
deste isotopo, existem mais 2 isotopos do hidrogenio: o deuterio (2H) e
o trıtio (3H). O nucleo do 1H possui 1 unico proton, e nenhum neutron;
o do 2H possui 1 proton e 1 neutron, e do 3H 1 proton e 2 neutrons. O
hidrogenio e o deuterio sao estaveis, enquanto que o trıtio e instavel.
A abundancia isotopica (a proporcao de um dado isotopo em relacao a
totalidade de isotopos do elemento) do 1H e de 99,985 %, e a do 2H e
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 367
de apenas 0,015 %. O trıtio dura em media 12,3 anos.
Os tres isotopos do hidrogenio. O hidrogenio e deuterio sao estaveis, enquanto otrıtio e instavel.
Considere um outro exemplo: o cobre (Cu). O seu numero atomico e
Z = 29. Existem dois isotopos estaveis do Cu: o 63Cu, com abundancia
de 69,2%, e o 65Cu, com abundancia de 30,8%. Alem desses, existem
os isotopos 59Cu, 60Cu, 61Cu, 62Cu, 64Cu, 66Cu, 67Cu e 68Cu, todos
instaveis. O 67Cu, por exemplo, dura em media 61,9 horas, e o 68Cu
apenas 31 segundos.
Note que do ponto de vista quımico, o que conta e o numero de
eletrons do atomo, e como eles se distribuem nos orbitais. Sendo as-
sim, qualquer um desses isotopos, estavel ou instavel, pode participar
de uma ligacao quımica em uma substancia qualquer. Do ponto de vista
nuclear, contudo, as diferencas de massa sao fundamentais, porque al-
teram o propriedades importantes dos nucleos. Por exemplo, o 61Cu
368
possui spin I = 3/2, enquanto que o 66Cu possui spin I = 1. Se
colocassemos o primeiro em um campo magnetico, terıamos 4 nıveis de
energia, enquanto que com o segundo terıamos apenas 3, o que acar-
retaria diferencas nas suas propriedades magneticas.
Na proxima secao vamos discutir os principais tipos de decaimento
dos nucleos instaveis.
7.2 Alfa, Beta e Gama
Nucleos que espontaneamente emitem partıculas sao chamados radioa-
tivos. A radioatividade e um fenomeno natural, mas pode tambem ser
produzida em laboratorio. O fenomeno foi descoberto em 1896 pelo
frances Henri Becquerel e, em 1934, foi produzido pela primeira vez em
laboratorio por Irene Curie e Pierre Joliot, que bombardearam alumınio
com partıculas alfa emitidas por polonio, e produziram o isotopo de
fosforo 30P. Irene e Pierre levaram o Nobel de Quımica de 1935 pelo
seu trabalho. Os pais de Irene, Pierre e Marie Curie, ja haviam em-
bolsado o Nobel de Fısica de 1903 (com Becquerel), pelo seu trabalho
com radioatividade natural, e, como se nao bastasse, Marie emplacou
o Estocolmo novamente em 1911, desta vez o de Quımica!
A radioatividade e a liberacao de energia por um nucleo excitado.
Esse processo e chamado de decaimento radiaotivo, e pode ocorrer ba-
sicamente de tres modos distintos: por emissao alfa, por emissao beta
ou por emissao gama. Alfa, beta e gama sao nomes dados a tipos de
radiacao cuja natureza era desconhecida na epoca em que foram des-
cobertas. Radiacao gama, ja sabemos, sao ondas eletromagneticas, ou
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 369
fotons. Partıculas alfa, sao nucleos do atomo de helio, composto por
dois protons e dois neutrons, e partıculas beta podem ser de dois tipos:
eletrons ou positrons. O positron e uma partıcula identica ao eletron,
com excecao da sua carga que e positiva (igual a do proton).
Partıculas alfa, beta e gama podem ser identificadas atraves da trajetoria de cadauma delas em um campo magnetico.
“Epa! Espera aı! Nucleos nao sao formados de protons e neutrons?
Como e que agora ta saindo eletron e esse tal de positron la de dentro?”
E quem disse que protons e neutrons sao os constituintes mais simples
da materia? Eles sao feitos de objetos ainda menores!
Tres anos apos a descoberta da radioatividade foi verificado que a
taxa de decaimento, ou seja, o numero de decaimentos por unidade
de tempo de uma certa quantidade de material radioativo, seguia uma
lei exponencial. Isso quer dizer o seguinte: se em um dado instante
existirem N0 nucleos radiativos de determinada substancia, o numero
370
de nucleos que existirao em um instante posterior t, denotado por N(t),
sera igual a:
N(t) = N0e−t/τ
onde τ e chamado de meia-vida, um parametro caracterıstico do tipo de
decaimento e da especie nuclear. Por exemplo, se em um dado instante
tivermos 20 gramas de uma dada substancia radiativa hipotetica cuja
meia-vida seja τ = 1 segundo, apos 5 segundos teremos apenas
20 × e−5/1 = 0, 0067 gramas
Um outro tempo caracterıstico importante e a chamada vida-media
(t1/2), definido como o tempo para que o numero de nucleos inicial seja
reduzido a metade, ou seja, N(t1/2) = N0/2. E facil encontrar a relacao
entre t1/2 e τ a partir da lei de decaimento acima :
N(t1/2) =N0
2= N0e
−t1/2/τ =⇒ e−t1/2/τ =1
2
Tomando o logaritmo dos dois lados da equacao obtemos:
−t1/2τ
= ln1
2⇒ t1/2 = τln2 = 0, 693τ
Como exemplos numericos mencionaremos a meia-vida do 38Ca (calcio),
de 0,44 segundos, a do 42K (potassio), 12,4 horas, e a do 93Mo (molibdenio),
de 3500 anos.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 371
.
A quantidade de um determinado material radioativo diminui segundo uma lei ex-ponencial. A chamada meia-vida e uma caracterıstica que distingue um isotoporadioativo do outro.
Decaimentos nucleares sao eventos quanticos: e impossıvel dizer
quando um dado nucleo ira decair. Os tempos acima expressam uma
media, e portanto dizem respeito a um numero muito grande de eventos
ocorrendo nos nucleos em uma dada quantidade de material radioativo.
O decaimento gama e o mais simples de ser compreendido. Ele
pode ser comparado ao caso das transicoes eletronicas em um atomo. O
nucleo faz uma transicao de um nıvel de energia mais alto Ei para um de
energia mais baixo Ef , emitindo um foton com energia ∆E = Ei−Ef ,
que pode variar de uns poucos keV (1 keV = 1000 eV = kilo eletronvolt)
ate a faixa de MeV (milhoes de eletronvolts). Valores para meias-vidas
no decaimento gama em geral sao menores do que 10−9 segundos. O
decaimento gama ocorre, em geral, apos um decaimento alfa ou beta,
372
e como a massa de repouso e a carga do foton sao zero, o decaimento
gama nao altera a massa do nucleo, e nem o seu numero atomico. Um
exemplo de nucleo que decai emitindo partıculas gama e o isotopo da
prata 110Ag.
Partıculas alfa, como ja mencionamos anteriormente, sao nucleos de
atomos de helio, e portanto possuem numero de massa A = 4 e numero
atomico Z = 2 (dois protons e dois neutrons). Consequentemente, um
nucleo que decai via emissao de uma partıcula alfa, tem sua massa
reduzida de 4 unidades, e sua carga reduzida de duas unidades. Se
representarmos um nucleo X com numero de massa A, numero atomico
Z e numero de neutrons N por
AZXN
podemos representar o decaimento alfa de tal nucleo generico da seguinte
maneira esquematica:
AZXN →A−4
Z−2 XN−2 + α
onde designamos por “α” a partıcula alfa emitida, ou seja, o 42He2. Um
exemplo de emissor alfa e o 226Ra, cujo decaimento e mostrado abaixo:
22688 Ra138 →222
86 Rn136 + α
Neste caso, o radio 226 decai no radonio 222 emitindo uma partıcula
alfa. A meia-vida deste processo e de 1600 anos.
O decaimento beta e o mais complexo dos tres tipos de decaimento.
Ele pode envolver a emissao de eletrons, como no caso em que um
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 373
neutron se transforma em um proton, aumentando assim o numero
atomico do nucleo de 1 unidade:
n → p + e−
onde representamos por e− o eletron, para distinguir do positron e+.
Pode envolver a emissao de um positron, como na transformacao de
um proton em um neutron (neste caso o numero atomico diminui de 1
unidade):
p → n + e+
ou pode ainda acontecer de um proton capturar um eletron. Neste caso
o processo e chamado de captura eletronica, e representado por:
p + e− → n
Alem disso, a Natureza parece que resolveu mesmo complicar no decai-
mento beta. Ao contrario das partıculas α e γ que sao sempre emitidas
com valores de energia bem definidos, o espectro de emissao β varia
continuamente de um valor inicial a um valor maximo. Esse fato le-
vou Pauli a postular, em 1931, que no decaimento β havia uma outra
partıcula emitida com o eletron. Para explicar o processo, foi necessario
adotar a ideia que tal partıcula era eletricamente neutra (ou seja, sem
carga eletrica, como o neutron), e com massa de repouso virtualmente
igual a zero (como o foton). A estranha partıcula foi batizada com
o nome de neutrino, representada pela letra grega ν (le-se ‘ni’). Um
exemplo de decaimento por emissao beta (omitindo-se o neutrino) e
mostrado abaixo:
374
2513Al12 →25
12 Mg13 + e+
A meia-vida deste decaimento e de apenas 7,2 s. Note que o decaimento
beta so muda o numero atomico do nucleo, enquanto que o alfa muda
tanto Z quanto N ; o gama nao muda nada. E importante ressaltar que
no caso do decaimento alfa, considera-se que a partıcula emitida existia
previamente dentro do nucleo (sao dois protons e dois neutrons), mas
no caso do decaimento beta, o eletron - ou o positron - emitido (com
o neutrino) nao “estava la” antes do decaimento. Essas partıculas sao
produzidas no momento da emissao.
A Fısica Nuclear e o ramo da fısica que estuda as propriedades dos
nucleos atomicos. Isto nao inclui somente o decaimento radiativo, mas
uma serie de outras coisas, como momentos nucleares, reacoes nucleares,
fissao nuclear, fusao nuclear, astrofısica nuclear, aplicacoes medicinais
(Medicina Nuclear), reatores nucleares, etc.
7.3 Fissao Nuclear: Xo Satanas!
De maneira analoga aos atomos, que podem reagir quimicamente, nucleos
tambem podem reagir entre si. Reacoes nucleares podem ser provo-
cadas bombardeando-se partıculas sobre os nucleos de um alvo. De
forma geral, tais reacoes sao representadas da seguinte maneira:
a +X → Y + b
No esquema acima, uma partıcula a incide sobre um nucleo X (de um
alvo), resultando em um novo nucleo Y e uma partıcula b. Cada tipo de
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 375
reacao possui uma probabilidade de ocorrencia. Exemplos de reacoes
nucleares sao:
α +14 N →17 O + p
Nesta reacao uma partıcula alfa incide sobre um nucleo de 14N resul-
tando em 17O e um proton. Outro exemplo:
p +7 Li →4 He + α
Neste caso um proton reage com o isotopo 7Li, resultando no 4He e
uma partıcula alfa.
Um tipo particularmente importante de reacao nuclear e a de cap-
tura de neutrons. Enrico Fermi, um importante fısico italiano (Premio
Nobel de 1938), mostrou que muitos nucleos quando expostos a neutrons,
tornam-se radioativos e decaem emitindo eletrons (decaimento beta).
Como o uranio e o elemento natural mais pesado na tabela periodica
(A = 238), uma questao que logo colocou-se apos a descoberta de
Fermi foi acerca da possibilidade de se produzir elementos “artifici-
ais” transuranicos, ou seja, mais pesados que o uranio, expondo-se
uma amostra de uranio a um fluxo de neutrons. Os resultados dessas
pesquisas mostraram que seguindo a captura de neutrons, nucleos de
uranio decaem emitindo nao apenas partıculas subatomicas, como partı-
culas alfa, beta, mas tambem outros nucleos mais leves, e uma quan-
tidade de energia muito maior do que a observada nos outros tipos de
reacao nuclear! Foi entao proposto (em 1939) que de fato o que es-
tava ocorrendo nessas reacoes nao era um mero decaimento do uranio
seguindo a captura de um neutron, mas sim que o nucleo do uranio em
376
si estava se dividindo, ou sofrendo uma fissao! Apos capturar neutrons,
nucleos de uranio se tornam altamente instaveis e simplesmente “explo-
dem” em nucleos menores, emitindo grande quantidade de partıculas e
energia.
Em princıpio, qualquer nucleo pode sofrer fissao, mas o processo
e mais facilmente realizavel nos nucleos pesados, como o torio (Th,
A = 232), o uranio, o netunio (Np, A = 237), o plutonio (Pu, A = 244),
etc. A caracterıstica “diabolica” deste tipo de reacao nuclear e o fato de
que para cada nucleo que e fissionado, alem dos nucleos mais leves e da
energia emitidos, outros dois neutrons sao liberados! Entao imagine:
voce tem uma certa quantidade de uranio. Suponha que um unico
neutron seja capturado por um dos nucleos; este se divide, libera energia
e mais dois neutrons. Estes dois neutrons adicionais sao por sua vez
capturados por outros dois nucleos de uranio que se dividem emitindo
mais energia e outros quatro neutrons, que sao capturados, ...etc. E
uma reacao em cadeia que se auto-sustenta! Obviamente este processo
e uma fonte de energia em potencial: uma especie de pilha nuclear.
Mas, se a reacao nao for controlada...bum!
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 377
.
A probabilidade de que o isotopo do uranio 235U sofra fissao seguindo a captura deneutrons de baixa energia e muito maior do que a do isotopo 238U . Isto torna oprimeiro mais apropriado para aplicacoes em reatores e armamentos nucleares.
Um exemplo de reacao por captura de neutrons e mostrado abaixo:
235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n
Nesta reacao um nucleo de uranio 235 captura um neutron e se divide
em um nucleo de rubıdio 93, um de cesio 141 e mais dois neutrons.
Os produtos de fissao, como sao chamados o 93Rb e o 141Cs, nao sao
unicos; em geral havera uma distribuicao de massas, dando origem a
varios radioisotopos. Os produtos de fissao sao altamente radiativos,
e sofrem uma serie de decaimentos gama e beta logo apos terem sido
criados. Da reacao acima, por exemplo, segue-se para o isotopo de
rubıdio:
93Rb6s−→93
Sr7min−→93
Y10h−→93
Zr106anos−→
93
Nb
378
A probabilidade de que um nucleo bombardeado por neutrons sofra
uma fissao e expressa por uma quantidade chamada secao transversal
para fissao induzida por neutrons. Cada tipo de reacao nuclear possui a
sua secao transversal. A secao transversal para a ocorrencia da reacao
depende primariamente da energia do neutron incidente. Comparando
os isotopos 235U e 238U, encontra-se que para neutrons de baixa ener-
gia (correspondendo a energia termica ambiente) o 235U e muito mais
fissionavel do que o isotopo mais pesado. Por esta razao o 235U e
preferıvel para ser utilizado em reatores e armas nucleares. O grande
problema (ou talvez a grande salvacao!) e que sua abundancia e de ape-
nas 0,720%, comparada a 99,275% para o 238U. Como quimicamente os
dois isotopos sao identicos, sua separacao e um problema complicado.
7.4 Energia de Fissao: Quantos Nucleos
Fervem uma Piscina?
Vamos agora calcular, a tıtulo de curiosidade, a energia liberada na
fissao de um nucleo de uranio 235. Para isso sera util considerar a
nossa reacao generica:
a +X → Y + b
onde uma partıcula a incide sobre um nucleo X, resultando em Y e b.
Vamos chamar de TX e Ta as respectivas energias cineticas da partıcula
incidente e do nucleo X, e TY e Tb o analogo para os produtos da
reacao. Alem da energia cinetica, sabemos da teoria de relatividade
que as partıculas envolvidas no processo possuem energias de repouso,
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 379
que devem ser levadas em consideracao no balanco energetico (veja
capıtulo dois). Estas serao respectivamente representadas por mac2,
mXc2, mY c
2 e mbc2, onde ma, etc., sao as massas de repouso das
partıculas envolvidas na reacao. Como a energia total no processo se
conserva, a energia total antes da reacao tem que ser igual a energia
total depois da reacao. Ou seja:
mXc2 + TX +mac
2 + Ta = mY c2 + TY +mbc
2 + Tb
Podemos reorganizar os termos desta equacao para obter:
(mX +ma −mY −mb)c2 = TY + Tb − TX − Ta
Define-se entao uma quantidade importante que caracteriza a reacao
do ponto de vista energetico: o seu valor Q:
Q = Tf − Ti = (minicial −mfinal)c2 = (mX +ma −mY −mb)c
2
onde Tf e a energia cinetica final, e Ti a inicial. Se Q > 0 a reacao
libera energia, e e chamada de exotermica, e se Q < 0 ela e dita ser uma
reacao endotermica, e neste caso consome energia. Note que a energia
liberada ou consumida, dependendo do sinal de Q, aparece sob a forma
de energia cinetica das partıculas envolvidas no processo.
Vamos entao calcular como exemplo de aplicacao da formula acima,
o valor de Q para a seguinte reacao de fissao do uranio 235:
235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n
As massas de repouso das partıculas envolvidas sao expressas em unidades
de massa atomica u, que vale 1, 66 × 10−27 kg. Assim:
380
mU = 235, 0439u
mn = 1, 0087u
mRb = 92, 9217u
mCs = 140, 9195u
Logo, para a reacao de fissao acima, teremos:
Q = (mU +mn −mRb −mCs −m2n)c2
Q = +0, 1940uc2
Entao, a reacao de fissao do 235U e exotermica. A vantagem de ter o
resultado expresso em termos da unidade de massa atomica, u, esta no
fato de que o produto uc2 e constante, e vale:
uc2 = 931, 502 MeV
onde MeV significa “milhoes de eletron-volts”, a unidade de energia
que se usa em fısica nuclear. 1 MeV corresponde a 1, 60×10−13 Joules.
Consequentemente, o valor Q da reacao de fissao do 235U , em MeV sera:
Q = +180, 71 MeV
e em joules sera:
Q = +2, 89 × 10−11 J
So para efeitos ilustrativos, vamos avaliar quantos nucleos de uranio
235 seriam necessarios para produzir energia suficiente para fazer ferver
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 381
a agua de uma piscina que inicialmente se encontra a zero graus Celsius.
Vamos supor que a nossa piscina tenha 50 metros de comprimento, 10
metros de largura e 2 metros de profundidade. O volume sera portanto
igual a 50×10×2 = 1000 m3 ou 106 litros (1 milhao de litros de agua).
Agora, usaremos uma conhecida expressao para calcularmos a energia
necessaria para aquecer um objeto com massa m de uma temperatura
inicial Ti para uma temperatura final Tf :
Q = mc(Tf − Ti)
(nao confunda este ‘Q’ com o outro ‘Q’ da reacao nuclear. E a crise
de escassez de letras atacando de novo!). Nesta formula, c e o calor
especıfico do objeto (nao confunda com velocidade da luz!), que para
a agua e de 4190 J/kg K. A temperatura inicial e Ti = 0 C ou 273
K, e a temperatura final Tf = 100 C, ou 373 K. Para utilizarmos esta
formula, ainda precisamos saber qual e a massa de agua correspondente
a 1 milhao de litros. Tomemos a densidade da agua como 1 g/cm3 =
10−3/10−3 kg/dm3 = 1 kg/dm3 = 1 kg/l. Logo, em 1 milhao de litros de
agua teremos m = 106 kg (mil toneladas). Substituindo esses numeros
na formula acima, obtemos:
Q = 106 × 4190 × 100 = 4, 19 × 1011 joules
Como cada nucleo fissionado fornece cerca de 2, 89× 10−11 joules, o
numero de fissoes necessarias para ferver a piscina seria de (4, 19/2, 89)×1022 ≈ 1, 44× 1022 fissoes. Se pudessemos agrupar um igual numero de
nucleos de 235U , cada um realizando 1 fissao apenas, isto equivaleria a
1, 44 × 235 × 1022/(6, 02 × 1023) ≈ 6 gramas de 235U para obtermos a
energia necessaria para ferver 1 milhao de litros de agua!
382
7.5 Reatores-N & Bombas-A
A liberacao de energia em reacoes de fissao do uranio obviamente su-
gere que o processo possa ser utilizado como fonte para obtencao de
energia em larga escala. As duas aplicacoes principais do fenomeno
sao os chamados reatores de fissao, que convertem essa energia em
eletricidade, e as chamadas bombas atomicas, que convertem cidades
inteiras em po. O princıpio de funcionamento de ambos e o mesmo, e
pode-se de certa forma afirmar que um reator e uma bomba atomica
“explodindo de maneira controlada”.
Em tese, qualquer material fissionavel serve como combustıvel para
um reator. Os isotopos mais comuns utilizados sao o 235U, 233U e o
239Pu. Destes, somente o primeiro e “natural”, sendo os outros pro-
duzidos artificialmente. O minerio de uranio, ou seja, o uranio extraıdo
da Natureza consiste basicamente de 238U, que nao e pratico para fins
de fissao. Torna-se entao necessario separar o 235U do material natu-
ral. O processo de separacao e extremamente difıcil e caro. O material
separado e em geral chamado de uranio enriquecido: e a materia prima
utilizada nos reatores e nas bombas.
Para que seja mantida uma reacao auto-sustentavel em um reator,
e necessario controlar a perda de neutrons que ocorre no processo. Ini-
ciada a reacao, os neutrons produzidos precisam ser absorvidos por
outros nucleos de uranio. Mas, inevitavelmente havera perdas, pois al-
guns neutrons escaparao pela superfıcie do material. Quanto maior
a superfıcie, maior a perda. Isso pode ser resolvido simplesmente
aumentando-se a quantidade de material, pois quanto maior o volume
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 383
de material fissionavel, menor sera a perda relativa porque a producao
de neutrons e proporcional ao volume, enquanto que a perda e propor-
cional a area superficial. A partir de uma certa quantidade de material,
a perda de neutrons pela superfıcie deixa de ser importante. Quando
a quantidade de substancia e tal que a producao de neutrons e exata-
mente balanceada pela perda, diz-se que o material atingiu a sua massa
crıtica.
Esquema de um reator nuclear. A agua evaporada pela fissao do material radioativomove uma turbina e depois de condensada retorna para o tanque do reator.
Em um reator utilizado para gerar eletricidade, a energia liberada
pela fissao do uranio e convertida em calor. Este aquece uma certa
quantidade de agua gerando vapor a alta pressao que faz funcionar uma
turbina. E interessante notar que a parte do custo de um reator devida
384
ao seu nucleo, onde a fissao do uranio de fato ocorre, e menor do que
aquela do equipamento que vai gerar eletricidade, com a blindagem,
etc. Consequentemente, um reator de alta potencia tende a ser eco-
nomicamente mais vantajoso do que varios de baixa potencia. Em um
esquema simples, a agua circula pelo nucleo do reator, e absorve calor.
Ela serve ao mesmo tempo para mover a turbina que vai gerar eletrici-
dade, e como refrigerante para o nucleo.
Reatores operam com uma quantidade de uranio abaixo da massa
crıtica, para evitar que um acidente leve a uma explosao nuclear. A
operacao e manutencao de reatores nucleares e algo altamente complexo
e perigoso. Eles operam a altas potencias e precisam de refrigeracao.
Materiais utilizados como refrigerantes devem ter propriedades termicas
especiais, nao serem corrosivos, nao reativos, e nao podem capturar
neutrons (ou, tecnicamente falando, devem ter uma pequena secao
transversal para captura de neutrons). A ma operacao e manutencao
de um reator pode ser fatal e catastrofica, como ocorreu no dia 26 de
abril de 1986 com o reator de Chernobyl na antiga Uniao Sovietica. A
temperatura do reator subiu fora de controle, uma explosao ocorreu,
destruindo parte do reator e do predio, e lancando grande quantidade
de material radiativo no ambiente. 30 pessoas, entre trabalhadores do
reator e bombeiros, morreram no acidente. Mais de 130 mil quilometros
quadrados de area tiveram que ser isoladas em torno do predio do
reator. Uma populacao de quase 5 milhoes de habitantes teve que ser
deslocada. O acidente com o reator de Chernobyl chamou a atencao do
mundo (em particular da opiniao publica) sobre a seguranca deste tipo
de producao de energia.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 385
Bombas atomicas, como ja foi dito, funcionam essencialmente como
reatores fora de controle. Para fazer um explosivo nuclear, quantidades
de material abaixo do valor crıtico (ou seja, com uma massa tal que a
perda de neutrons seja maior do que a producao por fissao), devem ser
reunidas rapidamente de modo a atingir um valor supercrıtico (ou seja,
com massa acima da massa crıtica). A bomba que foi jogada sobre Hi-
roshima em 1945 utilizava 235U. O material fissionavel tinha um buraco
no meio, de modo a manter a massa abaixo do valor crıtico. A parte
central, na forma de um cilindro do mesmo material era “explodida”
para dentro do buraco, levando o sistema para o regime supercrıtico, e
a consequente explosao nuclear.
A segunda bomba, jogada sobre Nagasaki, utilizava um outro “de-
sign”. O material fissionavel nesse caso era o 239Pu. O mecanismo
utilizava um explosivo quımico para comprimir o seu nucleo esferico
acima do valor supercrıtico.
Esquema de uma bomba atomica. O explosivo quımico comprime o material fis-sionavel elevando sua massa a um valor supercrıtico, desencadeando a reacao defissao.
386
PAINEL XIII
O PROJETO MANHATTAN
O projeto secreto para a construcao da primeira bomba atomica nos Estados
Unidos durante a Segunda Grande Guerra era chamado Projeto Manhattan. O
projeto envolveu varios cientistas europeus e americanos, alguns dos quais haviam
ido para a America fugindo da guerra na Europa. O projeto nasceu do receio de
que os alemaes estivessem desenvolvendo uma bomba atomica apos a descoberta da
fissao em 1938, mas so foi organizado a partir de 1942, sob o comando do General
Leslie Groves. O General apontou o fısico Julius Robert Oppenheimer como o
diretor do projeto.
Embora nao tenha participado diretamente do projeto, Albert Einstein teve um
importante papel na decisao de construir a bomba. A partir de 1939, 1 ano apos
a descoberta da fissao do uranio, Einstein escreveu uma serie de cartas ao entao
presidente americano Franklin Delano Roosevelt, alertando-o sobre a possibilidade
da construcao de “um novo tipo de bombas extremamente poderosas”. Abaixo,
transcrevo uma traducao (de minha autoria) da primeira dessas cartas:
Albert Einstein
Old Grove Rd.
Nassau Point
Peconic, Long Island
2 de agosto de 1939
F.D. Roosevelt
Presidente dos Estados Unidos
Casa Branca
Washington, D.C.
Senhor,
Trabalhos recentes por E. Fermi e L. Szilard, comunicados a mim sob
a forma de manuscritos, convenceram-me de que o elemento uranio pode se
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 387
tornar uma nova e importante fonte de energia no futuro imediato. Alguns
aspectos da situac~ao presente merecem atenc~ao e, se necessario, rapidas
decis~oes por parte da Administrac~ao devem ser tomadas. Acredito, portanto,
que e meu dever chamar Vossa atenc~ao para os seguintes fatos e recomendac~oes:
Durante os ultimos quatro meses tornou-se claro - atraves do trabalho
de Joliot na Franca, bem como o de Fermi e Szilard na America - que uma
reac~ao nuclear em cadeia seja possıvel de ser estabelecida em uma grande
massa de uranio, atraves da qual uma enorme quantidade de energia e de
novos elementos semelhantes ao radio seriam produzidos. No momento nos
parece quase certo que isto poderia ser alcancado no futuro imediato.
O novo fenomeno levaria tambem a construc~ao de bombas, e e concebıvel
- embora menos certamente - que bombas extremamente poderosas de um novo
tipo pudessem ser construidas. Uma unica bomba deste tipo, transportada
em um barco e detonada em um porto, poderia muito bem destruir todo o
porto, com parte da sua vizinhanca. No entanto, pode ser que tais bombas
se revelem muito pesadas para serem transportadas por meios aereos.
Os Estados Unidos s~ao muito pobres em minerio de uranio. Existem boas
reservas no Canada e na antiga Tchecoslovaquia, mas as reservas mais importantes
se encontram no Congo belga.
Diante da presente situac~ao talvez fosse conveniente estabelecer um
contato permanente entre a Administrac~ao e o grupo de fısicos que no momento
trabalham no fenomeno de reac~oes em cadeia na America. Isto poderia ser
feito atraves da nomeac~ao de uma pessoa de sua confianca para a tarefa.
Suas atribuic~oes seriam as seguintes:
a) manter os Departamentos Governamentais informados dos progressos
realizados, e transmitir recomendac~oes para as ac~oes do Governo, com atenc~ao
especial ao problema de garantir um suprimento de minerio de uranio para
os Estados Unidos;
b) acelerar os trabalhos experimentais, que no momento est~ao sendo
realizados dentro dos limites dos orcamentos universitarios, fornecendo
fundos, se necessario, atraves de contatos com pessoas interessadas em
388
contribuir com esta causa, e talvez tambem atraves da cooperac~ao com laboratorios
industriais que possuam o equipamento necessario.
A Alemanha interrompeu a venda de uranio das minas da Tchecoslovaquia,
que agora ela domina. Tal decis~ao talvez possa ser compreendida com base
no fato de que o filho do sub-Secretario de Estado Alem~ao, von Weizsacker,
e vinculado ao Instituto Kaiser-Wilhelm em Berlim, onde pesquisas com
uranio realizadas na America est~ao sendo no presente momento repetidas.
Albert Einstein
Alem de Oppenheimer, trabalharam no projeto da construcao da bomba-A nos
Estados Unidos, os fısicos Niels Bohr, Enrico Fermi e Richard Feynman. Apos
muitas dificuldades para realizar a separacao do uranio 235 do minerio, material
suficiente para fazer explodir uma bomba foi finalmente conseguido em 1945. No
dia 16 de julho daquele ano, em Alamagordo, no Novo Mexico, a primeira explosao
nuclear foi observada em um teste. No dia 6 de agosto seria a vez de Hiroshima.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 389
7.6 Lixo Atomico: um Sub-Produto Inde-
sejavel
Considere novamente o processo de fissao do 235U, seguido do decai-
mento dos produtos de fissao:
235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n
93Rb6 s−→93
Sr7 min−→ 93
Y10 h−→93
Zr106 anos−→
93
Nb
141Cs25 s−→141
Ba18 min−→ 141
La4 h−→141
Ce33 dias−→ 141
Pr
Vemos que para cada fissao do 235U, nada menos que oito novos ra-
dioisotopos sao criados (o 93Nb e o 141Pr sao estaveis). E mais, os
subprodutos de fissao acima sao apenas alguns dos muitos que podem
ocorrer. A cada evento de fissao uma enormidade de radioisotopos
que nao existiam antes aparecem. Alguns destes radioisotopos simples-
mente existirao “para sempre”, como e o caso do 93Zr, que leva em
media 1 milhao de anos para decair em 93Nb. O que fazer com este lixo
atomico?
O preco a ser pago para a obtencao de eletricidade via reatores
nucleares e algo que tem sido altamente questionado. Durante algum
tempo argumentou-se que esta seria uma forma barata e segura de
se obter energia, mas os argumentos tem sido colocados em duvida
por varios especialistas, em particular aqueles ligados a entidades de
protecao ao meio-ambiente. Os problemas com esta forma de geracao
de energia sao muitos. Para inıcio de conversa, devido as dificuldades
de mineracao do uranio e estocagem do lixo atomico, o processo se
torna tao caro quanto outras formas de obtencao de eletricidade. Por
390
exemplo, um reator com capacidade para gerar 1 Gigawatt de energia
eletrica consome 33 toneladas de uranio por ano, sendo que para isso
nada menos do que 440 000 toneladas de minerio devem ser escavadas.
Estima-se que cerca de 40 mil pessoas morram todos os anos no mundo
como decorrencia da atividade de mineracao do uranio. Dentro do
reator a fissao ocorre em tubos feitos a partir de ligas de zirconio e
magnesio, que aprisionam a maior parte dos produtos de fissao, mas
deixam escapar os neutrons, que podem ativar outros nucleos. Das 33
toneladas iniciais restarao, alem de uranio, cerca de 300 kg de plutonio,
e mais os produtos de fissao altamente radioativos. Este material que
“sobra” do processo de fissao e o lixo atomico. A sua radioatividade
e centenas de milhoes de vezes maior do que a radioatividade natural
das minas. O contato direto com esse material significa morte certa.
A contaminacao do ambiente e tao seria, que o proprio reator apos
algumas decadas de uso tem que ser fechado e desmontado. Ou seja, o
proprio reator se torna lixo atomico!
O lixo atomico, em geral, tem o seguinte destino: os cilindros sao
dissolvidos em acido, e o plutonio e separado para uso em armas nucle-
ares. O restante do material e estocado em caixas de carbono ou aco
inoxidavel que sao enterradas. A radioatividade dentro dessas caixas
continuara existindo por milhoes e milhoes de anos. Como garantir
que nao havera vazamento deste material para o meio ambiente?! As
geracoes futuras herdarao este problema da atualidade. Provavelmente
o material tera que ser re-empacotado por cada nova geracao para
garantir que nao havera vazamento!
Balanco: reatores nucleares possuem vida util de apenas algumas
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 391
dezenas de anos, produzem eletricidade a um preco comparavel a outras
formas de obtencao de energia, podem vazar ou explodir como aconte-
ceu como o de Chernobyl (apesar de ser afirmado pelas autoridades que
eles sao absolutamente seguros). Como se nao bastasse, geram o inde-
sejavel lixo atomico que permanecera ativo por milhoes de anos. Nao
parece ser muito vantajoso, principalmente para paıses como o nosso,
com vastos recursos hidroeletricos.
7.7 Fusao Nuclear
Existe uma forma alternativa de se obter energia nuclear que nao polui
o ambiente: a fusao nuclear. Neste processo dois nucleos leves sao
combinados para formar um nucleo mais pesado. Um exemplo e a
reacao abaixo:
2H +2 H →3 He + n
Nesta reacao, dois nucleos de deuterio (ou deuterons) se fundem para
formar um nucleo de helio. A reacao libera um neutron e 3,3 MeV
de energia. Existem duas vantagens principais em reacoes de fusao,
quando comparadas com as de fissao: primeiro, os produtos da reacao
(no caso acima o helio) sao nucleos estaveis, e nao radioisotopos como
ocorre no caso da fissao. A segunda vantagem e que os nucleos envolvi-
dos na fusao (no caso acima o deuterio) sao abundantes, e nao precisam
ser escavados em minas como o uranio.
Mas, nem tudo sao flores com a fusao. Se fosse facil fazer fusao,
a fissao ja teria sido aposentada ha muito tempo! A fim de que dois
392
nucleos sejam fundidos e preciso, obviamente, coloca-los perto um do
outro. Perto o suficiente para que a forca nuclear, que age a uma
distancia de apenas 10−15 m (veja capıtulo quatro), possa fazer o tra-
balho de fusao. Para isso e preciso superar a forte “barreira” repul-
siva coulombiana (pois nucleos possuem cargas iguais e se repelem a
distancias maiores do que 10−15 m).
A fusao pode ser alcancada simplesmente acelerando um nucleo ate
que ele tenha uma energia cinetica suficientemente alta, e lanca-lo sobre
outro nucleo. No entando, para fins praticos este processo nao produz
energia suficiente que possa ser utilizada. Uma outra possibilidade e
aquecer um gas formado pelos constituintes a serem fundidos a tempe-
raturas tao altas que a agitacao termica faria com que que os nucleos se
aproximassem o suficiente para realizar a fusao. Este processo e de fato
realizado no interior das estrelas, e e chamado de fusao termonuclear.
Tem um pequeno probleminha: a temperatura para que o processo
possa ocorrer deve ser de bilhoes de graus!
Apesar dessas dificuldades, devido as suas possıveis importantes
consequencias, a fusao nuclear e um campo de pesquisas muito frutıfero
e promissor na fısica. Uma das dificuldades tecnicas basicas e simples-
mente arranjar um local onde a reacao termonuclear possa ser realizada!
A temperaturas de bilhoes de graus, nao ha material na Terra que re-
sista. A saıda encontrada foi confinar o gas onde a fusao vai ocorrer sob
a acao de campos magneticos. Isso e possıvel porque a temperaturas
tao altas, as partıculas do gas estao totalmente ionizadas. Ou seja, o
gas e composto por eletrons e nucleos “carecas”. Este tipo de gas e
chamado de plasma. Como as partıculas de um plasma sao carregadas
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 393
(positivas e negativas em igual numero), elas podem ser aprisionadas
em campos magneticos, via acao da forca de Lorentz (veja capıtulo um).
Reatores de fusao termonuclear, como os chamados tokamaks, utilizam
este princıpio de confinamento magnetico.
394
XIV
ESPELHOS MAGNETICOS E TOKAMAKS
As “paredes” do recipiente que contem o plasma onde reacoes de fusao sao
realizadas sao “feitas” de campo magnetico. Como vimos no capıtulo um, partıculas
carregadas em campos magneticos ficam sujeitas a forca de Lorentz,
F = qv ×B
que faz com que elas espiralem em torno da direcao do campo.
Campos magneticos podem ser produzidos com geometrias especiais de modo a
manterem o plasma confinado em uma certa regiao do espaco. Existem dois dese-
nhos basicos, que utilizam campos axiais ou toroidais. No caso axial, um campo e
gerado de modo que seja uniforme na sua regiao central, e inomogeneo nas extre-
midades. A inomogeneidade faz com que uma partıcula que se aproxime dessa regiao
experimente uma forca contraria ao seu movimento, que a reflete de volta para a
regiao homogenea do campo. O fenomeno e as vezes chamado de espelhamento
magnetico, porque a partıcula carregada e refletida pelo campo como a luz em um
espelho.
Nos chamados tokamaks a geometria e diferente. O campo magnetico e gerado
por bobinas enroladas sob a forma de um toroide (veja figura). Com esta geometria,
as linhas de campo serao paralelas ao eixo do toroide. As partıculas do plasma
espiralam em torno dessas linhas e sao deste modo mantidas em confinamento.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 395
.
Reacoes de fusao sao realizadas confinando-se um plasma em campos magneticoscom duas configuracoes basicas: os espelhos magneticos e os tokamaks.
Como nao poderia deixar de ser, a liberacao de energia no pro-
cesso de fusao, sugeriu nao so a construcao de reatores de fusao para
pesquisa cientıfica e producao de energia, mas tambem as chamadas
bombas termonucleares. Essas “belezocas” possuem um poder de de-
struicao inimaginavelmente maior do que as obsoletas bombas de fissao
que foram largadas sobre as cabecas dos moradores de Hiroshima e Na-
gasaki. De fato, uma bomba termonuclear possui em seu interior uma
outra de fissao so para produzir a temperatura necessaria para iniciar
o processo de fusao. Pense nisso: uma bomba nuclear usada como uma
mera espoleta! Milhares dessas bombas foram construıdas pelos Esta-
dos Unidos e pela ex-Uniao Sovietica durante a chamada Guerra Fria.
Um conflito termonuclear entre esses dois paıses nao deixaria rastro de
vida sobre a Terra.
396
7.8 Como Funciona o Sol?
O Sol e um gigantesco reator de fusao termonuclear que transforma
hidrogenio em helio. Estrelas sao como seres vivos: nascem, vivem
por um tempo e depois morrem. Estima-se em cerca de 5 bilhoes de
anos a idade do Sol, e que ele vivera outros 5 bilhoes. A conversao
do hidrogenio em helio passa por varias etapas, mas a reacao geral e
representada por
41H →4 He + 2e+ + 2ν
ou seja, quatro protons sao fundidos em uma partıcula alfa liberando
dois positrons e dois neutrinos. Esta reacao libera 26,7 MeV de energia,
que chega ate nos sob a forma de luz e calor. O “reator-Sol” e altamente
estavel: por mais de 1 bilhao de anos esta energia tem se mantido
constante.
A vida de uma estrela como o Sol e uma eterna batalha entre a
forca de gravidade que tende a colapsar a sua massa, e as reacoes ter-
monucleares que a expande. A aceleracao da gravidade na superfıcie
do Sol e de 274 m/s2. Sua densidade de 1410 kg/m3 e seu raio de
6, 96 × 108 m sao o resultado da competicao entre essas duas forcas
com tendencias opostas. Em 5 bilhoes de anos o hidrogenio do Sol
acabara, e a forca da gravidade vencera a expansao causada pela fusao,
fazendo com que sua massa se contraia, aumentando a temperatura no
seu centro, e iniciando um novo ciclo de fusao, desta vez usando o helio
como combustıvel nuclear.
O destino final de uma estrela depende em ultima analise da sua
massa, mas o processo de queima de combustıvel nuclear partindo do
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 397
hidrogenio e fundindo elementos cada vez mais pesados, e o mesmo
para todas elas. O produto final desta queima e o ferro. A partir
daı nao e mais possıvel produzir energia por fusao. Neste ponto, se
a estrela for muito grande, ela explodira em uma supernova. Com o
nosso Sol acontecera algo diferente: ao final de sua vida sua superfıcie
se expandira e ele se transformara em uma gigante vermelha. Neste
ponto os planetas mais proximos do Sol - incluindo a Terra - serao
engolidos por ele, e seu diametro sera tao grande que visto da Terra
parecera preencher metade do ceu. A vida na Terra sera entao extinta
(por sorte ainda e cedo para nos preocuparmos com isso!). O proximo
estagio sera novamente de contracao, mas desta vez a gravidade nao
sera suficiente para reiniciar uma reacao de fusao termonuclear. O “ex-
Sol” entao se transformara em uma estrela chamada ana branca.
7.9 Efeitos Biologicos da Radiacao
No dia 13 de setembro de 1987 duas pessoas abriram um recipiente
abandonado em um local onde havia existido uma clınica medica na
cidade de Goiania. O conteudo do recipiente eram 18 gramas de cesio
137 (137Cs), um radioisotopo com meia-vida de 30,2 anos utilizado para
fins medicos. A irresponsabilidade dos donos da clınica e a completa
falta de informacao daquelas pessoas, aliada a total negligencia das au-
toridades do governo local na epoca, levaram o cesio a se espalhar e
causar a morte de varios moradores locais, e a contaminar centenas de
outras pessoa. Depois de Chernobyl, o acidente de Goiania e consider-
ado o mais grave acidente com radiacao.
398
Radiacao pode ser extremamente danosa para organismos vivos.
Explosoes de bombas atomicas em testes nucleares, e a mineracao de
uranio para reatores de fissao liberam radioisotopos na atmosfera que
podem se combinar com o ar, com a agua, com plantas e animais, e ter
como destino o corpo de alguem. Por exemplo, o processo de mineracao
de uranio libera o radonio sob a forma de gas, que decai em chumbo
radiativo, que por sua vez causa danos ao cerebro. Ja o plutonio prefere
se agarrar a superfıcie dos nossos ossos e despejar partıculas alfa, que
possuem alto poder de ionizacao.
E no poder de ionizacao que reside o perigo da radiacao. Como vi-
mos, moleculas sao formadas por atomos que se ligam quimicamente en-
tre si. As propriedades das moleculas sao reflexos da estrutura eletronica
dos atomos que as compoem. Radiacao de qualquer tipo tem o poder de
alterar esta estrutura quımica e consequentemente alterar o funciona-
mento de moleculas, como por exemplo o ADN. O tipo e a extensao
do dano biologico e funcao das caracterısticas da radiacao. Partıculas
alfa, por exemplo, causam maior dano do que a mesma dose de protons,
partıculas beta ou gamas. Isto porque partıculas alfa sao facilmente
freadas, e consequentemente depositam sua energia mais localizada-
mente no organismo.
Os possıveis danos variam tambem em grau, dependendo do tipo
de radiacao e sobretudo da dose. O efeito e acumulativo e piora se
a dose for tomada em um curto intervalo de tempo. De um modo
geral, a exposicao a radiacao pode levar a morte em pouco tempo, ou
levar a alteracoes do funcionamento de celulas, causando doencas como,
por exemplo, o cancer. Pode ainda alterar a estrutura do material
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 399
genetico das celulas, causando defeitos que serao transmitidos as futuras
geracoes.
Existem duas unidades que quantificam a dose absorvida de ra-
diacao por um organismo: o rad, que equivale a uma energia de 100
erg/g, e o Gray (Gy), que equivale a 1 J/kg. Portanto, 1Gy = 100
rad. Exposicoes de 0,5 a 1 Gy comecam a gerar problemas de saude
em adultos. Doses entre 6 a 10 Gy causam problemas gastrointestinais
(diarreias, desidratacao, etc.). Problemas no sistema nervoso central
aparecem com doses acima de 10 Gy (disturbios de equilıbrio, agitacao,
convulsoes, e ocasionalmente, morte do indivıduo). Em mulheres entre
15 e 40 anos de idade doses entre 2,5 e 5,0 Gy podem causar a supressao
de ovulacao. Acima de 40 anos, a supressao ocorre em 100% dos casos.
Nos homens a mesma dose causa supressao na producao de esperma
(aspermia). Dependendo da fase de desenvolvimento em que o orga-
nismo atingido pela radiacao se encontra, esta pode produzir alteracoes
diferentes no sistema nervoso; estruturas cerebrais podem nem chegar
a se formar ou se apresentar anomalamente.
Comecamos este capıtulo com o belo poema Rosa de Hiroshima de
Vinıcius de Moraes. E notavel como a miseria e a destruicao nuclear
inspiram os poetas. Terminaremos esta secao transcrevendo um outro
poema, intitulado Radiophobia (Radiofobia), que expressa a dor e o
desespero dos habitantes de Chernobyl. O poema foi traduzido do
Russo para o ingles por Leonid Levin e Elisavietta Ritchie. Nao me
atrevi a tentar uma segunda traducao para o portugues, e portanto
mantive a sua forma em ingles.
400
RADIOPHOBIA
Is this only–a fear of radiation?
Perhaps rather–a fear of wars?
Perhaps–the dread of betrayal,
cowardice, stupidity, lawlessness?
The time has come to sort out
what is–radiophobia.
It is–
when those who’ve gone through the Chernobyl drama
refuse to submit
to the truth meted out by government ministers
(“Here, you swallow exactly this much today!”)
We will not be resigned
to falsified ciphers,
base thoughts,
however you brand us!
We don’t wish–and don’t you suggest it!–
to view the world through bureaucratic glasses!
We’re too suspicious!
And, understand, we remember
each victim just like a brother! . . .
Now we look out at a fragile Earth
through the panes of abandoned buildings.
These glasses no longer deceive us!–
These glasses show us more clearly–
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 401
believe me–
the shrinking rivers,
poisoned forests,
children born not to survive . . .
Mighty uncles, what have you dished out
beyond bravado on television?
How marvelously the children have absorbed
radiation, once believed so hazardous! . . .
(It’s adults who suffer radiophobia–
for kids is it still adaptation?)
What has become of the world
if the most humane of professions
has also turned bureaucratic?
Radiophobia
may you be omnipresent!
Not waiting until additional jolts,
new tragedies,
have transformed more thousands
who survived the inferno
into seers–
Radiophobia might cure
the world
of carelessness, satiety, greed,
bureaucratism and lack of spirituality,
so that we don’t, through someone’s good will
mutate into non-humankind.
402
7.10 Medicina Nuclear
Gracas aos Ceus, nem tudo na historia das aplicacoes da fısica nuclear e
destruicao. A compreensao dos fenomenos envolvendo nucleos atomicos
possibilitou o desenvolvimento de varias tecnicas de diagnostico e trata-
mento que tem ajudado a salvar muitas vidas. A ressonancia magnetica
nuclear, discutida no capıtulo anterior, e um belo exemplo de aplicacao
que nao existiria se as propriedades magneticas dos nucleos nao tivessem
sido estudadas1. Nesta secao comentaremos brevemente algumas outras
aplicacoes medicas que envolvem o uso da radiatividade. Esta parceria
entre fısica nuclear e medicina e uma area de especializacao chamada
Medicina Nuclear.
Os medicos estao sempre interessados em olhar o que se passa dentro
do corpo das pessoas, sem que para isso seja necesario - na medida do
possıvel - nelas abrir um buraco. A ideia de utilizar radiacao para pro-
duzir imagens do interior do corpo nao e nova. Seguindo a descoberta
dos raios X (ondas eletromagneticas com comprimentos de onda entre
10−9 e 10−15 metros), em 1895 pelo cientista alemao Wilhelm Rontgen,
logo verificou-se o poder de penetracao deste tipo de radiacao em teci-
dos macios, propriedade esta que contrasta com sua forte atenuacao
por tecidos osseos. Esta observacao prontificou a utilizacao dos raios
X para produzir imagens do esqueleto humano (e de outros bichos!),
tornando-o um poderoso auxiliar no diagnostico de ossos quebrados.
1Como curiosidade, note a diferenca nas escalas de energia dos dois problemas:na RMN lidamos com fracoes ınfimas de eletronvolts, enquanto que na desintegracaonuclear lidamos com milhares a milhoes de eletronvolts. Sao 10 a 15 ordens demagnitude de energia acima!
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 403
Existem varias tecnicas de exames medicos que se utilizam de gamas
emitidos por radioisotopos. Muitas delas se utilizam do fato de que
determinadas substancias tendem a se acumular em determinados teci-
dos ou orgaos dentro do corpo. Por exemplo, a glandula tiroide, que
se situa diante da traqueia, e que possui importante papel no nosso
metabolismo, possui a propriedade de acumular iodo (I). A atividade
da tiroide pode entao ser estudada atraves da introducao de iodo no
corpo, contendo isotopos radiativos desse elemento, como o 131I e o 132I.
A utilizacao do primeiro e menos desejavel, por possuir meia-vida de
oito dias, o que prolonga demasiadamente a permanencia do material
radioativo dentro do corpo do paciente. O segundo possui meia-vida de
2,3 horas, e e mais utilizado. Mais recentemente, motivado pelo desen-
volvimento nas tecnicas de producao de radioisotopos, tem-se utilizado
o 123I, que possui meia-vida de 13 horas, e decai via captura eletronica
(ou seja, absorve um eletron e depois emite o gama que e utilizado no
exame), e nao por emissao de eletrons, o que diminui a quantidade de
radiacao.
De uma maneira geral, substancias radiativas sao introduzidas no
corpo dos pacientes, e se acumulam em determinados orgaos ou tecidos,
com os quais possuem afinidade quımica. Uma vez acumuladas essas
substancias, o estudo do padrao espacial da radiacao emitida permite
a reconstrucao da imagem interna do orgao. Um exemplo corriqueiro
sao as imagens de tumores no cerebro produzidas a partir dos gamas
emitidos pelo 99Tc. O cerebro possui uma tendencia natural de nao
acumular impurezas que viajam no sangue, exceto quando existe um
tumor. O 99Tc e acumulado entao na regiao do tumor, o que permite
404
a visualizacao da area afetada e do tamanho do tumor.
Uma outra importante tecnica que tem se desenvolvido nos ultimos
anos e a tecnica de PET (do ingles Positron Emission Tomography,
ou Tomografia por Emissao de Positrons). Positrons sao partıculas
identicas ao eletron, com excecao da sua carga, que e positiva; podemos
dizer que sao uma especie de eletrons positivos. Trata-se da partıcula
de antimateria associada ao eletron (mais sobre isto no capıtulo nove).
Varios nucleos radiativos decaem emitindo positrons. A utilizacao
dessas partıculas em exames medicos se baseia na seguinte propriedade
fısica: quando um positron encontra um eletron, os dois se aniquilam
mutuamente, dando lugar a um par de fotons. Sao estes fotons pro-
duzidos pela aniquilacao do par eletron-positron dentro do organismo
de uma pessoa, que trazem informacoes sobre a regiao onde o fenomeno
ocorreu. Exemplos de radioisotopos emissores de positrons, utilizados
em exames PET sao o 15O (t1/2 = 2 min), o 13N (t1/2 = 10 min), o 13C
(t1/2 = 20 min), e o 18F (t1/2 = 110 min).
A diferenca essencial entre as imagens produzidas por PET e aquelas
produzidas por outras tecnicas, como por exemplo a RMN, esta no fato
de que enquanto as outras tecnicas produzem imagens anatomicas do
organismo (ou seja, imagens estaticas), PET e capaz de gerar imagens
funcionais, exibindo a atividade metabolica no organismo2. A pratica
envolve a ingestao dos radioisotopos, como nos casos anteriores. Subs-
tancias quımicas utilizadas pelo corpo, como por exemplo a glicose,
contendo radioisotopos emissores de positrons, sao introduzidas no pa-
2Existe, no entanto, a chamada RMN funcional, que tambem fornece informacoessobre as atividades metabolicas do organismo.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 405
ciente. A medida em que os positrons emitidos pelos radioisotopos vao
encontrando eletrons no organismo e sendo aniquilados, os fotons resul-
tantes sao detectados, e as atividades metabolicas envolvendo glicose
(por exemplo, nos musculos, no coracao, no cerebro, em um tumor, etc)
vao sendo monitoradas. Com isso, as imagens de PET fornecem uma
medida direta das atividades bioquımicas e funcionais do organismo.
Na cardiologia a tecnica PET tem sido utilizada para o diagnostico de
problemas nas coronarias (arterias que irrigam o coracao), reducao de
fluxo sanguıneo, necessidade de pontes e transplantes, etc. Na neurolo-
gia a PET tem auxiliado na deteccao de doencas neurologicas como o
Mal de Alzheimer, Doenca de Parkinson, Sındrome de Down, etc. O
exame e ainda capaz de localizar focos epileticos, e qualificar a regiao
para intervencao cirurgica.
Tratamentos utilizando radioterapia incluem tecnicas para destruicao
de tumores ou tecidos que apresentem problemas. Tais tratamentos
baseiam-se na capacidade da radiacao de ionizar moleculas. A io-
nizacao faz com que as moleculas afetadas pela radiacao se recombinem
quimicamente com radicais livres no organismo, e sejam incorporadas
em estruturas biologicas mais complexas, alterando assim suas funcoes
quımicas.
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. A Seguranca de Angra I, Luiz Pinguelli Rosa, vol. 9, no. 53, p 24.
2. Como Funciona o Reator de Angra, David Simon, in Angra Entra emOperacao, vol. 2, no. 8, p 54.
3. Angra Entra em Operacao, vol. 2, no. 8, p 50.
4. Abalos em Angra: Nenhum Perigo a Vista, Vera Rita da Costa e Luıs
406
Martins, vol. 9, no. 50, p 77.
5. A Tragedia Atomica nao Acabou, Ademar Freire-Maia, vol. 4, no. 20, p 86.
6. Do Lixo Atomico ao Lixo Industrial, Mario Epstein, vol. 12, no. 70, p 22.
7. Lixo Atomico o que Fazer? Joaquim Francisco de Carvalho, vol. 2, no. 12,p 18.
8. Cinquenta Anos da Fissao Nuclear: Ha Razoes para se Comemorar?, DanielR. Bes, vol. 9, no. 50, p. 76.
9. Materiais Radiativos e Contaminacao, Roberto Alcantra Gomes, vol. 8, no.45, p. 22.
10. Forcas Nucleares, Helio Teixeira Coelho e Manoel Roberto Robilotta, vol.11, no. 63, p. 22.
11. Fusao Termonuclear Controlada, Nelson Fiedler-Ferrari e Ivan Cunha Nasci-mento, vol. 7, no. 41, p. 44.
12. Separacao de Isotopos de Uranio por Laser, Luiz Davidovich, vol. 2, no.10, p. 82.
13. Novas Esperancas para a Fusao Nuclear, Alicia Ivanissevich, vol. 9, no. 49,p. 10.
14. Um Reator Nuclear Pode Explodir?, Arthur Moses Thompson Motta e LuizFernando Seixas de Oliveira, em Angra Entra em Operacao, vol. 2, no. 8, p.58.
15. Nucleos Exoticos, Carlos A. Bertulani, vol. 11, no. 65, p. 60.
16. Radioisotopos para Medicina, Arthur Gerbasi da Silva, vol. 3, no. 16, p.12.
17. Radioterapia com Menos Riscos, Regina Scharf, vol. 8, no. 45, p. 10.
18. O Casal Curie e os Novos Caminhos da Fısica, Lucıa Tosi, vol. 24, no.144, p. 65.
CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 407
Resumo - Capıtulo Sete
Nucleos instaveis livram-se do excesso de energia emitindo partıculassubatomicas. O fenomeno e chamado de radioatividade. Os tres tipos dedecaimento mais comuns sao o decaimento por emissao alfa, por emissaobeta, e por emissao gama. Partıculas alfa sao nucleos do atomo de helio,formados por dois protons e dois neutrons. Patıculas beta sao eletronsou positrons, e partıculas gama sao fotons. Analogamente as reacoesquımicas, nucleos podem sofrer reacoes nucleares, dando origem a ou-tros nucleos. Um tipo de reacao nuclear muito importante e a captura deneutrons. Quando elementos pesados, como o 235U, capturam neutrons,o nucleo e fissionado, emitindo grande quantidade de energia e outrosneutrons. Esse fenomeno permite que reacoes nucleares de fissao se-jam utilizadas para gerar energia em grande escala. Bombas atomicase reatores nucleares utilizam este princıpio. A radioatividade em ex-cesso e altamente perniciosa para a nossa saude, e varios acidentes jaocorreram, sendo os mais graves a explosao da usina de Chernobyl em1986, e o acidente de Goiania com 137Cs em 1987. Na fusao nucleardois elementos leves sao fundidos em um mais pesado. Este e o pro-cesso de funcionamento do Sol e de outras estrelas. Para a fusao ocor-rer, altas temperaturas sao necessarias. Em laboratorios, a chamadafusao termonuclear e realizada utilizando-se o princıpio de confinamentomagnetico de um plasma em campos magneticos. Milhares de bombastermonucleares foram construıdas nos Estados Unidos e na antiga UniaoSovietica durante a Guerra Fria. As chamadas bombas-H possuem umpoder de devastacao incomparavelmente maior do que as primeiras bom-bas atomicas lancadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Alem de armas dedestruicao em massa, as aplicacoes da energia nuclear tem produzidotoneladas de lixo atomico o qual permanecera ativo por milhoes e milhoesde anos. A radioatividade e tambem um poderoso auxiliar para trata-mentos medicos e diagnosticos de doencas. Existem varias tecnicas quese utilizam de isotopos radioativos para produzir imagens do interior docorpo humano, ou para combater a evolucao de tumores no organismo.
Chapter 8
Relatividade Geral
Ele subitamente interrompeu a discussao...apanhou um telegrama que
estava no peitoril da janela e deu a mim dizendo: “Olhe, isso talvez
possa interessa-la”. Era o telegrama de Eddington, comunicando os
resultados colhidos pela expedicao que acompanhara o eclipse. Quando
eu expressei alegria pelo fato dos resultados coincidirem com os calculos,
ele disse tranquilamente: “Eu sabia que a teoria e correta”; e quando
lhe perguntei o que teria acontecido se nao se vissem confirmadas suas
previsoes, comentou: “Entao eu lamentaria pelo bom Deus - mas a
teoria esta correta”. (As Ideias de Einstein, J. Berstein, Ed. USP
1975)
8.1 Einstein Ataca de Novo!
Vimos no capıtulo dois que as leis da mecanica classica de Newton tive-
ram que ser substituıdas pelas leis da mecanica relativıstica de Einstein.
As leis de Newton so sao validas no limite de baixas velocidades. A
relatividade, por sua vez, e formulada sobre dois princıpios basicos, o
409
410
de que as leis da fısica sao validas em todos os sistemas inerciais (ou
seja, que se movem com velocidade relativa constante), e o de que a
velocidade da luz e a mesma em todos esses sistemas. Como resultados
principais desses postulados, vimos a contracao do espaco, a dilatacao
do tempo e a famosa formula E = mc2, expressao da equivalencia entre
massa e energia. Tudo isso e valido em sistemas inerciais, ou seja,
que nao sofrem aceleracao. Por esta limitacao, a teoria ficou conhecida
como Relatividade Restrita.
Apos a publicacao da relatividade restrita, Einstein se preocupou
em desenvolver uma teoria geral, que incluisse sistemas nao inerciais, ou
seja, que sofrem aceleracao. Dez anos se passaram para o resultado final
aparecer. Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, Einstein pub-
lica sua segunda grande contribuicao a fısica: a Teoria da Relatividade
Geral. Ao incluir sistemas de referencia acelerados, a relatividade geral
naturalmente tornou-se uma teoria de gravitacao, e portanto substituiu
a gravitacao newtoniana, ate entao a suprema teoria fısica “dos ceus”.
Alem dos ja conhecidos efeitos sobre relogios e reguas da teoria restrita,
aparece na teoria geral mais uma novidade bombastica: a de que a luz
possui “peso”. Este resultado teorico foi dramaticamente confirmado
em 1919 por uma expedicao de astronomos comandados pelo ingles Sir
Arthur Eddington!
8.2 O Princıpio da Equivalencia
Einstein costumava dizer que so conseguira chegar as suas ideias porque
pensava como uma crianca. No capıtulo dois mencionamos a experiencia
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 411
imaginada do espelho, que ele formulara aos 16 anos de idade. Com a
relatividade geral nao foi diferente. A teoria surgiu a partir de questio-
namentos muito simples, mas que ninguem ate entao havia feito. Nas
palavras de Einstein:
Eu estava sentado em minha cadeira no escritorio de
patentes em Berna, quando subitamente me ocorreu um pen-
samento: ‘Se uma pessoa cai livremente, ela nao sentira o
proprio peso.’ Fiquei chocado. Esta ideia simples causou-
me uma profunda impressao, e levou-me a teoria da rela-
tividade geral.
Quantos de nos, fısicos profissionais, se chocam com ideias desse
tipo! A consequencia foi o princıpio da equivalencia, que pode ser com-
preendido a partir da seguinte experiencia pensada: suponha que um
observador se encontre dentro de uma caixa fechada, na superfıcie da
Terra. Ele sente o proprio peso e, ao soltar um objeto dentro da caixa,
o vera cair com uma aceleracao igual a g, a aceleracao da gravidade.
Imagine entao que, ao inves de realizar a experiencia na superfıcie do
planeta, sem que o observador saiba, a caixa seja transportada para
o espaco interestelar, longe da influencia do campo gravitacional da
Terra, ou de qualquer outro astro. Imagine ainda que embaixo da
caixa existam motores de propulsao que a acelerem com o mesmo valor
g. Ou seja, a aceleracao sentida pelo observador sera numericamente
igual a aceleracao da gravidade na Terra, porem produzida por mo-
tores, e nao pela massa do planeta. Nessas condicoes o observador
continuara sentindo o proprio peso e ao repetir a experiencia de largar
412
o objeto observara uma queda exatamente como antes. Ou seja, ele sera
incapaz de distinguir as duas situacoes. Consequentemente, sistemas
de referencia uniformemente acelerados sao equivalentes a sistemas de
referencia em repouso, onde exista um campo gravitacional uniforme.
Este e o princıpio de equivalencia1. A primeira consequencia impor-
tante deste princıpio foi a explicacao para a “misteriosa” igualdade
entre a massa inercial e a massa gravitacional mencionada no capıtulo
um, considerada uma “estranha coincidencia” por Newton. De fato, se
aceitarmos que um referencial acelerado e indistinguıvel de um campo
gravitacional, podemos escrever para a segunda lei de Newton:
minercial × a = minercial × g = mgravitacional × g
e as duas massas devem coincidir.
Vamos agora, usando argumentos classicos, levar um pouco mais
adiante o experimento pensado do observador na caixa. Imagine que
haja um buraco em um dos lados da caixa que se move impulsionada
pelos motores, e que por ele entre um facho de luz. A luz atravessa a
caixa com velocidade c; se l for o comprimento da caixa, o raio atingira
o lado oposto em um tempo t = l/c. Acontece que neste intervalo
de tempo a caixa tera se deslocado para cima de uma distancia igual a
at2/2 = gl2/2c2, de modo que o observador dentro dela ve o raio atingir
o lado oposto ao buraco por onde entrou, a uma altura ligeiramente
abaixo. Em outras palavras, ele ve a luz se curvar. Mas, como o
princıpio de equivalencia afirma que a caixa acelerada e fisicamente
1No caso da pessoa que cai livremente, ela nao sente o proprio peso, mas se encon-tra em um referencial uniformemente acelerado (com aceleracao g). Ao contrario,se ela ficar parada em um refencial inercial, ela passa novamente a sentir o seu peso.
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 413
indistiguıvel de um campo gravitacional uniforme, devemos concluir
que um observador parado sobre a superfıcie da Terra tambem devera
ver a luz se curvar sob a acao de seu campo gravitacional! E como se
a luz fosse atraıda pelo campo da Terra; e como se ela tivesse peso! E
facil estimar o angulo de curvatura nesse exemplo simples da caixa: ele
e dado por θ ≈ gl/2c2.
Um observador em um elevador acelerado veria a luz se desviar. Como o Princıpio daEquivalencia iguala objetos massivos a referenciais acelerados, a luz deve igualmentese curvar ao passar perto de massas muito grandes.
A relatividade geral preve um desvio angular duas vezes maior do
que o obtido com argumentos classicos, e este e um dos seus resultados
414
mais impressionantes. Em 1919 (3 anos depois da publicacao da teoria)
o astronomo ingles Sir Arthur Eddington (que ainda nao era ‘Sir’ nesta
epoca) organizou uma expedicao para medir o “peso da luz” previsto
por Einstein. Eddington sabia que no dia 29 de maio daquele ano
haveria um eclipse do Sol, e nas circunstancias especiais daquele eclipse
a deflexao da luz emitida por um conjunto de estrelas ao passar pelo
enorme campo gravitacional do Sol poderia ser medida. Uma parte da
expedicao de Eddington seguiu para o municıpio de Sobral, no estado
do Ceara, no Nordeste brasileiro, e a outra (com a qual Eddington
permaneceu) foi para a Ilha do Prıncipe, na Africa. A previsao teorica
feita por Einstein para este experimento era de que a luz deveria se
desviar de 1,74 segundos (lembre que a circunferencia tem 360 graus,
cada grau valendo 60 minutos e cada minuto 60 segundos. Portanto,
segundo aqui nao e unidade de tempo, mas de angulo). Em Sobral
o desvio medido foi de 1,98 segundos, e na Ilha do Prıncipe de 1,61
que, dentro do erro experimental, estava de bom acordo com a teoria.
Mais uma vez Einstein estava certo! Por muitos anos outras medidas
semelhantes foram feitas, todas confirmando as previsoes da teoria.
Vale a pena o leitor parar para refletir sobre esse experimento. De
um lado Einstein com as suas previsoes teoricas espetaculares; de outro,
Eddington com sua equipe e seu laboratorio incomum: as estrelas, o
Sol e a Terra. E o voo supremo da alma humana!
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 415
.
Ao passar nas proximidades do Sol, a luz de uma estrela e desviada. Vista da Terra,a estrela parece estar em uma posicao diferente da real.
Foi somente a partir dos resultados do experimento de Eddington
que Einstein realmente ganhou popularidade e deixou de ser uma pessoa
comum e passou a ser um “genio”. Em novembro de 1919 eles (os
resultados) foram apresentados em uma sessao da Royal Society em
Londres. Cabe lembrar que esta instituicao britanica tem em Isaac
Newton seu maior representante e expoente. Nesta sessao, contudo,
era precisamente a gravitacao newtoniana - a perola do Principia - que
era colocada em xeque. Jeremy Bernstein reproduz uma descricao da
atmosfera da reuniao, feita por Alfred North Whitehead, em seu livro
As Ideias de Einstein (Ed. USP 1975):
A atmosfera, impregnada de tenso interesse, era exata-
mente a dos dramas gregos. Compunhamos o coro, comen-
416
tando o decreto do destino, tal como se revelava no desen-
volvimento de um incidente supremo. No proprio ambiente
havia qualidade dramatica - a cerimonia tradicional, e ao
fundo, o retrato de Newton para lembrarmos de que a maior
das generalizacoes cientıficas estava, agora, passados mais
de dois seculos, a ponto de receber sua primeira modificacao.
E nem faltava o elemento do interesse pessoal; uma grande
aventura do pensamento concretizava-se, enfim.
Outros dois resultados importantes foram obtidos por Einstein com
a relatividade geral. O primeiro diz respeito a variacao da frequencia
de uma onda eletromagnetica (ou foton) em um campo gravitacional,
outra consequencia do princıpio de equivalencia. Considere um foton
emitido de um ponto P em direcao a um detector D que se encontra a
uma distancia vertical L do ponto de emissao. Vamos chamar de f a
frequencia do foton emitido. Se g e a aceleracao da gravidade (consi-
derada uniforme) a relatividade geral preve que o campo gravitacional
causara uma mudanca na frequencia do foton (o que equivale a uma
mudanca na sua energia), de modo que o detector D vera o foton com
frequencia f ′. A razao calculada entre as frequencias e igual a:
f ′
f= 1 ± gL
c2
Onde o sinal ‘+’ se aplica se o foton estiver se deslocando no mesmo
sentido do campo gravitacional, e ‘−’ se estiver se deslocando em sen-
tido oposto ao do campo. De certa forma o problema e analogo a perda
ou ganho de energia cinetica de um objeto massivo, como uma pedra, se
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 417
jogada para o alto ou largada para cair livremente de uma certa altura.
Nesta situacao poderıamos escrever:
T = E −mgz
onde mgz e a energia potencial da pedra, sendo z a sua altura do
solo. E e a energia total (ou seja, potencial mais cinetica), que neste
caso se conserva. Se a pedra for jogada para o alto, a medida em que
z aumenta, como E e constante, T diminui. Eventualmente a pedra
alcancara uma altura maxima (o que obviamente nao acontece com o
foton), onde a energia potencial sera igual a E, e T sera zero. Se, ao
contrario, a pedra estiver caindo livremente, T sera zero no inıcio do
movimento e, na medida em que ela cai, z diminui ate o valor 0, onde
T sera maxima.
A presenca do fator c2 ≈ 9 × 1016 ≈ 1017 m2/s2 no denominador
torna a fracao do lado direito na expressao do deslocamento em frequencia
muito pequena. Se, por exempo, substituirmos L = 10 m, e g ≈ 10
m/s2 teremos
gL
c2≈ 102
1017= 10−15
Comparado com ‘1’, este numero e realmente pequeno:
1 + 0, 000000000000001 = 1, 0000000000000001
para o foton “caindo”, ou
1 − 0, 000000000000001 = 0, 999999999999999
418
para fotons “subindo”. Entao, para fotons que “caem” no campo gra-
vitacional da Terra de uma altura de 10 m, a sua frequencia (e con-
sequentemente energia) aumentaria de f para 1, 000000000000001f ; e
para fotons que “escapam” do campo da Terra, a 10 m de altura, a sua
frequencia diminuirira de f para 0, 999999999999999f .
O leitor desavisado poderia pensar que nao haveria qualquer espe-
ranca de tal resultado ser verificado experimentalmente. Contudo, di-
ante dos experimentos que ja vimos, que mais parecem pecas de ficcao
cientıfica, e pouco cauteloso achar que alguma coisa seja impossıvel
para certas pessoas! Em 1960 V.R. Pound e G.A. Rebka realizaram,
na Universidade de Harvard, a confirmacao experimental deste resul-
tado. Para isso eles usaram fotons emitidos do decaimento gama do
57Fe. Esses fotons possuem energia de 14,4 keV, o que equivale a uma
frequencia de:
f =E
h=
14, 4 × 103 × 1, 6 × 10−19 J
6, 6 × 10−34 Js= 3, 5 × 1018 Hz
O experimento foi realizado na Torre Jefferson, que possui cerca de
25 m de altura. Para medir o deslocamento em frequencia do foton
previsto pela relatividade geral, Pound e Rebka utilizaram um outro
importante efeito que havia sido recem-descoberto (em 1958) por R.
Mossbauer na Alemanha. O chamado efeito Mossbauer e simples de
entender: sabemos que um nucleo que se encontra inicialmente em um
estado de energia Ei, e decai para um estado de energia mais baixa Ef ,
emite um foton com uma energia igual a hω = (Ef−Ei), onde ω = 2πf e
a frequencia angular do foton emitido. Este foton pode ser re-absorvido
por outro nucleo que se encontre em um estado Ef , sendo assim ex-
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 419
citado para Ei (ou seja, percorrendo o caminho inverso). Porem, se
os nucleos emissor e absorvedor forem partıculas livres, devido a con-
servacao do momento linear, havera um pequeno recuo, tanto do nucleo
que emite o foton quanto do que o absorve. Este recuo dificulta a ob-
servacao do efeito. Mossbauer descobriu um “truque” para contornar a
dificuldade (veja painel XIV). Ele utilizou nucleos radioativos inseridos
em redes cristalinas, com isso evitando o recuo dos nucleos.
A relatividade geral preve que sob a acao do campo gravitacional,
a frequencia do foton, f , sera alterada. Pound e Rebka colocaram
entao uma amostra contendo uma fonte de 57Co no topo (ou na base)
da torre. Este radiosotopo decai para o 57Fe emitindo os gamas men-
cionados. Estes gamas eram detectados na base (ou no topo) da torre
utilizando o efeito Mossbauer em outra amostra de ferro. Ao viajar
do topo para a base, a frequencia dos fotons deveria ser aumentada
pelo campo gravitacional, modificando ligeiramente a posicao da linha
de absorcao dos fotons no efeito Mossbauer. Se o foton viajar da base
para o topo, a sua frequencia (e portanto energia) seria diminuıda pelo
mesmo fator, como no exemplo da pedra (comparar fotons com pedras,
so mesmo em um livro igual a este!). O experimento durou 4 meses.
O resultado esperado com base na teoria era uma variacao fracional de
frequencia igual a (f ′ − f)/f = ∆f/f = 4, 905 × 10−15. O resultado
encontrado foi de (4, 902 ± 0, 041) × 10−15. Esses numeros dispensam
comentarios. . .
420
PAINEL XV
O EFEITO MOSSBAUER
Vimos no capıtulo anterior que nucleos excitados podem decair emitindo fotons
(decaimento gama). Ao fazer isso, a fim de que o momento seja conservado, o
nucleo deve recuar um pouco. E como ocorre em um tiro de canhao: o projetil vai
para frente, e o canhao para tras. Se pγ e o momento do foton emitido, e pR o
momento de recuo do nucleo, a lei de conservacao de momento requer:
−pR = pγ
Alem do momento, a energia tambem e conservada. Antes do decaimento a
energia inicial era a energia do estado excitado no nucleo, Ei. Apos o decaimento
o nucleo estara em um estado Ef , e o foton tera uma energia Eγ . Temos tambem
que adicionar a energia cinetica devida ao recuo do nucleo ER. Ou seja:
Ei = Ef + Eγ + ER =⇒ ∆E = Eγ + ER
onde ∆E = Ei − Ef e a variacao de energia do nucleo.
Nao fosse pela presenca do termo de recuo, ER, um segundo nucleo que apre-
sentasse nıveis de energia separados pela mesma quantidade ∆E poderia absorver
o foton emitido. A presenca do termo ER significa que para que um nucleo absorva
este foton, ele teria que apresentar nıveis de energia ligeiramente mais proximos do
que o nucleo emissor. Mais exatamente, se tambem levarmos em conta a energia de
recuo do nucleo absorvedor, a diferenca entre os nıveis de energia dos nucleos emis-
sor e absorvedor, necessaria para que o foton pudesse ser absorvido, seria de 2ER.
Esta diferenca de energia praticamente impossibilita a observacao do fenomeno en-
tre atomos livres.
Em 1958 Rudolph Mossbauer descobriu como contornar este problema. Ele
percebeu que o recuo seria muito menor se os nucleos emissor e absorvedor es-
tivessem presos a uma rede cristalina. Neste caso a energia de recuo seria abosorvida
por toda a rede, e nao por apenas um nucleo. E mais ou menos como tentar
chutar um tijolo solto e um preso a uma parede! O da parede praticamente nao
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 421
recuara, pois toda a parede absorvera a energia do chute. Mossbauer usou fotons
com Eγ = 129 keV emitido pelo decaimento do 191Ir e demonstrou o que ficou
conhecido como o Efeito Mossbauer.
Desde a sua descoberta, o efeito Mossbauer tornou-se uma importante tecnica
de investigacao experimental, principalmente em ciencia dos materiais. Mas, na
opiniao do autor, sua aplicacao mais espetacular foi o teste do princıpio de equivalencia
por Pound e Rebka em 1960.
422
O outro resultado importante da relatividade geral foi a explicacao
da precessao do perielio de Mercurio. O perielio e o ponto de maior
aproximacao do Sol na orbita de um planeta. Um problema antigo
em mecanica era o da precessao do perielio de Mercurio (o planeta
mais proximo do Sol no nosso sistema). A variacao e de apenas 5600
segundos de arco (cerca de 1,5 grau) por seculo. Destes, a mecanica
classica de Newton consegue explicar 5557 segundos de arco, em termos
da interacao gravitacional de Mercurio com outros planetas. Os outros
43 segundos so podem ser explicados pela relatividade geral2!
O perielio (ponto de maior aproximacao da trajetoria de um planeta em torno doSol) de Mercurio sofre uma precessao de 5600 segundos de arco por seculo. Estefenomeno nunca foi compreendido ate o advento da Relatividade Geral.
2E instrutivo aqui ressaltar o rigor exigido pela Fısica. 43 segundos de arco em5600 e de fato uma variacao muito pequena. Antes da relatividade geral acreditava-se que esta variacao se devia a algum detalhe nao levado em conta nas equacoes demovimento classicas. Que nada! Era a minuscula ponta de um imenso iceberg queso foi descoberto por causa desta demanda irrevogavel do rigor cientıfico!
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 423
8.3 Geometria e Gravitacao
A relatividade geral vai muito alem dos resultados descritos acima. Ela
provocou modificacoes profundas de conceitos e ideias sobre a estrutura
do Universo cujas consequencias ainda estao longe de serem esgotadas.
Vimos no capıtulo dois que na relatividade restrita espaco e tempo nao
sao independentes um do outro. Classicamente consideramos o espaco
como tendo tres dimensoes, x, y e z. O tempo pode ser considerado
uma quarta dimensao, independente do espaco. Na relatividade, espaco
e tempo se misturam. A expressao matematica desta interdependencia
aparece nas transformacoes de Lorentz. E extremamente difıcil visu-
alizarmos esta interconexao, mas no entanto ela existe, e devemos agora
pensar nao em uma estrutura tridimensional espacial, com o tempo
fluindo separadamente como considera a mecanica classica, mas sim
em uma estrutura quadridimensional, sendo tres dimensoes espaciais e
uma temporal. Chamamos tal estrutura de espaco-tempo.
Na relatividade geral a ideia de forca e abandonada, e substituıda
por geometria! Considere o seguinte exemplo, oferecido por P.C. Davies
e J. Brown (Superstrings. A Theory of Everything?, Cambridge
1988): imagine quatro objetos que caem em queda livre em um campo
gravitacional. Inicialmente, no momento em que sao soltos, os quatro
objetos formam um quadrado no plano vertical, com um dos vertices
apontando para baixo. De acordo com a mecanica classica, como a forca
gravitacional varia com o inverso do quadrado da distancia, o objeto no
vertice mais proximo da Terra sofrera uma forca ligeiramente maior do
que o que se encontra no vertice oposto. Os objetos que se encontram
424
na posicao intermediaria estarao sujeitos a mesma forca, e portanto
manterao suas posicoes relativas. Consequentemente, a medida que
cai, o quadrado e alongado em uma de suas diagonais, tornando-se um
losango. Na relatividade geral entende-se que tal deformacao nao e cau-
sada pela acao da forca gravitacional, mas sim porque o proprio espaco-
tempo possui aquela geometria. E como se os objetos rolassem livre-
mente sobre uma superfıcie do espaco-tempo com determinada forma
geometrica. Com o movimento de um planeta em torno do Sol se da o
mesmo. Para a relatividade geral nao ha forcas atuando sobre o plan-
eta; este se move livremente descrevendo uma trajetoria sobre uma
superfıcie do espaco-tempo, como uma bola de gude que rola sobre
uma mesa (lembre no entanto que a geometria a que nos referimos e
a do espaco-tempo, e nao so do espaco. Embora para nos seja muito
difıcil a visualizacao da situacao, do ponto de vista matematico nao ha
problema algum em se lidar com estruturas multidimensionais).
E como essa geometria aparece? O que determina a forma da orbita
de um planeta ou da trajetoria de um objeto em queda livre na relativi-
dade geral? Resposta: amassa. A massa de planetas, estrelas, galaxias,
etc., e o que cria as distorcoes no espaco-tempo, como se ele fosse
uma folha de papel curvada. Retire a massa do Universo, e nao sobra
nada. Compare o Universo com uma sala mobiliada; mesas, cadeiras,
poltronas, quadros, etc., representam planetas, estrelas, galaxias, etc.
Retire a mobılia da sala; o que sobra? Para Newton, sobraria o espaco
que era antes ocupado pelos objetos. Para Einstein: nao sobra nada. E
como se a propria sala fosse gerada pela mobılia. Deste ponto de vista,
o desvio na trajetoria da luz no experimento de Eddington ocorre sim-
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 425
plesmente porque nas vizinhancas do Sol o espaco-tempo e deformado.
A luz e uma especie de “linha” desenhada sobre a superfıcie espaco-
temporal, deformada pela massa do Sol. Note a mudanca conceitual
dramatica em relacao a mecanica classica. E a marca de Einstein! O
espaco e o tempo, ou melhor, o espaco-tempo, nao e mais uma mera es-
trutura estatica e absoluta dentro da qual os fenomenos da Natureza se
desenrolam, mas sim um objeto fısico, gerado e modificado pela materia
do Universo.
Para a Relatividade Geral, objetos se movem livremente sobre a superfıcie doespaco-tempo, que tem sua geometria determinada pela massa do Universo.
Obviamente embasando esses resultados espetaculares esta muita
matematica. Uma das razoes para a relatividade geral levar dez anos
para ser desenvolvida ate a forma final encontrada por Einstein foram
exatamente as dificuldades matematicas que apareceram ao longo do
caminho. Durante este perıodo, Einstein publicou uma serie de traba-
lhos, cada um deles retratando ou corrigindo algum erro do anterior.
426
Por conta disso, certa vez teria dito sobre si mesmo: o camarada Eins-
tein age de acordo com suas conveniencias. A cada ano corrige o que
disse no ano anterior.
A aceitacao inicial da teoria se deu em grande parte a beleza e
elegancia de sua formulacao matematica. Este e um ponto importante,
mas que em geral nao faz parte do ensino profissionalizante do fısico.
Ha muito de sentido estetico em fısica. Resultados com significados pro-
fundos em geral sao expressos por formulas matematicas simples, como
F = ma, E = mc2, λ = h/p, etc. E o contraste entre a simplicidade e
a abrangencia que causa a sensacao do belo!
Da mesma forma em que a mecanica classica e recuperada da re-
latividade restrita no limite de baixas velocidades, ela tambem o e da
relatividade geral no limite de massas pequenas. Nao poderia ser de
outra forma. A mecanica newtoniana e uma teoria de imenso sucesso,
e obviamente nao esta errada, mas somente limitada. A relatividade
geral de Einstein e uma generalizacao da mecanica classica de Newton
para o limite de massas muito grandes (massas de galaxias), assim como
a relatividade restrita o e para o limite de velocidades muito altas,
proximas a da luz. Podemos entao afirmar que a mecanica newtoniana
e valida sempre que as massas envolvidas no problema nao forem muito
grandes, sempre que as velocidades dos objetos nao forem muito altas,
e ainda, sempre que os objetos nao forem muito pequenos, da ordem
de tamanhos atomicos, pois quem “manda” nesse limite e a mecanica
quantica.
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 427
8.4 Nascimento e Morte das Estrelas:
Buracos Negros
No capıtulo anterior fizemos um breve comentario sobre o ciclo de vida
de uma estrela. Corpos celestes sao formados a partir da atracao grav-
itacional entre partıculas soltas no espaco. A conexao entre uma dada
distribuicao de materia e o campo gravitacional por ela gerado foi esta-
belecida por Einstein sob a forma de um conjunto de dez equacoes na
teoria da relatividade geral. A partir delas o campo gravitacional de
uma dada distribuicao de materia pode ser calculado. Dentre as muitas
solucoes destas equacoes estao aquelas das quais decorrem objetos co-
nhecidos como buracos negros. Nesta secao vamos rever com um pouco
mais de detalhes o ciclo de vida de alguns objetos celestes.
Em uma estrela como o Sol, a materia cria uma compressao gra-
vitacional forte o suficiente para iniciar uma fusao termonuclear que
transforma hidrogenio em helio. Mencionamos tambem no capıtulo an-
terior que o destino final de uma estrela depende de sua massa. Um
fato curioso sobre as estrelas e que as maiores (e mais massivas) vivem
menos do que as menores. Isso ocorre porque quanto maior a massa,
maior a contracao gravitacional, e mais rapida sera a queima do com-
bustıvel nuclear que mantem a estrela “acesa”.
Daqui a uns 5 bilhoes de anos o Sol comecara a se expandir e se
tornara uma gigante vermelha. Apos este perıodo ele comecara a res-
friar e a se contrair, mas nao “acendera” novamente. Ao contrario, se
tornara uma pequena estrela conhecida como ana branca. A massa do
Sol e usada como uma especie de unidade de massa de estrelas. Uma
428
estrela cuja massa seja maior do que 8 vezes a massa do Sol tem um des-
tino diferente. Quando em tais estrelas o hidrogenio acaba, o processo
de contracao continua, queimando o helio, e entao carbono, e entao
silıcio, e finalmente produzindo ferro como o ultimo produto de fusao.
O ferro forma uma especie de nucleo do qual nao e mais possıvel retirar
energia pelo processo de fusao. Este nucleo de ferro entao colapsa sob a
acao da gravidade, fazendo toda a estrela colapsar. A pressao aumenta
tanto que ocorre uma explosao, literalmente despedacando a estrela
e lancando materia e energia no espaco: e o que chmamos de super-
nova. Este fenomeno e comumente observado da Terra. Uma das mais
famosas explosoes de supernova foi observada em fevereiro de 1987.
Pode ocorrer ainda que durante o processo de colapso da massa de
uma estrela com massa da ordem daquela de uma supernova, eletrons
sejam forcados para dentro dos protons, transformando-os em neutrons.
Quando isso ocorre, a estrela se torna estavel. Tera um diametro de
apenas alguns quilometros, mas podera ser tao massiva quanto o Sol.
Esta e chamada uma estrela de neutrons. Estrelas de neutrons podem
girar rapidamente e emitir radiacao eletromagnetica, que e detectada
na Terra sob a forma de pulsos de radiacao. Tal objeto e chamado
um pulsar, e realiza dezenas de rotacoes sao por segundo! Imagine um
objeto tao massivo quanto o Sol girando desse jeito! Pulsares foram de-
tectados pela primeira vez por astronomos ingleses no final dos anos 60.
A regularidade dos pulsos levou-os a pensar que se tratava de uma co-
municacao inteligente extra-terrestre! Atualmente sao conhecidos cerca
de 400 pulsares.
Mas, o objeto mais estranho que pode resultar da vida de uma
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 429
estrela aparece se a sua massa for tal que os proprios neutrons colapsem,
e se transformem numa especie de ponto superdenso. O espaco-tempo
em torno de tal regiao e completamente deformado, em uma especie
de rodemoinho do qual nada que se aproxime o suficiente consegue
escapar, inclusive a luz. Tal objeto e um buraco negro. Enquanto
estrelas de neutrons e pulsares podem ser detectados diretamente por
tecnicas de radioastronomia, buracos negros so podem ser “observados”
indiretamente atraves de seus efeitos gravitacionais.
A primeira evidencia da existencia de um buraco negro apareceu em
1970, atraves da observacao de uma fonte de raios-X em um sistema
binario chamado Cygnus X-1. Essas observacoes revelaram a existencia
de um objeto com raio comparavel ao de uma estrela de neutrons (pul-
sar) e uma massa da ordem de 8 a 10 vezes a massa do Sol. Acredita-se
que exista um buraco negro neste sistema a cerca de 8, 2×103 anos-luz
da Terra. Astrofısicos e cosmologos estimam que 108 (100 milhoes) de
buracos negros se formaram no Universo, um deles estando no centro
da nossa galaxia.
Resumindo: uma estrela e uma especie de fabrica cosmica de e-
lementos pesados. Pense nisso: somos feito de material produzido no
interior das estrelas! O ciclo da vida de uma estrela comeca com a
queima de hidrogenio em helio, e o seu destino final depende de sua
massa. Elas podem se transformar em gigantes vermelhas e entao
em anas brancas, ou em supernovas. Podem ainda virar estrelas de
neutrons ou buracos negros.
430
8.5 Novos Desafios a Relatividade
A despeito de seu enorme sucesso, a relatividade geral carece de testes
experimentais, o que e mortal para qualquer teoria fısica (mesmo as
de Einstein!). Os testes mencionados nas secoes anteriores (deflexao da
luz, deslocamento para o vermelho, e precessao do perielio de Mercurio)
foram os unicos realizados ate hoje, mais de 80 anos apos a publicacao
da teoria. Esta situacao contrasta com a da relatividade restrita, que
foi testada milhares de vezes, ate que niguem mais duvidasse, por ex-
emplo, de que E = mc2. Pior ainda para a relatividade geral, ao longo
dos anos teorias alternativas surgiram e foram capazes de prever a ex-
istencia dos mesmos fenomenos previstos por Einstein. A unica maneira
de distinguir (e decidir) qual a melhor teoria, e realizando experimentos.
Este e um ponto particularmente dramatico para teorias de gravitacao,
pois os experimentos envolvem galaxias inteiras! Muitas das teorias
alternativas a relatividade geral puderam ser descartadas atraves de
experimentos que testaram certas previsoes teoricas que nao estao con-
tidas na teoria de Einstein. No entanto, descartar teorias alternativas
nao e suficiente para corroborar a relatividade geral. E preciso testa-la
diretamente!
Com esse intuito, a Universidade de Stanford e a NASA vem de-
senvolvendo o mais ambicioso projeto experimental deste seculo para
testar a relatividade geral. Ele e chamado de GPB, sigla em ingles para
Gravity Probe B, que poderıamos traduzir por Sonda Gravitacional B.
A ideia e simples na sua concepcao, porem imensamente complexa na
sua realizacao. O experimento se utiliza do fenomeno de precessao
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 431
de um giroscopio em um campo gravitacional, conhecido por qualquer
crianca que ja brincou de piao! Um piao possui dois movimentos: um
de rotacao em torno de seu eixo, e outro de precessao em torno do
campo gravitacional. Vamos nos referir a rotacao como sendo o “spin”
do piao (nao confundir com o ‘spin’ intrınseco de partıculas, discutido
no capıtulo tres). A precessao e causada pelo torque do campo gravita-
cional sobre o spin. Curiosamente, o fenomeno e analogo a precessao
de spins nucleares em torno de um campo magnetico (capıtulo seis).
A velocidade angular de precessao de um piao, Ω, e proporcional a
razao entre a aceleracao da gravidade g, e a frequencia angular de spin
ω:
Ω ∝ g
ω
Quanto mais rapida for a rotacao, ou seja, quanto maior for ω, mais
lenta sera a precessao, e vice-versa. Quem ja brincou de piao tambem
ja notou esse fato. A medida em que o piao vai parando, a precessao
aumenta cada vez mais. Por outro lado, na ausencia de gravidade, ou
seja g = 0, o piao nao apresentara movimento de precessao. Note que se
tivessemos um meio de medir Ω, ω e outras quantidades relacionadas
ao movimento do piao, terıamos uma maneira de medir a aceleracao
da gravidade no local onde o piao se encontra. Este e o espırito do
experimento GPB: utilizar o movimento de um giroscopio para medir
efeitos gravitacionais previstos pela relatividade geral!
A fim de se medir efeitos relativısticos, e preciso eliminar do experi-
mento outros efeitos nao-relativısticos. Por “nao-relativısticos” entenda-
se aqueles efeitos que podem ser explicados exclusivamente pela mecanica
432
classica, como por exemplo o torque do campo gravitacional sobre o
piao. Em outras palavras, deve-se isolar o que e genuinamente rela-
tivıstico. Essa demanda cria problemas serios para o experimento, uma
vez que no Sistema Solar a relatividade geral fornece resultados prati-
camente identicos aos da mecanica classica (pois as massas envolvidas
nao sao suficientemente grandes!). A dificuladade deve ser contornada
com muita imaginacao!
Um giroscopio e colocado em um satelite orbitando a cerca de 600
km de altura em torno da Terra. A esta altitude, a aceleracao da gravi-
dade e muito menor do que na superfıcie da Terra, o que virtualmente
elimina o efeito de precessao causado pela gravidade terrestre sobre o
piao.
A verificacao de dois efeitos previstos na relatividade geral sera
paticularmente buscada no experimento GPB. Difıcil e apontarmos
qual o mais bizarro: o arraste do espaco-tempo, ou o efeito gravito-
magnetico. O primeiro foi previsto em 1918 por W. Lense, e H. Thirring.
Eles calcularam que a rotacao de um corpo massivo deveria “arrastar”
consigo o proprio espaco-tempo. Tal efeito, causado pelo movimento
de rotacao da Terra, seria extremamente pequeno, porem grande o
suficiente para ser percebido pelos giroscopios do experimento GPB.
O segundo e uma especie de analogo entre o campo magnetico e o
campo eletrico, como descreveu o fısico americano John Wheeler. Men-
cionamos no capıtulo um que campos eletricos em movimento geram
campos magneticos. Algo semelhante ocorreria com o campo gravita-
cional: o seu movimento geraria o efeito gravito-magnetico.
Os “pioes” utilizados no experimento (em numero de quatro) sao,
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 433
por si so, pecas de arte e tecnologia. Eles consistem de esferas per-
feitas de quatzo, revestidas de material supercondutor (capıtulo seis).
Quando postos a girar em torno de um eixo, o supercondutor da origem
a um momento magnetico chamado de momento de London, em hom-
enagem a Fritz London, um dos primeiros estudiosos da supercon-
dutividade. Como vimos no capıtulo seis, momentos magneticos sao
grandezas proporcionais a momentos angulares. Entao, variacoes nos
momentos angulares, causadas pelas alteracoes gravitacionais locais,
serao captadas atraves das respectivas variacoes dos momentos magneticos
de London dos pioes. Essa aparente complicacao se faz necessaria, pois
e muito mais simples a deteccao de variacoes em momentos magneticos
(que geram sinais eletricos), do que em momentos angulares!
A implementacao de tal experimento, como da para perceber, de-
safia a imaginacao nao so dos melhores escritores de ficcao cientıfica do
seculo, como tambem de tecnicos, fısicos e engenheiros envolvidos no
projeto. O uso de supercondutores implica que os giroscopios precisam
ser mantidos a baixas temperaturas; o fato de as medidas serem re-
alizadas observando-se variacoes minusculas dos momentos magneticos
das esferas (e nao dos momentos angulares correspondentes), implica na
necessidade de blindagens das esferas dos efeitos do campo magnetico
da Terra, etc. As variacoes nos momentos magneticos serao medidas
usando-se aparelhos extremamente sensıveis conhecidos como SQUIDs
(sigla em ingles para Superconducting Quantum Interferometer Device
- Interferometro Quantico de Supercondutores). As esferas devem ser
posicionadas de modo a manterem seus momentos alinhados com o eixo
de um telescopio que aponte para estrelas distantes fixas, fornecendo
434
assim um sistema de referencia, em relacao ao qual as variacoes serao
medidas. E vai por aı afora. O experimento foi classificado por um dos
cientistas-chefes como o “mais desafiador ja realizado pela NASA”. E
aguardar para ver!
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 435
PAINEL XVI
RELATIVIDADE E IMPOSTURAS INTELECTUAIS
As ciencias humanas e sociais (sociologia, filosofia, psicologia, etc) muitas vezes
buscam inspiracao nos conceitos das ciencias exatas para aplica-los aos fenomenos
sociais e mentais, e tentar compreender melhor estes complexos fenomenos. Embora
a princıpio esta iniciativa possa parecer saudavel, dado o enorme sucesso das ciencias
exatas, particularmente da fısica, autores famosos tem “escorregado” na hora de
fazer a transposicao de uma area de conhecimento para outra. Varios destes deslizes
foram compilados em um livro chamado “Imposturas Intelectuais”, de Alan Sokal
e Jean Bricmont [Ed. Record (1999)] onde os autores criticam severamente figuras
eminentes com o peso de Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Felix Guattari, Paul
Virilio, etc. Particularmente atingida por estas “imposturas” estao as relatividades
(especial e geral). Abaixo transcrevemos alguns trechos do livro de Sokal e Bricmont.
Se o amigo leitor nao compreender o que eles significam, nao se preocupe, pois de
acordo com os autores de “Imposturas Intelectuais” nao ha muito o que compreender
mesmo.
I. Estas lutas contra privilegios na economia ou na fısica sao lit-
eralmente, e nao metaforicamente, as mesmas [. . . ] Quem ira se bene-
ficiar com o envio de todos estes observadores para plataformas, trens,
raios de luz, Sol, estrelas proximas, elevadores acelerados, confins do
cosmos? Se o relativismo estiver correto, cada um deles se beneficiara
tanto quanto os outros. Se correta estiver a relatividade, apenas um
deles (isto e, o enunciador, Einstein ou algum outro fısico) sera capaz
de juntar num unico lugar (seu laboratorio, seu escritorio) os docu-
mentos, relatos e medicoes transmitidos por todos os seus enviados.
[Bruno Latour - Extraıdo de “Imposturas Intlectuais, Alan Sokal e
Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]
II. Algumas vezes a constante-limite surge ela propria como uma
relacao no conjunto do universo, ao qual todas as partes sao sujeitas
436
sob uma condicao finita (quantidade de movimento, forca, energia...).
Novamente, e preciso que haja sistemas de coordenadas, aos quais os
termos da relacao se referem: este e pois um segundo significado do
limite, um enquadramento exterior ou uma exorreferencia. Pois os
protolimites, externos a todas as coordenadas, geram inicialmente ab-
scissas de velocidades sobre as quais serao erguidos eixos coordenaveis.
Uma partıcula tera uma posicao, uma energia, uma massa, um valor
de spin, porem com a condicao de receber uma existencia ou uma at-
ualidade fısica, ou de “aterrissar” em trajetorias que podem ser cap-
tadas pelos sistemas de coordenadas. Sao esses primeiros limites que
constituem a desaceleracao no caos ou o limiar de suspensao do in-
finito, que servem de endoreferencia e operam uma contagem: nao
sao relacoes, apenas numeros, e toda teoria das funcoes depende de
numeros. Sera invocada a velocidade da luz, o zero absoluto, o quan-
tum da acao, o big-bang: o zero absoluto da temperatura e de -273,15
graus centıgrados, a velocidade da luz, 299.796 quilometros por se-
gundo, onde as distancias se contraem a zero e os relogios param.
Tais limites nao tem o valor empırico que assumem somente dentro
dos sistemas de coordenadas; agem primeiramente como a condicao
de desaceleracao primordial, que se estende com relacao ao infinito
sobre toda a escala das velocidades correspondentes, sobre suas acel-
eracoes ou desaceleracoes condicionadas. Nao e somente a diversi-
dade desses limites que nos habilita a duvidar da vocacao unitaria da
ciencia. Na verdade, cada limite gera por si so sistemas de coorde-
nadas heterogeneas irredutıveis, e impoe limiares de descontinuidade,
dependendo da proximidade ou distanciamento da variavel (por ex-
emplo o distanciamento das galaxias). A ciencia esta obcecada nao
por sua propria unidade, mas pelo plano de referencia constituıdo por
todos os limites ou fronteiras sob as quais a ciencia enfrenta o caos.
Sao estas fronteiras que dao ao plano suas referencias. No que diz re-
speito ao sistema de coordenadas, eles povoam ou guarnecem o proprio
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 437
plano de referencia. [Deleuze e Guattari - Extraıdo de “Imposturas
Intlectuais, Alan Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]
III. Como podemos entender plenamete tal situacao senao com a
aparicao de um novo tipo de intervalo, O INTERVALO TIPO LUZ
(sinal nulo)? A inovacao relativista deste terceiro intervalo e real-
mente em si mesma um tipo de revelacao cultural nao-observada.
Se o intervalo de TEMPO (sinal positivo) e o intervalo de ESPACO
(sinal negativo) dispuseram a geografia e a historia do mundo atraves
da geometrizacao das areas agrarias (parcelamento) e das areas ur-
banas (o sistema cadastral), a organizacao dos calendarios e a me-
dida do tempo (os relogios)igualmente presidiram uma vasta regula-
mentacao cronopolıtica das sociedades humanas. O recentıssimo surg-
imento de um intervalo de terceiro tipo sinaliza, portanto, para nos um
brusco salto quantitativo, uma profunda mutacao no relacionamento
entre o homem e seu meio ambiente.
TEMPO (duracao) e ESPACO (extensao) sao inconcebıvei sem
LUZ (limite-velocidade), a constante cosmologica da VELOCIDADE
DA LUZ. . .
[Paul Virilio - maiusculas no original. Extraıdo de “Imposturas Intlectuais, Alan
Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]
438
8.6 O Universo teve um Inıcio?
A Grande Explosao
Em 1923 o astronomo americano Edwin Hubble fazia medicoes da luz
emitida por galaxias distantes, e comparava com a luz emitida pelos
mesmos tipos de atomos em laboratorios na Terra. Ele verificou que o
comprimento de onda da luz emitida pelas galaxias era deslocado em
direcao ao vermelho. Desta observacao ele chegou a conclusao que as
galaxias estavam se afastando da Terra com uma velocidade igual a
v = Hd
onde d e a distancia da galaxia a Terra e H o chamado parametro de
Hubble, que vale:
H = 67km/s
Mpc
onde Mpc e uma unidade de distancia utilizada em astronomia chamada
megaparsec. Para entender esta unidade, precisamos entender primeiro
o que e o ano-luz. 1 ano-luz e a distancia percorrida pela luz em 1
ano. E facil calcular este valor em quilometros: como a velocidade da
luz e de aproximadamente 3 × 108 m/s, e 1 ano possui 3 × 107 s, 1
ano-luz equivale a uma distancia de 9 × 1015 ≈ 1016 metros, ou 1013
km (10 trilhoes de quilometros). Agora, 1 pc (1 parsec), e igual a
3,16 anos-luz; e finalmente 1 Mpc e igual a 1 milhao de parsec. Ou
seja: 1 Mpc = 3, 26 × 106 anos-luz, ou seja, cerca de 1019 km (10 mil
quatrilhoes de quilometros). A constante de Hubble nos diz que se
uma galaxia se encontra a uma distancia da Terra igual a 1 Mpc, ela
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 439
se afastara com uma velocidade de 67 km/s. Se a distancia for de
10 Mpc, a velocidade de afastamento sera de 670 km/s. Para efeitos
de comparacao, a velocidade orbital da Terra em torno do Sol e de
aproximadamente 29 km/s.
Esta foi uma das descobertas mais significativas do seculo XX, com
profundas implicacoes nao somente para a Fısica, mas para a Filosofia,
em particular para a Teologia3. A razao e simples: se as galaxias se
afastam umas das outras, e porque o Universo esta se expandindo. Con-
sequentemente em algum instante remoto do passado, toda a materia
do Universo deveria estar concentrada em um so ponto. Ou seja, o Uni-
verso foi criado em algum instante, estimado em cerca de 15 bilhoes
de anos atras. O quadro que se tem deste momento da criacao do
Universo tornou-se conhecido como a Grande Explosao (ou o “Big
Bang”). Ele nao deve contudo ser visto como uma explosao ordinaria,
porque o proprio espaco-tempo estava sendo criado neste momento.
Uma das questoes mais intrigantes e precisamente para onde se da tal
expansao. Algumas vezes comparamos a situacao com a de uma bola
sendo enchida, as galaxias sendo representadas como pontos sobre a
superfıcie da bola, que se afastam a medida que aumenta a sua area
superficial. A medida em que ocorre a expansao, o espaco-tempo vai
sendo criado.
Os elementos constituintes da materia foram sendo criados a me-
3A Fısica do seculo XX fez a festa dos filosofos e deve ter confundido a cabeca demuitos teologos. Primeiro acabou com o absolutismo do espaco e do tempo com arelatividade. Depois acabou com o determinismo classico com a mecanica quantica.Nos colocou como senhores absolutos de nossa propria existencia com a explosao daprimeira bomba atomica. Depois, com a radioastronomia descobriu que o Universonao era eterno, e que houve um “inıcio absoluto”. O que mais vira por aı?!
440
dida em que o Universo se expandia e se resfriava. Nucleos atomicos
apareceram quando o Universo tinha apenas 3 minutos de idade. Nao
havia ainda eletrons em torno dos nucleos, ou seja, nao havia atomos.
De fato, os cosmologos sao capazes de calcular o numero de nucleos
que foram formados durante esses 3 primeiros minutos e comparar com
resultados experimentais. Essas comparacoes tem reforcado a teoria do
Big Bang. Atomos so foram formados a partir de 500 mil anos apos o
Big Bang.
Uma outra importante evidencia a favor da teoria do Big Bang foi
a observacao, em 1964, pelos radio-astronomos Arno Penzias e Robert
Wilson da chamada radiacao de fundo do Universo. Trabalhando com
aparelhos de deteccao de microondas, Penzias e Wilson detectaram on-
das eletromagneticas que chegam a Terra por todos os lados. Esta
radiacao foi interpretada como o calor que “sobrou” da energia libe-
rada apos o Big Bang. Ela corresponde a uma temperatura de ape-
nas 2,7 K (abaixo da temperatura de liquefacao do helio!). O estudo
dessa chamada radiacao de fundo pode ajudar a compreender como
o Universo surgiu, quando e como as galaxias se formaram, etc. Em
1992 o telescopio COBE (Cosmic Background Explorer), da agencia
espacial americana, NASA, detectou flutuacoes extremamente peque-
nas na radiacao de fundo: o telescopio media um temperatura de
2,7281 K quando apontado para uma determinada direcao, e 2,7280
K quando apontado para outra. Note a precisao da medida! Essa
diferenca de apenas 1 decimo de milesimo de graus Kelvin esta asso-
ciada a uma possıvel diferenca na densidade da materia do Universo
em seus primordios, e e fundamental para entendermos o surgimento
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 441
das galaxias. Estudar a radiacao de fundo, e portanto olhar para o
Universo como ele era ha bilhoes de anos atras!
8.7 O Universo tera um Fim?
O Grande Colapso
A ideia de que o Universo teve um inıcio sugere a pergunta obvia se
ele tera um fim. Em outras palavras, o Universo continuara se ex-
pandindo para sempre, ou em algum momento a expansao cessara e
o movimento reverso comecara a ocorrer? Se isso acontecer, toda a
materia do Universo sera novamente comprimida em um ponto. Os
fısicos se referem a essa situacao como o Grande Colapso. A resposta
para essa pergunta depende da massa total do Universo. Se esta for
grande o suficiente a reversao ocorrera e em algum ponto do futuro
o Universo colapsara. Por outro lado, se a massa nao for suficiente,
o Universo continuara se expandindo para sempre. No jargao da cos-
mologia um Universo que se expande para sempre e chamado de aberto,
e um que se expande e depois se contrai de fechado. Existe ainda uma
terceira categoria entre o aberto e o fechado, que e o Universo plano.
Um Universo plano tambem se expande para sempre. A massa do
Universo calculada da teoria do Big Bang corresponde a um Universo
plano, ou seja, nem fechado nem aberto. Acontece que a massa que e
observada atualmente pelos astronomos corresponde a apenas 10% da
massa total esperada. Os outros 90% que nao se veem sao chamadas
de materia escura do Universo (dark matter), uma especie de “sombra
com substancia”. Uma das questoes mais importantes da cosmologia
442
na atualidade e saber do que e feita a materia escura, e existem varios
possıveis candidatos, com siglas estranhas: os WIMPs (Weakly Inter-
acting Massive Particles - partıculas massivas com fraca interacao); os
axions, partıculas com pequena massa produzidas durante a transicao
dos quarks para barions; e os MACHOS4, objetos massivos compactos
que incorporam anas-brancas, planetas e buracos negros.
Existe ainda um outro candidato bizarro a materia escura: as cor-
das cosmicas. Estas foram propostas em 1976 pelo fısico ingles Iom
Kibble, e seriam relıquias do Big-Bang. Tratam-se de tubos de energia
extremamente finos e longos, com diametro da ordem daquele de um
nucleo atomico, porem com comprimentos que se estendem por todo o
Universo. Cada centımetro desta corda pesaria milhoes de vezes mais
que o Monte Everest. Devido a sua incrıvel densidade e dimensoes as-
tronomicas, tais objetos agregariam em torno de si enorme quantidade
de materia sob a forma de aglomerados galacticos.
Por fim, os neutrinos sao os mais serios candidatos a materia escura,
ou pelo menos boa parte dela. Estes abundam no Universo, propagam-
se a velocidades altıssimas e interagem muito fracamente com a materia.
Seja la qual for a sua natureza, a quantidade de materia escura
no Universo e o que determinara em ultima instancia o seu destino:
se houver materia suficiente, a atracao gravitacional interrompera a
expansao causada pelo Big Bang, e o Universo iniciara seu longo retorno
ate o Grande Colapso.
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
4Por enquanto ainda nao descobriram partıculas chamadas FEMEAS.
CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 443
1. Estamos Descobrindo Efeitos Antigravitacionais?, Jose Antonio de FreitasPacheco, vol. 3, no. 15, p 20.
2. Novas Teorias do Cosmo, Mario Novello, vol. 1, no. 3, p. 54.
3. A Teoria do Big Bang e o Deuterio do Meio Interestelar, Jose Antonio deFreitas Pacheco, vol. 2, no. 7, p. 22.
4. Nascimento, Vida e Morte das Estrelas, Augusto Damineli Neto, vol. 1, no.2, p. 10.
5. Formacao de Galaxias: uma Teoria em Crise, Ivano Damiao Soares, vol. 13,no. 75, p. 11.
6. Nebulosas Planetarias de nossa Galaxia, Walter Junqueira Maciel, vol. 30,no. 18, p. 11.
7. Galaxias em Grupos Compactos, Claudia Mendes de Oliveira, vol. 14, no.79, p. 8.
8. Qual a Origem das Galaxias?, Mario Novello e Hans Heintzmann, vol. 4, no.24, p. 16.
9. Gravitacao e Relatividade em Debate, Mario Novello, vol. 6, no. 31, p. 72.
10. Duplas Imagens de Lentes Gravitacionais, Ronaldo Santos Barbieri, vol. 6,no. 31, p. 18.
11. Manchas Estelares, Carlos Alberto P.C. Oliveira Torres, vol. 2, no. 9, p.42.
12. A Materia do Universo, Jose Antonio de Freitas Pacheco, vol. 13, no. 74,p. 8.
13. O Poder dos Buracos Negros, Jose P.S. Lemos, vol. 13, no. 74, p. 12.
14. Vento Solar e Ventos Estelares, Jose Antonio de Freitas Pacheco, vol. 1,no. 1, p. 54.
15. Supernova em NGC5128, Francisco Jablonski e Rodrigo Prates Campos,vol. 5, no. 26, p. 12.
16. A Genese do Big Bang, Antonio Augusto Passos Videira, vol. 25, no. 145,p. 36.
17. Ha uma Galaxia Gigante a Nossa Porta, Renee C. Kraan-Kortweg, vol. 20,no. 117, p. 44.
18. A Prova Cearence das Teorias de Einstein, Jean Eisenstardt e AntonioAugusto Passos Videira, vol. 20, no. 115, p. 24.
19. O Destino das Estrelas, Jose P.S. Lemos, vol. 17, no. 97, p. 42.
444
Resumo - Capıtulo Oito
A Teoria da Relatividade Geral foi publicada por Einstein em 1916,dez anos apos a publicacao da Relatividade Restrita. Nesta teoria Eins-tein estende a descricao dos fenomenos fısicos para sistemas nao inerciais(ou seja, acelerados). O Princıpio de Equivalencia postula que e im-possıvel distinguirmos sistemas uniformemente acelerados de camposgravitacionais. As duas consequencias principais deste princıpio sao odesvio da luz por campos gravitacionais e o deslocamento da frequencia(e consequentemente mudanca da energia) de fotons em campos gravita-cionais. Ambas previsoes foram confirmadas experimentalmente inumerasvezes. Outro resultado importante da relatividade geral foi a explicacaoda precessao do perielio de Mercurio. Ao incluir campos gravitacionais,a relatividade geral tornou-se uma teoria de gravitacao, aperfeicoando agravitacao newtoniana que existia ha 300 anos. A relatividade geral de-screve o movimento de objetos, nao em termos da acao de forcas, comona mecanica classica, mas em termos de trajetorias descritas sobre a su-perfıcie do espaco-tempo. A geometria do espaco-tempo e determinadapela distribuicao de massas no Universo. Ou seja, o espaco e o temponao sao estruturas absolutas e estaticas como na teoria newtoniana, masobjetos fısicos em si, gerados pela materia do Universo. Acredita-se queo Universo teve inıcio com uma grande explosao que ocorreu ha cerca de15 bilhoes de anos atras. Esta explosao, conhecida como o ‘Big Bang’,gerou nao so a materia do Universo, mas tambem o espaco-tempo. Nosdias de hoje uma das principais evidencias de que tal explosao ocorreue a chamada ‘radiacao de fundo’ do Universo, o calor que restou do BigBang. O destino do Universo dependera da massa total que nele existe.Se esta for grande o suficiente, a atracao gravitacional acabara por freara expansao causada pelo Big Bang, e o Universo iniciara uma contracaoate o Grande Colapso. Caso contrario, ele se expandira para sempre.
Chapter 9
O Sonho da Unificacao
Ha alguns anos atras, Stephen Hawking disse que talvez o fim da fısica
teorica estivesse proximo. Eu acho que ele estava se referindo aos re-
centes sucessos na tentativa de unificar a fısica dentro de um unico
sistema descritivo. Parece uma afirmativa bastante provocativa. O que
voce acha disso, tendo gasto uma vida tentando unificar certos aspectos
da fısica?
Eu gastei uma vida nisso, e por toda a vida vi pessoas acreditando
que a resposta estava logo ali na esquina. Mas nunca funcionou. Ed-
dington pensava que com a mecanica quantica tudo seria simples, e
fez suposicoes sobre tudo, porque pensava que tudo era simples, mas
pensou errado. Einstein pensava que tinha uma teoria unificada nas
maos, mas nao sabia nada sobre nucleos, e obviamente nao podia adi-
vinhar. Hoje existem varias coisas que ainda nao sao compreendidas,
e mesmo assim as pessoas acham que estao proximas da resposta. Mas
eu acho que nao. (Richard Feynman em Superstrings. A Theory of
Everything?, P.C.W. Davies e J. Brown, Cambridge 1995)
445
446
9.1 As Quatro Damas da Criacao
O que uma bola rolando ladeira abaixo tem a ver com um aviao voando,
um giroscopio em movimento, ou a orbita da Terra em torno do Sol?
Simples: tratam-se de movimentos mecanicos e portanto podem ser
todos descritos a partir da mesma equacao
F = ma
Imagine se para cada um desses fenomenos existisse uma lei fısica
diferente! A segunda lei de Newton os unifica sob a mesma categoria.
Sendo assim, tudo que temos a fazer e escrever corretamente para cada
um deles a expressao de forca do lado esquerdo desta equacao e resolve-
la, para conhecermos tudo sobre o movimento.
Agora, o que um raio de luz tem a ver com a emissao de partıculas
beta por nucleos radiativos, ou com a atracao da Lua pela Terra? A
luz e um fenomeno eletromagnetico, partıculas beta sao emitidas por
nucleos pela acao da interacao fraca, e a Lua e atraıda pela Terra atraves
da acao da forca gravitacional. Aparentemente esses sao fenomenos
cujas origens fısicas sao completamente desconexas. Ou sera que eles
podem ser unificados em um nıvel mais fundamental?
Todos os fenomenos da Natureza sao provocados por apenas quatro
interacoes: a forte, a eletromagnetica, a fraca, e a gravitacional, assim
listadas em ordem de intensidade decrescente. Protons e neutrons den-
tro de nucleos sao mantidos juntos pela interacao forte. A interacao
fraca e a responsavel pelos processos de decaimento beta nos nucleos
atomicos. Uma maca que cai ou um planeta que se move respondem a
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 447
acao da forca gravitacional. Uma onda eletromagnetica que se propaga,
como a luz ou ondas de radio, ou as reacoes quımicas que ocorrem den-
tro dos neuronios nos nossos cerebros sao devidas a interacoes eletro-
magneticas. E assim por diante. Um fato importante a ser lembrado
e que dessas quatro interacoes somente a gravitacional tem um carater
universal, ou seja, atua sobre toda a materia, independentemente da
carga, ou qualquer outra propriedade. A interacao eletromagnetica,
por exemplo, tem sua origem na carga eletrica, e portanto nao atua
sobre partıculas neutras, como por exemplo os neutrons.
Mas, porque a Natureza escolheu quatro, e nao cinco, ou tres, ou
dez, interacoes fundamentais? Ou ainda, porque nao somente uma?
Imagine se pudessemos descrever essas quatro interacoes como ori-
ginarias de uma unica entidade fısica; uma unica interacao ou forca
fundamental da qual todos os fenomenos da Natureza derivariam. E o
sonho da unificacao!
Os fısicos acreditam que de fato esta unificacao ja existiu durante
os primeiros instantes do Universo. Na medida em que este foi se ex-
pandindo e se resfriando apos o Big Bang, as interacoes fundamentais
foram se separando umas das outras. Como veremos abaixo a acao
entre corpos que interagem via uma ou mais dessas forcas se da atraves
de determinadas partıculas. Por exemplo, a interacao eletromagnetica
entre duas cargas ocorre via uma “troca” de fotons, que sao os “men-
sageiros” do campo eletromagnetico. O fato de que as quatro forcas
estiveram unificadas no inıcio do Universo estabelece uma interessante
conexao entre a Cosmologia e a Fısica de Partıculas, e nos leva a ques-
tionar se as condicoes do Universo apos o Big Bang poderiam ser repro-
448
duzidas em aceleradores de partıculas na Terra! Falaremos mais sobre
isso na secao 9.4. A tabela abaixo, parcialmente compilada do interes-
sante livro de James Trefil, 1001 Things Everyone Should know
about Science(1001 Coisas Sobre Ciencia que Todos Deveriam Saber)
(Doubleday 1992), resume a evolucao do Universo em seus primeiros
10 bilhoes de anos. Mais a direita, entre parenteses, sao mostradas as
temperaturas do Universo em cada momento.
10−43 segundos - separacao da gravitacao das outras forcas (1032
oC)
10−36 segundos - interacao forte se separa (1029 oC)
10−10 segundos - interacoes fraca e eletromagnetica se separam (1016
oC)
10 microssegundos - partıculas sao formadas (1014 oC)
3 minutos - formacao de nucleos de atomos leves (1010 oC)
500 mil anos - atomos sao formados (105 oC)
100 milhoes de anos - quasares sao formados (104 oC)
10 bilhoes de anos - estrelas e galaxias sao formadas (102 oC)
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 449
.
Nos primeiros instantes apos o Big Bang as quatro interacoes fundamentais da Na-tureza estavam fundidas em uma so. Na medida em que o Universo foi se resfriando,elas se separaram.
9.2 Newton:
Unificacao do Ceu com a Terra
Newton nasceu no ano em que Galileu morreu. Antes de Galileu nao
existia ciencia, na concepcao moderna do termo. Galileu pagou um
preco alto por ter desafiado o mito aristotelico, a “ciencia” oficial, im-
posta pela Inquisicao durante toda a Idade Media. Seus dois grandes
trabalhos foram o Dialogo sobre os dois Principais Sistemas do Mundo,
de 1632, e os Discursos sobre duas novas Ciencias de 1638. Foi Galileu
quem introduziu a ideia de modelo, onde a linguagem da fısica deve ser
a matematica e, que na medida do possıvel, os modelos teoricos devem
450
ser testados em experimentos de laboratorio.
Newton por sua vez costumava dizer que se conseguira enxergar tao
longe e porque havia subido sobre ombros de gigantes como Galileu.
O metodo cientıfico iniciado por Galileu foi levado ao seu extremo por
Newton, e resultou no Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,
onde a primeira grande unificacao da fısica e feita. De fato, a Gravitacao
Universal de Newton unifica a fısica do Ceu com a fısica da Terra.
Objetos celestes se movem de acordo com as mesmas leis que governam
a simples queda de uma maca na superfıcie da Terra.
A obra de Newton e dividida em tres livros, e e no Livro III onde ele
aplica as leis de movimento ao sistema solar, incluindo o movimento da
Lua, o problema das mares, o movimento dos planetas em torno do Sol,
etc. E neste livro onde Newton enuncia as suas Regras para o estudo da
Filosofia Natural, abaixo transcritas do livro de Pierre Lucie (Fısica
Basica. Mecanica 1, Campus 1979):
Regra 1 - Nao se devem admitir outras causas dos
fenomenos naturais alem das verdadeiras e suficientes para
explicar os fenomenos.
Regra 2 - Os efeitos de mesma natureza devem ser sem-
pre atribuıdos a mesma causa, no que possıvel for.
Regra 3 - As qualidades dos corpos, que sao suscetıveis
de acrescimo ou decrescimo e que pertencem a todos os cor-
pos com os quais e possıvel experimentar, devem ser con-
sideradas como pertencentes a todos os corpos em geral.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 451
Tivesse Newton enunciado essas regras com cem anos de antecedencia,
certamente teria virado torresmo em alguma fogueira!
A teoria da gravitacao de Newton, hoje com 300 anos, causa grande
admiracao. Ela teve tambem um profundo efeito sobre o proprio New-
ton. Tendo tido uma educacao religiosa, escreveu ao final da obra:
Essa ordenacao admiravel do Sol, dos planetas e dos
cometas so pode ser obra de um Ser todo-poderoso e in-
teligente. . .
Esse Ser infinito governa tudo, nao como a alma do
mundo, mas como Senhor de todas as coisas. . .A dominacao
de um Ser espiritual e obra de Deus. . . e fala-se que Ele se
alegra, se encoleriza, ama, odeia, deseja, constroi, fabrica,
aceita, da, porque tudo que se diz de Deus procede da com-
paracao com as coisas humanas. . .
E isso o que eu tinha a dizer de Deus e suas obras cons-
tituem o objeto da Filosofia Natural. . .
Nao consegui ainda deduzir dos fenomenos a razao das
propriedades da gravitacao e nao finjo hipoteses. Pois tudo
o que nao se deduz dos fenomenos e uma hipotese: e as
hipoteses, sejam elas metafısicas ou fısicas, ou mecanicas,
ou de qualidades ocultas, nao tem lugar na Filosofia Expe-
rimental. Nessa Filosofia, as proposicoes sao deduzidas dos
fenomenos e a seguir generalizadas por inducao. (Pierre
Lucie, Fısica Basica. Mecanica 1, Campus 1979)
452
9.3 Maxwell:
Unificacao da Eletricidade com o Mag-
netismo
e com a Otica Fısica
A segunda grande unificacao da fısica ocorre com Maxwell, tendo como
principais predecessores o ingles Michael Faraday e o dinamarques Chris-
tian Oersted. Esses dois ultimos descobriram conexoes entre a eletri-
cidade e o magnetismo. O famoso experimento de Oersted e muito
simples, e pode ser realizado em casa com um pedaco de fio, pilhas
grandes e uma pequena bussola. Passando uma corrente eletrica pelo
fio, o ponteiro da bussola se move. Ou seja, a corrente eletrica gera no
espaco um campo magnetico.
O experimento de Faraday demonstra a mesma conexao, mas de
maneira oposta: um fio formando um circuito fechado atraves do qual
se faz mover um ıma, gera uma corrente eletrica. E a variacao temporal
do fluxo magnetico atraves do circuito que gera a corrente. Maxwell
formalizou essas descobertas em linguagem matematica, escrevendo um
conjunto de quatro equacoes, uma obra de arte conhecida na fısica por
equacoes de Maxwell. Nas equacoes de Maxwell, eletricidade e entao
unificada ao magnetismo. Mais espetacular ainda e o fato de que a
partir dessas equacoes deduz-se que campos eletromagneticos podem
se propagar como uma onda, sendo a sua velocidade constante e igual
a c, a velocidade da luz. Ou seja, a luz entra para a categoria dos
fenomenos eletromagneticos. A partir daı tudo passa a ser uma questao
de comprimento de onda! Otica e eletromagnetismo passam assim a ser
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 453
regidos pelas mesmas leis.
Essas sao as duas grandes unificacoes da Fısica Classica. O advento
da mecanica quantica levou a descoberta de uma enormidade de novos
fenomenos e a uma compreensao muito mais profunda sobre os proces-
sos de interacao entre partıculas na Natureza. A mecanica quantica
abriu caminho para novas unificacoes.
9.4 Partıculas Elementares:
A Ducha Cosmica
A descoberta da estrutura atomica com seus protons, neutrons e eletrons,
com o fenomeno da radioatividade, deixaram claro duas coisas: (1) o
atomo nao e indivisıvel, e (2) o atomo nao e o constituinte elementar da
materia. Este segundo ponto e particularmente importante, e tem sido
debatido por cientistas desde os tempos de Democrito: afinal, do que
e feita a materia? Protons e neutrons possuem estrutura interna, ou
seja, sao construıdos de objetos mais simples. E esses objetos, sao por
sua vez simples ou tambem possuem alguma estrutura interna? Existe
uma partıcula fundamental da qual toda a materia deriva?
A descoberta da radioatividade na virada do seculo XX atraiu a
atencao de muitos cientistas. Ao final da primeira decada, partıculas
emitidas por nucleos radiativos podiam ser detectadas com facilidade.
Um fato estranho que logo atraiu a atencao dos fısicos da epoca era que
os aparelhos de deteccao registravam a presenca de partıculas mesmo
quando nao havia fontes radioativas por perto! De onde estariam vindo
essas partıculas? Experimentos mostraram que em qualquer lugar elas
454
estavam presentes, mesmo quando os detectores eram blindados!
Em 1910 um fısico (e tambem padre jesuıta) chamado Theodor Wulf
descobriu algo notavel. Ele mediu esta radiacao misteriosa do alto da
torre Eiffel em Paris e verificou que havia mais radiacao do que era es-
perado. O padre-cientista entao imaginou que o unico lugar de onde a
misteriosa radiacao poderia estar vindo era do espaco. Ou seja, a origem
da radiacao misteriosa era extraterrestre! Assim foram descobertos os
hoje chamados raios cosmicos. Wulf entao sugeriu que o experimento
poderia ser realizado de dentro de baloes, que a grandes altitudes dev-
eriam registrar radiacao ainda mais intensa.
Wulf nao foi corajoso o suficiente para subir em baloes ele mesmo,
mas entre 1911 e 1912 o austrıaco Victor Hess fez varias medicoes a
altitudes de ate 5 mil metros. O padre estava certo! Acima de 1000
metros a radiacao cosmica se torna muito intensa, e a 5 mil metros
ela e cerca de 5 vezes maior do que ao nıvel do mar. Hess concluiu
que a Terra e constantemente bombardeada por partıculas que vem do
espaco, e que sao fortemente atenuadas pela atmosfera terrestre. Con-
tudo, ninguem ainda conhecia a natureza dessa radiacao. No inıcio
pensou-se que os raios cosmicos eram partıculas gama de alta energia.
Robert Millikan, do California Institute of Technology (Instituto Tec-
nologico da California), Caltech, sugeriu que a suposta radiacao gama
era originaria das reacoes de fusao que ocorrem nas estrelas.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 455
.
A Terra e permanentemente bombardeada por “partıculas extraterrestres” alta-mente energeticas. Ao penetrarem na atmosfera, essas partıculas decaem em outrasgerando uma verdadeira ducha: sao os raios cosmicos.
Em 1923 um passo decisivo foi dado por Dmitry Skobeltzyn traba-
lhando em Leningrado. Ele resolveu colocar seu detector de partıculas
entre os polos de um ıma para se livrar dos eletrons que eram pro-
duzidos quando os supostos gamas atingiam as paredes do detector.
Lembre do capıtulo um que um campo magnetico desvia a trajetoria
de partıculas carregadas como o eletron. Quando atingiam o detector,
os supostos raios gama arrancavam eletrons das suas paredes inter-
nas, que acabavam por mascarar a observacao das partıculas extrater-
restres. Aplicando entao um campo magnetico, Skobeltzyn pensou que
se livraria assim dos indesejaveis eletrons. O detector utilizado era uma
camara de Wilson (veja Painel XVII), onde a presenca da partıcula e
acusada por um rastro deixado ao longo de sua trajetoria. Alem das tra-
456
jetorias dos eletrons de que Skobeltzyn queria se livrar, havia alguns
tracos quase retos indicando a presenca de partıculas altamente en-
ergeticas. Contudo, Skobeltzyn continuou ainda achando que se tratava
de eletrons arrancados das paredes do detector pelos raios cosmicos.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 457
XVII
A CAMARA DE WILSON
O princıpio de funcionamento da camara de Wilson e semelhante ao efeito que leva
os avioes que voam muito alto deixarem um rastro no ceu. Aqueles rastros aparecem
devido a condensacao de vapores de agua em torno da turbina do aviao, deixando
assim um desenho da sua trajetoria no ceu. A invencao de Wilson foi utilizada nos
primeiros experimentos de deteccao de partıculas subatomicas.
Charles Wilson era um jovem fısico que estudava fenomenos atmosfericos em
um observatorio meteorologico em 1894. A fim de reproduzir certos efeitos em
laboratorio, ele decidiu construir uma camara que pudesse encher com vapor de
agua. A camara continha um pistao com o qual ele controlava a pressao dentro dela.
Ao expandir subitamente o volume do recipiente, o gas se resfriava produzindo uma
nevoa dentro da camara. Durante esses experimentos Wilson notou a formacao
de tracos no vapor de agua. Ele sabia que os tracos estavam se formando em
torno de “alguma coisa”, que ele concluiu se tratar de partıculas carregadas que
atravessavam a camara. Posteriormente ele repetiu os experimentos atravessando
partıculas alfa e beta pelo aparelho, confirmando as suas previsoes. Era a primeira
vez que partıculas subatomicas se tornavam “visıveis”. Os experimentos foram
realizados no Laboratorio Cavendish, em Cambridge, na Inglaterra. Pelo seu invento
Wilson recebeu o Premio Nobel de Fısica de 1927.
458
Em 1930 Carl Anderson, aluno de Millikan no Caltech, teve uma
ideia: colocou uma folha de chumbo atravessada na camara a fim
de frear essas partıculas de alta velocidade. Com isso ele esperava
que as partıculas emergindo do outro lado da folha tivessem uma ve-
locidade menor, e poderiam assim ser melhor defletidas pelo campo
magnetico. O resultado foi outro momento magico da historia da fısica.
As partıculas foram defletidas em uma direcao contraria a dos eletrons,
ou seja, elas eram na verdade carregadas positivamente1. Mas havia
algo bizarro: o raio da trajetoria revelava uma partıcula com a mesma
massa que a dos eletrons. Ou seja, tratava-se de uma especie de “eletron
positivo”. Era a primeira observacao do positron. Estava assim fundada
a Fısica de Partıculas.
O positron e uma das partıculas que formam a chamada antimateria.
Este nao e, convenhamos, um nome muito feliz, porque sugere que an-
timateria seja algo contrario a materia. Uma partıcula de antimateria
e identica a uma de materia, sendo a unica diferenca entre elas a carga
eletrica. Cada partıcula de materia possui sua contrapartida de an-
timateria. A existencia do positron havia sido prevista teoricamente
em 1927 pelo fısico britanico Paul M. Dirac, o homem que inventou a
mecanica quantica relativıstica. Portanto, o resultado de Anderson foi
outro grande triunfo das fısicas teorica e experimental!
A fısica de partıculas se desenvolveu enormemente, e grande parte
da historia da fısica neste seculo, e de fato a historia da fısica de
partıculas. Centenas de partıculas foram descobertas. Uma delas tem
1Lembre do Cap. 1 que para direcoes fixas dos vetores v e B, a direcao da forcade Lorentz e determinada pelo sinal da carga: F = qv ×B.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 459
um significado especial para nos brasileiros, o pıon, que esta associado
ao nome de Cesar Lattes, fısico brasileiro, um dos fundadores do Centro
Brasileiro de Pesquisas Fısicas (CBPF).
460
PAINEL XVIII
VIDA E OBRA DE CESAR LATTES2
Cesare Mansueto Giulio Lattes, ou simplesmente Cesar Lattes, e curitibano nascido
a 11 de julho de 1924. Sua carreira cientıfica teve enormes repercussoes para o
desenvolvimento da fısica no Brasil. Seu trabalho mais importante foi feito com
Giuseppe Occhialini e Cecil Powell durante a decada de 40 sobre partıculas e-
lementares. Primeiramente eles expunham chapas fotograficas altamente sensıveis
a 2.800 metros de altitude nos montes Pirineus. A ideia era de que partıculas da
radiacao cosmica penetrassem nas chapas, e a partir dos tracos deixados pudessem
ser identificadas. Posteriormente Lattes expos chapas fotograficas a 5.600 metros
de altitude no Monte Chacaltaya, na Bolıvia, e a partir da sua analise confirmou
a existencia do meson-π. A participacao de Lattes tambem foi decisiva para o
sucesso dos primeiros experimentos que produziram essas partıculas no laboratorio
Lawrence Berkeley, na California, marcando o inıcio da fısica de aceleradores.
A repercussao internacional do trabalho de Lattes resultou no Brasil na criacao
do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas (CBPF), hoje um dos institutos de pesquisa
do Ministerio da Ciencia e Tecnologia, localizado no Rio de Janeiro. Durante mea-
dos dos anos 50, trabalhando nos Estados Unidos, Lattes foi convidado a substituir
Enrico Fermi na chefia do Instituto de Fısica da Universidade de Chicago, tendo
contudo recusado o posto. Criou na Universidade de Sao Paulo (USP) um labo-
ratorio para o estudo da radiacao cosmica, e participou da criacao da Universidade
de Campinas. Deu varias outras contribuicoes importantes para a fısica, e recebeu
varios premios e honrarias.
2Veja o livro Cesar Lattes, a descoberta do meson π e outras historias, Eds. F.Caruso, A. Marques e A. Troper, CBPF (1999).
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 461
Mas, o que isso tudo tem a ver com a unificacao das quatro in-
teracoes fundamentais? Calma, o Brasil (ainda) e nosso! Nos vamos
chegar la!
Partıculas sao classificadas de acordo com seus atributos fısicos,
como a carga e a massa. Nos ja vimos um tipo de classificacao se-
gundo o spin, no capıtulo tres. Partıculas com spin semi-inteiro sao
fermions, e aquelas com spin inteiro sao bosons. De acordo com a massa,
as partıculas sao divididas em leptons - as mais leves, como eletrons,
positrons e neutrinos; os mesons - de massa intermediaria, como o pıon,
e os hadrons - partıculas pesadas, como protons e o neutrons3.
Os leptons sao considerados partıculas elementares, ou seja, que nao
possuem estrutura interna. Ao contrario, os mesons e hadrons nao sao
elementares, mas sim formados a partir de partıculas ainda menores
chamadas de quarks. Quarks possuem spin 1/2, e portanto tambem
sao fermions. Cada quark possui um antiquark associado. Hadrons sao
formados por combinacoes de quarks, de duas maneiras possıveis: na
primeira 3 quarks se combinam, de modo que o spin total da partıcula
formada sera 1/2 ou 3/2. S = 1/2 significa que dois dos tres quarks
possuem spins antiparalelos, e S = 3/2 significa que os tres spins sao
paralelos. Qualquer que seja a combinacao, a uniao de 3 quarks resulta
sempre em um fermion. A segunda opcao e a combinacao de um quark
com um antiquark, e neste caso o resultado e um boson, com S = 1
(spins paralelos) ou S = 0 (spins antiparalelos). Quanto a sua massa,
a partıcula formada neste caso e um meson.
3Uma tendencia mais atual e classificar os leptons como aquelas partıculas quenao sentem a interacao forte.
462
Resumindo: partıculas sao classificadas de acordo com sua massa
em leptons, mesons e hadrons. Leptons sao partıculas elementares,
ou seja, nao possuem estrutura interna. Mesons sao formados por um
quark e um antiquark, e portanto sao bosons. Hadrons sao formados
por tres quarks, e portanto sao fermions.
Mesons sao formados por um quark e um antiquark, e portanto sao bosons. Hadronssao formados por tres quarks e portanto sao fermions.
Existe outra coisa importante a ser dita acerca dos quarks. Con-
sidere um hadron como o proton. Ele possui spin 1/2 e carga +e. O
spin do proton, de acordo com o que foi dito acima, deriva da com-
binacao dos spins de dois quarks que se alinham antiparalelamente e
se anulam, restando apenas o spin de 1 quark. Mas, e com relacao a
carga do proton, como explica-la em termos da carga dos quarks? E
um fato que e e a carga elementar, ou seja, a unidade fundamental de
carga. Para 3 quarks se combinarem e dar origem a um proton com
carga igual a e, a carga de cada um deles deveria ser e/3, ou seja, uma
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 463
fracao da carga elementar. Acontece que, ate hoje, nunca uma partıcula
foi observada com tal valor de carga, caso contrario a carga elementar
nao seria elementar! A maneira de contornar o problema e dizer que
os quarks nunca podem ser observados separadamente. Ou seja, eles
estao sempre “grudados” uns nos outros formando mesons e hadrons.
Nos referimos a esta situacao como o confinamento dos quarks. Quarks
so existem confinados, e nao podem ser observados isoladamente.
Chegamos portanto a uma conclusao importante: como os quarks
sao fermions, e os leptons tambem, os “blocos fundamentais” da materia
sao os fermions. Assim, nao existe uma unica partıcula da qual toda
a materia deriva, mas uma “categoria”, os fermions, que forma toda a
materia4.
Vamos agora examinar um importante boson fundamental: o quan-
tum da radiacao eletromagnetica, o foton. Ele possui spin 1 e carga
zero. Quando dizemos por exemplo que cargas eletricas se repelem de
acordo com a lei de Coulomb, nada esta sendo afirmado a respeito do
mecanismo de repulsao (ou atracao). O mesmo ocorre com os planetas:
o Sol atrai a Terra de acordo com a lei da gravitacao de Newton. Mas
qual o mecanismo? As expressoes matematicas
F = GmM
r2ou F =
1
4πε0
r2
simplesmente descrevem a dependencia funcional da forca com as mas-
sas (ou cargas) e a distancia entre os objetos interagentes. Elas nos4Aqui uma observacao importante: de acordo com a sua massa, quarks deveriam
ser classificados como leptons. Mas, se classificarmos os leptons como partıculasque nao sentem a interacao forte, quarks nao podem ser classificados como tal.A partıcula “mensageira” da interacao forte e o gluon. Quarks ligam-se entre sitrocando gluons.
464
dizem de quanto a forca varia quando as massas, cargas, ou distancias
variam. Nada afirmam sobre como a interacao se propaga de um objeto
ao outro.
Aqui entram os bosons. Segundo a mecanica quantica dos campos
eletromagneticos, uma carga eletrica interage com outra carga eletrica,
a atraindo ou repelindo, via troca de fotons. Ou seja, o foton e uma
especie de mensageiro da interacao eletromagnetica. Veja como essa
ideia e interessante, e possui um aspecto unificador poderoso: uma
partıcula carregada interage com outra partıcula carregada, trocando
partıculas de campo. Nao so a materia e feita de partıculas funda-
mentais, mas tambem as interacoes entre objetos materiais! Nesta
perspectiva, tudo o que existe sao partıcula: fermions interagindo com
fermions atraves de bosons formam tudo o que existe! No capıtulo seis
vimos algo semelhante na materia condensada, onde as interacoes en-
tre atomos, eletrons e spins se da atraves de fonons, magnons, etc, que
tambem sao partıculas de interacao dentro da materia.
As outras interacoes fundamentais tambem possuem suas partıculas
associadas. No caso do campo gravitacional a partıcula e o graviton,
no caso da interacao forte sao os gluons os mensageiros de campo, e no
caso da interacao fraca existem 3 partıculas mensageiras, chamadas de
W+, W− e Z0.
9.5 Unificacao Eletrofraca
A interacao eletrofraca unifica as interacoes eletromagnetica e fraca.
A chamada teoria eletrofraca foi alcancada por Sheldon Lee Glashow,
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 465
Abdus Salam e Steven Weinberg, que foram agraciados com o Nobel
de 1979. No Brasil, o nome de Jose Leite Lopes, um dos fundadores
do CBPF, esta associado a propostas que foram importantes para o
desenvolvimento da teoria eletrofraca.
Um exemplo de processo envolvendo o boson W− e o decaimento
beta de um neutron em um proton. A teoria eletrofraca de Glashow-
Weinberg-Salam postula que a altas energias as interacoes eletromagnetica
e fraca sao equivalentes; partes de uma mesma teoria. Nesta situacao
as partıculas mensageiras da interacao seriam partıculas sem massa.
A baixas energias, contudo, como por exemplo no processo de decai-
mento de um neutron em um proton, esta equivalencia entre as in-
teracoes eletromagnetica e fraca deixa de existir (dizemos que ha uma
quebra de simetria), e as partıculas mensageiras, que a altas energias
nao possuem massa, tornam-se os bosons W± e Z0.
466
PAINEL XIX
VIDA E OBRA DE JOSE LEITE LOPES
Jose Leite Lopes, com Cesar Lattes, e um dos nomes mais importantes da
ciencia do Brasil no seculo XX. Nascido no Recife no dia 28 de outubro de 1918,
ingressou no Curso de Fısica da Faculdade Nacional de Filosofia, do Rio de Janeiro
em 1940. Em 1944 seguiu para os Estados Unidos para fazer o doutoramento
na prestigiada Universidade de Princeton, onde trabalhavam na epoca Wofgang
Pauli e Albert Einstein, tendo recebido o tıtulo de Ph.D em 1946. Em 1949, com
Lattes, fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas, para logo depois retornar
a Princeton como pesquisador, a convite de J.R. Oppenheimer. Em 1958 realizou
importante trabalho sobre a natureza da interacao fraca, onde varios resultados
foram confirmados posteriormente na teoria de Glashow, Weinberg e Salam. Foi
professor da Universidade de Orsay, na Franca, entre 1964 e 1967, e depois diretor
do Instituto de Fısica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Retornou a
Franca em 1970 a convite da Universidade de Estrasburgo, onde permaneceu ate
1985. Atualmente e Pesquisador Titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 467
A teoria eletrofraca faz diversas previsoes, entre as quais os valores
das massas dos bosons W± e Z0. Em fısica de partıculas e costume
expressar as massas das partıculas nao em unidade de massa (kg), mas
em unidade de energia (eV). Para isso basta multiplicar a massa da
partıcula por c2, o quadrado da velocidade da luz. Nesta unidade, a teo-
ria eletrofraca preve os seguintes valores para as massas das partıculas
da interacao:
mW c2 = 82 GeV
mZc2 = 93 Gev
onde ‘GeV’ significa gigaeletronvolts, o equivalente a bilhoes de eletron-
volts. A vantagem de se expressar a massa de uma partıcula em
unidades de energia reside no fato de que o valor obtido nos da direta-
mente uma ideia da energia necessaria para produzı-la em laboratorio.
Em termos de unidades de massa, as partıculas acima sao aproximada-
mente 100 vezes mais pesadas que o proton! Veja que coisa estranha: o
decaimento de um neutron em um proton envolve uma partıcula men-
sageira que e 100 vezes mais pesada que o proprio neutron! E a equi-
valencia entre massa e energia descoberta por Einstein que da origem
a esse tipo de coisa.
As primeiras evidencias da existencia das partıculas W± e Z0 apare-
ceram em 1983 em experimentos realizados no CERN por um time de
cientistas liderados pelo fısico italiano Carlo Rubbia. As partıculas nao
sao detectadas diretamente, mas atraves dos seus produtos de decai-
mento mostradas a seguir:
W± → e± + ν
468
Z0 → e+ + e−
Dos resultados experimentais eles obtiveram os seguintes valores de
massa para os bosons da interacao eletrofraca:
mW c2 = 80, 8 ± 2, 7 GeV
mZc2 = 92, 9 ± 1, 6 Gev
Bingo! Os resultados experimentais estao de pleno acordo com as pre-
visoes da teoria eletrofraca de Glashow-Weinberg-Salam. Resultado:
unificacao das interacoes fraca e eletromagnetica confirmada, e Carlo
Rubbia embolsando o Estocolmo de 1984.
9.6 E Possıvel Recriar o Universo em um
Laboratorio?
Partıculas elementares podem ser criadas em maquinas chamadas acel-
eradores de partıculas. Um acelerador possui algumas semelhancas com
um simples tubo de televisao, onde eletrons sao emitidos de um fila-
mento e acelerados por uma tensao eletrica atraves do tubo ate atin-
gir a tela do aparelho. Em um acelerador, partıculas altamente en-
ergeticas sao lancadas contra alvos. A ideia e que ao colidir com o alvo,
a partıcula literalmente se despedaca, e sua estrutura interna e reve-
lada. Desse modo teorias sobre partıculas elementares e suas interacoes
podem ser testadas. Por exemplo, no experimento de Carlo Rubbia um
feixe de protons foi acelerado a uma energia de 270 GeV e feito colidir
com um feixe de antiprotons (a antipartıcula do proton), tambem a
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 469
270 GeV. Com essa energia o proton e o antiproton se despedacaram
deixando “escapar” os bosons W± e Z0 previstos pela teoria eletrofraca.
A fısica de partıculas estuda os produtos de colisoes entre partıculas altamenteenergeticas, e a partir deles tenta descobrir a estrutura interna das partıculas quecolidiram.
O projeto de um acelerador depende do uso a que ele se destina.
Eles sao classificados, de acordo com sua energia, em aceleradores de
baixa, media ou alta energia. Os de baixa energia produzem feixes de
partıculas entre 10 e 100 MeV e sao em geral utilizados em estudos
de reacoes nucleares ou espalhamento. Aceleradores de media energia
operam na faixa de 100 a 1000 MeV (1000 MeV = 1 GeV). Colisoes
de protons e neutrons com energias dessa ordem sao capazes de liberar
mesons π, a partıcula associada a interacao forte nos nucleos. Tais
aceleradores sao em geral usados no estudo da natureza desta interacao.
Aceleradores de alta energia, por sua vez, operam acima de 1 GeV e
produzem partıculas elementares. E mais ou menos como quebrar um
470
daqueles relogios suıcos, cheios de pecinhas e engrenagens delicadas.
Se dermos uma pancada fraquinha, quebraremos somente o mostrador.
Com uma pancada mais forte, alem do mostrador quebraremos tambem
os ponteiros. Mas se batermos com muita forca, o relogio se despedaca.
Catamos entao as delicadas pecinhas espalhadas pelo chao, e tentamos
adivinhar como elas estavam montadas e funcionando no relogio antes
da pancada ser dada!
Partıculas carregadas sao aceleradas quando atravessam diferencas
de potencial eletrico. O primeiro acelerador eletrostatico foi construıdo
em 1932 por Cockcroft e Walton; ele gerava potenciais da ordem de
800 kV. Com este acelerador foi produzida a primeira reacao de desin-
tegracao nuclear mostrada abaixo:
p +7 Li →4 He +4 He
Os primeiros aceleradores eletrostaticos evoluiram para os chama-
dos geradores de Van de Graaff, onde um eletrodo e continuamente
carregado ate produzir tensoes eletricas de milhoes de volts. Essa tec-
nologia tem produzido aceleradores que operam acima de 20 milhoes
de volts, e feixes de ıons com energias na faixa de dezenas a centenas
de MeV.
Em aceleradores eletrostaticos as partıculas sao aceleradas em um
unico estagio. Os chamados aceleradores cıclotron apresentam uma al-
ternativa. A partıcula carregada e acelerada em um anel circular, e a
cada volta recebe um acrescimo de energia cinetica atraves de um pe-
queno aumento de uma diferenca de potencial eletrostatico, desse modo
alcancando energias da ordem de MeV. Em um acelerador deste tipo a
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 471
partıcula orbita dentro de uma especie de camara circular dividida em
duas metades. Um campo magnetico e aplicado perpendicularmente ao
plano da camara de modo a curvar a trajetoria da partıcula. Uma volt-
agem eletrica e aplicada no hiato que separa as duas metades, de modo
que a cada volta da partıcula ela recebe um aumento de energia cinetica.
Para que o mecanismo funcione, e necessario que a tensao eletrica seja
aplicada em exato sincronismo com o movimento da partıcula. Este
ganho de energia ocasiona um aumento do raio da orbita da partıcula,
cujo valor maximo dependera das caracterısticas da maquina. Na orbita
de raio maximo, a energia cinetica da partıcula sera dada por:
T =q2B2R2
2m
onde q e a carga da partıcula, B o valor do campo magnetico, R o
raio da orbita maxima, e m e a massa da partıcula. Esta formula
mostra que para aumentarmos a energia da partıcula temos que au-
mentar o raio de sua orbita, e consequentemente as dimensoes do acel-
erador. Obviamente aumentar as dimensoes do acelerador significa au-
mentar o tamanho do magneto utilizado para mante-la. Atualmente
cıclotrons podem acelerar partıculas a energias da ordem de 500 MeV.
Uma maquina de 1 GeV teria um custo absurdo, principalmente devido
a construcao do magneto. Alternativas tiveram que ser encontradas.
472
.
Nos aceleradores cıclotrons, partıculas carregadas sao aceleradas em trajetorias cir-culares antes de colidirem. O raio da orbita aumenta com a energia da partıcula.
Os chamados sıncrotrons vieram solucionar (parcialmente) o pro-
blema. Ao contrario dos cıclotrons, as partıculas nos sıncrotrons pos-
suem uma trajetoria com raio fixo. Ao inves de um unico magneto,
um acelerador sıncrotron utiliza varios magnetos que desviam a orbita
da partıcula em secoes. A energia da partıcula e, como no caso dos
cıclotrons, aumentada a cada volta atraves da aplicacao de um campo
eletrico em um hiato, em sincronia com o movimento.
Partıculas sao injetadas no anel de um acelerador sıncrotron atraves
de um acelerador linear. As primeiras maquinas apareceram no inıcio
dos anos 50 e podiam gerar feixes de partıculas com varias centenas de
MeV. Os dois principais aceleradores deste tipo atualmente no mundo
estao no CERN, que e um laboratorio conjunto de varios paıses eu-
ropeus, localizado em Genebra, Suıca, e no FERMILAB (Fermi Na-
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 473
tional Accelerator Laboratory) em Chicago, nos Estados Unidos. O
acelerador do CERN e chamado de SPS (Super Proton Synchrotron).
Ele acelera protons a energias de 400 GeV. Partıculas sao injetadas no
anel do acelerador com uma energia de 26 GeV. O diametro do anel e de
2,2 km, e atravessa a fronteira entre a Suıca e a Franca. Foi no CERN
que a teoria da interacao eletrofraca foi confirmada experimentalmente.
Nos sıncrotrons o raio da trajetoria da partıcula acelerada e fixo. O anel de umsıncrotron e seccionado em varios campos magneticos que mantem as partıculas emsuas trajetorias.
O acelerador do FERMILAB possui um diametro de 2 km, e pode
acelerar partıculas a estonteantes energias de 1000 GeV, ou 1 TeV (=
teraeletronvolts = trilhao de eletronvolts). Ele e conhecido como um
tevatron. Nao so a energia do acelerador e exuberante, mas todos os
numeros ligados a atividade cientıfica que ali se desenrola: sao mais de
2000 empregados, cerca de 1000 fısicos de mais de 200 paıses e, quando
em completa operacao, consome cerca de 60 megawatts de eletricidade,
474
o suficiente para alimentar uma cidade com 175 000 habitantes. O
acelerador opera abaixo do chao. Acima dele existe uma rodovia para
facilitar o deslocamento de um lado ao outro do anel. Cerca de 1013
protons por minuto circulam dentro de tubos de aco inox com diametro
de cerca de apenas 10 cm. Nada menos que 2000 magnetos sao utiliza-
dos na operacao do feixe.
Espera-se que entre em funcionamento no CERN uma nova geracao
de aceleradores ate 2005: o LHC (Large Hadron Collider), e o NLC
(New Lepton Collider). O primeiro sera utilizado em experimentos
de colisao do tipo proton-antiproton, e o segundo em experimentos do
tipo eletron-positron. Essas maquinas operarao com energias na faixa
de TeV e varias previsoes teoricas poderao ser verificadas, como por
exemplo, a existencia de um verdadeiro zoologico de novas partıculas
com massas entre 400 GeV e 1 TeV: o selectron, o squarks, o fotino
(fermion massivo e neutro, parceiro do foton), o Z-ino, o W±-ino e o
gluıno. Santo Deus!
Nessas maquinas, partıculas serao aceleradas e feitas colidir umas
contra as outras. Devido as altas energias alcancadas, espera-se nesses
experimentos produzir, em uma regiao ınfima do espaco, a situacao
do Universo no momento da sua criacao. Em outras palavras, estes
experimentos visam “recriar” o Universo em um laboratorio de fısica,
e revelar a estrutura das interacoes fundamentais tais como elas eram
ha 15 bilhoes de anos atras!
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 475
PAINEL XX
O LABORATORIO NACIONAL DE LUZ SINCROTRON
O Brasil tambem possui um acelerador sıncrotron, que e utilizado na pesquisa
em Materia Condensada, e nao em Fısica de Partıculas. O LNLS (Laboratorio
Nacional de Luz Sıncrotron) localiza-se em Campinas, no estado de Sao Paulo, e
as primeiras discussoes a respeito do projeto de sua construcao foram realizadas no
Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.
O acelerador e um anel armazenador de eletrons. Quando acelerados em orbitas
circulares, eletrons emitem um tipo de radiacao chamada de luz sıncrotron. Esta
radiacao e utilizada para a investigacao das propriedades fısicas de diferentes tipos
de materiais, a nıvel atomico e molecular. Exemplos de aplicacoes sao estudos
de processos de corrosao e fadiga em estruturas metalicas, estudo de propriedades
magneticas de novos materiais, estudo de catalisadores para a industria petroquımica,
estudo das propriedades de polımeros, semicondutores, etc.
O LNLS e o unico laboratorio deste tipo no Hemisferio Sul. Ele foi inteiramente
projetado, desenvolvido e e operado por cientistas, engenheiros e tecnicos brasileiros.
476
9.7 Gravitacao: outra Pedra no Caminho!
Os fısicos acreditam que a interacao gravitacional se separou das outras
forcas quando o Universo tinha apenas 10−43 segundos de idade. Nao e
difıcil perceber que as energias envolvidas a esta altura da vida do Uni-
verso estao completamente alem da capacidade de qualquer acelerador
de partıculas que possa ser construıdo na Terra! Estima-se em 1019 GeV
a energia necessaria para tornar visıvel a unificacao da gravitacao com
as outras forcas (lembre que o mais potente acelerador no momento e
o do FERMILAB com seus “meros” 103 GeV).
Mas a gravitacao possui outros problemas fundamentais que estao
deixando os fısicos “carecas”. Por um lado, em uma escala cosmologica,
existe a teoria de Einstein da relatividade geral. A despeito de sua
elegancia e consistencia interna, esta teoria esta necessariamente incom-
pleta. A razao e que ela nada diz sobre efeitos quanticos5. A tentativa
de conciliacao entre a mecanica quantica e a relatividade geral tem sido
o “ganha-pao” de muita gente inteligente pelo mundo afora, mas ate
agora sem sucesso. As primeiras tentativas apareceram de fato poucos
anos apos a publicacao da relatividade geral por Einstein em 1916. Um
matematico alemao chamado Theodor Kaluza reformulou a teoria de
Einstein em 5 dimensoes (4 espaciais e 1 temporal) ao inves de 4 (3
espaciais e 1 temporal), e como resultado obteve nao so as equacoes
de Einstein da gravitacao, mas tambem as de Maxwell do eletromag-
netismo! O problema da teoria de Kaluza e que ela vai de encontro a
propria relatividade, que afirma que vivemos em um mundo quadridi-
5Talvez porque Einstein fosse um forte opositor a teoria quantica!
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 477
mensional e nao pentadimensional! Em 1926 o fısico sueco Oscar Klein
veio com uma saıda no mınimo estranha, mas muito criativa. Ele disse
que nos nao percebemos a suposta “quinta dimensao” postulada na teo-
ria de Kaluza simplesmente porque ela esta dobrada (ou compactada)
sob a forma de um tubo com o diametro incrivelmente pequeno, de
10−32 metros! A teoria de Kaluza-Klein foi na epoca considerada uma
mera curiosidade matematica.
478
PAINEL XXI
O MODELO PADRAO
O modelo teorico que descreve as famılias de partıculas elementares existentes
e suas interacoes e conhecido entre os fısicos como o Modelo Padrao. As partıculas
de materia sao os leptons e os quarks. Existem ao todo seis leptons. Alem do
ja conhecido eletron, os outros leptons sao: o muon, o tau, e tres neutrinos. Os
quarks tambem aparecem em numero de seis, e possuem nomes esquisitos: o up,
o down, que formam protons e neutrons, e os outros: o strange, o charm, o botton
e o top. Ate 1995, cinco dos seis quarks haviam sido detectados em experimentos
com aceleradores, exceto o top. A razao para isso e a sua massa, muito maior do
que a massa das outras partıculas. O top foi finalmente produzido no FERMILAB
por um time de centenas de cientistas, tecnicos e engenheiros. A descoberta contou
com a participacao de varios brasileiros vinculados ao Laboratorio de Altas Energias
(LAFEX) do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.
A descoberta do top quark foi de tremenda importancia, porque confirmou as
previsoes do Modelo Padrao, reforcando nossas ideias sobre os elementos constitu-
intes da materia e suas interacoes. Alem disso, o top quark pode ajudar a esclarecer
uma questao ainda muito mais fundamental, e que ainda nao sabemos responder:
porque afinal de contas a massa existe, e de onde ela aparece?
O top quark aparece de colisoes entre protons e antiprotons que sao acelerados
uns contra os outros. A cada colisao, dezenas de partıculas sao criadas, uma delas
podendo ser um top quark. A deteccao nao e feita diretamente, mas atraves dos pro-
dutos de decaimento do top, e a proporcao dos eventos que indicam a sua presenca
em relacao a todos os outros e somente de um para varios bilhoes! As partıculas
criadas deixam tracos de suas trajetorias, que sao analisadas por programas de
computadores que tentam “garimpar” a presenca do top.
A despeito de seu sucesso, os fısicos comecam a ter razoes para acreditar que o
Modelo Padrao nao e - ainda - a suprema teoria da materia. O modelo preve que
os tres neutrinos associados ao eletron, ao muon e ao tau nao possuem massa de
repouso (do mesmo modo que o foton). O ano de 1998 pode vir a ser lembrado como
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 479
aquele em que esta crenca foi por terra - e com ela o Modelo Padrao! Em junho deste
ano, pesquisadores americanos e japoneses apresentaram evidencias experimentais
de que neutrinos podem ter massa. Esta massa seria somente algo entre 0,01 e
0,1 eV (para efeitos de comparacao, a massa de repouso do eletron e de 500 mil
eV). Mas como para cada eletron existem 600 milhoes de neutrinos (neste exato
momento voce esta sendo atravessado por trilhoes deles!) uma pequena massa de
0,1 eV seria suficiente para explicar uma boa parte da massa “invisıvel” do Universo
(a chamada materia escura, ou dark matter, em ingles). Essas descobertas recentes
jogam nova luz e injetam novo animo na Fısica de Partıculas.
480
9.8 Teorias de Tudo
A despeito das enormes dificuldades em se formular uma teoria que
unifique as forcas da Natureza, os fısicos (pelo menos grande parte de-
les) seguem firmes na crenca de que um dia isso sera possıvel. Nesta
pretensao, tudo o que existe seria derivado de um unico princıpio. A
fısica teorica teria entao chegado de fato ao seu objetivo supremo: uma
teoria de tudo. E preciso entender que tal teoria nao necessariamente
seria capaz de reproduzir ou prever detalhes experimentais de sistemas
fısicos particulares, como por exemplo, o movimento de uma ameba.
O que se entende por uma teoria de tudo e uma teoria que aglutinasse
em um so princıpio todas as forcas da Natureza. Como afirmou Leon
Lederman, ex-diretor do FERMILAB, esta unificacao deveria ser ex-
pressa por uma simples formula matematica que voce poderia usar na
sua camiseta!
Indicacoes de que tal superteoria poderia ser de fato formulada
apareceram somente no inıcio dos anos 80. A historia comeca, contudo,
no final dos anos 60, quando Gabrielle Veneziano estudava a interacao
forte entre hadrons produzidos em aceleradores. Para explicar dados
experimentais, Veneziano propos um modelo em que as partıculas nao
eram vistas como pequenos objetos localizados no espaco, mas como
pequenas cordas vibrantes. Essa ideia, que esta claramente em con-
traste com todas as teorias fısicas ate entao formuladas em termos de
partıculas localizadas, inicialmente nao chamou muito a atencao. A
partir dos anos 70, contudo, com o trabalho principalmente de John
Schwartz e Michael Green a ideia de representar a materia como cor-
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 481
das vibrantes ganhou forca e se transformou no esquema de unificacao
mais promissor ja alcancado pelos fısicos, principalmente por incluir o
graviton, a partıcula mensageira do campo gravitacional. Tal e a teoria
de supercordas (ou superstrings). Nesta teoria partıculas sao represen-
tadas pelos modos de vibracao dessas cordas. E como se cada partıcula
fosse uma “nota musical” em um instrumento de cordas. Controversa,
e ainda cheia de dificuldades conceituais, a teoria chamou a atencao de
grandes nomes da fısica teorica contemporanea, dividindo as opinioes.
Para terminar esse capıtulo (e o livro!) transcrevemos o depoimento de
algumas figuras centrais envolvidas no problema, compilados do livro
de P.C.W. Davies e J. Brown Superstrings. A Theory of Every-
thing?.
O que seriam essas cordas? Devemos imaginar partıculas como
eletrons ou quarks como feitas de cordas que existem dentro delas? Se-
riam aneis, ou algo assim?
John Schwartz (Professor de Fısica do Caltech) - Bem, eu expres-
saria isso um pouco de forma diferente. Uma corda pode vibrar e oscilar
de maneiras diferentes. Cada uma dessas maneiras pode ser vista como
um tipo de partıcula diferente. Ou seja, o eletron e um modo normal
de vibracao da corda, um quark e um outro, o graviton outro, etc.
Entao nao devemos mais pensar no mundo como feito de partıculas,
mas de pequenas cordas que oscilam?
Edward Witten (Instituto de Pesquisas Avancadas de Princeton)
- Certo. Quando pensamos em partıculas, devemos lembrar que desde
o advento da mecanica quantica, tudo no mundo passou a ser visto
482
como um pouco incerto, um pouco “borrado”. Na teoria de cordas,
essas partıculas “borradas” sao substituıdas por pequenas cordas.
Qual o tamanho dessas cordas?
A corda que corresponde ao eletron possui cerca de somente 10−33
centımetros de comprimento, e portanto e infinitamente menor do que
um atomo.
A teoria de supercordas se transformara em uma Teoria de Tudo?
Michael Green (Professor de Fısica, Queen Mary College - Lon-
dres) - Deixe-me dizer que e porque entendemos tao pouco da estrutura
da teoria, que tenho objecoes a esta terminologia que e frequentemente
usada, esta “Teoria de Tudo”. Nao sabemos as previsoes da teoria,
e nao sabemos nem mesmo as perguntas que devem ser feitas. Te-
nho a impressao de que ao compreendermos a teoria de uma maneira
mais profunda, questoes serao levantadas, e provavelmente nao terao re-
spostas. Acho que a denominacao “Teoria de Tudo” e neste momento
uma afirmativa de que ela pode vir a responder questoes importantes
em fısica de partıculas.
Voce acha que temos o direito de supor que a Natureza e unificada -
que existem formulas matematicas que podem conter toda a realidade?
Richard Feynman (Professor de Fısica do Caltech - Premio Nobel
de Fısica de 1965) - Em nosso campo temos o direito de fazer o que
bem entendermos. E so uma hipotese. Se voce faz a hipotese que tudo
pode ser incorporado em um numero muito pequeno de leis, voce tem o
direito de tentar. Nao temos que temer nada, porque se algo sai errado
voce simplesmente compara com experimentos, e experimentos podem
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 483
lhe dizer se voce esta certo ou nao. Nao existe perigo nisso. Pode ser
que haja perigo psicologico, se voce investir muito em uma direcao, mas
em geral nao e uma questao de estar certo ou errado. Se a Natureza
possui ou nao uma formulacao ultima, simples, unificada e bela, e uma
questao em aberto que eu nao sei responder.
Um dos problemas acerca dos testes experimentais dessas ideias re-
centes, e que a teoria sugere que a unificacao ocorre somente a energias
muito altas. Acho que estamos comecando a chegar ao final da linha
para a fısica de partıculas, pelo menos no que diz respeito aos acele-
radores. Voce acha que a fısica teorica esta degenerando em filosofia?
Pode ser que a fısica teorica esteja degenerando, mas nao sei em que.
Deixe-me dizer uma coisa primeiro. Quando eu era mais jovem, eu no-
tava que varias pessoas mais velhas nao conseguiam entender ideias
novas muito bem, e resistiam de uma maneira ou de outra, e pareciam
estupidas ao dizerem que certas ideias estavam erradas - como Einstein,
que nao foi capaz de aceitar a mecanica quantica. Agora eu sou um
velho, e essas sao ideias novas, e elas parecem malucas para mim, e pare-
cem que vao na direcao errada. Sei que outros homens foram estupidos
dizendo coisas assim, e portanto eu serei tambem estupido em dizer que
isso tudo nao tem sentido. Eu serei de fato muito estupido porque te-
nho a forte sensacao que isso tudo nao faz o menor sentido! Nao posso
fazer nada, mesmo sabendo o perigo que corro com este ponto de vista.
O que voce nao gosta na teoria?
Eles nao calculam nada. Eles nao checam suas ideias. Costuram
explicacoes para qualquer coisa que discorde de experimentos. Por
484
exemplo, a teoria requer 10 dimensoes. Bem, pode ser que seja possıvel
“enrolar” 6 dimensoes. Sim, isso e possıvel matematicamente, mas
porque nao 7? As equacoes e que deveriam decidir quantas dimensoes
devem ser compactadas, e nao o desejo de fazer a teoria concordar com
os experimentos.
Na teoria de cordas, partıculas elementares sao representadas por diferentes modosde vibracao de cordas com comprimentos incrivelmente pequenos, da ordem de10−33 cm .
Chegamos ao fim do livro. As questoes acima mostram claramente
que na fronteira da Fısica nao existe certo ou errado, e mesmo quando
gigantes da ciencia contemporanea se enfrentam, muito do que e dito
esta baseado em uma crenca ıntima e irredutıvel.
Estamos novamente atravessando outro daqueles momentos em que
nossas ideias sobre a Natureza encontraram seus limites, e precisarao
ser aprimoradas em todos os nıveis: a nıvel fundamental, o Modelo
Padrao para as partıculas elementares e suas interacoes tera que ser al-
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 485
terado, ou mesmo substituıdo, se for comprovada a existencia de massa
no neutrino. A nıvel intermediario, os modelos da materia condensada
sao esfacelados e varios fenomenos (como a supercondutividade a altas
temperaturas) nao possuem explicacao satisfatoria. Finalmente, o Big
Bang, aceita por decadas como “A Teoria” de formacao do Universo,
precisara ser revista se confirmadas recentes observacoes de que o Uni-
verso acelera na medida em que se expande, ao contrario do que preve
esta teoria.
A Fısica e uma deusa que se alimenta de novas ideias e, como teria
dito certa vez Max Plank, as vezes novas ideias sao aceitas nao porque
elas convencem a todos, mas porque aquelas pessoas que discordam
eventualmente envelhecem e morrem. E atraves deste debate angusti-
ado e fascinante que os segredos da Natureza vao sendo desvendados.
Acreditem, ha muita poesia nisso. . .
Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.
1. Antimateria, Juan Alberto Mignaco, vol. 1, no. 5, p 54.
2. Morre Dirac, o Pai da Antimateria, Guido Beck, vol. 3, no. 16, p 9.
3. Fısica de Altas Energias: Ha Espaco para o Brasil?, Ronald Cintra Shellard,vol. 33, no. 74, p. 26.
4. Encontrada a Partıcula Z: Confirma-se a Teoria das Interacoes Eletrofracas,Ronald Cintra Shellard, vol. 2, no. 7, p. 19.
5. Feynman e a Fısica no Brasil, Jose Leite Lopes, vol. 9, no. 51, p. 72.
6. As Surpresas da Interacao Luz e Materia, Cid B. de Araujo e Jose R. RiosLeite, vol. 5, no. 27, p. 38.
7. O que e a Maquina Tokamak, Aluısio Neves Fagundes, vol. 2, no. 9, p. 72.
8. A Materia Indivisıvel, Juan Alberto Mignaco e Ronald Cintra Shellard, vol.3, no. 14, p. 42.
9. A Materia Superaquecida e Supercomprimida, Carlos A. Bertulani, vol. 8,
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no. 46, p. 48.
10. Neutrino, Neutrinos, Joao Carlos dos Anjos, vol. 9, no. 50, p. 9.
11. Os Neutrinos Pesados, Ronald Cintra Shellard, vol. 13, no. 73, p. 8.
12. Novas Partıculas no Horizonte da Fısica, Ronald Cintra Shellard e SergioLeo, vol. 3, no. 13, p. 20.
13. A Origem dos Raios Cosmicos: Finalmente uma Pista, Gil da Costa Mar-ques, Oscar J.P. Eboli e Ely Silva, vol. 4, no. 24, p. 9.
14. Radiacao de Sıncrotron, Ramiro Muniz e Roberto Lobo, vol. 2, no. 11, p.38.
15. Energias Extremas no Universo, Carlos Ourivio Escobar e Ronald CintraShellard, vol. 26, no. 151, p. 24.
16. Neutrinos: Partıculas Onipresentes e Misteriosas, Adriano A. Natale eMarcelo M. Guzzo, vol. 25, no. 147, p. 34.
17. A Assimetria do Universo: por que Existe mais Materia do que Anti-materia?, Leandro de Paula e Miriam Gandelman, vol. 25, no. 148, p. 30.
18. A Massa do Neutrino e suas Consequencias, Adriano A. Natale, vol. 24,no. 142, p. 20.
19. Supercordas, em Busca da Teoria Final, Victor O. Rivelles, vol. 23, no.138, p. 46.
20. Meson Pi: o Inıcio da Fısica de Altas Energias, E.H. Shibuya, vol. 22, no.132, p. 36.
21. Eletron em Velocidade Maxima, Marcia Begalli e Maria Elena Pol, vol. 22,no. 131, p. 32.
22. O Eletron Revela o Invisıvel, Aldo Craievich e Daniel Ugarte, vol. 22, no.131, p. 34.
23. Cesar Lattes. Modestia, Ciencia e Sabedoria, Micheline Nussenzvieg, vol.19, no. 112, p. 10.
24. Do Eletron ao Quark Top, Gilvan Augusto Alves, Alberto Santoro, MoacyrHenrique Gomes e Souza, vol. 19, no. 113, p. 34.
25. Neutrinos Solares, Carlos A. Bertuloni, vol. 18, no. 108, p. 52.
CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 487
Resumo - Capıtulo Nove
Uma parte dos fısicos teoricos se dedica a tentar construir uma teoriaunificada das forcas da Natureza. Em tal teoria, as quatro interacoes fun-damentais - gravitacional, eletromagnetica, fraca e forte - derivariam deum unico princıpio, uma unica interacao fundamental. Acredita-se queesta unificacao existiu durante os primeiros 10−43 s de vida do Universo,quando entao as forcas comecaram a se separar. Ideias de unificacao defenomenos aparentemente diferentes ja foram realizadas na fısica classica.Newton unificou a ‘fısica do Ceu’ com a da Terra, e Maxwell unificou aeletricidade, o magnetismo e a otica fısica. A fısica de partıculas estudaos constituintes fundamentais da materia e suas interacoes. Os objetosmais simples que formam a materia sao os leptons e os quarks. Leptonssao partıculas leves, como o eletron e o positron, e podem ser observadosseparadamente. Os quarks, ao contrario, so existem em estado de confi-namento. Essas partıculas se combinam para formar os hadrons - comoprotons e neutrons, e os mesons - como o pıon. A deteccao experimen-tal do pıon nos raios cosmicos, e a sua producao em laboratorio teve aimportante participacao do fısico brasileiro Cesar Lattes. As interacoesentre objetos materiais se dao via partıculas de campo. O exemplo maissimples e o caso do foton, que e o mensageiro do campo eletromagnetico.A partıcula do campo gravitacional e o graviton, e a da interacao forteo gluon. As interacoes eletromagnetica e fraca foram unificadas porGlashow, Salam e Weinberg. Jose Leite Lopes, fısico brasileiro, teveimportante participacao na chamada teoria eletrofraca. As partıculasde campo da interacao eletrofraca sao chamadas W+, W− e Z0. Essaspartıculas foram detectadas experimentalmente em 1983 pela equipe doitaliano Carlo Rubbia, trabalhando no CERN. Ate agora as tentativas deunificacao total falharam. A teoria de supercordas apareceu durante adecada de 70 como um esquema promissor de unificacao. Nesta teoria osobjetos fundamentais da materia nao sao partıculas, mas pequenas cor-das, com comprimentos infinitamente menores do que o diametro de umproton. Cada partıcula e representada por um modo normal de vibracaodestas cordas. Esta teoria, contudo, possui varias dificuldades conceitu-ais e tem recebido duras crıticas de importantes fısicos contemporaneos.O sonho da unificacao permanece, no momento, em suspense.