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Feminismo africano e nigeriano em Americanah de Chimamanda Ngozi
Adichie: da teoria à ficção
Alessandra Martich Freitas - UEPG1
Este trabalho tem como objetivo analisar como as teorias feministas das mulheres negras da
Nigéria e África estão atreladas ao romance Americanah (2014) de Chimamanda Ngozi Adichie.
Além de abarcar as teorias feministas presentes em Americanah, este trabalho também tem o
objetivo de compreender a importância da escrita feminina negra. Pautada na perspectiva de que
o feminismo é interseccional, conceito apresentado por Crenshaw (2002), em que as mulheres
negras muito além de sofrerem por conta do patriarcalismo, sofrem pelo racismo, opressão de
classe e outros sistemas discriminatórios que criam desigualdades básicas. Neste trabalho a
analise está ancorada nas teorias feministas africanas e nigerianas de Ogunyemi (2002),
Hudson-Weems (2002), Ogundipe-Leslie (2002), Acholunu (2002), Nnaemeka (2004). As teorias
feministas são compreendidas a partir da obra de Adichie ao analisar a constituição da
personagem principal e suas reações ao estar presente e vivenciar diferentes realidades de
descriminação. Seja sobre o seu gênero na Nigéria ou do conceito de raça pregado na sociedade
dos Estados Unidos. Nesse trabalho em especial conseguimos compreender como as teorias
feministas e os questionamentos a uma sociedade patriarcal, racista estão presentes na obra de
Adichie, assim como é possível perceber que há uma contestação a única história contada sobre
a África, sobre a Nigéria e sobre a imigração da personagem aos EUA. Desta forma se destaca
que essa obra em questão é um novo horizonte da literatura sobre mulheres negras, pois
apresenta a construção de personagens femininas que nos fazem refletir e construir junto com
elas novas reflexões sobre o feminismo e sobre autoria negra. Em que quem escreve sobre a
realidade de uma jovem nigeriana imigrante nos Estados Unidos é uma autora nigeriana que
imigrou aos EUA e sabe que não é possível de aceitar uma realidade em que personagens
imigrantes em obras da literatura em geral continuem sendo estigmatizados.
Palavras – chave: Feminismo negro; Autoria negra; Feminismo Interseccional;
Introduzindo as mulheres negras africanas e o feminismo nigeriano
Os feminismos negros na Nigéria emergiram nos anos 90 do século XX,
eles exigiram e lutaram para que o feminismo ocidental incluísse em sua análise
aspectos importantes que iam além das questões de gênero, como o
colonialismo, etnicidade e imperialismo. É muito importante lembrar que ao
abordamos a África, devemos salientar que é um continente muito grande e não
pode ser essencializado e muito menos generalizado, existem diversas Áfricas
em sua diversidade cultural, histórica e religiosa. Nesse sentido, não se pode
tratar o pensamento africano e o feminismo africano numa ótica homogênea,
sem diferenças entre seus países, culturas e povos.
1 Graduada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mestranda no Programa de pós-graduação em Linguagem da mesma instituição. E-mail: [email protected]
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O sistema das comunidades africanas em geral preza pelo bem coletivo.
As mulheres africanas, como as mulheres afro-americanas rejeitaram a visão de
que o problema pelos quais as mulheres e os homens africanos confrontam
(pobreza, exploração capitalista, falta de recursos básicos, corrupção) não
podem ir por uma linha dicotômica de cooperação entre sexos.
Dove (1998, p. 515) afirma que a perspectiva africana difere da ocidental
pois se necessita da complementaridade dos sexos e da cooperação. Tanto as
mulheres quanto os homens devem trabalhar juntos em todas as esferas da vida
sem se deixarem separar por papéis hierárquicos.
Podemos então asseverar que uma das especificidades do feminismo
africano, é de que ele seja uma abordagem mais humanista. Pois, procura
garantir o bem-estar dos dois sexos. Esta visão nos mostra que a cultura africana
se expressa pelo bem da comunidade e o bem coletivo tem maior importância
de que o bem individual. Desse modo, o papel da mulher na comunidade é mais
estimado. Ela é vista como a que traz a vida ao mundo e como a que garante a
regeneração espiritual dos anciãos.
De acordo com Ogundipe-Leslie (1994) citada por Arndt (2002), a mulher
como mãe, transmite cultura e constitui o centro da organização social. A
questão da maternidade transcende as relações de gênero e sangue por
exemplo. Uma outra pessoa membro da família, ou não, pode desempenhar um
papel de mãe. E quando este for cumprido ele constitui à mulher na comunidade
reconhecimento, algo como fonte de força, empoderamento e um estatuto de
“mãe de dentro da comunidade”. O othermothering das mulheres afro-
americanas, acaba sendo uma das mais importantes empreitadas da mulher no
continente africano. (OGUNDIPE-LESLIE, 1994 apud ARNDT, 2002)
Outro ato realizado pela mulher negra africana é o da auto nomeação, o
fato dessas mulheres negras poderem dar um nome ao pensamento feminista
delas. Pois o poder da autodeterminação desse pensamento por meio da
linguagem foi negado as mulheres do terceiro mundo, ora por meio da política
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da criação ora por meio da política de exclusão que rejeita a produção acadêmica
e intelectual das mulheres negras.
Com o intento de mudar isso seguimos o exemplo de Audre Lorde que em
seu ensaio A transformação do silencio em linguagem e ação (1984), fala sobre
os discursos transformativos. E levando a cabo a sugestão do que Lorde entende
por discurso transformativo, temos a definição aplicada de que quando as
mulheres africanas erguem a voz para falar das suas realidades, apresentam
propostas alternativas ao feminismo ocidental vigente. Depois de tanto
silenciamento e exclusão de suas peculiaridades, as mulheres negras africanas
ganham sua própria voz. Já que se as mulheres negras não tivessem se auto
determinado seu pensamento, outras a teriam feito.
Arndt (2002) aponta que Obioma Nnaemeka feminista nigeriana, assevera que
as mulheres africanas devem ter o poder de se nomear, de chamar as coisas e
de atribuir-lhes nomes. Pois, este poder há duas, três décadas atrás lhes era
negado, e hoje elas retomam esse poder de fazer com que possam definir o seu
lugar, seu nome e sua luta. (ARNDT, 2002, p. 13)
Nessa tentativa de se nomearem, identificarem e se definirem, as
mulheres africanas trabalharam para desenvolver uma terminologia e conceitos
de um pensamento situado nas mulheres.
Uma das versões do feminismo africano está ligada a uma posição de
pensamento chamada de womanism. No contexto afro-americano a terminologia
está atribuída a Alice Walker. Para ela o conceito de womanism é o nascimento
de uma consciência em uma mulher, que pode surgir como efeito de algum
acidente traumático como morte ou um ato de racismo. Porém, é mais amplo
que isso pois não se limita somente às questões ligadas à discriminação na base
do sexo, porquanto procura encontrar respostas aos problemas de racismo, de
identidade étnica e às questões socioeconômicas. Na Nigéria temos a teórica
Chikwenyé Okonjo Ogunyemi, que chega a um termo semelhante ao de Alice
Walker e ao mesmo tempo independente do dela.
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Arndt (2002) postula que para Ogunyemi o conceito de womanism
subentende a consciência de que as questões de gênero não podem ser
separadas de outras realidades e fatores, que em conjunto determinam a vida
das mulheres em seu contexto familiar, comunitário e local. (ARNDT, 2002, p.
40). É nesse quesito que o womanism africano se difere do conceito de Alice
Walker e do próprio feminismo branco ocidental, pois, estes conceitos não
tomam em conta as realidades e as especificidades africanas. Ogunyemi
argumenta que só as mulheres africanas podem ser seguidoras do womanism,
já que elas são as que conhecem melhor, na própria pele a realidade cotidiana
africana e suas especificidades.
Em uma outra visão do feminismo africano desenvolvida nos anos
noventa do século XX, Arndt (2002) nos traz a teórica afro-americana Cleonora
Hudson-Weems criou o conceito de feminismo africano chamado de Africana
Womanism. (ARNDT, 2002, p. 46)
O feminismo Africana Womanism é uma ruptura total com o feminismo
branco ocidental e a exclusão de tentativas de conciliação e solidariedade com
ele. Hudson-Weems rejeitou o termo feminismo, até mesmo feminismo africano
e negro não eram considerados adequados, por conta da rejeição pelo termo
feminismo branco. A palavra africana foi considerada a mais adequada no
contexto africano pois descrevia a realidade étnica para ela. (ARNDT, 2002, p.
48)
A Africa womanism pregava a luta ao lado dos homens pela libertação dos
dois sexos, com o que ambos possam construir uma nova sociedade. Esse é um
operador que o diferencia das outras concepções. Outras teóricas como
Ogunyemi vão afirmar que essa é uma versão utópica e romântica, pois as
mulheres ignorariam os perigos que os homens podem representar para as
mulheres em algumas conjunturas.
Arndt (2002) assevera que outro conceito ligado ao feminismo africano foi
proposto pela intelectual nigeriana Molara Ogundipe-Leslie, chamado Stiwanism
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em 1994. Ogundipe-Leslie afirma que o Stiwanism não só argumenta que as
mulheres têm direito de participar da vida política e social do seu país ou
comunidade, como devem fazer parte dele. A autora comenta que as mulheres
africanas devem tomar responsabilidade por elas mesmas para desenvolverem
os seus interesses, pois a emancipação dessas mulheres só viria quando elas
se tornassem agentes da sua própria mudança. Isso tudo, se ao invés de
fazerem isso, se dedicassem menos a atividades supostamente femininas como
o que a autora chama de leitura de “revistas cor-de-rosa” (OGUNDIPE-LESLIE,
1994, p. 231 apud ARNDT, 2002, p. 50)
Mais um conceito que é ligado as mulheres africanas apontado por Arndt
(2002) é o do Motherism, proposto pela ativista nigeriana Catherine Achonulu.
Visto que a maternidade é algo muito importante na vida das mulheres africanas.
Inspirada pelo papel central da maternidade nas sociedades Africanas,
ela propôs mais profundamente na teoria de que a maternidade significava,
natureza e cuidado, aspectos que davam à mulher um enorme poder em sua
comunidade. Para Achonulu, ambas mulheres e homens tem o dever de cuidar
da família e proteger a sua característica natural. (ARNDT, 2002, p. 53)
O conceito então não é algo centrado na questão do gênero, de acordo
com Arndt (2002), nas sociedades tradicionais da África não existia a opressão
de gênero. O equilíbrio entre os sexos e igualdade de gênero existia até a
chegada do colonizador, que posteriormente constitui “soluções e estruturas” no
território africano. Pois um dos objetivos do colonizador era enfraquecer a
posição das mulheres africanas nas sociedades tradicionais, por conta do poder
influência e força que elas tinham para resistir dos objetivos da colonização.
O mais atual dos termos é o Negofeminismo apoiado por Obioma
Nnaemeka, que define um feminismo e negociação (esse é o porquê do prefixo
nego). Nnaemeka (2004) credita que esse é o feminismo sem egoísmo. Um
feminismo que se assenta no valor da comunidade. A autora propõe que o termo
não necessariamente oculte as diferenças e diversidades do pensamento
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centrado na mulher, mas que de aparência às práticas que pareçam comuns nas
sociedades africanas. São práticas que ajustam valores, atitudes comuns para
as nações e povos da África Subsaariana. No Negofeminismo há predominância
de valores de compromisso – dar e receber – de equilíbrio e harmonia. Uma
visão de feminismo que opera através da adaptação à mentalidade a cultura sem
criar confrontos.
Nesse sentido, com todas essas nomenclaturas, vemos o feminismo
africano como uma luta que desafia e desconstrói velhas estruturas, mas sem
entrar em conflitos com homens e com a sociedade. Sabendo exatamente como
negociar o espaço cultural e político em que as mulheres podem exercer os seus
direitos.
“Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e
econômica entre os sexos”
Utilizando essas nomenclaturas definidas pelas mulheres africanas e
nigerianas sobre o feminismo africano, em Americanah podemos entender como
a influência de algumas das teorias, estão presentes no discurso e nas atitudes
tomadas por Ifemelu. Porém, muito além da própria personagem e do romance
é possível pensar que em um todo a escrita de Chimamanda Adichie, também
se encaixa em algumas dessas definições.
No início do romance Ifemelu demonstra que é uma heroína, ao tomar a
decisão de voltar para a Nigéria. E ela pensa nisso ao se confrontar com o ato
de uma mulher gorda em uma estação de trem, estar usando uma minissaia,
mostrando suas “pernas esbeltas” e “não dando importância a isso” (ADICHIE,
2014, p. 14). O motivo pelo qual esse tipo de informação ser relevante, é o fato
de que muitas vezes se impõe que a sociedade aprove alguns tipos de
comportamentos.
Por exemplo, uma mulher gorda mostrando as pernas é considerado algo
grotesco, já que há um padrão de beleza e uma ditadura da magreza a ser
seguido. Ifemelu define que “o ato da mulher gorda tinha aquela convicção
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silenciosa que alguém divide apenas consigo mesmo, uma noção do que é certo
que os outros não podem ver” (ADICHIE, 2014, p. 14). Podemos dizer que é um
ato empoderador não seguir o que é imposto pela sociedade normativa. E é nos
mesmos moldes que a protagonista entende a sua decisão de voltar ao país em
que nasceu “quando ela se sentia assolada pelas dúvidas, pensava em si mesma
como alguém que estava corajosamente sozinho, quase uma heroína, para
assim esmagar suas incertezas” (ADICHIE, 2014, p. 15).
Voltar ao país de origem é também, uma forte decisão da protagonista,
principalmente se pensarmos em tudo que ela conquistou enquanto vivia nos
EUA. Como o ser uma blogueira de sucesso e o próprio se destacar na
universidade estadunidense.
A situação em que Ifemelu se encontra se encaixa ao Stiwanism de
Ogundipe-Leslie, onde as mulheres africanas devem tomar responsabilidade por
elas mesmas para desenvolver os seus interesses para que haja uma verdadeira
emancipação do ser mulher.
Em um dos seus flashbacks da adolescência, Ifemelu demonstra que
compreende o que ela quer e que pode verbalizar sua vontade. Mesmo que seja
imposto culturalmente que as mulheres não possam demonstrar que também
sentem desejos sexuais, que é uma faceta que somente os homens podem
demonstrar. Pois, se a mulher demonstrar isso corre o grande risco de ser
considerada a pior espécie de mulher do mundo.
“Eles ficaram em silêncio. Uma fumaça de cigarro chegou até os dois vinda da entrada da casa de hóspedes, onde alguns meninos tinham se reunido. Havia sons de festa no ar: música alta, vozes animadas e riso estridente de meninos e meninas, todos mais relaxados e mais livres do que estariam no dia seguinte. “A gente não vai se beijar?”, perguntou ela. Ele tomou um susto. “De onde veio isso?” “Só estou perguntando. Estamos sentados aqui há tanto tempo.” “Não quero que você pense que só quero isso.” “E quanto ao que eu quero?” “O que você quer?” “O que você acha?” “Minha jaqueta?” Ifemelu riu. “É, sua famosa jaqueta.” “Você me deixa tímido.” “Está falando sério? Porque você me deixa tímida.” “Acho que nada deixa você tímida.” (ADICHIE, 2014, p. 71)
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No trecho em questão, Ifemelu fala sobre “o quanto ao que eu quero”, a
propósito do seu próprio desejo. Algo empoderador, que a faz mais forte e
decidida ao conseguir desenvolver (e verbalizar) os seus próprios interesses.
Quebrando o estereótipo de que as meninas não têm direito a sentir desejo, que
precisam ser belas e recatadas.
As relações que ainda podemos estabelecer é em questão ao Motherism,
proposto por Catherine Achonulu, pois a criação que a mãe de Ifemelu, Tia Uju
e o pai da protagonista desempenham visa a manutenção da família e da união
em si. A maternidade tem um papel importante não só para mulher na África,
como para o homem também. O pai de Ifemelu, é um dos maiores apoiadores
da filha e existe uma certa igualdade ao cuidar da protagonista.
É importante recordar que, Tia Uju também participa desse processo
como uma “quase mãe”, ela trança o cabelo de Ifemelu, a aconselha e ajuda na
mudança aos EUA. Desempenha por muitas vezes um papel de mãe, seguindo
exatamente a definição de semelhante ao Motherism, o Othermotherism dos
Estados Unidos.
Outra representação importante da narrativa é a da mãe de Obinze, que
é o que chamamos de mulher empoderada. Pois, é professora universitária e é
desafiada por muitos homens para poder chegar onde está. Por vezes precisa
demonstrar a “raiva” que comentamos anteriormente para conseguir exercer sua
profissão e, ainda é questionada por não contemplar o estereótipo de “doçura”
da mulher. A mãe de Obinze também desempenha papel de mãe à Ifemelu,
aconselhando-a, quando ambos estavam iniciando a vida sexual.
A mãe dele pediu-lhe que entrasse no quarto e sentasse na cama. “Se acontecer alguma coisa entre você e Obinze, vocês dois serão responsáveis. Mas a natureza é injusta com as mulheres. Um ato é cometido por duas pessoas, mas, se há consequências, apenas uma sofre. Está me entendendo?” (ADICHIE, 2014, p. 81)
A conversa é somente com Ifemelu, mas há a consciência de ambas as
mulheres do triste fardo que a sociedade impõe a mulher quando esta está
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grávida e principalmente quando ainda não possui o status de casada. As
pessoas todavia ainda são extremamente conservadoras quanto a isso.
Outro tópico muito importante abordado na narrativa é a
representatividade por meio do cabelo. Essa temática, não aparece somente em
Americanah, em todas as outras obras publicadas por Chimamanda a questão é
discutida. No início da narrativa como já sabemos, Ifemelu está trançando o
seu cabelo e antes disso está com o seu cabelo natural. Em Lagos, na época
em que lá vivia, e antes de uma maior influência ocidental sobre o país, a
protagonista também optava por usar o cabelo trançado ou natural, porque era
comum.
Ao chegar aos EUA, Ifemelu tem diversos “choques”, e um deles é com o
cabelo. Para chegar ao discurso que ela demonstra no primeiro capítulo, houve
uma grande reflexão, empoderamento e pesquisa por parte dela.
“Aisha tocou o cabelo de Ifemelu. “Por que não usa alisa?”
“Gosto do meu cabelo do jeito que Deus fez.”
“Mas como penteia? Difícil de pentear.” Ifemelu havia trazido seu próprio pente. Ela penteou devagar seu cabelo denso, macio e em pequenas espirais, até que ele ficou parecendo um halo em torno de sua cabeça. “Não é difícil de pentear se você hidratar do jeito certo”, disse Ifemelu, agora com o tom convincente de proselitismo que usava sempre que estava tentando convencer outras mulheres negras dos méritos de deixar o cabelo natural.” (ADICHIE, 2014, p. 19-20)
É importante lembrar que Ifemelu antes de chegar a esse discurso, passa
por diversos conflitos. Um deles é quando Tia Uju, que é médica, é selecionada
a uma entrevista de emprego e se preocupa com a aparência:
“―Vou ter que desfazer as minhas tranças para a entrevista e fazer relaxamento no cabelo. Kemi disse que não devo usar tranças na entrevista. Eles acham que você não é profissional se tem o cabelo trançado. ―Então não existem médicas de cabelo trançado nos Estados Unidos? perguntou Ifemelu. ―Falei o que me disseram. Você está num país que não é o seu. Faz o que precisa se quiser ser bem-sucedido.” (ADICHIE, 2014, p. 130-131)
A partir disso Ifemelu começa a entender nos EUA, que o cabelo
compromete as mulheres negras para conquistar certas coisas. Ifemelu vê que
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as mulheres africanas que estão nos Estados Unidos, precisam abandonar a sua
estética natural para que não haja uma rejeição destas na sociedade.
Mesmo que a discussão sobre o cabelo afro seja abordada, Adichie não
defende/apresenta uma forma de certo ou errado de como o negro deveria usar
o cabelo. O que ocorre é a criação de situações na narrativa em que há certa
reflexão sobre como a identidade do negro é disposta no modo em que ele utiliza
o cabelo, pois a personagem passa a ver como problema o que antes não era.
Ao buscar o primeiro emprego Ifemelu se preocupa em como é vista, e
acreditando que teria mais chances de ser contratada, ela resolve também alisar
o cabelo mudando assim a aparência dele. Ela vai à entrevista, porém não é
chamada, é nesse momento que ela então começa a observar que por trás disso
existe algo mais profundo que o preconceito racial. Os textos que Ifemelu publica
em seu blog, são reflexivos, em “Ofertas de empregos nos Estados Unidos – a
principal maneira nacional de decidir “quem é racista”” a protagonista fala sobre
o perfil dos racistas:
Os racistas são brancos malvados de lábios finos que aparecem nos filmes sobre a era dos direitos civis. Esta é a questão: a maneira como o racismo se manifesta mudou, mas a linguagem não. Então, se você nunca linchou alguém, não pode ser chamado de racista. Se não for um mostro sugador de sangue, não pode ser chamado de racista. [...] Alguém tem de ter a função de decidir quem é racista e quem não é. Ou talvez esteja na hora de esquecer a palavra ―racista‖. Encontrar uma nova. Como Síndrome do Distúrbio Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome: leve, mediana e aguda. (ADICHIE, 2014, p. 341)
É a partir disso que ela começa a notar vários fatores em que muitas vezes
as pessoas negras são julgadas pelas características étnicas. Uma das coisas
que Ifemelu não vivencia na Nigéria. Chega em um ponto da narrativa em que
essa contextualização acontece no período de eleições de Barack Obama. E
existia a crença de que por ser um candidato negro e caso fosse eleito o primeiro
presidente negro dos EUA, a população negra creditava a ele uma possibilidade
de acabar com os problemas raciais do país.
Então Barack Obama e sua esposa Michele Obama, após a eleição do
presidente, foram considerados ícones para o fim da crise do racismo no país,
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algo que Ifemelu reflete no seu blog em – “Por que as mulheres negras de pele
escura – tanto americanas quanto não americanas – amam Barack Obama” e
em “Um agradecimento a Michele Obama e o cabelo como metáfora de raça”.
Sendo que neste último, Ifemelu faz um parecer sobre o cabelo da primeira dama
e sobre a forma que as mulheres americanas aparecem na mídia:
A Amiga Branca e eu somos fãs de Michelle Obama. Por isso, outro dia, eu disse a ela: ―Será que Michelle Obama pôs mega-hair? O cabelo está mais cheio hoje e fazer escova todos os dias deve danificá-lo. E ela disse: ―Quer dizer que o cabelo dela não é daquele jeito naturalmente? Só eu que acho, ou isso aí é a metáfora perfeita para a raça nos Estados Unidos? Cabelo. [...]. Quando você tem cabelo natural de negro, as pessoas acham que você ―fez alguma coisa com ele. [...]. Eu tenho cabelo crespo natural. Que uso em afros, tranças, trança de raiz. Não, não é uma coisa política. Não, eu não sou artista plástica, poeta ou cantora. Também não sou natureba. Só não quero relaxar o meu cabelo – já estou em contato com muitas outras substâncias cancerígenas no meu cotidiano. (ADICHIE, 2014, p. 321)
Essa é uma afirmação de uma Ifemelu mais consciente, empoderada e
decidida em relação ao cabelo, ela não o vê mais como em outras partes da
narrativa, como um problema de aceitação. A partir dessa constatação ela
elabora críticas sobre ser negro no estrangeiro. O que ela denomina de metáfora
de raça, é uma crítica a forma como as celebridades negras aparecem na mídia.
A maioria delas, utilizam penteados que fazem quem as assiste acreditar que o
seu cabelo é daquele jeito.
Outro fato abordado pela protagonista, é a do cabelo como uma questão
política. Muitas pessoas acreditam que os negros ao utilizarem o cabelo de forma
natural, obrigatoriamente fazem parte de grupos intelectuais e artísticos, e que
necessariamente precisam estar vinculados a alguma espécie de organização
para que se sintam encorajados para assumir a natureza do cabelo crespo.
Ao descrever todo esse processo e ao se posicionar em seu blog Ifemelu
demonstra uma das características mais importantes da obra de Adichie, a
personalidade da personagem. Ela se revela quando a personagem precisa
encarar certas situações, em que mesmo com suas fraquezas possui uma razão
para continuar caminhando.
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Seguindo as nomenclaturas do feminismo nigeriano, a maioria das ações
das personagens femininas em questão da obra, estão mais ligadas ao
Stiwanism de Ogundipe-Leslie do que para as outras definições. Algumas estão
presentes, outras não influenciam tanto a interpretação.
O Stiwanism assevera que as mulheres africanas, devem tomar
responsabilidade por elas mesmas para desenvolverem os seus interesses, pois
a emancipação dessas mulheres só viria quando elas se tornassem agentes da
sua própria mudança. Com muita reflexão e conhecimento que Ifemelu adquire
em sua estadia nos EUA, há essa construção nova em seu ser. A protagonista
teve que mudar e conhecer vários aspectos do ser mulher em um país
estrangeiro, com indagações que ela nunca teve em seu país de origem. Ela
mais do que ninguém se tornou agente de sua própria mudança, ao escrever um
blog sobre questões raciais nos EUA e se postar como uma mulher forte e
independente.
Talvez a decisão mais forte que Ifemelu tenha tomado e que a torna
emancipada e dona de sua própria mudança é o fato dela voltar a Nigéria e
construir sua vida novamente lá.
Apesar de analisarmos a obra a partir de teorias feministas e da
emancipação da mulher negra na sociedade por meio da literatura, em momento
algum a autora coloca em pauta um conceito definidor de feminismo. O que a
autora faz é colocar as mulheres em situações em que elas são vistas com
inferioridade e de que forma elas se desenvolvem para conseguir um lugar de
destaque. Isso acontece com Ifemelu, Tia Uju e a mãe de Obinze.
“Você não pode escrever um romance honesto sobre a questão racial neste
país”
Shan irmã de Blaine, diz essas palavras que iniciam o capítulo ao se referir
a trechos de seu livro. O qual estava sendo lançado e que seu editor, pediu para
que ela retirasse do romance.
Isso nos faz recordar que quando Ifemelu chegas aos Estados Unidos, ela
se depara com algo que nunca lhe foi questionado na Nigéria, a cor de sua pele.
O conceito de que ela tinha uma raça, coisa que na Nigéria não existia. Antonio
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Sérgio Guimarães, comenta que raça é um conceito nativo e central na
sociedade americana, sendo impossível qualquer pessoa não “estar
classificada” dentro dessas designações.
Um parêntese: quando se fala em raça, nos Estados Unidos, isso faz imediatamente sentido para as pessoas; não se pode viver nos Estados Unidos sem ter uma raça, mesmo que se tenha que inventar uma denominação – como latino – que designa uma uniformidade cultural e biológica de outro modo inexistente, mas imprescindível para possibilitar o diálogo com pessoas que se designam “negras”, “brancas”, “judias”, etc. Todos os grupos étnicos viram raça nos Estados Unidos, porque raça é um conceito nativo classificatório, central para a sociedade americana. (GUIMARÃES, 2008, p. 66)
Podemos notar que Shan, não consegue escrever aprofundadamente
sobre questões raciais em um primeiro momento nos EUA. Mas, Ifemelu
consegue, então a afirmação de que “não se pode escrever um romance honesto
sobre a questão racial nesse país” (ADICHIE, 2014, p. 364), vai se modificando
a maneira em que as duas “resolvem esse problema”. De certa forma, o próprio
romance de Adichie, é uma contestação dessa informação.
Em uma postagem em seu blog nomeada – “Para outros Negros Não
Americanos: Nos Estados Unidos você é negro, baby” - nota-se a ideia
unificadora que raça tem nos EUA
Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados Unidos, vira negro. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou ganense. A América não liga. E daí se você não era negro no seu país? Está nos Estados Unidos agora. Nós todos temos nosso momento de iniciação na Sociedade dos Ex-Crioulos. O meu foi numa aula da faculdade, quando me pediram para dar a visão negra de algo, só que eu não tinha ideia do que aquilo significava. Então, simplesmente inventei. (ADICHIE, 2014, p. 239)
Ifemelu vive a diáspora nos EUA. E diáspora segundo Hall (2003), “é
aquilo que poderíamos denominar “identificação associativa” com as culturas de
origem que permanece forte, mesmo na segunda, terceira geração, embora os
locais de origem não sejam mais a única fonte de identificação.” (HALL, 2003, p.
26). Existe de fato a Ifemelu uma “identificação associativa” ao chegar nos EUA,
mesmo que não esteja em seu lugar de origem e não compreender as questões
que aparecem sobre sua “raça”. Existem traços de sua cultura de origem e outras
culturas africanas, das quais foram trazidas pelos negros escravizados e estão
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presentes na cultura daquele país, a várias gerações aos quais ela se identifica
associativamente. Há, claro também uma generalização sobre o ser negro
africano, ela não é mais nigeriana, é somente africana, por exemplo, para grande
parte das pessoas no país como observamos no trecho do blog de Ifemelu
anteriormente.
Ao se ambientar ao país escreve sobre as questões raciais que descobre
enquanto vive no país e posteriormente sobre a nova vida em Lagos. A
protagonista escreve textos reflexivos sobre o cotidiano das mulheres negras
africanas e na perspectiva de imigrante.
Os Estados Unidos passam a vivenciar no início do século XXI, o que
denominaram de problema da imigração. Após o 11 de setembro a crise do
terrorismo deixou o país em estado de alerta constante, que por conta disso
começou a proteger suas fronteiras. A grande maioria das personagens do
romance, são estrangeiras de algum país africano e essa é uma observação
apontada em um dos seus textos “A América para o negro não americano”. Ao
denominar as pessoas oriundas de países africanos como negros não
americanos é sempre utilizado por Adichie e que de certa forma contém um
toque de ironia para nomear o estrangeiro.
Também no romance existem diversas informações que nos fazem
pensar sobre os processos de legalização e permanência ilegal dos imigrantes.
Ifemelu não está ilegal no país, porém utiliza documentos falsos para poder
trabalhar, por exemplo. Logo se constata que a América para o negro não
americano pobre em Americanah é um lugar onde se faz necessidade conhecer
artimanhas para conseguir sobreviver onde o racismo é um problema enorme.
Du Bois (1999) desenvolve um trabalho pautado em suas experiências ao
ponderar a consciência do negro americano:
É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos dos outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir sua duplicidade – americano, e Negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce. (DU BOIS, 1999, p.39).
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Se fizermos um paralelo com as reflexões feitas no século XIX, com os
atuais dias ainda se percebe essa dupla consciência e o modo como o mundo
vê o negro não está restrito somente aos EUA. Em Americanah, Tia Uju e as
cabeleireiras confrontam essa consciência dupla, ao não querer se desfazer de
seus traços culturais, porém, ao se depararem com situações que interferem
sobre a própria imagem aderem a uma tentativa de evidenciar menos suas raízes
o menos possível.
Entretanto a sensação que Ifemelu tem é distinta, é estranho para ela
saber que a cor de sua pele e o idioma que fala interfere no modo como o outro
a vê. Podemos observar isso, quando ela chega à universidade para fazer a
matrícula e a pessoa que está na recepção a atende falando pausadamente.
Ifemelu se intriga ao perceber que o seu inglês estava sendo questionado, como
se sua nacionalidade desmerecesse o falar bem.
Sabemos que, a língua atualmente é um item utilizado para identificar a
origem das pessoas, principalmente do imigrante. Ao pensar na língua inglesa
hoje, uma língua considerada universal, fica obvio que não basta somente falar
a língua, é preciso conhecer as particularidades. Essa torna-se uma das
principais preocupações dos imigrantes, pois, ele não quer correr riscos de ser
menosprezado. Entretanto, a forma como Ifemelu maneja a conversa
percebemos que essa não é uma regra.
“Americanah” é um termo que as nigerianas utilizam para referirem-se à
mulher que vai a américa (aos Estados Unidos) e retorna com costumes
americanos. Falando um inglês sem sotaques, reclamando, desprezando tudo
que se refere a Nigéria e fazendo comparações ao país que acabou de deixar.
Ifemelu tem outro ato empoderador ao não se livrar do sotaque presente
em seu inglês. Ela não tem nenhuma intenção de fazê-lo. A determinação da
personagem em não querer se desfazer de um dos seus traços culturais é uma
forma de não inferiorizar seu idioma e a sua cultura, já que os outros imigrantes
que iam a América se esforçavam para falar o inglês “mais limpo” e de prestígio.
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Ifemelu constrói uma história diferente sobre ser mulher negra e imigrante,
em um país onde ela e tantas outras mulheres que vivem essa realidade,
precisam lutar todos os dias contra o preconceito e a inferiorizarão de suas
culturas de origem.
Podemos concluir que o que Chimamanda Ngozi Adichie nos proporciona
é singular, ao apresentar a construção de personagens femininas que nos fazem
refletir e construir junto com elas novas reflexões sobre o feminismo. É
interessante poder nos deparar com o protagonismo de Ifemelu, em que é bem
elaborado e se pode observar a protagonista conseguir lugares de destaque de
diversas maneiras.
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. Tradução de Julia Romeu. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ARNDT, Susan. The Dynamics of African Feminism. Defining and Classifying African Feminist Literatures, Africa World Press: Trenton, 2002.
DOVE, Nah. African Womanism: An Afrocentric Theory. Journal of Black Studies, vol. 28, No. 5, p. 515-539, 1998. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2784792> Acesso em 16 abr. de 2016.
DU BOIS, William Edward Burghardt. Sobre nosso embates espirituais. Tradução: José Luis Pereira da Costa. In: As almas do povo negro. Lacerda Editora: Rio de Janeiro, p. 37-46,1999. Disponível em GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Raça, cor e outros conceitos analíticos. In: Raça: novas perspectivas antropológicas, (org) Livio Sansone, Osmundo Araújo Pinho, 2 ed. rev. Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, Salvador, p. 63-83, 2008.
HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. UFMG: Belo Horizonte, p. 24-50, 2003.
NNAEMEKA, Obioma. “Nego-Feminism: Theorizing, Practicing, and Pruning Africa´s Way”. Signs, v. 29, N. 2, p. 357-385, 2004. Disponível em < https://serendip.brynmawr.edu/oneworld/system/files/Nnaemeka_Nego-Feminsim.pdf> Acesso em: 22 abr. 2016.
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