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DADOS INTERNACIONAISDECATALOGAONAPUBLICAO(CIP)(CMARABRASILEIRADO LIVRO,Sp, BRASIL)
Gilson, tienneIntroduo s artes do belo - O que filosofar sobre a arte? /
tienne Clson, traduo rico Nogueira. - So Paulo: Realizaes, 2010.
Ttulo original: Introduction aux arts du beau.ISBN 978-85-88062-97-6
I. Arte - Filosofia 2. Esttica I. Ttulo.
10-08197 CDD-701
NDICESPARACATLOGOSISTEMTICO:I. Arte: Filosofia 701
Este livro foi impresso pelaProl Editora Grfica para Realizaes, em agosto de2010. Os tipos usados so dafamlia Weiss BT e Inked GodRegular. O papel do miolo chamois bulk dunas 90g, e, dacapa, carto supremo 300g.
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No oitavo volume da EncicloPdia Francesa, dcima seo, pgina 7, H. Walloncita a seguinte frase de Lucien Febvre. "Com certeza, a arte um tipo de co-
nhecimento". O presente livro, ao contrrio, repousa sobre a firme e inveterada
convico do autor de que a arte no um tipo de conhecimento, seno que
depende de uma ordem distinta da do conhecer - no caso, a ordem do fazer -,
ou, s que podemos nos expressar assim, da "factividade". Do comeo ao fim,
este livro se pe a dz-lo, di-lo e explica-o, e como isto se diz numa s frase,
poder-se-ia perguntar qual a razo de escrever e publicar o referido livro.
Ora, a razo est na locuo adverbial "com certeza", empregue por Lu-
cien Febvre. Com efeito, a imensa maioria est certa de que a arte, em ltima
instncia, um tipo de conhecimento. Precisamente aqueles que tm reservas
quanto a isto devem se defender da convico espontnea de que o artista "tem
algo para dizer", e de que a funo de sua obra nos comunicar alguma ideia,
noo, emoo ou sentimento, quase da mesma maneira como, por meio da es-
crita, um homem informa seus semelhantes sobre o que se passa no seu esprito.
Quando a maioria, pois, fica embaraada e no sabe dizer o que o artista quer
exprimir, diz que ele se exprime a si mesmo. Esta viso to difundida que che-
ga at as instituies de ensino. H cerca de quarenta anos, ou mais, 1 numa cida-
de do estado da Virgnia. olhando com a devida admirao o caderno de classe
de uma garotinha norte-americana ento com oito ou nove anos de idade, meu
olhar se deteve na seguinte observao de seu professor de educao artstica:
"Franoise uma criana encantadora; pena que no consiga se exprimir na ar-
gila" - "it's a pity she cannot express herself in clay". Felizmente, Franoise tinha outras
1 Este livro foi publicado em 1963. (N. T.)
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2 Livro publicado pelo autor em 1958. (N. T)
maneiras de se exprimir. Faltava-lhe aquela, em suma, com que a natureza ou-
trora regalou a Michelangelo e Donatello, por exemplo - supondo, claro, que
eles tenham esculpido suas esttuas para se exprimir.
Se, porm, como estou persuadido, isso um erro, preciso admitir que
um erro inocente, no sentido de que suas consequncias no interessam
vida moral; no obstante, alm de um erro nunca ser bom em si mesmo, este,
em especial, gera inumerveis consequncias especulativas que se fazem sentir
em todas as ordens direta ou indiretamente ligadas arte. Sendo assim, tentei
dar alguma clareza s minhas ideias sobre o assunto, de incio para mim mesmo,
depois, como seria natural, para todos os que se interessam por esse problema
e no dispem de tempo hbil para meditar livremente: pois ainda que a ordem
seguida por mim no lhes confira a satisfao desejada, ajud-les- a encontrar
uma ordem que os satisfaa. Em todo caso, trata-se unicamente, aqui, de filoso-
fia - comeando pelo comeo, isto , pela procura, ainda que breve, do tipo de
questo que a filosofia pode se colocar acerca da arte. A partir da, refletindo,
na posio de filsofo metafsico, luz dos princpios primeiros, esforou-se
por esclarecer sucessivamente as noes principais, medida que se ofereciam
ao esprito. Para tanto, foi amide necessrio abstrair, isto , expor-se conscien-
temente ao reproche de pensar em separado aquilo que, na realidade, se d em
conjunto; seguiu-se, ento, o que pareceu ser a ordem natural das noes no
pensamento, contando com o leitor para reconstruir o conjunto no seu prprio
esprito. As concluses do livro so uma como recompensa oferecida pelo au-
tor, haja vista a austeridade da abstrao a que teve de se ater j logo no incio.
Ele espera que este regalo agrade ao leitor. No entanto, no sairemos jamais da
metafsica. Depois de Pintura e Realidade, 2 que se propunha a ir da arte para a filo-sofia, e precisamente de uma arte particular para a filosofia mais geral, quisemos,
desta vez, chegar noo mais geral da arte enquanto tal a partir da filosofia
do ser. Da a ausncia quase total de artistas, com suas palavras sempre muito a
propsito e amide arrebatadoras, pelo qu o autor sentiu um pesar contnuo,
ainda que este no fosse o lugar de lhes ceder a palavra. Contudo, no pudemos
8 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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deixar de ceder-lha aqui e acol, mas somente a ttulo de exemplo. Como quer
que seja, deve-se ter em mente que estes elementos de uma metafsica da arte
no se eximem da filosofia de nenhuma das artes em particular. na verdadeimpossvel deduzir de uma metafsica da arte a noo particular de uma arte es-
pecfica, como, por exemplo, a pintura ou a msica. No entanto, essa metafsica
no lhes intil. Desde logo, ela diz por que certas atividades humanas mere-
cem o nome de belas-artes. Alm disso, estabelecendo. as regras gerais a que a
interpretao de cada arte particular deve se ater a fim de no menosprezar a sua
essncia, ela a proteo mais segura contra o onipresente risco de filistinisrno,
o qual consiste em no ver a arte onde ela est, e em admir-Ia onde no existe.
Uma poitica ' geral no dispensa nenhuma poitica particular, mas utiliza
todas elas. Faltaria, pois, escrever um estudo que considerasse sucessivamente
cada uma das artes maiores a fim de testar se as concluses da poitica geral se
verificam nelas e de que modo isso se d. Tal no seria propriamente um sistema
de belas-artes, pois elas podem formar um coro, uma dana, e, quem sabe, at
mesmo uma ronda, mas no formariam um sistema. O autor se veria na dificul-
dade de falar de tcnicas que no possui, mas mister confessar que precisa-
mente esse o fardo do filsofo, pois quem perderia o seu tempo escrevendo
'sobre msica, se a pudesse compor? Ao menos ele pode se abster de tomar a
filosofia por arte e, ajudando outras pessoas a fazerem o mesmo, pode poupar o
mundo de muita arte ruim, de muita filosofia ruim. Mas ainda isso, quem sabe,
seria esperar demais.
PREFCIO I 9
3 Do grego "poiel"", i.e., "fazer", "produzir". (N. T.)
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,c:Li p.IfUI.: :; ... ~(!)I.,y~ .6
O que filosofar sobre a arte?
No fim de uma vida repleta dos prazeres da arte, natural que um filsofo
se interrogue sobre sua origem. O que a arte? A resposta deve ser fcil de
encontrar. Letras, msica, pintura, escultura - a arte sob todas as suas formas
lhe serviu as suas obras com requinte e abundncia. Aquelas que sua poca no
produziu para ele, o trabalho dos historiadores e dos arquelogos literalmente
desenterrou e colocou sob os seus olhos. Os eruditos decifraram e recompuse-
ram o poema de Gilgamesh, tornaram pblicas as esttuas do Egito e da Grcia,deram voz a um sem-nmero de msicos cujas obras hibernavam, em estado de
criptograrna, dentro de velhos cofres, armrios de sacristia ou bibliotecas nunca
antes visitadas. Desse mundo de obras esquecidas, assim como das que teve a fe-
licidade de ver nascer, o filsofo preguiosamente se contentou com o desfrute.
A arte no lhe deve nada. Ele morreu sem enriquecer a terra com o mais diminuto
objeto que aumentasse a sua beleza. Sua nica funo sendo compreender e fazer
compreender, resta-lhe interrogar-se sobre a origem de tantos prazeres, que lhe
parecem nobres e benfazejos, mas cuja exata natureza lhe escapa. ele prprio,sem dvida, que deve cumprir essa incumbncia, para si mesmo e para os outros.
precisamente essa a sua tarefa; enquanto filsofo, ele no se lhe pode furtar.No obstante, cada vez que ele aborda o problema um tipo de desnimo o
paralisa de antemo e ele pe a pena de lado. A nica esperana de vencer esse
obstculo tomar o mesmo obstculo como objeto de reflexo filosfica. Por
que o filsofo no pode pretender escrever sobre a arte sem experimentar o
irresistvel sentimento da futilidade de tal empresa?
li
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Uma primeira razo o que lhe parece ser o fracasso dos que o fizeram an-
tes dele. Na sua juventude, cheio de uma sensibilidade que o entrega totalmente
imperiosa dominao de obras-primas ento novas, o filsofo se volta esponta-
neamente para os seus maiores a fim de aprender qual seja a origem de prazeres
sem os quais, segundo sente, ser-lhe-ia impossvel viver. Ento, lhes pergunta: o
que isso que eu amo? Qual o objeto do meu amor? E comea a ler escritos
cujos ttulos prometem uma resposta sua questo, diversos "filsofos da arte"
passam por suas mos, mas logo ele constata que a maioria deles se contradiz
em pontos essenciais, especialmente sobre a natureza da arte, isso quando no
acontece de chegarem ao fim sem antes fazerem o esforo de definir o sentido
da questo, o que muito comum. A segunda parte da Esttica, de BenedettoCroce, instrutiva a esse respeito. Trata-se de uma histria da esttica escrita
por um filsofo que foi ao mesmo tempo um mestre da escrita. Consiste numa
avalanche de doutrinas desabando uma atrs da outra, das quais cada uma acre-
dita enterrar para sempre as precedentes no mesmo momento em que enter-
rada, por sua vez, por uma doutrina nova ou apenas renovada. No se pode ler
uma tal histria das filosofias da arte sem sentir uma irresistvel necessidade de
se ocupar de outra coisa. um lamaal onde o sbio cuidar de no pr o p.Uma segunda experincia refora as concluses da primeira: a leitura do
que os prprios artistas dizem ou escrevem a respeito da arte. Comeamos a
leitura confiantes, naturalmente, pois se aqueles que produzem arte no soube-
rem o que ela , quem saber? No entanto, preciso render-se s evidncias e
constatar que a desordem reina nas suas ideias, assim como no primeiro caso.
Eles mesmos consultam os filsofos e herdam a sua confuso, depois do que
eles acrescentam a sua prpria, a qual consiste geralmente em definir sob a
rubrica de arte o gnero particular de arte que convm ao seu talento. Sobre
aquilo que lhes no agrada dizem "isto no arte", e assim como vo que se
discutam gostos, torna-se igualmente vo, por isso mesmo, discutir-se a natu-
reza da arte. O testemunho dos artistas, porm, est longe de ser dispensvel.
Muito pelo contrrio, naquilo que dizem sobre a arte que esto os mais pro-
fundos e verdadeiros pareceres sobre a criao artstica, mas convm isol-los
de tudo o que os liga s particularidades da arte deste artista ou daquele outro.
12 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 13
Tal discernimento no possvel seno quando aquele que busca a verdade na
confuso e nas incompreenses recprocas das controvrsias tiver ele prprio
alguma noo do que, afinal, tal verdade seja.
A culpa dessas confuses no exclusiva da arte. Acrescente-se sua a
ausncia de uma noo clara sobre o papel que a filosofia pode e deve desem-
penhar nesse domnio. Para evitar, se possvel, aumentar a desordem, tentemos,
pois, definir o objeto dessa reflexo. O que que a filosofia pode pretender nos
ensinar a respeito da arte?
A resposta consiste numa s palavra: ela nos pode revelar a sua essncia.
Essa noo to antiga quanto a mesma filosofia ocidental. Sua descoberta per-
manece ligada ao nome de Scrates, cujo desejo era obter dos eventuais inter-
locutores uma definio quanto possvel clara do significado das palavras que
usavam. Sabemos que esse desejo elementar acabou por lhe custar a vida. Plato
retomou a mesma concepo dialtica da filosofia, e Aristteles a transformou
numa das verdades fundamentais de sua filosofia da natureza quando distinguiu,
a propsito de toda coisa, duas questes possveis, a saber, se a coisa existe, e,
ento, o que ela . Aquilo que uma coisa - eis o que os filsofos chamam de
"essncia" desta coisa. Interrogar-se, pois, sobre o que a arte significa, para o
filsofo, procurar qual a sua essncia.
J que prprio da essncia dizer o que a coisa , ela inevitavelmente diz
o que a coisa no . Ora, dizendo "isto um crculo", digo tambm que no
um tringulo, nem um quadrado, nem tampouco um hexgono. Assim, e esta
observao j foi feita na Antiguidade, cada vez que a essncia diz o que a coisa
, diz mil vezes o que ela no ; no sendo, pois, a coisa nada do que sua essn-
cia no , as essncias so mutuamente excludentes, de maneira que a definio
de cada uma delas cabe apenas e to somente coisa que define. Atribuir a uma
essncia as propriedades de outra essncia a origem primeira de confuso em
matria de filosofia. Interrogar-se, pois, sobre a essncia da arte procurar o
que a define enquanto tal e, por isso mesmo, preparar-se para negar tudo o
que ela no .
Desde o primeiro momento, esta investigao enfrenta uma dificuldade
de 25 sculos de histria, a qual no nos cabe resolver aqui, evidentemente,
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mas cuja presena deve ao menos ser reconhecida. Ela est ligada ao problema
das ideias, ou, como se dizia na Idade Mdia, dos universais. Um universal
uma ideia geral, um conceito. No h pensamento sem conceitos e, no entanto,
no parece que os conceitos signifiquem objetos existentes fora do pensamento
que os concebe. S o individual existe. No existe o homem em si, mas apenas
homens. Donde a consequncia embaraosa de que, se as essncias significam
o que as coisas so, as mesmas essncias, no obstante, no existem. Dr-se-a
hoje que, como puros objetos do pensamento, as essncias tm ser, mas no tm
existncia, j que esta ltima continua sendo privilgio do individual concreto.
Donde provm inmeras dificuldades, desde logo porque o parentesco das
duas noes um convite para confundi-Ias. Assim que o filsofo deixa de poli-
ciar sua linguagem, e ainda mais no uso no filosfico dessas palavras, fica quase
impossvel pensar num ser que no tivesse existncia, ou num existente que no
tivesse ser. A linguagem multiplica os equvocos a esse respeito. Mas a dificul-
dade mais geral no se deve linguagem; que nenhum objeto real existente
em ato uma essncia simples. Todo existente pressupe que um complexo de
essncias copossveis e mesmo reciprocamente ordenadas (mas distintas como
essncias) esteja simultaneamente fora da sua causa. Trata-se, aqui, de um fato
primitivo, que no saberamos deduzir de nada anterior, pois se liga prpria
estrutura do real. Da a necessidade de refletir nesse ponto e, desde logo, asse-
gurarmo-nos de sua realidade.
Se se estabelece no considerar como puro seno o ser da essncia en-
quanto tal, certo que nada do que atualmente existente ser metafisicamente
puro. O que, alis, uma tautologia, pois se a noo de "concreto" implica
essa mistura, ele impuro por definio. Isso no implica que procurar a defi-
nio das essncias seja vo. Sem tocar no problema da estrutura metafsica do
ser "concreto", pode-se dizer que, embora nenhum concreto seja uma essncia
simples, ele recebe o seu nome de uma delas. O homem em si no existe, mas
onde quer que se encontre um animal dotado de conhecimento racional, eis a
um homem. Um tal ser evidentemente uma essncia composta de outras es-
sncias, tais como a animalidade e a racional idade; no obstante, uno, segundo
a unidade prpria do ser concreto.
14 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 15
D-se o mesmo com todas as essncias reais, isto , todas aquelas que no
so simples abstraes. Por exemplo, no existe, provavelmente, elemento
qumico puro na natureza. Se se toma a palavra em sentido absoluto, o cobre
"puro" provavelmente no existe como tal a no ser no pensamento ou nos
livros, mas da no se conclui que o cobre no exista. Falar-se- at de bom
grado de objetos de cobre puro, quando o cobre "domina" suas impurezas
na matria que as constitui. Para tanto, basta que o cobre seja, como se diz,
"praticamente puro" de qualquer mistura. Tampouco o fato seguro de que,
mesmo se fosse quimicamente puro, o cobre ainda assim seria um composto
extremamente complexo de elementos atmicos no muda em nada a nature-
za do problema. Em todo caso, permanece importante conhecer a definio,
quididade ou essncia daquilo que se pode chamar de metal puro, ao menos
para saber a que objetos se pode legitimamente dar um tal nome. A impureza
do ouro, como quer que seja, permite que se estabeleam leis para fixar o m-
ximo de impureza alm do qual um metal perde o direito de chamar-se ouro.
O filsofo procede de maneira anloga na sua caa s essncias puras. Ele no
pretende defini-Ias como seres que existem, mas como razes ideais em virtu-
de das quais os seres realmente existentes so o que so. Assim tambm, neste
. caso, a arte em si no existe; no existe qui nem um nico objeto sequer que
seja pura e integralmente uma obra de arte, livre de todo elemento que no
o estritamente artstico, mas ainda assim preciso saber a qual essncia essa
noo corresponde, para que se possa dizer o que faz com que certas obras do
homem sejam verdadeiros produtos deuma arte.
Essa questo, evidentemente, interessa apenas aos filsofos e queles que,
amando a arte por si mesma, tambm ousariam falar dela por amor filosofia,
pois possvel amar a arte como artista e tentar falar a seu respeito como fil-
sofo, mas a combinao rara e difcil de realizar. A arte e a filosofia exigem o
dom de toda uma vida, e difcil ser genuinamente artista e filsofo ao mesmo
tempo. A menos que nos deixemos fascinar pelo gnio artstico de Leonardo
da Vinci, o certo que bem difcil extasiar-se com as reflexes elementares
que a pintura lhe sugere. Acrescente-se que, comparado ao nmero dos amigos
da arte, o dos amigos da filosofia bem restrito. Quando se coloca, pois, uma
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questo na posio de filsofo, convm no esperar nenhuma audincia superior
a um pequeno nmero de espritos especulativos e meditabundos, acostumados
abstrao mesmo nas matrias que Ihes calam mais fundo. O prprio filsofo,
s vezes, sente um certo embarao ao reduzir a conceitos e palavras aqueles
objetos que, para ele, so como que a honra e a glria da realidade.
Tal , contudo, sua condio particular como filsofo. A deciso de pro-
curar a essncia da arte importa inevitavelmente em realar num relevo quase
violento aquilo por que uma obra uma obra de arte, deixando, pois, na sombra
tudo o que, em si mesmo estrangeiro arte, ainda assim permite obra que
exista. Isso pode at ser a maior parte dela, como o tema que o quadro retrata,
os sentimentos que o poema exprime ou a histria que o romance conta; em
todo caso, esta a parte mais visvel e a mais imediatamente cativante no que
toca s convenes da arte, porquanto elas no consideram a arte em si mesma,
mas somente as obras que a arte produz. , pois, previsvel que uma especula-o puramente filosfica acerca do elemento ltimo que faz de uma obra uma
obra de arte no interesse muito a quem, mais artista que filsofo, estima que a
reflexo sobre a arte deva ela mesma ser uma obra de arte. Incapaz de respeitar
ambas as ordens, e pouco disposto a trocar a arte pela filosofia, ele se inclina a
pensar que quem fala sobriamente no sabe o que a arte e a tomar suas efuses
por filosofia. Esse risco est inscrito na prpria natureza do objeto.
A confuso que reina na filosofia da arte, a qual trata da produo e nature-
za das obras, se reencontra no domnio da esttica, que trata da sua apreenso.
Desde logo, confunde-se a segunda com a primeira, da qual diferente. Em
seguida se define o seu objeto de vrias maneiras distintas porque, com efeito,
possuindo a arte um grande nmero de elementos diferentes, e todos eles con-
correndo para o resultado final, acontece de tomar por essencial o que no
seno o mais imediatamente acessvel. Uma obra realmente bela pode logo agra-
dar pelo que tem de fraco. Ela ganha aprovao pelas facilidades que oferece.
Muitos sero os exemplos disso no curso de nossa investigao. Baste-nos por
ora, alm do prprio fato, a razo mais geral que se possa alegar a seu respeito:
a saber, que tudo aquilo que a arte utiliza para seus fins, e com o qual integra
as suas obras, em certa medida faz parte dela prpria e a constitui. Com efeito,
16 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 17
sem elementos desse gnero a obra no seria possvel e, faltando-lhe substncia
para nutrir sua forma, a arte estaria condenada esterilidade.A causa da mais geral confuso, tanto em filosofia da arte quanto em es-
ttica, permanece, porm, a substituio do ponto de vista do apreciador pelo
ponto de vista do artista. Esse erro nos leva a confundir os problemas que se
coloca o consumidor sobre a qualidade do seu produto com aqueles que o pro-
dutor deve primeiro resolver para depois produzi-lo, quando, na maior parte do
tempo, para no dizer sempre, esses problemas so profundamente diferentes.
Nesse conflito, o ponto de vista do apreciador da arte tem um peso ine-
vitavelmente superior ao ponto de vista do artista. O nmero est do lado do
pblico, e a nica coisa que se espera dele o julgamento das obras, pois ainda
que o artista possa julg-lo incompetente, o fato que lhe submete as suas obrase espera a sua aprovao. Repreender o pblico por julgar o que se lhe oferece
para ler, ver ou ouvir no teria sentido algum, seno que, a partir do momento
em que o autorizamos a faz-lo, damos-lhe uma imensa vantagem sobre o ar-
tista, vantagem praticamente sem limites e, em todo caso, sem contrapartida
alguma. A tarefa do artista produzir, o que sempre coloca problemas; ao es-
pectador no cabe seno apreciar o resultado, o que muitssimo mais fcil. A
resposta tradicional, segundo a qual no preciso saber fazer uma cadeira para
poder dizer se ela boa ou no, simplesmente um despropsito. Uma boa
cadeira uma cadeira sobre a qual se est bem sentado, coisa que cada um pode
julgar por si; mas no caso de dizer se uma cadeira bela ou no, quem saberia
responder? Ora, ningum deixaria de dizer o que pensa a respeito, mas pre-
cisamente por isso que as partes no so iguais, pois poucos sabem fazer, mas
todos podem falar. Demais, eminentemente natural que o homem fale daquilo
que l, v ou ouve, e venha a formular, para si mesmo ou para os outros, as im-
presses que recebe e os pensamentos que pensa. Da inextirpvel convico,
vez por outra combatida, mas sempre recorrente, de que a arte essencialmente
linguagem, expresso, signo, smbolo, ou, numa palavra, comunicao de um
sentido que ao artista cabe formular e, ao espectador, compreender. s vezes a
arte chega a ser concebida como um dilogo com a natureza ou com a realidade,
para no dizer com o pblico e at com o prprio artista. Mas esses supostos
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dilogos so em realidade monlogos do crtico, do esteta ou do filsofo, os
quais elaboram perguntas e respostas sem consultar nem a natureza, nem o ar-
tista. Como quer que seja, trata-se sempre de uma atividade essencialmente ver-
bal, e j que a nica coisa que o no artista pode fazer a respeito da arte falar
dela, intil que o filsofo tente lhe explicar que a arte, em essncia, no lin-
guagem. No obstante, o filsofo continua livre para pensar aquilo de que no
espera convencer ningum, mas sua ambio nunca deve ir alm desse ponto.
Mesmo no interior de seu prprio pensamento, o filsofo no est livre
para proceder ao bel-prazer. A natureza do objeto quem dita o mtodo. J
que se trata de definir uma noo - no caso, a noo de arte -, nenhum outro
mtodo se oferece alm da anlise tradicional, que procede por diviso de con-
ceitos abstrados da experincia sensvel. H apenas uma maneira de definir a
arte e de definir, com Plato, o pescador de vara e anzol. Seguindo o exemplo
de Scrates, preciso determinar o conceito atribuindo-lhe tudo o que lhe diz
respeito, e excluindo o que no lhe pertence necessariamente. Desse modo,
definirno-lo em si mesmo, e ao mesmo tempo o distinguimos dos outros;
necessrio que seja assim, porque agora nos movemos no reino das essncias,
onde o conceito rei.
preciso reconhecer que esse mtodo no tem nada de artstico - mas precisamente a que reside a sua excelncia. Interditando os desvios da imagi-
nao, ele se conforma regra segundo a qual toda reflexo filosfica, mesmo aque trata da arte, essencialmente um exerccio especulativo da razo, ou seja,
um movimento discursivo do intelecto. Com efeito, a melhor proteo contra
as tentaes da arbitrariedade consiste precisamente no esforo do esprito em
discernir os objetos por meio de conceitos formados segundo as regras tradi-
cionais, as quais exigem que a definio coincida totalmente com o definido, e
coincida somente com ele. A menos que se aceite a secura desse mtodo, no
sabemos aonde vamos.
Assim como a filosofia da arte deve se proteger da tentao de ser arte, ela
tambm deve renunciar ambio de ser crtica de arte. Ambos os erros, alis,
tm a mesma origem: a circunstncia de que tudo a cujo respeito um homem
pode falar com talento o leva a acreditar que o possa fazer com competncia,
18 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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como se o tivesse produzido. O filsofo to pouco crtico de arte quanto
artista. Sua tarefa, portanto, dizer o que a arte , o que a constitui, no discer-
nir entre obras bem-sucedidas e malogradas. Ele no pode se recusar a tomar
em considerao certas formas de arte, sob o pretexto de que sejam modernas
demais, ou aberrantes, ou estejam em contradio formal com os cnones tra-
dicionalmente aceitos. Tudo o que satisfaz a definio da obra de arte merece a
sua ateno e pode nutrir a sua reflexo. Seus gostos pessoais no tm nenhuma
funo numa investigao como essa. Pode-se amar ou no certas formas her-
mticas de literatura, possvel apreciar ou detestar os modernos estilos de pin-
tura "abstrata", mas em nenhum desses casos o julgamento esttico das obras
deve influenciar a reflexo do filsofo acerca da prpria natureza da arte, a qual
transcende todas as suas realizaes particulares. Essa mesma transcendncia,
alis, impede que o filsofo, partindo de suas concluses, deduza qualquer regra
de julgamento esttico sobre o valor de tal ou qual obra de arte particular. Ne-
nhum esteta jamais conseguiu faz-lo, e basta que os leiamos para nos desfazer
dessa iluso, ns frequentemente admiramos o que eles tm desdenhado, e no
nada incomum que nos desconcertemos com o que admiram. Cada filsofo
da arte relido com uma distncia de trs dcadas nos faz constatar o quanto
seus exemplos levavam a marca da poca e do gosto dominante. Fosse hoje, ele
nomearia outras obras e outros artistas. S permanecem mais ou menos estveis
aqueles grandes nomes, cuja admirao se tornou convencional.
Contudo, no preciso concluir da que o conhecimento filosfico da na-
tureza da arte no tenha utilidade nenhuma como princpio de julgamento, mas,
supondo que se aceite um tal princpio, o nico critrio que fornece o que
distingue a obra de arte daquilo que ela no . O que no pouca coisa, segundo
se ver. De resto, particularmente importante, graas a um pequeno nmero
de certezas fundamentais, poder discernir no seio desses complexos concretos
que so as obras dos artistas aquele ncleo de arte pura que as coloca entre os
produtos de uma das belas-artes. Por isso mesmo torna-se possvel distinguir, na
obra, o que no passa de enchimento ou suporte material, assim como as fun-
es didticas, morais, edificantes ou simplesmente mercenrias que ela venha
a desempenhar. As confuses desse gnero so frequentes, e talvez impossveis
CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 19
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de dissipar, mas a funo do filsofo no reformar o julgamento alheio, seno
ele prprio que se deve converter verdade e, ento, proclam-Ia aos quatro
ventos. Quanto aos outros, somente os que acreditarem que a devem levar em
considerao sabero o quanto ela pode ser til ao esforo de cada um - esforo
de uma vida inteira - para descobrir a beleza l onde ela est e render-lhe uma
justa homenagem. Mesmo esse servio, porm, deve respeitar limites estreitos,
pois no h mister de nenhuma filosofia para fruir as belezas da arte; muito pelo
contrrio, talvez; em todo caso, preciso filosofar sobre a arte se, no contentes
com fru-la, ousamos falar a seu respeito.
A esta altura, algumas observaes prticas viro bem a calhar. De tudo o
que poderamos esperar da filosofia da arte, o menos razovel a facilitao do
dilogo. Os prazeres da arte trazem em si mesmos a prpria justificao e como,
ao falar desses prazeres, acabamos por prolong-los, no devemos esperar de
quem os experimenta que renuncie a dizer o que sentiu. Para ele, filosofar sobre
o prazer que sente no traz nenhuma satisfao. Demais, ele no est certo de
que a filosofia, em qualquer uma das suas formas, seja um tema de conversa. Isso
nunca d certo e cada um dos interlocutores logo puxa para o seu lado, seguindo
o fio do prprio pensamento. Os filsofos s se comunicam de fato por meio
de seus livros; sendo assim, quando se trata de arte, o discurso entra num ter-
reno onde a confuso alcana o seu mximo, porquanto h confuso no prprio
objeto desse discurso. Querer pr ordem nesse terreno, para si mesmo ou para
os outros, praticamente querer impor o silncio, e como a confuso facilita a
conversa, ningum quer sair da confuso. Se ele teima em falar, o filsofo acaba
tocando em verdades to desagradveis que se arrisca a passar por pedante ou
pretensioso. A nica razo para escrever sobre a arte como filsofo , pois, a
necessidade totalmente pessoal de colocar ordem nas prprias ideias, sem se
gabar de no cometer nenhum erro em empresa to modesta como a presente
e esperando apenas que aqueles que, por sua vez, se interrogam sobre o mes-
mo problema talvez encontrem nelas alguma inesperada concordncia com suas
prprias reflexes.
Uma ltima questo preliminar diz respeito prpria possibilidade da em-presa. Ser que uma filosofia geral da arte possvel? Ningum parece duvidar;
20 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
eis a porque muito se publicou, e muito ainda se publicar sobre arte. De resto,
nada mais fcil do que falar da arte em geral, porque toda proposio sobre
ela pode em si mesma ser justiticada por um exemplo emprestado a alguma arte
particular. Se o que se diz no vale para a pintura, pode valer para a msica ou a
poesia. preciso ser muito infeliz no ponto defendido para que nenhuma artelhe traga a justificao desejada. Mais eis que pelo mesmo motivo o ponto que
uma arte justifica, outra nega. Uma filosofia geral da arte, portanto, s possvel
se a razo se ativer ao que se pode dizer da arte precisamente enquanto arte
e, de modo ainda mais particular, arte do belo. certamente impossvel falarda arte em geral sem nunca se referir a nenhuma arte em particular, mas o que
importa, neste caso, considerar na arte em questo apenas aquilo por que
arte, e no esta arte; no fim dessa investigao geral, tornar-se- possvel testar
como as suas concluses se verificam em cada arte particular, o que importa
numa investigao distinta cujo objeto, claro est, especificamente diferente.
Uma vez tomadas essas precaues, resta precaver-se contra o risco de
se desencorajar no curso da empresa. Um sentimento difuso de futilidade pesa
continuamente sobre ela, sobretudo se o filsofo tende a concluir, contra a
opinio geral, que a arte no essencialmente linguagem. Como no se per-
guntar acerca da utilidade de um discurso sobre o que no discurso? A razo
de perseverar apenas esta: o pensamento de que o papel da linguagem, aqui,
precisamente conduzir o esprito a uma ordem de realidade metaverbal.' que a
rigor no depende da palavra e da inteleco. Segundo, porm, se ver, no se
trata de procurar em vagas regies do sentimento ou de alguma iniciao ms-
tica as respostas que o pensamento nos recusa. Muito pelo contrrio, apenas a
inteligncia e a razo permitem delimitar uma zona em que os acontecimentos
do esprito, justificveis como tudo aquilo de que formamos uma ideia, pro-
vm de um alm do conhecimento e da palavra. No obstante, no se trata de
um alm dentro da mesma linha, mas de um exterior que se situa numa outra
ordem. O sentimento de que a tarefa til nos encoraja a insistir no esforo
1 Ou seja: "supraverbal", assimcomo o vocbulo "metafsica", etimologicamente, significa"suprafsica", i.e., disciplina que se ocupa de fenmenos hierarquicamente superiores aosfsicos. (N. T.)
CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 21
-
ingrato de uma razo cuja nica recompensa, ao fim e ao cabo, reconhecer
um de seus limites.
Uma outra causa de pessimismo que, segundo dissemos, a filosofia se
prope a pensar em separado essncias que no existem em separado. Portan-
to, preciso resignar-se, tentando isol-Ias para ento defini-Ias, com a certeza
de que, no final, haveremos de juntar tudo de novo. Mais ainda, no momento
mesmo em que separa, o esprito sabe que isso que divide est unido na realida-
de, e nunca deixa de ser em conjunto. Essa dificuldade geral particularmente
sensvel em filosofia da arte. Depois de haver isolado a pepita de arte pura da
ganga onde est incrustada, preciso reconhecer que ela nunca teria existido
e jamais subsistiria sem o resto. Uma obra dita de arte porque contm arte
pura, mas precisa de impurezas para simplesmente existir. Alm disso, ao mes-
mo tempo em que atinge a plena conscincia de sua diferena especfica, cada
arte particular procura se unir s outras e tende mesmo a substitu-Ias nas suas
funes prprias. O pintor quer falar, o escritor quer pintar, a msica quer os
dois e vez por outra pretende at filosofar para alm de toda arte. Enquanto
Mallarm sonha escrever o livro que estaria para todos os livros como a idiaplatnica da cama em si est para todas as camas, ou quando Wagner tenta
criar, por meio do drama musical, um equivalente moderno da sntese concreta
das artes que foi outrora, segundo ele, a tragdia grega, uma coisa muito di-
ferente vem tona, muito menos ambiciosa, mas que no obstante existe. Em
todo caso, no cabe ao filsofo julgar essas empresas, que ele deve aceitar sim-
plesmente como fatos. Aqueles que se queixam que a msica de Wagner no
pura esquecem que a confuso mtico-filosfica que a acompanha sem dvida
lhe era necessria para existir, e mesmo para existir enquanto msica. O filso-
fo no est na posio de julgar tais projetos, ou os seus resultados; sua nica
tarefa levar a luz da razo a uma selva oscura cheia de fatos, todos diferentesentre si, mas dados em conjunto. Talvez o censurem, pois, por descrever com
o nome de arte uma coisa que no existe - vaidade das vaidades - e, embora
ele o saiba, sabe tambm que a coisa que chama por esse nome aquilo em
virtude do qual as obras de arte merecem ser chamadas assim. Portanto, sem-
pre precisamos voltar ao fato fundamental: a filosofia da arte no arte, mas
22 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
conhecimento. As satisfaes eminentemente intelectuais que ela proporciona
carecem de encanto para os coraes sensveis, mas ela os no poderia tentar
encantar sem to logo deixar de existir.
Se se desconta a imensa literatura de massa produzida por escritores que
exploram o domnio do "livro de arte", seguida da literatura erudita produzida
por professores de histria da arte, esttica ou filosofia da arte, que tomam a
arte como pretexto para seus livros, mas nada podem dizer sobre a prpria arte
simplesmente porque desconhecem a sua prtica - e a arte uma prtica -,
sobra pouca coisa para ler sobre um tema de que tanto se escreveu. Quem sabe
ele no se preste a tanto, e no haja nada a reprovar aos que preferem pratic-
10 em vez de difundir no pblico uma falsa noo do que ele seja. Evitar-se-a,em particular, o caminho (romanceado ou no) dos grandes artistas, no que
lhe falte interesse em si mesmo, mas porque um tal interesse no diz respeito
arte, nem sequer sua arte: a "Vida Amorosa de X" no o que fez dele um
artista; quando muito ela explica o que, semelhante vida amorosa de muita
gente que no artista, acompanhou o nascimento da sua obra e, talvez, a oca-
sionou - mas no a causou. Em filosofia propriamente dita, no fosse a Filosofiada Arte, de Hippolyte Taine, em que tudo o que concerne s obras dos artistas,exceto a arte que as produziu, recebe um tratamento brilhante, o principal livro
que se deve evitar a Crtica do Juzo, de Immanuel Kant. No que no se tratede uma obra-prima no prprio gnero, mas, sendo este ltimo a filosofia do co-
nhecimento, quem a l sem desconfiana tende a confundir os problemas colo-
cados pela filosofia da arte com aqueles que na verdade pertencem esttica.
Precisamente por causa da autoridade de que desfruta, nenhum livro favorece
mais a confuso, hoje generalizada, entre o domnio da apreenso da obra de
arte, acompanhado do costumeiro julgamento sobre o que se apreende, e o do-
mnio da arte que no seno a causa eficiente da obra em questo. O que Kant
chama de analtica do belo, ou do sublime, uma analtica dos juzos pelos
quais o leitor ou o espectador atribui beleza ou sublimidade s obras que lhe
agradam. Eis por que, a propsito, uma tal anlise inclui o sublime matemtico
e o sublime da natureza, alm do sublime artstico. de se lamentar, pois, a ex-trema discrio de Kant a respeito da prpria arte, pois ningum teria sido mais
CAPTULO I - O QUE FILOSOFAR SOBRE A ARTE? I 23
-
capaz que ele de perscrutar a natureza do gnero distinto de realidades que so
as obras produzidas pela arte dos artistas. O pouco que ele diz a respeito, no
43, "Da Arte em Geral", e no 44, "Das Belas-Artes", de uma justeza tal que
toda a nossa recomendao ainda seria pouca. A partir do 46, que define as
belas-artes como as "artes do gnio", sem deixar de fazer jus ao seu propsito,
Kant toma um caminho que no o nosso. As definies do talento, do gnio
e da maneira segundo a qual, por meio do gnio, a natureza estabelece as regras
da arte, a despeito do que tenham de engenhoso, do a impresso de que pre-
param uma crtica do juzo teleolgico, e precisamente por isso completam o
monumento das trs Crticas, mas no elucidam a natureza da prpria arte. Kantseguia, naturalmente, o seu prprio caminho; ele no cometeu o erro a que sua
obra expe; devemos l-Ia como uma filosofia da esttica que ocasionalmente
trata da arte, e no como uma filosofia da arte que ocasionalmente trata de es-
ttica - o que, por sua vez, definiria muito bem a inteno do presente ensaio.
24 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
, -.it-IIUI- .'c) II.. '.. ......~ ', ~ ~;.
~As artes do belo
Os atos que o homem executa so de espcies distintas: ele , conhece,
age e faz.
Ser um ato: todas as ulteriores operaes do homem o pressupem e dele
derivam. Mozart morre aos 35 anos: ningum mais vai compor outra pea de
Mozart, depois da morte de Schubert, aos 31 anos, esta inesgotvel fonte de
msica se cala - e assim por diante, em todos os domnios. Precisamente porque
o ato em virtude do qual o ser se acha pressuposto por todas as suas operaes
ulteriores, ele da alada da metafsica. a filosofia da arte, pois, aceita esse ato
como um princpio. Este , na verdade, o primeiro princpio, que ela supe esta-
belecido e reconhecido. As operaes do conhecimento so objeto da notica,
incluindo as cincias relacionadas, como a epistemologia, a lgica, a gramtica
e todas as cincias e artes da linguagem e da expresso. As operaes da ordem
da ao constituem o objeto da tica e de todas as disciplinas que comportam
uma dose de deontologia. Na medida em que o comportam, seu domnio o
da moralidade. As operaes da alada da factividade, isto , da produo ou
fabricao sob todas as suas formas, constituem uma ordem distinta das pre-
cedentes. Com efeito, o conhecimento pressupe que seu objeto est dado e
se limita a conceb-lo tal como . A ao produz sua maneira, no sentido de
ser a causa eficiente de certos efeitos, mas esses efeitos so atos do sujeito ou
consequncias naturais desses atos. A factividade, ao contrrio, tem por efeito a
produo de seres ou objetos distintos de sua causa e capazes de subsistir sem
ela, durante um tempo varivel. Nossos atos se nos seguem, mas nossas obras
-
nos sobrevivem; "o busto", diz o poeta, "sobrevive cidade". Portanto, so
trs as principais operaes do homem: conhecer, agir e fazer, correspondendo
a trs ordens distintas: o conhecimento, a atividade e a factividade. Estas trs
ordens se realizam sob a forma de trs disciplinas principais, que compreendem
todas as operaes do homem: a cincia, a moral e a arte.
O homem uno e se coloca inteiramente em cada um dos seus atos, mas
em graus diferentes e diferentes propores. No que quer que faa, o homem
conhece. Com efeito, j que sua natureza a de um ser vivo dotado de razo,
a atividade racional est necessariamente includa em toda operao humana
como condio de sua prpria possibilidade. Por outro lado, operar agir, e
nossos atos muitas vezes tm consequncias cuja causa somos ns, ainda que
as no tenhamos causado diretamente. Enfim, problemas de moral costumam
acompanhar a atividade do estudioso, do engenheiro ou do industrial, e sa-
bemos muito bem que a arte est longe de se furtar a este gnero de questo.
No precisamos do filsofo para saber essas coisas; os jornais esto cheios de
problemas assim, cuja importncia prtica arrebata a imaginao e a atemoriza
com a sua dificuldade. Mas aqui o que nos cabe distinguir, neste complexo de
atividades que se implicam mutuamente, o que discerne a arte como tal.
Todas as artes, indistintamente, so da alada da factividade - so o que
prprio do homo faber, que o mesmo que o homo sapien, ambos so um s como homo loquens, mas a circunstncia de que todas essas operaes venham domesmo sujeito no nos autoriza a confund-los. A causa principal das confuses
que atravancam a filosofia da arte o fato de que o homem no seja" obreiro"
seno porque "sbio". possvel conhecer, se no sem agir, ao menos semfabricar, mas no se pode fabricar sem conhecer. No obstante, preciso tam-
bm levar em conta que a ordem do fazer, em essncia, distinta da do conhe-
cer. clssico, na tradio grega de Plato, Aristteles e Plotino, considerar avida de conhecimento e contemplao como diferente - e mais elevada - da
vida de ao. A prpria religio crist simbolizou e difundiu, pelo evangelho de
Marta e de Maria, o princpio da superioridade da contemplao sobre a ao.
Durante sculos, enfim, sbios, letrados e filsofos negligenciaram um pouco a
classe dos artistas, que ento no se distinguia da dos escravos e, mais tarde, da
26 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
CAPTULO" - As ARTES DO BELO I 27
de simples trabalhadores manuais. Isto, porm, so apenas sinais do problema
que reter nossa ateno. Pois teremos de distinguir a arte na medida em que
no um agir nem um conhecer, por mais estreitas que sejam as suas relaes
com essas outras ordens. S h arte a onde, no essencial, e como que na sua
prpria substncia, a operao no consiste em conhecer nem em agir, mas em
produzir e fabricar.
A justificativa desta deciso que, conquanto ela demande as outras e at
dependa delas em mais de um aspecto, a atividade de fabricao do homem
deriva diretamente do seu ato de ser, sem passar pelo conhecer nem pelo agir,
mesmo quando os implica. O homo faber desde o incio um ens faber, pois suaatividade de fabricao como que uma promoo do seu ato de existir. Ela de-
corre diretamente dele e, alis, por isso que lhe inseparveI. A Pr-Histra
no est certa da presena do homem seno quando pode comprovar, num s-
tio qualquer, a presena de objetos que no podem ser considerados obra da
natureza. No sempre que se tem certeza de que uma pedra encontrada em
determinado stio seja um slex lascado, mas se se estabelece que o , tem-se
logo a certeza de que obra humana. O imenso desenvolvimento da produo
industrial, sobretudo desde a inveno de mquinas que operam como ferra-'
mentas, atesta a pujana desta necessidade primitiva de fabricar e a fecundidade
de que capaz quando se ilumina com as luzes do conhecimento, numa srie
de trocas entre o conhecer e o fazer de que a cincia no se cansa de aproveitar.
A histria da factividade nos escapa. Mas talvez no estivssemos muito
longe da verdade imaginando o seu comeo como ligado necessidade espon-
tnea de fazer alguma coisa, algo que se observa facilmente nas crianas e que se
afirma com vigor num grande nmero de adultos cujas mos esto sempre ocu-
padas a fabricar. impossvel dizer com algum grau de certeza em que propor-o esta atividade humana de fabricao foi exerci da em vista de fins imediata-
mente teis, e em que proporo em vista de fins desinteressados ou religiosos.
No se pode excluir a pror que muito cedo na histria da espcie os homenspudessem fabricar simplesmente pelo prazer de faz-Io. Tal e qual a funo da
linguagem articulada, tambm a factividade pode ter sido exerci da por si mes-
ma, como que para se assegurar da prpria existncia, ao mesmo tempo em que
-
se especializava em vista de diversos fins. Como quer que seja, especulaes
deste gnero so um esforo vo, pois imaginamos a origem da arte segundo
aquilo que, no momento presente, se configura como tal. Portanto, a partir de
nossa experincia da arte que devemos definir a sua natureza. O mtodo mais
cmodo para faz-lo, tomando a questo em toda a sua generalidade, ser deter-
minar o fim prprio da arte nos diversos domnios da factividade.
O ttulo de um tratado de Santo Agostinho, hoje perdido, sugere uma
distino muito antiga entre o belo e o til: De Pu/chro et Apto. Logo reencon-traremos a mesma distino, mas antes convm inclu-Ia numa outra ainda mais
ampla concernente ao belo, a saber, a distino entre a beleza dos seres naturais,
a dos objetos fabricados e a das obras de arte. Segundo exigncia do progresso
mesmo da reflexo, tentemos aqui uma primeira aproximao da noo metaf-
sica de beleza, sob a condio de retom-Ia mais tarde e aprofund-la. Digamos,
pois, que o belo se reconhece por ser objeto de admirao. A palavra admirar
significa "voltar o olhar na direo de"; admirao a reao espontnea do
homem, sensibilidade e inteligncia, percepo de todo objeto cuja apreenso
agrada por si mesma.
O objeto em questo pode ser natural. Trata-se, ento, como se diz, de
um "produto da natureza". Quer seja um corpo humano, um animal, uma r-
vore ou uma paisagem, a admirao se produz quando se acham esponta-
neamente reunidas todas as condies necessrias para que a viso do objeto
agrade por si mesma. provvel que a natureza possua belezas e produzasentimentos de admirao superiores a tudo o que a arte pode oferecer, tan-
to mais porque tais sentimentos e belezas vm frequentemente acompanha-
dos de impresses fsicas de bem-estar, mas os objetos e espetculos naturais
no foram feitos com o fito de produzir essas impresses. Mais exatamente,
eles no foram feitos, mas causados pelo jogo espontneo das foras naturais.A menos que se apele noo de arte divina, a qual coloca problemas metaf-
sicos e teolgicos dos mais complexos, preciso dizer que, se se restringe ao
plano da experincia, as belezas naturais no so produtos de nenhuma arte.
Supondo que absolutamente se quisesse remontar a Deus, teramos ento de
acrescentar que, ainda quando faz coisas belas, Deus no as faz em vista da sua
28 I INTRODUO s ARTES DO BELO
-
beleza, isto , considerando a beleza como o seu fim ltimo. A arte divina no
corresponde a nenhuma das belas-artes.
Desamos agora at a factividade. para que se possa, pois, atribuir a beleza
de um objeto a uma arte qualquer, preciso que este objeto seja "feito" pelo
homem. Precisamente aqui intervm a distino entre o belo e o til. A imensa
maioria das atividades de fabricao se prope como fim produo e multi-plicao de objetos teis em todos os domnios da utilidade. til o que servepara alguma coisa. No h oposio entre o til e o belo, j que possvel que a
beleza seja til- o que, em certo sentido, ela sempre . No obstante, ela nunca
produzida em vista de sua possvel utilizao, mas apenas e to somente por si
mesma. De maneira inversa, possvel que um objeto feito em vista de sua utili-
dade seja ao mesmo tempo um objeto belo; na verdade, sempre desejvel que
seja assim: omne tulit punctum ... Muitos objetos da indstria - mquinas, navios,avies, utenslios domsticos e outros - so mais belos que vrias obras de arte
concebidas unicamente em vista da sua beleza, mas malogradas ou francamente
feias. Se se toma a palavra arte no seu sentido mais geral, isto , aquele da ex-
presso tradicional "artes e ofcios", pode-se dizer que em sentido lato os pro-
dutos da indstria, e todas as grandes obras do homem que modificam, talvez, o
aspecto e a prpria estrutura da natureza - uma ponte, um tnel, a abertura de
um istmo, um dique -, so obras de arte.
Neste sentido, tais objetos tm a sua beleza, mas esta no o mesmo g-
nero de beleza das obras produzidas pelas belas-artes. A beleza de uma turbina,
de um automvel, de um barco ou de um avio sem dvida pertence beleza
das obras feitas pelo homem, por meio de uma das "artes e ofcios", mas tais
produtos da arte no foram feitos em vista de sua beleza. Assim como a beleza
dos seres naturais, tambm esta uma beleza suplementar, com a diferena de
que no se trata, evidentemente, de beleza da natureza, mas, por assim dizer, de
uma como beleza da utilidade. Alis, ns a percebemos precisamente como tal,
pois uma observao que se faz amide a de que um produto manufaturado
tanto mais belo quanto mais a sua forma determinada pelo fim por que pro-
duzido. A adaptao do objeto sua funo e a beleza prpria deste objeto soem regra diretamente proporcionais. Trata-se, pois, do que muito bem se pode
CAPTULO 11- As ARTES DO BELO I 29
-
chamar de beleza "funcional". Tanto isto verdadeiro que se v com pesar os
construtores desfigurando a beleza de suas mquinas, quando tentam ernbelez-
Ias com ornamentos suprfluos emprestados ao domnio das belas-artes. Assim
como a beleza da natureza, tambm a da utilidade pode ultrapassar a da pintura
ou da escultura, contanto que, fiel sua essncia, no as tente imitar. De resto,
o contrrio igualmente verdadeiro, pois os pintores e escultores seduzidos
pela beleza prpria das mquinas, do mesmo modo que muitos o foram e ainda
so pela da natureza, enganam-se profundamente quando querem se apoderar
e como que se apropriar de tal beleza imitando-a na forma de suas pinturas e
de suas esttuas. Eles acreditam que, ao imitar a beleza de uma mquina, trans-
formam-na em beleza artstica, mas isto uma iluso, pois apenas uma mquina
pode ter a beleza de uma mquina. O que prprio de uma beleza deste gnero
no acontecer, como se diz, "de caso pensado", enquanto a arte propriamente
dita produz objetos expressamente planejados e concebidos to s em vista de
sua beleza. As artes deste gnero so as "belas-artes", pois so artes do belo,
na medida em que os objetos que produzem no tm nenhuma outra funo
imediata e primeira seno a de serem belos. Este o seu fim prprio, sua "razo
de ser" e, consequentemente, sua natureza. A filosofia das artes do belo tem,
pois, por objeto o conjunto dos domnios da factividade cujo fim prprio pro-
duzir coisas belas, qualquer que seja o seu gnero de beleza. O mais das vezes,
confunde-se filosofia da arte com esttica. A confuso est to profundamente
enraizada, sobretudo desde o triunfo do idealismo kantiano, que chegamos a
esperar de todo livro com "esttica" no ttulo que nos exponha uma filosofia da
arte - o que, numa palavra, um grave erro, porquanto no se deve confundir
o ponto de vista do produtor com o do consumidor. Saber degustar uma arte,
mas a arte do gourmet no a culinria; do mesmo modo, no se deve confundir
a filosofia das artes que produzem o belo com a filosofia do conjunto de expe-
rincias em que apreendemos a beleza.
Frequentemente se objeta aos filsofos que os problemas de que tratam
so totalmente indiferentes aos artistas. Isto um exagero, mas, supondo que
fosse verdade, preciso dizer que no falamos a linguagem da arte aqui - a qual,
de resto, nem vai muito longe -, seno a linguagem da filosofia da arte, cujo fim,
30 I INTRODUO S ARTES DO BELO
=
-
sendo filosofia, no a beleza, mas a verdade. Contrariamente a um precon-
ceito muito difundido sobretudo pelos prprios filsofos, o homem pode mais
do que aquilo que sabe - no que, alis, ele se assemelha natureza, que muito
produz e no sabe nada. Gastamos nossa cincia tentando segui-Ia, e ainda que
o saber do homem aumente consideravelmente o seu poder, as foras que este
saber coloca sua disposio no deixam de ser foras naturais. Tambm o ar-
tista, neste ponto, se assemelha natureza: sobretudo ele pode muito mais do
que aquilo que sabe. Por acaso havia estetas .em Lascaux> No, sem dvida, mas
pintores certamente havia. Um artista no precisa saber o que a arte, contanto
que saiba o que, afinal, ele quer que a sua arte seja. Os artistas no esto proi-
bidos, evidentemente, de filosofar sobre a arte; na verdade, gostaramos que o
fizessem mais amide, porm no podem faz-lo seno na posio de filsofos,
e se a sua experincia pessoal concede autoridade ao que dizem, a limitao que
ela Ihes impe tambm possui os seus inconvenientes.
Para quem pretende falar de filosofia, a ordem exige que comece por exa-
minar a natureza do belo em geral, considerado, por assim dizer, antes do seu
"descenso" s duas grandes espcies do belo natural (ou artificial) e do belo
artstico. Um tal estudo por definio anterior filosofia da arte propriamente
dita, de maneira que lhe uma condio necessria.
A doutrina do belo como tal pode receber o nome de "calologia". Ela est
para a filosofia da arte assim como a epistemologia para a cincia (entendida
como conhecimento da verdade) ou a agatologia para a moral (compreendida
como a cincia do bem). Cada uma dessas disciplinas tem por objeto um trans-
cendental que, sendo convertvel com o ser, est incluso no objeto geral da
ontologia. Como conhecimento de um dos modos do ser como tal, a calologia
da alada da metafsica. Compreende-se, pois, que o artista como tal no se
interesse por este gnero de questes, mas, artista ou no, quem filosofa sobre
as belas-artes se condena a no saber nada do que diz se desde logo no se in-
terroga sobre a natureza do belo, que o objeto mesmo que este gnero de arte
se prope a produzir.
Chama-se belo, dizamos h pouco, quilo que provoca a admirao e
retm o olhar. Precisemos desde logo este ponto essencial: o belo artstico se
CAPTULO 11 - As ARTES DO BELO I 31
-
define sempre, mesmo do simples ponto de vista de sua definio nominal,
como dado numa percepo sensvel cuja apreenso desejvel em si e por si
mesma. A percepo-tipo que se costuma citar neste caso a viso, e j que
toda percepo do belo desejvel medida que se acompanha de prazer, os
Escolsticos definiam o belo como aquilo cuja viso d prazer, ou antes, "o que
agrada viso" (id quod visum placet).No faltam objees a esta definio. A mais comum assevera que, nestas
condies, reduz-se a filosofia do belo a uma variedade de eudemonismo. Mas
dizer isto cometer um erro. No se trata de dizer que o prprio belo consiste
no prazer que produz, mas antes que se reconhece a presena do belo pelo
prazer de que sua apreenso se acompanha. verdade que certos inimigos daalegria consideram todo prazer como aviltante experincia em que se inclui,
mas tanto vale o prazer quanto a causa que o produziu, e os telogos no con-
sideram que a viso de Deus seja aviltante pelo fato de ser "beatfca". Beatriz,
"aquela que beatifica", revelava sua nobreza pela alegria de que seu mero sorriso
cumulava o altssimo poeta. Os prazeres da arte fazem muito para no-Ia fazer
amada; o homem no tem de se envergonhar daquilo que o faz feliz.
Contudo, convm que faamos jus a uma outra objeo e reconheamos
.que a palavra "prazer", sempre vaga, -o de maneira toda particular quando se
aplica experincia do belo. H prazeres de todos os tipos, que se distinguem
por seus diversos graus de materialidade, desde os prazeres do tato e do paladar
ligados s mais elementares funes biolgicas at os da apreenso, compreen-
so e descoberta da verdade. Os prazeres do conhecimento podem ser leves e
semelhantes a uma euforia contnua, mas talvez nenhum outro tipo embriague
tanto, nenhum outro seja mais violento que o prazer que acompanha a descober-
ta daquelas ideias - "glria de um longo desejo" - cuja mera erupo basta para
pr ordem numa enorme massa de outras ideias, e revela ao esprito a inteligi-
bilidade de um vasto campo do real. Tomemos por smbolo de tais prazeres que
desabrocham em alegrias a emoo de Malebranche quando encontrou L'Homme,de Descartes, numa livraria da rua Saint-Iacques, folheou-o, comprou-o e "leu-o
com tanto prazer, que de tempos em tempos era obrigado a interromper a lei-
tura por causa da acelerao dos batimentos cardacos, tal era o prazer que o
32 I INTRODUO S ARTES DO BELO
..
-
arrebatava". 1 Quem nunca interrompeu a leitura de um livro de erudio, de
cincia ou de filosofia para tomar flego, digamos, diante da carga emocional de
tal leitura, certamente ignora uma das alegrias mais intensas da vida do esprito.
Os prazeres da arte so deste gnero, pois esto ligados ao conhecimento que
tomamos de certos objetos e ao mesmo ato por que os apreendemos. Donde a
seguinte definio nominal do belo: aquilo cuja apreenso agrada em .si e por si
mesma. O prazer do belo ora engendra o desejo, ora o coroa; em todo caso, a
experincia do belo engendra o desejo e se coroa de prazer.
At aqui, o belo de que vimos tratando podia ser indiferentemente o pro-
duzido pela natureza, pela verdade, ou, enfim, pela obra de arte elaborada ex-pressamente em vista da beleza. As trs experincias so, porm, distintas, e
chegado o momento de diferenci-Ias.
A distino entre o belo natural e o belo artstico se faz por si mesma. Com
efeito, essencial a este ltimo que o objeto cuja apreenso causa prazer seja
percebido como a obra de um homem, a saber, o artista. Tanto isto verdadeiro
que, se um trompe-l'oeil fosse completamente bem-sucedido, o espectador acredi-taria estar em presena de um objeto natural ou um espetculo da natureza; ele
ento experimentaria o prazer e a admirao proporcionados por uma bela flor,
um' belo animal ou uma bela paisagem, no o prazer especificamente diferente
que a obra de arte percebida como tal proporciona ao leitor, ao espectador ou
ao ouvinte. Atrs da obra de arte, sentimos sempre a presena do homem que
a produziu. isto, alis, o que confere experincia esttica o seu carter tointensamente humano, j que, por meio da obra de arte, um homem necessaria-
mente se pe em relao com outros homens. Virglio, Vermeer de Delft, Mon-
teverdi e mesmo os annimos esto eternamente presentes nas suas obras - e
esta presena nos sensvel. Tanto o que a experincia da arte est ligada ao
sentimento desta presena. No h presena humana por detrs da natureza; a
neste lugar sente-se apenas uma trgica ausncia, que as imprecaes de Vigny
denunciaram com a violncia que j conhecemos. Se que se percebe uma pre-
sena em tal lugar, esta s pode ser, evidentemente, a presena de Deus.
1 Cf. Cousin, Fragments Philosophiques. 5. ed., v. 4, p. 473-474.
CAPTULO 11 - As ARTES DO BELO I 33
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De nada adianta objetar que Deus artista, pois Ele o na medida em
que o ser uma perfeio, mas Sua maneira de s-lo tem apenas uma longnquaanalogia com a nossa. Deus cria a beleza natural criando a natureza, mas o fim
da natureza no ser bela, e Deus no cria objetos cuja finalidade prpria seja a
de serem belos. Deus no cria quadros nem sinfonias, e mesmo os Salmos no
so os salmos de Deus, mas os salmos de Davi. Assim como Deus constitui a
natureza no seio do ser e deixa que ela mesma realize as operaes que lhe so
prprias, assim tambm Deus cria os artistas e Ihes deixa o cuidado de acres-
centar algo natureza produzindo obras de arte. Portanto, a arte nos coloca napresena de Deus tal como a natureza, mas do mesmo modo que a filosofia da
natureza tem por objeto a natureza, e no Deus, tambm a filosofia da arte no
trata diretamente de Deus, mas da arte. , pois, essencial beleza da arte quenos coloque na imediata presena do artista, que um homem, pois a arte
coisa eminentemente humana. Deus no tem mos.
A confuso entre os prazeres da verdade e os prazeres da beleza mais
difcil de dissipar, pois a verdade tem a sua beleza prpria, j que convertvel
com o ser. Eis a porque, sendo mais familiar aos filsofos, a definio da beleza
inteligvel se confunde no esprito deles com a da beleza em si. A definio
. clssica testemunha: a Beleza o esplendor da Verdade. Nada mais exato, mas
esta definio s vale para a beleza do ser como objeto do conhecimento, isto
, para a verdade. Nunca demais enfatizar as desastrosas consequncias de
estender-se a noo de beleza da verdade beleza da arte, para todas as formasartsticas. Toda a arte clssica francesa, to rica em obras-primas, produziu obras
apesar do princpio fatal, e perfeitamente falso, de que "rien n'est beau que le vrai, levrai seul est aimable". 2 Desenvolvendo-se o mesmo princpio, acabou-se por definira verdade como a "natureza", chegando-se, assim, doutrina igualmente cls-sica segundo a qual a finalidade da arte a imitao desta natureza. A confuso
inicial entre a beleza do conhecimento e a beleza da arte , pois, a prpria raiz
da funesta doutrina da arte concebida como um gnero de imitao. Teremos
ocasio de esquadrinhar o sentido e as consequncias de tal doutrina; baste
2 Verso da nona epstola de Boleau "to s a verdade bela, s ela desejvel". (N. T)
34 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
por ora que observemos o quanto a sua falsidade evidente. Quem se importa
com a verdade ou a falsidade do que um poema, um romance, uma tragdia, um
desenho ou um quadro nos mostra? Em que consiste a verdade de uma fuga de
Bach> Com efeito, uma obra de arte no verdadeira nem falsa. A arte tal que
a noo de verdade nem sequer se coloca a seu respeito. Trata-se de uma distin-
o primacial entre esses domnios. A maioria rejeita esta distino especfica;
chega a se indignar que se recuse a fazer da beleza um caso particular da verda-
de, da arte um caso particular do conhecimento; mas o fato que essa maioria
est muito mais bem informada das coisas do conhecimento, que das coisas da
arte. Tal a fortuna dos que pensam sempre e nunca fabricam nada.
No negamos que a verdade tenha a sua beleza, sem dvida a mais elevada
de todas, nem que a experincia intelectual desta verdade se acompanhe de pra-
zer. A beleza do inteligvel aquilo que d prazer quando compreendido. Esta
experincia diferente, todavia, da experincia do belo artstico. Quando lemos
um livro para nos instruir, sem dvida temos prazer em lhe compreender o senti-
do. E quanto maior o esforo necessrio para assimilar este sentido, maior o pra-
zer da compreenso. Quer se trate de cincia ou de filosofia - pouco importa-,
a experincia permanece a mesma e aquilo que a caracteriza que, quanto mais
bem-sucedida, menor o desejo de recome-Ia. Os prazeres intelectuais da des-
coberta no se repetem; o que se encontrou por si mesmo ou se aprendeu de
outrem est compreendido de uma vez por todas. Se o leitor precisar reler um
livro, no para aprender de novo o que j sabe, nem para ter o prazer de des-
cobrir uma segunda vez o que j encontrou na primeira, mas, pelo contrrio,
porque no o compreendeu completamente, ou porque lhe escapa a memria
do que leu. Haveria algo de absurdo no desejo de aprender o que j se sabe.
Eis por que um desejo que no se tem. Os livros a que mais devemos so os
que, mediante prolongada meditao - ou, quem sabe, logo de imediato e sem
esforo -, transformamos em nosso prprio ser, em nossa prpria substncia;
precisamente porque os "assimilamos" que jamais os relemos.
O caso completamente outro com os prazeres da arte. Podemos ter
compreendido um livro de uma vez por todas, mas nunca chegaremos ao fim
da fruio de um poema, da apreciao de uma esttua ou da audio de uma
CAPTULO 11- As ARTES DO BELO I 35
-
obra-prima, porquanto a beleza da arte se d sempre numa percepo sen-
svel. verdade que a sensibilidade se cansa e que a repetio excessiva damesma experincia esttica acaba por embotar o prazer, mas, longe de ser o
signo de sua obsolescncia, toda interrupo deste gnero prepara a ressur-
reio futura desta apreenso da beleza no seio mesmo da alegria, recompensa
certa do amor arte e fruto do seu cultivo. De resto, a experincia imediata. amor primeira vista. "le te donne ces vers afin que si mon nom... "3 - impossveller o verso sem querer rel-lo, assim como a estrofe e toda a longa melodiaverbal cuja msica encanta e arrebata. Versos belos esto to longe de se
lerem de uma vez por todas, que de bom grado os aprendemos de cor, a fim
de nos libertarmos do livro e os levarmos sempre conosco. Este o sinal da
presena do belo artstico. Como bem j dizia o abb Ou Bos. "O esprito nopoderia fruir o prazer de aprender a mesma coisa duas vezes; mas o corao
pode gozar duas vezes o prazer de sentir a mesma emoo". H prazer nos
dois casos, contudo, embora sejam casos de natureza distinta. O fim do ato deconhecer saber, e j que sabemos de uma vez por todas, o prazer de alcan-
ar uma verdade no renovvel. Por outro lado, j que no frumos a beleza
seno no ato mesmo que a apreende, a repetio deste ato, alm de esperada,
antes desejada. Pode-se saber Euc1ides de uma vez por todas, mas a leitura
de Shakespeare sempre pode recomear.
preciso procurar mais alm a soluo deste problema e a razo que a jus-tifica. O que se deseja, por definio, um bem, pois o bem o prprio ser namedida em que desejvel. O belo , pois, uma das espcies do bem e, a este
respeito, um objeto da vontade. Mas um bem de uma espcie to diferente
das outras que deve ser considerado um outro transcendental, distinto da ver-
dade e do bem propriamente dito. A vontade procura os outros bens, ou por si
mesmos e por causa da sua perfeio intrnseca, ou por ns mesmos e porque
a sua perfeio nos desejvel em vista do nosso prprio bem. Num e noutro
caso, o desejo tende para o prprio objeto tomado em sua realidade fsica, e
este mesmo objeto que desejamos possuir. J com o belo diferente, pois ele
3 Verso de Baudelaire que inicia o poema "Spleen et ldal", contido em Les Fleurs dlJ Mal [AsFlores do Mal): "Dou-te estes versos para que se o nome meu ...", (N. T)
36 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
um objeto da vontade desejado como os objetos do conhecimento se desejam.
Normalmente, a vontade quer seus objetos para os possuir; no caso do belo,
ela no o quer para possu-Ia, mas para v-Ia. Quando se quer possuir um belo
objeto, a finalidade desta ao no a posse, mas a possibilidade de rev-Ia,
rel-Ia ou ouvi-Ia de novo, sempre que se queira. Numa palavra, o objeto do
desejo, nestas condies, menos o prprio objeto que o bem que nos causa o
ato de apreend-Ia. o que a filosofia clssica salientava de modo excelente aodizer que, enquanto o bem ordinariamente se define como o que bom para a
vontade, o belo o bem do conhecimento. Com efeito, sendo aquilo cuja viso
d prazer (id quod visum placet), o belo um conhecimento desejvel no prprio
ato por que se apreende.
Este estatuto ontolgico implica que o belo essencialmente uma relao.
A relao no ser entendida aqui no sentido idealista, isto , como um simples
liame mental que o esprito estabelece entre dois termos, mas antes no sentido
realista e pr-kantiano de uma relao real, a qual se estabelece por si mesma
entre objetos igualmente reais, e cuja natureza determinada por aquilo que
so. Em certo aspecto, as experincias estticas so anlogas s relaes fsicas,
visto que, como as ltimas, derivam da natureza das coisas. Contudo, sendo um
destes termos, como , um sujeito cognoscente, as condies exigidas para a
possibilidade do belo so de duas ordens distintas, de um lado pertinentes a este
sujeito cognoscente, do outro, ao objeto conhecido.
O sujeito um homem, isto , um animal dotado de sensibilidade e de
inteligncia, mais uma faculdade cujo papel mediador foi muitas vezes desta-
cado pelos filsofos: a imaginao. Esta ltima desempenha um papel capital,
no somente na livre representao de objetos possveis dados apenas em po-
tncia, mas tambm na mesma apreenso de objetos dados em ato. Nenhuma
percepo instantnea. Isto no s verdadeiro para aquilo a que se chama
artes do tempo, como a msica e a poesia, mas tambm para as artes ditas do
espao, como a pintura e a escultura. Esta imaginao do objeto presente ne-
cessria para que os elementos fornecidos pela sensao sejam percebidos como
constituintes de um todo dotado de unidade. esta unidade, com efeito, queo distingue dos demais, e que o juzo toma como base quando o considera um
CAPTULO 11- As ARTES DO BELO I 37
-
objeto distinto. O prprio entendimento est em ao, portanto, na experincia
do belo - e a indiferena que os animais frequentemente demonstram diante de
imagens artificiais parece confirmar esta observao. O homem inteiro, como
sujeito que conhece intelectualmente, que imagina, age e capaz de sentir pra-
zer e dor - e, consequentemente, desejo e repulsa -, a condio subjetiva da
apreenso do belo. Estamos longe de conhecer em detalhe a estrutura desta ex-
perincia, mas, por ora, somente o seu aspecto geral nos interessa: saber como
as coisas acontecem no modifica em nada os dados do problema.
Quanto ao objeto ele mesmo, isto , quilo a que se poderia chamar condi-
es objetivas do belo, no faltam descries que vez por outra se contradizem,
mas, ao examin-Ias mais de perto, constata-se que dizem quase a mesma coi-
sa, embora em linguagens diferentes. Coincidncia natural, alis, pois a beleza,
assim como a verdade e o bem, igualmente um transcendental. Portanto, ela
participa do carter primeiro, irredutvel e no dedutvel, daquele primeiro prin-
cpio que o ser:
Pode-se estar seguro disso se se examina brevemente o significado dos ter-
mos que os filsofos de outrora utilizavam, seguindo, alis, a tradio platnica
para definir as condies objetivas do belo. Sua mesma impreciso significati-
va, pois cada um dos termos no fazia seno orientar o pensamento a uma noo
to primacial quanto a do ser - do qual, porm, designava uma modalidade. As
noes deste gnero se sucedem sem descanso umas s outras, como as muitas
facetas de uma s verdade, em si mesma misteriosa, qual a reflexo s se aplica
para se submeter.
A primeira condio tradicionalmente obrigatria do belo, da parte do
objeto, que ele seja "inteiro". Esta inteireza, ou integritas, consiste em quenada lhe pode faltar, que pertena sua prpria natureza, e como precisa-
mente o ser o que lhe poderia faltar, a integridade do objeto idntica ao
seu ser. A mesma observao vlida para um outro nome que se d a esta
qualidade do belo no objeto, ou seja, a perfeio (integritas vel perfectio). Pois,o que perfeito, seno o ser? Diz-se do ser perfeito que no lhe falta nada.
o que os antigos metafsicos diziam: que o ser perfeito na medida em que em ato, pois ser apenas em potncia ainda no ser; atualizando-se, o ser se
38 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
realiza a si mesmo ao mesmo tempo em que atinge a sua perfeio, ficando,
ento, feito e perfeito.
Tais determinaes, de resto, implicam uma outra noo, e somente em
relao a ela que ganham algum sentido. Dizer que o ser de que se fala "in-
teiro", "perfeito" ou plenamente "atualizado" pressupor que ele se define por
um certo nmero de condies obrigatrias, a fim de que seja plenamente o que
deve ser. O que no "inteiro" no tem alguma coisa que deveria ter. O que
ainda imperfeito se acha privado de um certo nmero de determinaes ne-
cessrias para que se possa dizer que , sem nenhuma restrio - ou, em outras
palavras, que realizou completamente as suas potencialidades, de tal modo que
tudo o que pode ser, . A noo que tais determinaes do belo pressupem,
assim como as determinaes do bem, alis, do qual o belo um caso particu-
lar, a noo de "forma", tambm chamada de "essncia", ou "ideia". O nome
escolhido pouco importa, desde que designe claramente um tipo de noo que
define, no a ideia do ser como tal, mas a ideia de um certo ser. Para correspon-
der a esta noo, o ser em questo deve igualmente satisfazer as condies da
definio de todo ser que realiza um tipo distinto. O ser est dado, sempre, na
experincia, sob a forma deste ou daquele ser, de tal modo que o que chamamos
aqui de tipo, ideia ou forma no parece seno uma das modalidades do ser como
tal. Com efeito, o ser real, tal como ns o conhecemos, s possvel se determi-
nado e definido por uma forma, sua integridade no seno a ausncia de muti-
lao, prpria aos tipos plenamente realizados, e tambm a primeira condio
objetiva da beleza. Dizia-se antigamente que uma coisa feia na medida em que
imperfeita, e a experincia mais banal o confirma. Dado um objeto qualquer,
bem possvel que o sentimento de que lhe falta alguma coisa nos cause tamanho
incmodo que no descansemos um momento sequer enquanto o no tivermos
completado. Isto sinal de que o ser, para ns, est ligado forma, em funo
da qual se define a sua integridade.
Para sua completa determinao, estas noes requerem ainda uma outra.
a que se chamava outrora de harmonia (harmonia). A beleza, dizia Plotino, "oacordo na proporo das partes entre si, e delas com o todo" (Enadas, C 6, 1).Com efeito, todo ser concreto se compe de um certo nmero de partes, e
CAPTULO 11- As ARTES DO BELO I 39
-
preciso que essas partes observem uma ordem de determinaes recprocas
para que se unam na forma comum que Ihes define o conjunto. a forma dotodo que confere unidade s partes e, visto que o uno e o ser so convertveis,
a mesma unidade que faz deste todo um ser uno e, portanto, um ser. Somente
a mediao pessoal destas equivalncias pode nos fazer reconhecer a sua reali-
dade e a sua importncia para a interpretao do real. No preciso que nossa
incapacidade de demonstr-Ias nos chegue a desencorajar, pois elas no so
demonstrveis. Sendo, como so, evidncias intelectuais inclusas na noo do
primeiro princpio, basta que sejam percebidas - mas imprescindvel que o
sejam. Aqueles, porm, que se gabam de desdenh-Ias, no deixam de us-Ias a
cada vez que, declarando-as vazias, se pem, no obstante, a falar a seu respeito,
independentemente do nome que Ihes deem.
Resta uma ltima determinao do belo, no menos difcil de descrever
que as precedentes, e mesmo ainda mais difcil, embora por uma razo diferen-
te; a que os antigos denominavam de claritas, o brilho. Em Santo Agostinho,que se inspira em Ccero (Tusculanas, IV, 31), este elemento simplesmente acor e o prazer que ela causa: coloris quaedam suavitas. A despeito do nome quelhe atribuamos, no apreendemos esta modalidade como uma relao do ser
. consigo mesmo; ela , no ser sensvel, o fundamento objetivo de uma de nossas
relaes com ele. Um objeto precisa de fato ser inteiro ou perfeito para simples-
mente ser; e para ser uno - vale dizer, pois, para ser - o mesmo objeto precisa
da ordem e da harmonia que a forma lhe confere; mas o seu "brilho" aquilo
que, nele, prende o olhar e o retm. , pois, o fundamento objetivo de nossapercepo sensvel da beleza.
A palavra em si mesma uma metfora. Mesmo no interior da ordem da
sensibilidade, "brilho" (claritas) se aplica a objetos de natureza diversa. Fala-sedo brilho sonoro das trompas, como do brilho de certos tons de vermelho,
amarelo ou verde; aplica-se o termo inclusive quela misteriosa palpitao do
ouro puro, que esplende surdamente qual glria amortalhada, e nos faz desej-
10. Pois o amor do ouro bem diferente do amor do dinheiro, que amamos pelasua utilidade. Mas o ouro merece ser amado por si mesmo, como as prolas e
pedras preciosas: por sua mera beleza.
40 I INTRODUO S ARTES DO BELO
-
A bem da verdade, o termo duplamente uma metfora, pois no evoca o
brilho de certas qualidades sensveis seno como smbolo de toda uma gama de
outras qualidades das quais este mesmo brilho o caso mais digno de nota. Uma
paisagem cinza, cores baas, timbres surdos e palavras sussurradas podem agir
sobre a sensibilidade com tanta ou mais eficcia que o brilho propriamente dito.
As qualidades deste gnero tm em comum o mesmo poder de captar e reter a
ateno, como que por feitio. Eis a o fato primitivo sobre o qual a experincia
esttica repousa em todos os domnios, e tudo o que podemos fazer aceit-
10 como tal, sem pretender explic-lo. As qualidades sensveis tm o poder deagir sobre nossa afetividade. Elas no s emocionam, mas incontestvel que
as emoes que nos causam diferem conforme as qualidades sensveis que as
causam. A correspondncia frouxa. Os esforos despendidos para estabelecer
relaes precisas entre as variaes da sensibilidade e as dos seus corresponden-
tes sensveis no produziram nenhum resultado preciso, mas ningum ousaria
contestar esta realidade, a saber, que as qualidades sensveis tm o poder de nos
emocionar, e que as harmonias afetivas correspondentes no tm relaes reais
com essas qualidades. As linhas, as formas, os volumes e as cores ora se har-
monizam melhor com a alegria, ora com a tristeza, ora com o contentamento,
ora com a melancolia, ora com o desejo, ora com a clera ou o entusiasmo -
numa palavra, um tipo de tonalidade afetiva acompanha naturalmente cada tipo
de qualidade sensvel, e estas combinaes podem muito bem variar. Ainda na
Antiguidade - e se inspirando, como seria natural, no exemplo da msica -,
ningum menos que o prprio Quintiliano fez a mesma observao.
Sculos depois, o abb Ou Bos recolheria as principais passagens das Insti-tutiones Oratoriae relativas ao problema no terceiro volume das Rflexions Critiques,volume que os seus contemporneos trataram como uma espcie de apndice,
quando, na verdade, seja talvez a parte mais preciosa da sequncia. Conside-
remos, pois, a Seo III, "De Ia Musique Organique ou Instrumentale", onde
tudo o que h de mais essencial se diz numa s frase, que no cansamos de
meditar: sentimo-nos afetados de diversas maneiras pelos instrumentos da m-
sica, embora no se possa fazer com que falem: "cum organis quibus sermo expriminon potest, affici animos in diversum habitum sentiamus" (Inst., I, 12). E ainda (Inst., IX,
CAPTULO 11 - As ARTES DO BELO I 41
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4): tt a natureza que nos conduz aos modos musicais. No fosse assim, comose explicaria que os sons dos instrumentos, embora no emitam palavras, pro-
duzam no ouvinte emoes to diferentes>".
O fato evidente prescinde de provas, mas a reflexo filosfica deve demorar-
se nele como num dos sustentculos da filosofia da arte. Desde logo, preciso
notar-lhe a generalidade. Todas as obras de arte so objetos materiais relacionados
percepo sensvel. O que verdadeiro para a msica, pois, -o tambm para a
poesia, que uma espcie de msica da linguagem articulada. Com muito mais ra-
zo ainda, o mesmo se aplica igualmente s artes plsticas, cujas obras se destinam
sobretudo ao tato e viso. empresa v, portanto, tentar constituir uma filosofiada arte que apele apenas s operaes da inteligncia para explicar a gnese das
obras que os artistas criam. Essas obras incluem, na sua mesma estrutura e substn-
cia, a relao do sensvel com a sensibilidade e a afetividade, o que lhes h de asse-
gurar o efeito que pretendem ter sobre o leitor, espectador ou ouvinte. A arte ora-
tria tal como Ccero a compreendia, uma das artes mais utilitrias e impuras que
existem - a tal ponto que um "amigo da verdade" teria vergonha de pratic-la=-,
conferia suma importncia ao que se chama de Ilao oratria", parenta prxima,
embora distinta, da ao teatral. Todo artista cioso de agradar deve se tornar mes-
tre na arte de utilizar os recursos da matria com que trabalha em vista da produ-
o de obras cuja apreenso agrade e inspire o desejo de ser repetida. Os inimigos
da sensibilidade so muitas vezes gente que no tem nenhuma. Tenhamos pena
deles, porque os prazeres da arte lhes foram recusados, e com tais prazeres a
consolao mais segura de muitas penas. por meio da arte que a matria entrapor antecipao naquele estado de glria que os telogos lhe prometem quando,
no fim dos tempos, ela h de ser como que espiritualizada. Um universo onde
tudo no teria outra funo alm de ser belo seria literalmente uma beleza; no
preciso que aqueles que no veem sentido numa tal noo impeam os outros de
sonhar com o mundo que ela promete, ou de fruir das suas primcias. Primcias
que somente as artes do belo podem-lhes proporcionar.
Uma segunda consequncia geral deste fato a relatividade inata e como
que essencial das apreenses do belo. A ontologia da arte estabelece aqui alguns
dos fundamentos da esttica. Nada mais objetivo que a beleza de um objeto
42 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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feito para o prazer dos olhos, mas nada mais varivel e desigual que os olhos a
que se oferece. Tomemos aqui a viso como smbolo de todas as faculdades de
apreenso a que as diversas artes se destinam, incluindo o intelecto cuja funo
consideraremos mais adiante, e diremos que, embora praticamente nada deixe de
participar do domnio da arte, reina uma desigualdade fundamental neste dom-
nio. O que se chama de "dom" constitui-se em grande parte daquela sensibilida-
de qualidade das linhas, dos volumes, dos sons e das palavras que varia confor-me os indivduos. O nmero muito considervel de pintores que sofrem de pro-
blemas visuais, ou de msicos que perdem a audio, faz-nos pensar numa esp-
cie de hipersensihilidade quase mrbida como se fosse o preo, digamos assim,
dos eminentes dons artsticos de certos artistas. Eugene Delacroix, Czanne,
Maurice Dennis na pintura, e Beethoven na msica, representam bem um con-
junto de fatos muito conhecidos. Mas o amante da arte, que tudo julga com a
mais tranquila segurana, cometeria um grande erro ao considerar a relao de
sua prpria sensibilidade com a obra de arte como idntica que, no caso do
artista, preside sua produo. Aqueles para os quais a msica sobretudo umandino sucedneo da morfina no tm seno uma leve admirao por Camille
Sant-Sans. De nada adiantaria se lhes dissssemos que o compositor sabia
tudo o que um homem do seu tempo podia saber sobre msica, nem que podia
escrever o que bem quisesse, mas lhes faria muito bem se se perguntassem o
quanto a sua sensibilidade aos sons pode realmente ser comparada do autorda Quarta Sinfonia com rgo, ou do charmoso Carnaval dos Animais. "Certa noite",escreveu este msico austero, "graas ao silncio absoluto do campo, eu ouvi
um imenso acorde, de uma sutileza extrema; aumentando a sua intensidade,
este acorde se resolveu numa nica nota, produzida pelo voo de um inseto".
preciso saber ouvir o canto das cigarras e seguir indefinidamente as semprecambiantes variaes dos seus ritmos; preciso poder ouvir o mundo de harmo-
nias includo no zumbido de um inseto para julgar corretamente o que a arte
para aqueles que a produzem. Sabemo-nos incapazes de compor como Mozart
ou pintar como Delacroix, mas j seria muito bom se pudssemos ouvir a msica
e ver a pintura como a ouviam e viam Mozart e Delacroix. Invejemos a Racine
pelo prazer que sentia lendo Sfocles, no porque o compreendesse, coisa que
CAPTULO 11- As ARTES DO BELO I 43
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qualquer helenista pode, mas pela qualidade soberanamente potica desse pra-
zer. Precisamos de muita modstia para chegar familiaridade com as grandes
obras. Assim como o mundo da natureza, tambm o da arte uma aristocracia,
onde cada um deve aceitar o seu lugar; e ainda que, em certa medida, se possa
democratizar o acesso a esse mundo, democratizar esse prprio mundo seria o
mesmo que o aniquilar.
44 I INTRODUO S ARTES DO BELO
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, A sua finitude uma aparncia, respondeEspinosa, ela nasce dos caprichos da imaginao, os quais causam a nossa servido
e cujo conhecimento filosfico, e apenas ele, nos pode libertar. Sem dvida que
pode, mas no parece que o ser consiga se libertar da aparncia. A maldio de
Parrnnides persegue os sucessivos universos do pensamento ocidental; o mesmo
verme habita todos os suculentos frutos da rvore platnica.
O que se pode fazer com um universo desse tipo? Nada, exceto conhec-
10 tal como e no pode no ser, no fosse para reconhecer a o prprio lugar
132 I INTRODUO s ARTES DO BELO
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e aprender a se acomodar a ele. O mundo de Plato, que o mundo ocidental,
, pois, por voca