Estratégias metacognitivas e o trabalho com gêneros discursivos: questões de
leitura e ensino
Kelli da Rosa RIBEIRO 1
Resumo
Levando em consideração a importância social da leitura e da escrita, este artigo
pretende discutir caminhos para se pensar o ensino de leitura e de produção textual,
tendo em vista concepções psicolinguísticas no que tange às estratégias cognitivas e
metacognitivas em leitura, por um lado, e concepções interacionistas de linguagem de
cunho bakhtiniano no que se referem ao conceito de gênero discursivo, por outro lado.
Para tanto, elaboramos, a partir dos estudos de Bonini (2002), Coscarelli e Novais
(2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) e Bakhtin (2003) uma proposta
teórico-metodológica que evidencia essa interface e, em seguida, aplicamos essa
proposta em uma atividade de leitura de um anúncio publicitário. Buscamos, assim,
observar as contribuições das duas áreas em estudo e de que forma essa interface
contribui para a formação de leitores críticos.
Palavras-chave: Leitura; Produção textual; Gêneros discursivos; Estratégias de leitura.
Abstract
Considering the social importance of reading and writing, this article intends to discuss
the paths for thinking about teaching reading and textual production, bearing in mind
psycholinguistic conceptions regarding cognitive and metacognitive strategies in
reading, on the one hand, and Bakhtinianinteractionist conceptions of language with
respect to the concept of discourse genre, on the other. To this end, we have elaborated
a theoretical-methodological proposal based on studies by Bonini (2002), Coscarelli
and Novais (2010), Kato (1990), Kleiman (2011), Marcuschi (2008) and Bakhtin (2003)
1 Mestre e Doutoranda em Letras na área de concentração em Linguística pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista de doutorado CNPq. Endereço: Av. Ipiranga, 6681,
Porto Alegre - RS. CEP: 90619-900. E-mail: [email protected]
which evidence this interface, and then we apply this proposal to a reading activity
using an advertisement. Thus, we intend to observe the contributions from both areas of
study and the way in which this interface contributes to the development of critical
readers.
Keywords: Reading; Textual production; Discourse genres; Reading strategies.
1. Introdução
A atividade de leitura e produção de textos na escola brasileira é permeada por
vários problemas tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista
metodológico. Se de um lado há alunos com problemas de compreensão em leitura e
dificuldades em escrever um texto, por outro lado também existem professores que não
propõem atividades reflexivas, significativas, que explorem e desenvolvam essas
habilidades.
Entretanto, na esfera acadêmica universitária, há pesquisas em diversas áreas da
linguística que discutem, propõem, investigam questões que envolvem a linguagem e
seu ensino escolar. Dentre as diferentes áreas que se dedicam aos estudos da linguagem,
duas nos chamam a atenção pelo potencial de aplicabilidade didática: a Psicolinguística
e os estudos sobre gêneros discursivos com base nas concepções do filósofo russo M.
Bakhtin.
Assim, levando em consideração que no processo de leitura e produção de textos
estão imbricados aspectos linguísticos, discursivos, cognitivos, contextuais e de
organização de textos, procuramos, neste artigo, elaborar uma discussão em torno de
caminhos para se pensar o ensino de leitura e de produção textual baseando-se em
concepções psicolinguísticas no que tange às estratégias cognitivas e metacognitivas em
leitura, por um lado, e na concepção dialógica da linguagem de cunho bakhtiniano no
que se referem ao conceito de gênero discursivo, por outro lado.
Nessa direção, Bonini (2002, p. 37) aponta que os “temas psicolinguísticos como
estratégias cognitivas de leitura escritura, bem como de metacognição relacionada a
estes processos” são temas pertinentes para a intervenção didática do professor no
processo de ensino e aprendizagem de leitura e produção de textos. Acreditamos, além
disso, que os temas psicolinguísticos destacados pelo autor são pontos de contato e
caminhos possíveis para a construção de uma interface com a abordagem dialógica da
linguagem proposta por Bakhtin.
Se para Bakhtin/Volochinov ([1929] 2010, p. 38) a linguagem é dinâmica, viva e
“acompanha e comenta todo o ato ideológico” na sociedade, um método de ensino de
leitura e produção de textos que se baseie nessa concepção deverá levar em conta a
situação contextual e interacional em que dado texto foi escrito, evidenciando-se, dessa
maneira, a complexidade que envolve a produção e a recepção de textos na esfera
social.
Pensando nessas questões, partimos de duas perguntas para elaboração da
interface: de que forma contribuem a psicolinguística e as concepções de M. Bakhtin
sobre gêneros do discurso para as atividades de leitura e produção textual? Quais os
elementos necessários para a elaboração de uma proposta que aponte para um caminho
de interface entre essas áreas? Tendo em vista tais indagações, dividimos nossas
reflexões em três seções seguidas das considerações finais. Na segunda seção, expomos
aspectos de cada uma das teorias postas em interface, na terceira seção, apresentamos a
metodologia e, na quarta, construímos um percurso que nos leva a um esboço de uma
proposta de ensino de leitura e produção textual, levando em conta pressupostos
interacionistas baseados na concepção dialógica da linguagem e pressupostos
psicolinguísticos.
2. Pressupostos teóricos
2.1. Leitura e estratégias: o que tem a dizer a Psicolinguística?
Criada a partir da interface entre Linguística e Psicologia, a Psicolinguística tem
contribuído com inúmeras pesquisas a respeito do ensino de língua no Brasil. Segundo
Scliar-Cabral (2008, p. 5), uma das grandes contribuições da psicolinguística foi a de
investigar, “através de métodos experimentais, como o ouvinte transforma o sinal
acústico da fala em significado e como, ao falar, percorre o caminho inverso, o mesmo
se aplicando ao sinal luminoso da cadeia escrita”. Nesse âmbito do conhecimento, surge
a psicolinguística experimental, uma área que se interessa sobretudo pelos processos
que envolvem a produção de textos. Desse modo, conforme nos explica Leitão (2008, p.
6), a psicolinguística experimental busca construir modelos teóricos e metodológicos
que descrevam e analisem “como o ser humano compreende e produz linguagem,
observando fenômenos linguísticos relacionados ao processamento da linguagem”.
É importante destacar que nesse processamento de linguagem estão em jogo
muitos aspectos cognitivos, linguísticos e contextuais, tais como processos fonológicos,
morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos que ocorrem simultaneamente no
momento da produção/compreensão de linguagem. Tendo em vista essa complexidade,
Coscarelli e Novais (2010, p. 36) chamam a atenção para as diversas operações que
envolvem o processo de leitura, de compreensão dos textos. São operações lexicais,
sintáticas, discursivas, pragmáticas. As autoras ressaltam que essas operações se tornam
complexas “não por serem complicadas”, mas por que ocorrem “de forma aberta,
recursiva, gerando estruturas emergentes nem sempre previsíveis”. Além disso, a
situação de interlocução, ou seja, a enunciação, bem como os sujeitos e seus projetos
comunicativos fazem parte do dinâmico processo de leitura (COSCARELLI e NOVAIS
2010, p. 36).
Segundo Kleiman (2011), o processo de compreensão exige um conjunto de
recursos, atividades, estratégias mentais que são próprias do ato de compreender.
Assim, tornar o processo de leitura um objeto de reflexão amplia a possibilidade de se
criar um leitor maduro, um leitor capaz de usar atividades de metacognição para
compreender um texto. A metacognição refere-se ao ato de refletir sobre o próprio
saber, tornando-o mais acessível a mudanças, a ajustes que melhorem a compreensão
(KLEIMAN, 2011, p. 09).
Se de um lado do processo de leitura existem estratégias metacognitivas, as
quais são responsáveis pela desautomatização de processos inconscientes no ato de ler,
de outro lado, conforme Kato (1990, p. 102), existem estratégias que designam
princípios que regem justamente o contrário, ou seja, o comportamento automático e
inconsciente do ato de ler. A esse tipo de estratégias chamamos de estratégias
cognitivas, as quais, seguindo as reflexões de Kato (1990, p. 105), explicam
comportamentos do tipo:
Princípio da Canonicidade → esse princípio refere-se a estratégias cognitivas de
natureza sintática e semântica, as quais levariam o sujeito a compreender as sentenças
levando em conta no nível sintático a ordem natural (Sujeito-Verbo-Objeto), a oração
principal antes da subordinada, etc; no nível semântico, o sujeito tem a tendência de
entender o animado antes do inanimado, agente antes do paciente, a causa antes do
efeito, a tese antes da antítese, etc.
Princípio da Coerência → esse princípio refere-se a estratégias cognitivas que regem o
comportamento de leitores e autores dos textos. Ele relaciona-se aos objetivos do texto e
sua ligação com o mundo e, além disso, com a forma de organizar o que se diz no texto
de modo a seguir-se uma sequência coerente, lógica.
Passando-se ao nível da desautomatização desses processos, Kato (1990) sugere
dois tipos de estratégias metacognitivas, as quais podem ser desdobradas ainda em
muitas atividades de leitura. Primeiramente, Kato (1990, p. 108) destaca que é preciso o
“estabelecimento de um objetivo explícito para a leitura” e, em segundo lugar, a autora
orienta que deve acontecer a “monitoração da compreensão tendo em vista esse
objetivo.” De forma sistemática, os dois níveis de estratégias podem ser assim
apresentados:
Estratégias Cognitivas Estratégias Metacognitivas
1. Pressuponha que o texto apresente ordem
canônica
1. Explicite os objetivos para a leitura, procurando o
tema do texto, comparando o que o texto diz com seus
conhecimentos prévios, analisando a consistência interna
do texto, etc.
2. Pressuponha que o texto seja coerente 2. Monitore sua compreensão tendo em mente esses
objetivos
Tabela 1: Estratégias Cognitivas e Metacognitivas
Fonte: Adaptado de Kato (1990)
Cabe destacar que essas estratégias acontecem sob duas formas diferentes de
esquemas de leitura: um esquema é o processamento top-down, isto é, uma leitura que
evolui do todo para as partes, e outro esquema, o processamento bottom-up, que
consiste numa leitura que se encaminha das partes para o todo. O primeiro
processamento é uma leitura que se apoia mais nos conhecimentos prévios e contextuais
do leitor sobre o assunto do texto, enquanto o segundo é uma leitura que se baseia mais
nas pistas linguísticas apresentadas no texto. É importante ressaltar que os processos de
leitura são muito complexos e que em vários momentos o leitor poderá utilizar os dois
esquemas em interação.
Nesse sentido, ressaltamos que, no momento da leitura, o conhecimento
linguístico, o conhecimento textual e o conhecimento de mundo são ativados. Segundo
Kleiman (2011, p. 26), o aluno precisa aprender a ler de modo ativo, fazendo com que
essa atividade seja caracterizada pelo “engajamento e uso do conhecimento, em vez de
uma mera recepção passiva”, uma vez que “recipientes não compreendem”. O aluno,
sujeito que está se formando na escola como um leitor, não é um mero recipiente vazio
pronto a adquirir um conhecimento que lhe complete. Esse sujeito vem à escola
carregado com seu conhecimento de mundo, com seus valores sociais, familiares,
culturais e, no momento da leitura, articula o seu repertório aos conhecimentos técnicos
de leitura, a fim de compreender o texto.
É nessa direção, a respeito do aluno como “construtor de linguagem”, que
discute Bonini (2002, p. 37). Conforme explica o autor, por meio de uma visão
psicolinguística de processos de leitura e de uma visão interacionista dos processos que
envolvem a enunciação, o professor passa a considerar em suas atividades de leitura e
produção textual uma visão de aluno como integrante ativo na interação, “na qual seu
conhecimento de língua será uma decorrência”. Assim, entendemos que é preciso
pensar nos processos que envolvem a leitura do ponto de vista cognitivo e do ponto de
vista da interação social que engendra essa leitura. É por esse caminho que nossas
reflexões continuam na próxima seção.
2.2. Tipos textuais e Gêneros textuais/discursivos: abordagem enunciativa
(dialógica)
A organização da nossa vida cotidiana é viabilizada por textos que se
configuram nas mais diversas formas e servem a distintas finalidades sociais. A essas
“formas” nas quais os textos são/estão organizados chamamos de gêneros do discurso.
Bakhtin (2003, p. 262) nos explica que os gêneros são “tipos relativamente estáveis de
enunciados” que circulam nas diferentes esferas de comunicação na sociedade. Esses
tipos são tão diversos quanto são as atividades humanas, e sua diversidade está
relacionada à situação de interação, às relações entre os participantes e à esfera de
comunicação discursiva.
Os gêneros apresentam relativa estabilidade, pois apresentam alguns aspectos
que se repetem (tema, estilo verbal e forma composicional) e, dessa forma, garantem a
estabilidade social do gênero, para que os locutores possam se entender e assim se
organizar socialmente. No entanto, prevendo a dinamicidade e criatividade das
atividades humanas, Bakhtin ressalta, sobretudo, o caráter flexível dos gêneros, que
admite o estilo de criação verbal individual de cada usuário da língua na relação com o
outro.
Por isso, podemos considerar, conforme o filósofo da linguagem, que os gêneros
se apresentam numa inesgotável diversidade, porque as possibilidades de atividade
humana nas relações sociais são igualmente inesgotáveis. Tal observação deve-se ao
fato de o gênero e a atividade humana (verbal ou não verbal) serem indissociáveis das
esferas sociais nas quais os indivíduos interagem.
Decorre dessas reflexões o fato de que ao estudar a linguagem a partir de
gêneros discursivos estamos lidando com a língua em seu uso real, vivo e concreto.
Segundo Marcuschi (2008, p. 155), gêneros são “textos materializados em situações
comunicativas recorrentes”. Se a língua se materializa em gêneros discursivos, os quais
são elementos concretos circulantes na sociedade, há também subjacente a essa
materialidade uma parte linguística abstrata, a qual Marcuschi denomina de tipos
textuais. Os tipos textuais, segundo o autor, designam construções teóricas, ou seja, são
sequências linguísticas ou retóricas de como é organizada a linguagem num texto
(MARCUSCHI, 2008, p. 154).
Conforme aponta Marcuschi (2008, p. 155) os tipos textuais, como são de ordem
abstrata, se constituem em poucas categorias: narração, descrição, argumentação,
exposição, injunção. Já os gêneros discursivos, como são de ordem concreta e
organicamente vinculados à situação concreta de enunciação, aparecem na esfera social
em inúmeras formas: notícias, reportagens, palestras, cartas pessoais, teses, dissertações,
artigos, charges, tirinhas, telefonema, torpedos etc. É interessante notar que cada gênero
pode ser constituído de vários tipos textuais. Assim, um texto poderá conter, por
exemplo, momentos de descrição, seguido de momentos de argumentação, e esses
momentos se interconectam ao longo do tecido textual.
Essas questões só reafirmam a complexidade que envolve os gêneros
discursivos. Bakhtin, em seu ensaio Os gêneros do discurso, chama a atenção para o
papel ativo dos sujeitos participantes da situação comunicacional. O autor (2003, p.
265) explica que os enunciados refletem as individualidades de cada falante, ou seja,
cada sujeito, ao utilizar sua língua, deixa em seu discurso pistas de sua história, além de
sua visão sobre o mundo. Nessa perspectiva, destaca o autor que alguns gêneros não são
muito propícios a mostrar a individualidade do falante no enunciado, pois a construção
composicional própria do gênero não permite tal abertura. Ordens militares e muitas
modalidades de discursos oficiais são mostradas como exemplo por Bakhtin para
ilustrar formas de enunciados mais padronizados que não abrem muito espaço ao falante
e a seu estilo.
Outros gêneros, no entanto, concedem maior liberdade às particularidades dos
locutores, como é o caso de anúncios publicitários, reportagens, artigos de opinião,
entre outros. Fica evidente, nesse contexto, que a maior elasticidade ou não do gênero
está relacionada com a esfera discursiva a qual está filiado. A esfera midiática, esfera
discursiva em que se inscreve a publicidade, por exemplo, permite uma abertura, uma
vez que trabalha com diversos tipos de produtos, serviços, ideias, sendo uma esfera que
dirige e atinge um vasto e diferente público consumidor.
Compreendemos que no processo de compreensão da interação, do gênero e
suas tipologias estão envolvidos processos de compreensão leitora. Por isso, torna-se
um terreno fértil trabalhar com uma metodologia de ensino de leitura e produção textual
que considere as diferentes estratégias cognitivas e metacognitivas mobilizadas para se
compreender melhor este ou aquele gênero, levando em conta o objetivo da interação.
Assim, destacamos que, se por um lado existe um gênero materializado numa situação
de interação social concreta, existe, por outro lado, tanto um sujeito que o produziu
mobilizando diversos aspectos cognitivos que compõem o seu estilo, tomando a
nomenclatura bakhtiniana, quanto um sujeito leitor que também mobiliza aspectos
cognitivos e contextuais para compreender o que lê. Tendo em vista essas reflexões,
situamos nossa proposta de interface no limiar entre a materialização do gênero e os
processos cognitivos de produção e de compreensão que envolvem esse gênero.
3. Procedimentos metodológicos
A fim de levantarmos reflexões teóricas e práticas quanto ao processo de leitura
e produção textual, partindo de gêneros discursivos, a análise neste artigo se divide em
dois momentos. Primeiramente, elaboramos uma discussão teórica e metodológica que
envolve a construção de um caminho para a interface entre os estudos de gêneros
discursivos e a perspectiva de leitura e estratégias da psicolinguística. Para construir
essa interface, utilizamos os estudos de Bonini (2002), Coscarelli e Novais (2010), Kato
(1990), Marcuschi (2008) e Bakhtin (2003). No segundo momento, buscamos
visualizar os caminhos que levam o leitor a compreender os sentidos do texto,
observando: a) a compreensão do gênero lido e a identificação desse gênero; b) a
compreensão da função social desse gênero; c) a relação dos aspectos verbais e não
verbais para construir sentidos; d) a mobilização de conhecimentos prévios para
compreender o gênero.
Para levar a efeito o segundo momento, selecionamos um anúncio publicitário
da Apple e mostramos a um sujeito que está cursando Administração pela Universidade
Federal de Rio Grande (FURG). Escolhemos o anúncio publicitário por ser um gênero
que tem uma fluente circulação na esfera midiática e por acreditarmos que seu estudo
em sala de aula possibilita a reflexão crítica sobre o consumo na contemporaneidade e
essa reflexão, por sua vez, poderá contribuir para a formação de leitores críticos. O
aluno de Administração foi escolhido por estar cursando um nível superior de ensino,
cuja etapa necessita de um aprendiz maduro, ou seja, essa etapa de ensino exige um
leitor crítico e capaz de explicitar os processos que utilizou para entender um texto.
Mostramos, primeiramente, ao sujeito, o anúncio e a primeira pergunta que o
questiona sobre o gênero lido. Logo após, identificado o gênero pelo sujeito, seguem as
outras doze perguntas que o questionam quanto: i) à coerência interna do texto e à
coerência das partes do texto em relação ao gênero; ii) à relação entre verbal e não-
verbal; iii) à composição do gênero no que tange aos seus elementos linguísticos e no
que tange à sua função social. Elaboramos perguntas escritas ao sujeito, pois tais
questões são propostas como uma possibilidade de trabalho de leitura e estratégias em
sala de aula. Nosso roteiro servirá também de sugestão de trabalho prático com gêneros
discursivos autênticos e estratégias de leitura que visam à compreensão dos aspectos
lexicais, sintáticos e semânticos do texto. A lista com as perguntas, o anúncio
publicitário lido pelo sujeito e suas respostas às questões aparecem na próxima seção,
juntamente às reflexões teóricas e metodológicas levantadas.
Por fim, fomentamos uma discussão que nos permite relacionar essa aplicação
prática de análise de um texto à nossa proposta metodológica de interface entre os
estudos de gêneros discursivos e a psicolinguística, no que se refere ao processo de
leitura e estratégias.
4. Construindo caminhos para a interface: discussão dos métodos e a contribuição
da psicolinguística e da concepção dialógica da linguagem
Iniciamos nossas reflexões em busca de um caminho que possibilite a construção
de uma interface entre psicolinguística e a concepção dialógica da linguagem com a
seguinte questão apontada em Coscarelli e Novais (2010, p. 38): considerando a leitura
um processo individual e subjetivo de compreensão, como nos entendemos? Em outras
palavras: como os textos funcionam em nosso meio, se as leituras são múltiplas,
diferentes e tão singulares?
As autoras, ao colocarem essa questão, sugerem em seguida que uma possível
resposta seja o fato de a comunicação acontecer baseada em elementos nos textos que
“encaminham para direções semelhantes”. Tais elementos podem ser entendidos como a
própria tipologia textual, que é a base de todos os textos, e a noção de gênero, que
também é importante para que haja entendimento social de determinado texto.
Assim, vários fatores influenciam o processamento dos textos e seu
entendimento no âmbito social. Coscarelli e Novais (2010, p. 37) elencam alguns
elementos necessários para que haja uma leitura bem–sucedida de um texto, dentre os
quais citamos: familiaridade do leitor com o campo semântico das palavras utilizadas no
texto; familiaridade com o gênero textual; familiaridade com a função do gênero
textual.
É importante notar, nessa perspectiva, que atividades de leitura e escrita que se
centrarem somente em uma dessas questões isoladamente correrão o risco de não
apresentar resultados satisfatórios. Bonini (2002) apresenta várias metodologias de
ensino de produção textual que surgiram dos anos 60 para cá e aponta justamente para a
problemática de alguns métodos que focalizam um aspecto do processo em detrimento
de outros. O autor mostra o método retórico-lógico, o método textual-comunicativo, o
método textual-psicolinguístico e o método interacionista. Para os objetivos deste
artigo, em especial, faremos uma breve discussão dos dois últimos métodos por
entendermos que nossa proposta se encaixa no limiar entre essas duas visões.
Vinculando o processo de escrita ao processo de leitura, o método textual-
psicolinguístico focaliza, nas técnicas acessórias, o processo de planejamento e revisão
do texto, pois, conforme explica Bonini (2002, p. 32), esses momentos são os “mais
propícios para a intervenção didática”. A seguir, podemos visualizar o quadro com a
síntese do modelo:
Percebemos nesse modelo pelo menos duas lacunas que também poderiam fazer
parte do desenvolvimento de estratégias: a primeira lacuna diz respeito ao processo de
leitura que se constrói na interação social, ou seja, a relação de quem escreve para quem
escreve e em que situação o faz. A segunda lacuna refere-se ao trabalho com aspectos
do gênero que balizaria, por exemplo, a tarefa de planejar, uma vez que cada gênero
prevê um planejamento diferente tanto no processo de leitura, quanto no processo de
escrita de produção de um texto. Já o modelo interacionista focaliza sua atenção
somente na situação de produção, priorizando, conforme explica Bonini (2002, p. 34)
“uma autêntica produção de sentido, mediante uma ação de linguagem”. Vejamos o
quadro abaixo que sintetiza o objetivo central, as etapas e os procedimentos acessórios
desse método de ensino:
OBJETIVO
CENTRAL
ETAPAS PROCEDIMENTOS ACESSÓRIOS
Reprodução de
jogos cênicos.
SITUAÇÃO DE
INTERACAO
*desenvolvimento de atividades ligadas a um projeto
didático proposto pelo professor;
Pesquisar e buscar de auxilio
técnico;
*desenvolvimento de procedimentos de pesquisa;
Desenvolver ações de
linguagem;
*desenvolvimento da análise linguística a partir da própria
produção.
Avaliar feedback da
audiência.
Tabela 3: Componentes do método interacionista.
Fonte: Retirado de Bonini (2002)
OBJETIVO CENTRAL ETAPAS TECNICAS
ACESSORIAS
TA RE FA * organização tópica;
Planejar a tarefa;
* ordenação de
fragmentos textuais;
Desenvolver capacidades através de processos e
estratégias, tornando os conhecimentos automáticos
ou conscientes.
Textualizar;
* revisão colaborativa;
Revisar;
* revisão individual;
Reescrever;
* revisão com feedback
do professor
Redigir o texto final;
Tabela 2: Componentes do método textual-psicolinguístico.
Fonte: Retirado de Bonini (2002).
É interessante observarmos, neste modelo, que os aspectos linguísticos e os
processos que envolvem a ação de linguagem não aparecem evidenciados. No único
momento em que aparece o componente “análise linguística”, parte-se da própria
produção, ficando as seguintes questões pendentes: qual o lugar da análise dos aspectos
linguísticos do gênero lido e produzido? Para produzir o texto, que elementos
discursivos foram mobilizados?
Tentando nessa direção apontar um caminho de contato entre os modelos
psicolinguístico-textual e interacionista, elaboramos, no quadro abaixo, um modelo de
leitura e escrita que contemple os seguintes aspectos: processos cognitivos e
metacognitivos utilizados pelo sujeito leitor, situação de interação (esfera de
comunicação e interlocutores), gênero discursivo, organização textual (pistas
linguísticas e coerência textual).
Abaixo, podemos analisar o quadro síntese de nossa proposta, que apresenta
objetivo central, etapas e procedimentos:
Objetivo central Etapas Procedimentos
Desenvolver a habilidade de
leitura e escrita,
considerando:
- Delimitação da situação de interação:
contexto e participantes da comunicação
- Identificar o gênero discursivo,
utilizando pistas verbais, não-
verbais e conhecimentos prévios
- Os processos cognitivos e
metacognitivos mobilizados
pelo leitor na compreensão de
diferentes gêneros discursivos
- Seleção do(s) gênero(s) discursivo(s)
envolvidos na leitura e na escrita
- Explicitar a partir de que
elementos do texto é possível
fazer relação com os
conhecimentos prévios
- A situação de comunicação
envolvida no processo de
leitura e escrita
- Seleção de estratégias de leitura
adequadas aos objetivos e ao(s) gênero(s)
- Analisar se as partes do texto
são coerentes entre si e coerentes
em relação ao gênero
- Analisar como se compõe o
gênero estudado: suas
características recorrentes, seu
público-alvo, sua esfera de
produção e circulação
- Verificar se houve
compreensão do sentido das
partes do texto em relação ao seu
todo.
Tabela 4: Componentes de um modelo interacionista-psicolinguístico proposto neste artigo.
A partir da análise do quadro, ressaltamos que a escolha de estratégias de leitura
necessita de uma direção para que os processos de leitura e escrita sejam bem
sucedidos. A escolha de uma ou mais estratégias precisa levar em conta objetivos de
leitura previamente estabelecidos pelo professor. Além disso, conforme nos mostra o
quadro, é necessário estabelecer um objetivo central que envolva o desenvolvimento de
habilidades de leitura. Um objetivo precisa ser formulado em função dos complexos
processos que estão em jogo na leitura e escrita, tanto do ponto de vista cognitivo,
quanto do ponto de vista sócio interacional.
No que tange à compreensão de um texto, a leitura é uma atividade cognitiva
que requer esforço cognitivo, envolvendo: percepção, memória, inferência e dedução. A
leitura, nesse sentido, é também um processo interativo, em que o sujeito leitor e o
sujeito autor se relacionam mutuamente, sendo o texto o ponto de contato desse vínculo.
Assim, o autor, no processo de produção de seu texto, estabelece uma coerência textual
que é recuperada no momento da leitura pelo leitor. Além disso, nesse processo, há de
se considerar também que a coerência estabelecida internamente no texto, ou seja, a
coerência entre suas partes precisa também se harmonizar à coerência com o gênero
discursivo no qual esse texto está materializado.
Desse modo, um texto necessita ser coerente em seus aspectos linguísticos
(lexicais, sintáticos, semânticos) e coerente em seus aspectos discursivos-situacionais
(esfera de produção, gênero, interlocutor). Pensando na proposta exposta no quadro
acima, ressaltamos que, no processo de produção textual, torna-se importante para o
aluno ter consciência do processo de estabelecimento da coerência textual, uma vez que
a coerência é um princípio cognitivo das atividades de leitura e escrita. Ao tomar
consciência da organização coerente de um texto, o sujeito desautomatiza um processo
cognitivo de pressupor que o texto é coerente quanto ao tema, organização e gênero e
passa a regular seu ato de leitura e escrita, tendo em vista a coerência.
Considerando essas questões, tomamos como base esse quadro para a elaboração
de uma atividade prática de leitura e escrita, de modo a discutir sobre as estratégias
cognitivas e metacognitivas apresentadas por Kato (1990) expostas anteriormente na
tabela 1. Essas estratégias se referem diretamente à coerência textual e são de duas
naturezas: as metacogitivas, que se referem à procura do tema do texto, comparando o
que é dito com seus conhecimentos prévios, analisando a consistência e a coerência
interna do texto; e as cognitivas, que é o princípio de que o texto tenha uma ordem
canônica e que tenha coerência interna e coerência com o gênero discursivo no qual se
materializa.
Buscamos, nessa direção, entender de que forma acontece a leitura de um
anúncio publicitário, considerando o objetivo de compreender o funcionamento do
gênero, levando em conta seus aspectos linguísticos e sua função social. Para tanto, foi
mostrado um anúncio publicitário a um aluno do curso de Administração e foi solicitado
a ele que fizesse a leitura do anúncio respondendo a treze questões.
Abaixo, seguem o anúncio e as perguntas:
Figura 1: Anúncio da Apple
Fonte: http://macmagazine.com.br/wp-content/uploads/2011/04/14-apple_ag.jpg
1) Você sabe identificar que tipo de texto é este? Se sim, qual é o tipo2?
2) Como você identifica um anúncio publicitário/propaganda?
3) Todas as pessoas que visualizarem essa propaganda entenderão que se trata de uma
propaganda? Por quê?
4) O que você conhece sobre a marca anunciada na propaganda?
5) Você conhece a história a qual se refere a primeira maçã? O que você sabe sobre isso?
6) Se retirarmos a parte verbal, o sentido ficará comprometido? Por quê?
7) Se retirarmos a parte não-verbal, o sentido ficará comprometido? Por quê?
8) Se invertermos as posições das maçãs em relação aos seus enunciados que aparecem
embaixo de cada uma, o anúncio continua coerente? Por quê?
2 Chamamos de tipo textual, a fim de não causar dificuldade na resposta do aluno. Como o sujeito não é
aluno de Letras e talvez não estivesse inteirado das diferenças entre tipo textual e gênero textual,
consideramos mais eficiente elaborar a questão com uma nomenclatura mais comum a todos os
estudantes, tendo em vista todos os ensinamentos da tradição escolar em torno de gênero e tipo.
9) Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs apresentadas?
10) O que você entende por paraíso?
11) Que relação tem a palavra paraíso com as maçãs?
12) Qual a função social de uma propaganda?
13) Que relação tem a palavra paraíso e as maçãs com a função social da propaganda?
Com este questionário, objetivamos construir um percurso de compreensão
textual que contemplasse um trabalho com um texto real materializado num gênero
discursivo e que contemplasse estratégias de leitura que esquadrinhassem a construção
da coerência textual. Na tabela 5, abaixo, sistematizamos a relação entre as questões
aplicadas e os procedimentos propostos na tabela 4, os quais consideram a situação de
interação, aspectos linguísticos e cognitivos no que tange ao processo de leitura.
Procedimentos
Questões
- Identificar o gênero discursivo, utilizando
pistas verbais, não-verbais e conhecimentos
prévios.
Você sabe identificar que tipo de texto é este? Se sim, qual é
o tipo?
Como você identifica um anúncio publicitário/propaganda?
O que você conhece sobre a marca anunciada na
propaganda?
- Explicitar a partir de que elementos do texto é
possível fazer relação com os conhecimentos
prévios
Você conhece a história a qual se refere a primeira maçã? O
que você sabe sobre isso?
Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs
apresentadas?
O que você entende por paraíso?
- Analisar se as partes do texto são coerentes
entre si e coerentes em relação ao gênero
Se retirarmos a parte verbal, o sentido ficará comprometido?
Por quê?
Se retirarmos a parte não verbal, o sentido ficará
comprometido? Por quê?
Se invertermos as posições das maçãs em relação aos seus
enunciados que aparecem embaixo de cada uma, o anúncio
continua coerente? Por quê?
Que diferença de sentidos há entre as duas maçãs
apresentadas?
Que relação tem a palavra paraíso com as maçãs?
- Analisar como se compõe o gênero estudado:
suas características recorrentes, seu público-
alvo, sua esfera de produção e circulação
Qual a função social de uma propaganda?
Todas as pessoas que visualizarem essa propaganda
entenderão que se trata de uma propaganda? Por quê?
- Verificar se houve compreensão do sentido
das partes do texto em relação ao seu todo
Que relação tem a palavra paraíso e as maçãs com a função
social da propaganda?
Tabela 5: Relação entre procedimentos e questões propostas
Ao ser questionado quanto à identificação do gênero lido, no caso, o anúncio
publicitário da Apple, o sujeito deixa claro que sabe identificá-lo e o nomeia:
Resposta 1: Sim, trata-se de um anúncio de publicidade
O sujeito explicita, na questão 2, a maneira como ele identifica, ou seja, como
ele sabe que o texto lido se trata de um anúncio publicitário, e responde:
Resposta 2: Pois usa uma linguagem curta, mas inteligente, clara e de certo modo
reflexiva.
Para o sujeito, anúncios publicitários apresentam linguagem curta, ou seja, é um
gênero que possui poucas palavras, tem uma linguagem inteligente, clara e reflexiva,
mas não enfatiza, ou melhor, não explicita em sua resposta a característica desse
discurso de ter uma marca de um produto a ser vendido. A princípio, se não fizéssemos
as outras perguntas, ficaríamos com uma ideia de que o sujeito compreende o gênero
mais no nível de sua estrutura, de sua forma, de sua linguagem e menos no nível de sua
função social. No entanto, na resposta à questão 3, quando é perguntado se outras
pessoas identificariam que o texto se trata de um anúncio, ele vincula o processo de
compreensão do anúncio a conhecimentos prévios a respeito da marca do produto:
Resposta 3: Pois é um anúncio claro e objetivo, embora só quem conheça o logo da
Apple é capaz de entender o significado da propaganda e o que ela busca ao relacionar
as maçãs.
Por meio da questão proposta, induzimos o sujeito a fazer dois movimentos
metacognitivos: pensar por si próprio, o que o levaria a compreender o anúncio, e, em
seguida, colocar-se na posição de outro e pensar como se fosse outra pessoa. Somente
no segundo movimento, ou seja, no movimento de aproximação da compreensão do
outro, percebemos que ter conhecimentos sobre a Apple é importante para a
compreensão do anúncio. O sujeito também é levado a explicitar se ele próprio tem
conhecimentos sobre a marca e ele afirma na questão 4:
Resposta 4: Conheço a marca Apple primeiramente pela divulgação na mídia, que é
bem expressiva. E também por ter estudado em algum momento no ensino médio sobre
as empresas de grandes potências do ramo cibernético. Porém, nunca tive um produto
dessa marca.
Os conhecimentos prévios mobilizados pelo sujeito sobre o produto anunciado
na publicidade são resultado de informações de duas naturezas: já-ditos sociais que
circulam na mídia sobre o produto, talvez outros anúncios publicitários na TV, internet;
o outro conhecimento que tem sobre a empresa, que o sujeito aprendeu na escola,
estudando sobre empresas do ramo anunciado na publicidade. É interessante notar a
importância de possuir tais conhecimentos que entram em ação para que os sentidos se
construam para o leitor. A quinta questão também se refere a conhecimentos anteriores
que contribuem para a leitura bem-sucedida do texto, no que tange às relações
dialógicas a respeito da história bíblica de Adão e Eva e a expulsão do paraíso. O sujeito
revela, então, que conhece basicamente a história da primeira maçã:
Resposta 5: Conheço o básico (bem básico mesmo) sobre a história da criação do
homem pela visão Católica. A referência da maça é em relação a Eva e Adão, que
pecaram (comeram o fruto proibido) e, em consequência, foram expulsos do Paraíso.
Possuir o conhecimento prévio da história de Adão e Eva permite ao sujeito
construir um caminho para a compreensão da relação de sentidos que ocorre entre as
duas maçãs, conforme é questionado na nona pergunta. Vejamos o percurso que o
sujeito faz sobre essa questão:
Resposta 9: A primeira maçã (inteira) faz alusão ao símbolo do pecado, da tentação, o
motivo pelo qual o homem foi expulso do paraíso. Já a segunda (mordida) tem o intuito
de nos fazer acreditar que, para chegar ao paraíso, basta optar por ela, e assim, o
paraíso estará ao nosso alcance.
O sujeito explicita nesta resposta não só que entende a relação entre as duas
maçãs, mas também que essa relação coerente tem um propósito: convencer o
interlocutor a adquirir o produto para que ele consiga ter o paraíso a seu alcance. Nesse
momento, percebemos que a leitura da palavra paraíso é um dos cernes para essa leitura.
Pensando na construção desse anúncio, fizemos então duas questões que levassem o
sujeito a explicitar seu processo de compreensão através da leitura da palavra paraíso e a
relação dessa palavra com a parte não verbal: as duas maçãs. Abaixo, as duas respostas:
Resposta 10: Algo bom, intangível. Um ideal.
Resposta 11: Acredito que, em função da simbologia que ela tem na visão católica, de
significar o pecado, a tentação, a empresa tecnológica usou esse significado e explorou
positivamente a implícita 'tentação' para convencer o público que o ideal 'paraíso' está
ao nosso alcance, basta 'morder a maçã'. Já a primeira 'desenha' a maçã como o
motivo para saída do paraíso. Remete a uma ideia contrária a da segunda.
Fica evidente que faz parte da compreensão de um texto o conhecimento sobre o
léxico que o constrói. É preciso, no caso do anúncio lido, compreender o sentido da
palavra paraíso e quais sentidos podem emergir por meio dessa palavra na
materialidade do texto, no que se refere à coerência interna, ou seja, sua relação com os
outros signos do texto, e à coerência em relação ao gênero mobilizado. O sujeito
demonstra que compreende o sentido da palavra paraíso e na resposta 11 ele explica os
sentidos que essa palavra desempenha na relação com as maçãs, parte não verbal do
anúncio.
É importante observarmos que, pela leitura do sujeito, a palavra paraíso e sua
relação com as maçãs se articulam para convencer o público que esse ideal, esse lugar
bom está a seu alcance e é viabilizado pela Apple. Com isso, entendemos que o sujeito
compreende a função social da publicidade mesmo que não explicite isso em sua escrita.
E a esse entendimento ele chega por meio da reflexão a respeito da relação de sentidos
entre a palavra e os signos não verbais. Por isso, ressaltamos a importância de questões
que direcionem a leitura dos sujeitos, fazendo-se explicitar aspectos muitas vezes
inconscientes.
Nesse sentido, as questões que levaram o sujeito a refletir e explicitar sua
compreensão a respeito da coerência interna do anúncio também contribuíram para que
ele refletisse em relação à construção textual. Assim, questiona-se na sexta e na sétima
pergunta, respectivamente, se retirado o texto verbal e, depois, o texto não verbal, o
sentido do anúncio ficaria comprometido. Questiona-se ainda, na oitava questão, se
acontecesse a inversão nas posições das maçãs em relação aos enunciados, se o anúncio
sofreria algum problema de coerência.
Resposta 6: Sim, ficaria. Pois é preciso ver a imagem para compreender o que há na
frase, a associação que é feita.
Resposta 7: Sim, ficaria. Pois assim como no caso anterior, a imagem da maçã inteira e
a outra 'mordida' não nos remete à ideia que o anúncio quer transmitir. Embora a
maçã 'mordida' é facilmente identificada como o logotipo da Apple, mas só a imagem
compromete o sentido.
Resposta 8: Não. Os enunciados são interligados, de certo modo, com a imagem. Ao
inverter suas posições, a mensagem será errônea e comprometeria o seu sentido.
O sujeito demonstra que compreendeu a construção da coerência interna do texto
e da coerência interna em relação ao gênero discursivo e sua função. Para ele, seria
impossível entender o texto se fossem retiradas algumas de suas parte. Quanto à
inversão de posições das maçãs, ele julga que o propósito da publicidade ficaria
comprometido, pois as pessoas não entenderiam a mensagem, demostrando, assim, que
o sucesso de um anúncio publicitário junto ao seu público-alvo depende bastante de sua
coerência textual.
Por fim, depois de fazer o sujeito leitor refletir sobre os sentidos das partes do
texto e suas relações internas, as duas últimas questões exploram os aspectos da função
social do gênero anúncio publicitário, de modo a levar o sujeito a explicitar em suas
palavras se ele compreende a função de um anúncio e se ele compreende a função das
partes do texto analisadas anteriormente em relação a essa função social. Analisemos
suas palavras:
Resposta 12: Informar. Transformar algo aos olhos das pessoas. E, se bem explorada,
faz o simples se tornar essencial.
Resposta 13: Acredito que a chave do anúncio é a evolução. Ela transmite através das
imagens e das frases, ou melhor, da relação entre elas, que as 'coisas' evoluíram. Que é
importante rever nossos conceitos e evoluirmos.
As duas últimas questões propostas exigiram um grande esforço cognitivo, por
dois motivos: primeiro porque exige que o sujeito tenha a capacidade de sintetizar em
palavras a complexidade da função social de um texto e, segundo, porque exige que o
sujeito saiba essa função e a sintetize em relação à construção do texto. Não se trata
apenas de dizer a função, mas refletir em que sentido os elementos constituintes desse
texto contribuem para essa função. Embora o sujeito, na questão 12, não tenha escrito a
função de maneira adequada, ficou comprovado, nas outras questões, que ele sabe que a
função do anúncio é oferecer/vender um produto e ele, então, direciona seu foco de
reflexão, explicitando mais os sentidos do anúncio para a sociedade do que a função em
específico do anúncio da Apple. Para o sujeito, o anúncio transmite a ideia de evolução,
de rever conceitos, e essa compreensão só é possível por meio da análise da relação
entre as partes do texto.
Desse modo, as questões foram propostas baseando-se nos dois esquemas de
leitura (bottom-up e top-down) em relação. Em vários momentos é solicitada ao leitor
não só a utilização de seus conhecimentos prévios, mas também a explicitação de sua
compreensão das partes do texto, ou seja, a compreensão da palavra paraíso, das frases,
das maçãs e da relação entre essas partes.
Enfatizamos, dessa maneira, que conhecer o gênero e sua função social é
fundamental na leitura. Entretanto, o leitor não compreende o texto em sua
materialidade somente através desse conhecimento. O sujeito precisa compreender a
construção do texto, precisa ter consciência do sentido do léxico empregado, precisa,
além disso, organizar cognitivamente esses aspectos ao que ele já conhece sobre o
gênero e sobre o assunto tratado. Esse processo não ocorre de maneira estanque, é antes
um processo complexo, multifacetado, oriundo de um sujeito também complexo, tanto
no que se refere a sua constituição social, histórica e cultural, quanto no que se refere a
sua cognição e todos os aspectos que a envolvem.
5. Considerações finais
Diante do que foi discutido e aplicado, consideramos que a interação entre as
visões da psicolinguística e dos estudos de gêneros discursivos mostra-se bastante
frutífera para fins didáticos. Foi importante observarmos que os sentidos de um texto
são compreendidos pelo leitor a partir de vários aspectos, dentre os quais destacamos:
considerar a linguagem como viva e intrinsecamente social que se materializa em
determinados tipos de enunciados em diferentes esferas da comunicação humana;
considerar que um texto é produto de um contexto de produção e que, no momento da
leitura, conhecimentos prévios que envolvem esse contexto são ativados pelo sujeito
leitor; considerar que um texto é constituído por uma coerência interna e em relação ao
gênero discursivo, e que o leitor precisa ter consciência dessa organização para os
processos de leitura e escrita.
Ao ponderarmos essas questões, percebemos que o principal ponto de contato
entre as duas áreas e que foi, de certa forma, explorado neste artigo, é justamente o
limiar entre a ideia de compreensão da coerência textual, desautomatizando-se
processos cognitivos e a ideia de que essa compreensão depende diretamente do
conhecimento a respeito do gênero discursivo no qual o texto está materializado. Assim,
consideramos que a compreensão da coerência textual depende fundamentalmente de
conhecimentos lexicais, sintáticos, semânticos, do gênero mobilizado e conhecimentos
prévios sobre o tema do texto.
Desse modo, tanto nossa proposta teórico-metodológica, quanto nossa aplicação
de leitura com o sujeito focalizaram o desenvolvimento da habilidade de leitura no que
se refere à coerência textual em seus dois grandes aspectos: linguísticos e contextuais.
Visualizamos, a partir disso, a maneira como o leitor construiu sentidos para a leitura,
por meio do questionário, e percebemos que o direcionamento da leitura em sala de aula
necessita de objetivos claros, situação de comunicação explicitada, análise dos aspectos
linguísticos e dos aspectos que envolvem o gênero. Enfim, percebemos que o professor
precisa orientar a atividade.
Destacamos, por fim, que nossa proposta apresenta limites, uma vez que não é
possível englobar todos os aspectos envolvidos na leitura num único modelo
metodológico. A leitura é um ato complexo e o que mostramos nesse artigo é apenas um
dos caminhos para se desenvolver habilidades de leitura e produção textual. Nesse
sentido, ressaltamos a importância de pesquisas que elaborem a interface entre
psicolinguística e estudos sobre gêneros discursivos, tendo em vista a aplicabilidade nas
aulas de língua, a fim de formarmos leitores proficientes e críticos.
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