ESTRADA DE LOS CARACOLES - MENDOZA A SANTIAGO
Jacir J. Venturi
Aurora radiante, dia de retorno para Santiago. Na retina
e na mente, uma simbiose de lindas imagens e
lembranças após dois dias dedicados aos principais
pontos turísticos e vinícolas de Mendoza (ver no
Google, relato no meu artigo anterior – Mendoza:
vinhos, história, turismo e curiosidades).
Já embarcados em uma van alugada, ao longe a vista
majestosa do altaneiro cerro Tupungato. O vulcão
inativo Tupungato, “janela de estrelas” na etimologia
huarpe, com seus 6.565 m é o segundo mais alto da
cadeia de montanhas andinas. Parreirais que se perdem
no infinito, alternados por fileiras de olivas (sim, aqui se
produz excelente azeite) e álamos, abundância de rosas
multicoloridas, neves eternas, desertos, estações de
esqui especialmente Las Lenãs e Los Penitentes,
desafiadoras montanhas para os “andinistas”, esportes
náuticos, rafting, trekking, pesca, e os melhores vinhos
do mundo, o que estaria faltando? Falta tempo para
desfrutar de tantas belezas e sinergia. Ao caro leitor,
sugiro que sacrifique o que for necessário para dedicar
um dia, preferencialmente em carro alugado, fazer o
percurso de Mendoza a Santiago. São 355 km,
transpondo a Cordilheira dos Andes, com uma dezena
de paradas obrigatórias. Porém, cuidado, no inverno
esta é uma estrada perigosa, devido às nevascas, as
quais promovem interdições.
A Estrada de Los Caracoles – classificada pelos guias
turísticos como uma das 10 mais belas do mundo – é a
estrada que transpõe os Andes, de Mendoza a Santiago.
As placas de sinalização em boa parte a denomina Ruta
7, sendo esta uma via nacional argentina que parte de
Buenos Aires, passa por Mendoza e termina na divisa
Argentina/Chile (onde se situa a Aduana), a pequena
distância de Portillo, ícone maior como estação de esqui
da América do Sul.
No percurso, há cerca de 14 túneis, alguns diminutos e
o mais longo com 3 km de extensão. A Estrada de Los
Caracoles foi inaugurada em 1982 e em boa parte do
trajeto avista-se a Ferrovia Transandina, com início da
construção em 1820, um gigantesco desafio para a
Jacir, Sofia (7 anos), Jamil, Fabíola, Eliane, Isabela e
Fábio (Hélio é o fotógrafo)
Estrada de Los Caracoles (Ruta 7): início da subida da Cordilheira dos Andes. Picos das montanhas no final
do degelo (é março, 2012)
Terminamos o dia no Mercado Central de Santiago, onde degustamos o emblemático caranguejo gigante
(Centolla), pescado a 20 m de profundidade nas águas gélidas do Pacífico da América do Sul.
Ferrovia Transandina (desativada em 1984), construída a partir de 1820. Ponte sobre o Rio
Mendoza.
engenharia da época, porém desativada em 1984. Outra bucólica companhia é o Rio Mendoza,
de águas escuras devido aos sedimentos. Uma sobrinha de 7 anos que nos acompanhava na van
provocou risos, quando deslumbrada, candidamente exclamou: “Olha lá embaixo, um rio de
chocolate”.
Partimos de Mendoza em direção a Santiago, às 6h da manhã, 8 pessoas da família, numa van
Sprinter. Contratamos o motorista por 12h, para que pudéssemos desfrutar de uma das mais
exuberantes estradas do planeta – a Ruta 7 –, e assim mirar las paysagens e sacar fotos em
aproximadamente uma dezena de stops, aos quais nos reportaremos a seguir:
Potrerillos, é destino das famílias mendoncinas para
veraneio e ótimo para a prática de rafting, treking,
rappel, tirolesa, cavalgadas, montain bike,
canoagem. O belo lago – a bem da verdade uma
represa – cuja água é proveniente do degelo das
montanhas e alimentado pelo emblemático Rio
Mendoza. O motorista – argentino falante e
simpático – jura ter pescado uma truta de 5kg.
Uspallata – “vale das alpacas”, na língua huarpe – é
histórica e economicamente importante. Ali o
General San Martin acampou e treinou o Exército
antes da epopeica travessia dos Andes. San Martín,
grande estrategista militar, compreende que a
independência da Argentina, proclamada em 1816,
seria precária, se os espanhóis continuassem
dominando os países vizinhos. Destarte, concebe
um plano para libertar o Chile e o Peru. Em janeiro
de 1817, cruzou heroicamente os Andes e unindo-
se ao exército chileno de Bernardo O´Higgins,
surpreendem e vencem os espanhóis em duas
significativas batalhas (Chacabuco e Maipú).
Consolidada a independência chilena, por mais dois
anos, San Martín prepara a frota que conduzirá as tropas ao Peru, e em 1821 toma a capital Lima
e torna-se o primeiro presidente. Em 1822, desentende-se com Bolívar que marchava do
Equador para o Sul, parte para o exílio voluntário para Bruxelas e depois Paris, onde faleceu.
Quem mais passou por aqui? Ninguém mais, ninguém menos que Charles Darwin, em 1835, com
apenas 26 anos, no lombo de mulas, por trajetos diferentes, coletando inclusive conchas nas
montanhas dos Andes. Fez ida e volta Valparaíso a Mendoza, tendo ancorado seu pequeno navio
Beagle nesta encantadora cidade do Pacífico. Por pouco não veio a falecer, permanecendo um
mês de cama, por seu quadro febril e fortes dores estomacais e estas o acompanharam por toda
a vida, especialmente ante o estresse de publicar A Origem das Espécies. A um jornal santiaguino
da época declarou: “El viaje ha agregado mucho a mi conocimento”.
Uspallata é repleta de álamos e grande produtora de papas (batatas). Os álamos foram
plantados com o intuito de proteger as plantações e as casas dos fortes ventos , denominados
Potrerillos: represa formada pelo degelo e que abastece Mendoza.
Uspallata, cidade com grande relevância histórica: General San Martin, Darwin e Brad Pitt.
zonda. Por sua semelhança com a Ásia Central, este foi o cenário de Sete anos no Tibet, com
Brad Pitt, filmado em 1997.
Los Penitentes, com 28 pistas de esqui e snowboard,
leva esse nome pois no alto de uma das montanhas
avista-se uma formação rochosa que se parece uma
peregrinação de dezenas de monges (penitentes),
caminhando em direção a outra formação rochosa,
com aparência de uma catedral. Logo adiante, o
atento motorista estaciona a van e começa a
gritar:”El condor, el condor”– apontando para o céu.
Naquela deslumbrante paisagem fomos agraciados
não com um, mas com dois – provavelmente um
casal – de condores. Antes de escrever estas despretensiosas linhas, coloco no meu aparelho a
música El Condor Pasa (tem no You Tube), em flauta doce, um enlevo para os ouvidos e para o
coração. Curioso, faço uma breve pesquisa no Dr. Google. De coloração preta, com um colar
branco no pescoço, alimentam-se de aves e animais vivos, porém são também saprófagos, ou
seja comem também animais em putrefação. É ave símbolo do Chile, Bolívia, Equador e
Colômbia e integra os seus brasões. Está ameaçada de extinção, possui uma envergadura de
3,2m e chega a voar 300km num só dia. A fêmea faz ninhos nos cumes mais elevados das
montanhas e bota um ovo por ano, excepcionalmente dois. E aqui a natureza se manifesta com
suas singularidades: quando nascem dois filhotes, lutam entre si, até que um derrube o outro
do ninho, sob o olhar complacente da mãe.
Cemiterio de los Andinistas, aproximadamente uma centena de
alpinistas – ops, andinistas –de diversas nacionalidades, inclusive
brasileiros, perderam a vida ao escalar as montanhas da região.
Os túmulos são rústicos, e há sepulturas com pai, mãe e filho.
Depreende-se que após a morte do filho, os pais manifestaram o
desejo de serem enterrados ao lado de seu rebento, naquele
silente e místico vale.
Puente del Inca, uma
ponte natural de 50m
de comprimento e 20m
de largura, a 25m de
altura da lâmina de
água do Rio Las Cuevas,
que a partir da confluência de outro rio passa a se
chamar Rio Mendoza, tão charmoso e emblemático,
que merece uma descrição específica. A ponte recebe
este nome, pois os incas provenientes de Cuzco aqui se
estabeleceram entre 1480 e 1530. A partir desta data,
foram paulatinamente sendo dizimados pelo sanguinário Pizzaro, para quem “índio bom, é índio
morto”. Pela paisagem magnífica, pela fama de suas águas curativas – temperatura entre 34 e
38º C –, em 1916 foi inaugurado um hotel, por uma companhia inglesa. A ligação do hotel às
Los Penitentes: monges (dentro da elipse) e 28 pistas de esqui.
Cemitério de Los Andinistas: túmulos rústicos aos que perderam a vida
escalando as montanhas da região.
Puente del Inca: ponte natural com 50m e hotel com banheiras de águas termais.
banheiras junto da ponte, é feita através de um túnel de aproximadamente 500m, portanto os
banhistas ficavam ao abrigo dos gélidos ventos da região. É muito bom jogar conversa no
pequeno restaurante, jovens de diversas nacionalidades aqui se encontram. O nome do
restaurante é El Comedor, e o que muito se vê é brasileiro tirando foto em frente à placa nessa
“casa para comer”. O acesso à ponte está vedado aos turistas, pois há risco de ruir.
Parque Provincial Aconcagua, cujo nome provincial se
justifica, pois pertence à província de Mendoza, ou seja
o Cerro Aconcagua, é tão argentino quanto o bife de
chorizo, os emblemáticos vinhos Rutini, ou Maradona. O
parque, de 75.000 ha, envolvendo o Cerro Aconcagua, é
área protegida por lei desde 1983. O Aconcágua, que na
língua indígena huarpe, significa “sentinela de pedra” e
com seus 6.962 m representa não só o ponto mais
elevado dos Andes, mas da Terra, excluindo-se a Ásia. A
primeira expedição a alcançar o cume foi conduzida pelo
inglês Edgard Fitz Gerald, em 1897. Anoto algumas
curiosidades do afável guia, com voz gutural: para galgar
a montanha é obviamente indispensável muita
experiência e bom preparo físico, embora pouca
habilidade técnica, diferentemente do Everest. A primeira significativa parada é a Plaza de
Mulas, a 4.300m, onde se chega a pé ou em montaria, que recebe entre novembro e março
cerca de 3.000 visitantes, que se hospedam em barracas ou no hotel. Dali em diante, as duas
mais difíceis etapas: Nido de Condores (5.550m) e Berlin (5930m). O cume está logo ali, cerca de
1.000m, atingido por uma pequena e destemida confraria, com inerentes riscos.
Cristo Redentor, para quem trafega pela exuberante Ruta 7, em Las Cuevas, há duas
alternativas. Seguir em frente, e assim atravessar o maior dos túneis – o Túnel Internacional
Cristo Redentor – com 3 km, divisa Argentina, Chile. A outra alternativa, é dispor de 4h, alugar
um carro 4x4, com motorista habilitado, e através de uma íngreme e ziguezagueante estrada,
chega-se ao Monumento Binacional Cristo Redentor,a 4.200 m acima do nível do mar, onde uma
escultura em bronze, confeccionado do metal derretido dos canhões, celebra o limite entre os
países irmanos.Esta estátua é fruto do acordo celebrado em 1902, sob a mediação do Rei
Eduardo VII, da Grã-Bretanha, pondo fim aos conflitos entre Argentina e Chile. A bem da verdade
apenas se toleram, pois são comuns as altercações de ambos os lados.
Ao fundo, o Aconcágua com seus 6.962 m, pico mais elevado das Américas.
Portillo, pronuncia-se “portijo” na Argentina e “portio” no
Chile. Dista a 164 km de Santiago. Com área de 890 ha, é o
melhor resort para a prática de esqui e snowboard da América
do Sul, com 30 pistas e 14 teleféricos, com neve de excelente
qualidade e variados graus de dificuldade.
O icônico Hotel Portillo, caracterizado por sua fachada azul e
amarela, foi construído pelo governo chileno em 1949 para
estimular o turismo, porém vendido para um investidor
americano em 1960 e que graças à boa gestão e
relacionamentos internacionais sediou pela 1.ª e única vez o
Campeonato Mundial de Esqui, em 1966, promovendo Portillo
no jet set
internacional. Parte
dos maiores esquiadores aqui se aninha, pois, a
temporada de neve (meados de junho a início de
outubro) coincide com o degelo no Hemisfério Norte.
O cenário paradisíaco se completa com a Laguna del
Inca, a 2.800 m em relação ao nível do mar, um lago
no sopé do hotel e formado pelo degelo das
montanhas. É interessante que a água ali depositada
percola subterraneamente as rochas por fendas e
deságua no Pacífico à quase 130 km de distância.
Aduana, na travessia de um país para o outro, passar
pela bela alfândega é uma experiência singular. No
nosso caso, ida e volta, partindo de Santiago, o
sentimento é de desalento na ida, ao passo que na
volta foi um piquenique.,
Quando partimos de Santiago numa van alugada com
motorista, e nós em 8 pessoas da família todos com
passaporte e RG. A empresa da van foi indicada pelo
hotel e tivemos o zelo de pedir a documentação, o que
foi feito: documentos do veículo e carteira de
motorista, e a garantia de fazerem amiúde esse percurso.
No posto da alfândega, fila de 1h, pois era verão e intenso movimento de automóveis e
caminhões. Ao chegar numa das cabines da aduana, um policial obeso e mal-humorado lascou
o seu veredito: “Non tener autorización notorial” – ou seja, fomos trapaceados pela empresa
santiaguina.
Foram 4h entre chá-de-cadeira e vaivéns com as autoridades argentinas e eis que surge o
salvador: um motorista se apresenta e se propõe a nos levar com sua van até Mendoza por
escorchantes 200,00 dólares.
Hotel Portillo, o melhor resort para esquiar da América do Sul.
Laguna del Inca, no sopé do Hotel Portillo, a 2.800m de altitude, águas provenientes do degelo e que percolam
pelas fendas das rochas até o Pacífico, a 130 km de distância.
Alfândega: para evitar aborrecimentos, conferir zelosamente a documentação, se for carro alugado.
Aceitamos de pronto, após negociado a 150,00 dólares. Partimos para Mendoza e parte do
percurso foi numa noite escura como breu, porém fomos brindados pelo céu estrelado e pela
lua cheia que refletia nos picos das montanhas nevadas e nas águas do sinuoso e bucólico Rio
Mendoza. Sempre digo: a coisa mais certa numa viagem é o imprevisto.
No retorno, em compensação, a passagem na alfândega foi amistosa, apesar de
escarafuncharem as malas com bastões, luvas de plástico e cães farejadores saltitando sobre os
balcões (é rota de drogas). A travessia da fronteira levou 1,5h e reitero que o congestionamento
é predominantemente de caminhões pesados, pois a Ruta 7 parte de Buenos Aires e na divisa
com o Chile muda de nome para CH-60 e que desemboca na cidade litorânea de Valparaíso, num
intercâmbio de cargas com os países asiáticos, pelo Pacífico.
Há um mito provavelmente verdadeiro: de Santiago a Mendoza os policiais argentinos são
ranhetas com documentação – ou mais rigorosos, legalistas – ao contrário quando se faz o
mesmo caminho em sentido inverso.
Trecho de Los Caracoles, do alto parece uma
serpente, dada a sinuosidade de suas 29 curvas (há
quem diga que é um pouco menos ou até mais!). Se
ainda há dúvidas ser esta estrada uma das mais
belas do planeta, aqui você se queda!
Há 3 dias subimos Los Caracoles e na presente
descrição do percurso estamos descendo, é óbvio e
ulalante que ... na descida expele-se mais
adrenalina que na subida.
Muito cuidado ao escolher os pontos para as fotografias – há poucos seguros – e conviva com o
incômodo do ronco dos caminhões que se estrebucham para subir e com o cheiro forte dos
freios queimados daqueles que descem.
Obs.: Esta viagem aconteceu em março de 2012. Qualquer impropriedade no texto, favor
escrever para [email protected]. Diversas informações foram obtidas oralmente e este
despretensioso relato tem o escopo de facilitar a vida dos privilegiados que se propõem
atravessar a Cordilheira dos Andes – certamente um dos mais belos passeios da face da Terra,
ainda mais regado a bons vinhos, deliciosos jantares e língua e costumes amigáveis.
Jacir J. Venturi, professor aposentado da UFPR e PUCPR, Coordenador Da Universidade Positivo, autor de livros, engenheiro e matemático.
Los Caracoles: são 29 curvas (Fábio na foto)