Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
Entre o passado e o futuro passado
Jorge Grespan
O modo com que experimentamos o tempo – constituído não só pela memória,
mas pelas expectativas de futuro – está hoje fatalmente marcado pela experiência da
crise econômica. Ela redesenha o “futuro passado” de parte do título desta palestra. Não
se trata mais, como no livro de Koselleck, da modernidade se definir pela consciência
histórica, ou porque se sente sempre começando de novo (Neuzeit)*, sempre
aguardando o melhor ainda por vir; contudo, sempre ansiosa por prognósticos. Os
prognósticos mundiais agora são péssimos, poucas pessoas aguardam algo de melhor no
futuro, começar de novo parece cada vez mais difícil.
Mais do que nunca, a consciência histórica está marcada por aquilo que também
Koselleck chamou num livro anterior de “nexo de crise”. Não por acaso, aliás, o
subtítulo deste livro é “um estudo sobre a patogênese do mundo burguês”. A crise é
patologia inerente a este mundo, constituindo a experiência moderna tanto quando se
realiza efetivamente, como quando existe apenas na preocupação, no prognóstico
provável – pois neste caso, aqueles que a prevêem sabem que ela sempre está aí, como
algo pelo menos latente, iminente. Koselleck enfatiza o modo como o futuro tem certa
precedência na organização moderna da experiência do tempo, mas um futuro que tem
de ser domesticado pelo prognóstico preciso, medido, tornando-se assim tão conhecido
quanto o passado – daí o “futuro passado”. É justo tal precisão, porém, que se mostra
uma quimera, quando até as agências especializadas em calcular e classificar riscos no
pagamento de dívidas – as ditas agências de ‘rating’ – não conseguiram calcular seus
próprios riscos e algumas delas faliram entre 2008 e 2009.
Como eu procurei explicar na minha tese de doutorado, o problema do
capitalismo nunca é a falta, e sim o excesso: não faltam prognósticos, eles abundam;
nem a estes prognósticos faltam medidas exatas, é que as medidas são contraditórias. O
futuro agora obedece a tantas ordens, deixa-se domesticar por tantos instrutores, que no
final ele continua inculto, selvagem, desconhecido. Mas a culpa é do capital, que no afã
de dominar o tempo pela mensuração multiplica as medidas de tal forma, que elas
escapam ao seu comando central. A irrupção da contradição constitutiva do capital
aparece como contradição dessas medidas – taxas de lucro dos vários setores da
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economia, dos vários países (que por isso hoje se deixam rebaixar à rubrica de
“oportunidades de investimento”); taxas de juros, taxas de câmbio, taxas de risco.
O esforço do prognóstico, com o qual Koselleck caracteriza tão bem o mundo
moderno, fracassa pelo excesso. O futuro passa a ser esquadrinhável em muitas direções
conflitantes, projetadas a partir de um passado ao qual muitos se apegam como algo
harmonioso. Mas este passado, pelo menos as últimas décadas do capitalismo mundial,
nada teve de harmonioso. Dele é que brotaram as sementes da desmedida que enquadra
a crise atual.
Para ser mais específico, proponho voltar a Marx. O tempo forma a base do
sistema social por ele descrito, porque este sistema consiste em apropriação constante e
crescente de tempo de trabalho, ou ainda, porque nele a própria sociabilidade se
estabelece pela troca de produtos cujo valor é em princípio medido em tempo. Esta
medida se rebate no dinheiro, que por isso pode ser definido como “poder social” –
poder sobre o trabalho dos outros, sobre o tempo da vida dos outros e que o proprietário
do dinheiro “carrega no bolso”. As suas formas atuais, os cartões magnéticos de débito
e crédito, só reforçam tal caracterização do poder do dinheiro: no débito, uma conexão
eletrônica transferindo valor diretamente de uma conta a outra, operação contábil
imediata; no crédito, também uma operação contábil, mas que se projeta no tempo e
toca por isso precisamente no tema aqui analisado.
Já a idéia de uma operação contábil é reveladora. Nela desaparece até a moeda
como intermediário inevitável, cuja circulação demanda tempo. O débito automático é
isso: automatismo que dispensa a troca de mãos, a intermediação humana. Ainda mais,
tudo isso ocorre por um cálculo, de certa forma uma representação matemática efetiva e
eficaz do acesso aos bens, do poder aquisitivo, do que Marx chama, junto com Adam
Smith, de “comando sobre o trabalho alheio”. O crédito é uma expansão deste comando
pela representação de um pagamento futuro. Vê-se só por isso como o prognóstico,
como a calculabilidade do tempo é crucial neste modo de vida. A representação do
equivalente a ser pago deve ser fidedigna, além de estipular o tempo em que ela
concluirá uma prática efetiva.
De certa forma, trata-se aqui também do problema das práticas e representações
que inspirou tantas pesquisas históricas recentes. Mas é preciso enfatizar a relação
dialética entre ambas, uma vez que a prática da troca passa pela representação do poder
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social, do dinheiro que seu proprietário terá no bolso daqui a um tempo definido
exatamente no contrato de compra e venda. E a representação, por seu turno, institui a
possibilidade de uma prática já no presente.
É interessante, neste contexto, analisar com um pouco mais de detalhe a forma
por que o dinheiro realiza esta função de meio de pagamento. Mas comecemos com a
função anterior.
Como simples meio de compra à vista, o intercâmbio ocorre com a mercadoria
passando das mãos do vendedor às do comprador ao mesmo tempo em que o dinheiro
deste último passa para o primeiro. Ou, nos termos de Marx, a mercadoria inicialmente
é algo real nas mãos do vendedor e apenas ideal para o comprador que a deseja e não a
possui ainda. Inversamente, o dinheiro nas mãos do comprador é algo real, e só ideal
para o vendedor da mercadoria, que quer vendê-la para se apropriar do dinheiro da
única maneira legal possível. Quando o negócio acontece, a mercadoria passa de ideal a
real para o comprador, que agora pode desfrutar do seu valor de uso; e o dinheiro passa
de ideal a real para o vendedor. Por isso Marx chama este processo de “realização” das
formas mercantis. Por outro lado, no pólo do “ideal” já aparece de modo embrionário a
dimensão do valor como representação, que contém de antemão em latência o lado real.
Na função mais complexa de meio de pagamento, o jogo do ideal e do real
decorre ao longo do tempo. A mercadoria vendida passa às mãos do comprador, para
quem era antes só ideal, e se torna então real. O vendedor, porém, não recebe
imediatamente o dinheiro em troca, e sim uma promessa de pagamento dentro de prazo
determinado. O dinheiro conserva para ele, nas palavras de Marx, a “forma apenas ideal
ou representada”, e só será real quando se apresentar com o pagamento. Diferentemente
da função de meio de compra, assim, para um dos envolvidos no negócio a passagem do
lado real ao ideal não corresponde a uma passagem simétrica e simultânea do ideal ao
real. Da sua perspectiva, o dinheiro permanece como ideal, como medida de valor,
embora a mercadoria circule normalmente.
E a partir desta forma desdobra-se outra, ainda mais complexa. A promessa de
pagamento aceita pelo vendedor, agora transformado em credor, pode ser usada depois
por ele para adquirir as mercadorias de que ele necessita e que teria comprado com
dinheiro à vista. E os vendedores dessas mercadorias, por sua vez, podem também
utilizar a promessa de pagamento para as suas compras futuras, entrelaçando assim
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contratos sucessivos. Mas só quando o primeiro pagamento for realizado é que o
dinheiro irá substituindo a promessa de pagamento, quitando a cadeia toda das dívidas
mediante “compensações” mútuas de débitos e créditos. Até lá, o dinheiro é ideal, é
realidade contábil. Mesmo assim ele permite realizar várias transferências de
mercadorias, que passarão à propriedade efetiva dos seus compradores e poderão ser por
eles consumidas. Aqui a representação tem poder real; é o poder real. Claro que uma
falha no pagamento em algum elo da cadeia será desastroso para os credores que não
receberem o dinheiro: a dívida de um se multiplicará por todos os outros. Mas até esse
momento a mera promessa de pagamento foi suficiente para que negócios fossem
realizados e as mercadorias, pelo menos em parte, consumidas.
É nessa situação ideal de substituto simbólico do dinheiro efetivo que o dinheiro
representado multiplica o poder social dos indivíduos aos quais se concede crédito. Por
isso o crédito configura cada vez mais o sistema da produção e das trocas em sua
totalidade.
Definido pelo compromisso de pagamento, o lapso então aberto entre presente e
futuro é medido no tempo com rigor. Até vencer o prazo para a apresentação do
dinheiro, é o seu representante que vale. O próprio tempo é daí marcado pela
representação; é tempo representado. No capitalismo o tempo é primeiro reduzido a
uma abstração, é tempo abstrato em que se realiza o trabalho abstrato criador da forma
social de valor. É o tempo do relógio, espacializado, em que uma hora é igual à outra, a
qualquer outra. Passível de medida, o tempo pode ser então representado; e finalmente
projetado ao futuro, de onde recebe sentido, como se o presente fosse só a espera de um
prazo de reembolso, do cumprimento de uma promessa. O crescente poder do dinheiro
no sistema de crédito faz da experiência do tempo uma também crescente expectativa,
regulada zelosamente nos termos do compromisso, mas sempre adiável, no limite ao
infinito, porque simples resultado de um contrato. Não é só o presente que se esvazia,
também o futuro, sobre o qual é preciso projetar tanta certeza e cálculo, por isso mesmo
perde a espessura da vivência real. Este futuro, para o qual lançamos nossas
expectativas, não passa de prazo para quitação de dívidas, ou para o acúmulo de juros
que vão compor, justamente, o chamado “valor futuro”; ou ainda para a verificação das
apostas realizadas todos os dias nas bolsas de valores ou de mercadorias, onde se
especula com o preço vindouro de coisas que, às vezes, sequer foram produzidas.
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A forma ainda simples do dinheiro como meio de pagamento revela o segredo de
todas as formas sofisticadas do crédito, das ações em bolsa, das consignações, e até da
dívida pública, face recente e aguda da crise que vivemos. É que já no meio de
pagamento o poder social, mais do que nas coisas – como reza a fórmula tradicional do
fetichismo – está nas representações. Como representante da futura quitação da dívida, a
ordem de pagamento é garantida juridicamente, é um título de propriedade com valor
determinado, podendo daí ser equiparado ao preço das mercadorias e, enfim, usado para
adquiri-las. A propriedade privada aparece neste título completamente destacada do
trabalho produtor de mercadorias, aparece como direito de apropriação dos frutos do
trabalho, direito que se exerce também para adiante no tempo, assegurando o “comando
sobre o trabalho alheio” futuro.
Enquanto tempo representado, porém, o futuro é medido de modo apenas
formal, isto é, por um prazo estabelecido de acordo com o direito privado, e não
exatamente pela medida social do tempo de trabalho abstrato. Como essa expectativa de
reembolso, além de talvez não se cumprir, sempre pode ser adiada, os parâmetros
temporais perdem a estabilidade necessária aos processos efetivos, desde que isso
permita o crescimento dos valores esperados. Não por acaso, neste ponto da sua
exposição, Marx evoca pela primeira vez o mito de Sísifo e fala de mau infinito. Trata-
se do problema crônico da desmedida, antes mencionado, que está na base de todas as
crises.
Mas a minha exposição até aqui pode ter dado origem a dois mal-entendidos.
Pode se pensar que a crise atual é uma crise de crédito, de caráter essencialmente
monetário, resultante de exageros e desmandos cometidos pelos Bancos e demais
agentes financeiros. Algo que podia ter sido evitado, ou que pode ser corrigido, com a
volta à forma sadia da acumulação de capital na esfera produtiva. Isso não é correto,
porém, pois embora a crise possa adquirir virulência especial e se manifestar na esfera
financeira, ela tem sua origem sempre na da produção. Muito impressionados pelos
abalos bancários do ano de 2008, não nos damos conta que o problema imobiliário nos
Estados Unidos começou já em 2006; e bem mais importante, esquecemos que a bolha
imobiliária da última década decorreu de um desvio do dinheiro que não encontrava
aplicação produtiva desde a crise das grandes empresas de energia, informática e
comunicação nos anos 2000 e 2001. A origem desta crise, como no passado, está na
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queda da lucratividade do capital investido na esfera da produção. As novas tecnologias
e formas de organização do processo de trabalho funcionaram durante alguns anos e
conseguiram retomar a taxa de lucro que vinha caindo nos países industrializados desde
os anos 1970. Mas esse seu potencial logo se esgotou e os lucros obtidos, que, se
reinvestidos, cresciam a uma taxa menor, acabaram drenados para o setor financeiro.
Este último cresceu desmedidamente, portanto, só em virtude dos problemas crônicos
do primeiro. E foi a persistência destes problemas desde o fim dos anos 1990, que
conferiu às finanças o poder especulativo e destrutivo hoje reconhecido. Foram eles que
criaram o ambiente propício para a crescente perda de ética nos negócios – maquiagem
contábil dos balanços das empresas, pagamento de gordas gratificações aos altos
executivos, inclusão de títulos podres nas carteiras de aplicação financeira dos clientes
menores. E não o contrário, como querem nos fazer acreditar, a falta de ética é que
levou à crise. Trata-se agora, como também, por exemplo, em 1929, de uma crise
estrutural do capitalismo.
Mas com isso surge o segundo mal-entendido a que me referi há pouco. O que
significa “crise estrutural”? – termo bastante usado hoje por autores que não vêem saída
possível para o sistema. O problema é importante, porque em geral se associa a teoria
das crises de Marx a uma concepção fatalista da história, uma espécie de escatologia do
capitalismo. Num certo momento do seu percurso, as contradições do sistema se
agudizariam a ponto de provocar um colapso econômico inevitável. Esta tese recebeu o
endosso de muitos autores filiados à tradição marxista, principalmente dos que
descobriam nos escritos de Marx algum tipo de confirmação para a velha teoria do
subconsumo das massas, que na verdade é anterior a Marx – exposta por críticos do
capitalismo como Sismondi e Rodbertus – e que Marx inclusive recusou. De todo modo,
a presença da idéia de colapso entre marxistas ajudou a vinculá-la à teoria das crises.
Apesar dos autores recentes terem afastado o subconsumo como motivo da crise atual,
permaneceu forte a idéia de que ela é insolúvel. Quem fala de “crise estrutural” quer se
referir ao fato da crise não ser epifenômeno financeiro, mas decorrente de uma queda da
taxa média de lucro; mas no termo também entra de contrabando a idéia da crise final,
do colapso insuperável.
Até que ponto eles têm razão? É difícil responder como a crise atual poderia ser
resolvida dentro do marco social do capitalismo. Disso falarei mais adiante. O problema
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preliminar, porém, subjacente a esta concepção da impossibilidade é que ela
corresponde à da necessidade absoluta de que a crise viesse a acontecer. O que critico é
este conceito de necessidade absoluta. Mas então a alternativa é que as crises em geral,
a presente inclusive, são algo meramente possível, algo que não necessariamente
sobrevém ao capitalismo? Ele seria capaz, portanto, de se desenvolver sem que elas
ocorressem, talvez se fosse administrado de modo eficiente e com uma política
econômica adequada? Foi isso que a social-democracia sonhou ter alcançado no
segundo pós-guerra e, mais recentemente, afirmaram os neoliberais com a arrogância
característica. Ambos foram desautorizados pelos fatos. Ou seja, a crise tampouco é
mera possibilidade, algo que poderia não ocorrer, quase um acaso. Qual então é o seu
estatuto?
Na filosofia este problema é antigo e conhecido como modal. Ele aparece com
Aristóteles e reaparece sempre com o aristotelismo, até receber versão moderna com
Kant e Hegel, sendo este último, como se sabe, o filósofo de quem Marx teve mais
proximidade crítica. Saber se um evento é somente possível ou se ele é necessário, no
sentido de inevitável – formulação clássica do problema modal – adquire com Hegel a
esperada sofisticação dialética. Além das duas opções mencionadas, em sua Lógica ele
desdobra outras, como a possibilidade formal e real, a necessidade relativa, a
efetividade real. Vejamos como Marx trouxe isso para o seu problema específico, o da
temporalidade capitalista marcada pelas crises.
Um primeiro aspecto a registrar é que o oposto de uma crise é o
desenvolvimento normal da acumulação de capital. Ou ainda, em linha geral, se o
capital se define como valor que se valoriza, a crise o será como valor que se
desvaloriza. O problema até aqui esboçado pode ser reposto da seguinte maneira: da
alternativa entre movimento normal e crise, desdobra-se a idéia de uma alternância dos
dois momentos no tempo, algo como um ciclo econômico; mas a alternância é algo
casual, apenas possível, ou uma necessidade? Neste último caso, um momento
determinado do ciclo passa ao seguinte por conter em si as condições da passagem. Na
fase de valorização normal, desta forma, o capital já desenvolve as condições da futura
desvalorização; e vice-versa. Se a alternância é mero acaso, por outro lado, sequer há
ciclo. Tornando o problema um pouco mais complexo: havendo ou não ciclo, verifica-se
de todo modo uma tendência persistente no sistema? Por exemplo, uma tendência a
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superar obstáculos e progredir sempre? Ou, ao contrário, uma tendência a voltar a cair
depois de cada tentativa de recuperação? Qualquer destas tendências então são
necessárias, inevitáveis?
Espero que esteja ficando claro que nessas questões o que está em jogo é como o
capital desenha a sua história. Mais ainda, com qual força ele determina cada um dos
eventuais desenhos.
Que não se trata de acaso, é evidente. Marx fala em “leis” e no
“desenvolvimento da formação social econômica como um processo histórico-natural”.
A terminologia não é de estranhar, uma vez que o sistema, com seu conhecido
fetichismo, opera invertendo a história em natureza e esta, em história. As tendências
históricas aparecem como “leis” naturais, mas somente sob o regime do capital, não em
sistemas econômicos nos quais não haja fetichismo. Mas nele, pelo menos, as
tendências são necessárias.
A tentação da cientificidade para o historiador é aqui enorme. A vontade
inclusive de extrapolar estas condições naturais e legiformes para toda a história marcou
muitas empreitadas marxistas. Devemos, no entanto, recordar que o conceito de
“ciência” assim sugerido é o das ciências naturais, cujos eventos são considerados como
dados, objetos positivos, independentes da contaminação do sujeito do conhecimento. O
materialismo de Marx não implica nada disso; ao contrário, ele é crítico disso, é o
materialismo da atividade humana, que constitui os seus objetos, incluindo os do
conhecimento.
Voltando ao tema principal, as crises pontuam a história moderna com a
necessidade profunda que resulta da natureza mesma do capital. Mas isso ocorre
também com a tendência a se valorizar, a desenvolver a técnica, a se reproduzir
endogenamente. Qual delas predomina? Ou, em termos da filosofia modal, qual delas é
mais necessária?
Assim posto, o dilema é absurdo. Pois se uma das tendências é necessária, ela se
realiza obrigatoriamente, rabaixando a outra a uma não-necessidade, isto é, a mera
possibilidade. Se a valorização normal constitui a necessidade, uma crise só poderia ser
um acaso. E se a crise constitui a necessidade, como um mal crônico e insolúvel, então
o desenvolvimento normal só pode ser simples possibilidade, que às vezes ocorre, mas
acaba sendo superado e substituído pelo retorno do mal crônico. Ou uma ou outra
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tendência é necessária. Perguntar se uma é mais necessária que a outra, consistiria numa
contradição do conceito modal de necessidade. Mas o problema é justamente esse:
como seria um conceito dialético de modalidade?
Marx se inspira aqui de novo em Hegel, não por qualquer apego à sua filosofia,
mas porque o objeto assim o exige. Desçamos então um pouco mais, rumo ao
fundamento deste objeto.
Correndo o risco de repetir formulações demasiado conhecidas, é preciso definir
o capital na sua relação contraditória com o trabalho assalariado. Criado por este último,
o valor só pode se valorizar sob as condições sociais em que o trabalho se torna
assalariado e, daí, incluído como capital variável dentro do capital em geral. Este
último, por seu turno, só inclui a força de trabalho na medida em que não deixa a ela
nenhuma opção que não a de vender-se como mercadoria. A situação típica da
acumulação original – o despojamento do trabalhador dos seus meios de produção –
reproduz-se todos os dias como exclusão. O capital então exclui a força de trabalho ao
mesmo tempo em que a inclui como parte de si. Ou melhor, dialeticamente, ele inclui
porque exclui: se o trabalhador fosse proprietário dos meios de produção, não precisaria
vender sua força de trabalho. E, ainda dialeticamente, ele exclui porque inclui: o poder
do capital em renovar o despojamento do trabalhador cresce junto com seu valor, com o
valor que a força de trabalho criou para ele. E assim se configura uma forma
contraditória, na qual o capital exclui o que inclui, isto é, exclui a si mesmo.
Nisso reside a base das tendências opostas apontadas antes no desenvolvimento
capitalista, a valorização e a desvalorização. E se lembramos que o trabalho não só cria
valor, como também representa a sua medida, a contradição consiste em que o capital
inclui a medida de si, da autovalorização – como se ele próprio se medisse – mas a
exclui ao repor as condições do despojamento: a medida pertence a ele, mas como algo
que ele constantemente tem de perder. Ele se mede do mesmo modo que se desmede.
Ao desmedir-se, ele busca nova medida, e assim sempre, numa outra figura do tormento
de Sísifo. Esta é a base da multiplicação das medidas e de que elas devam se opor. É a
base da crise, tal como havia sido definida no começo da minha fala.
Por isso as duas tendências que emergem da forma contraditória em que o
capital se constitui são igualmente inerentes a ele, igualmente necessárias. A resolução
dialética do absurdo modal consiste nisso: que a valorização e a desvalorização
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pertencem à “natureza” desta relação social historicamente determinada, fazendo o
percurso normal ser tão inevitável quanto a sua suspensão pela crise.
Retomemos então as figuras da história ordenada pelo capital. A das simples
tendências forma uma linha no tempo, de progresso ou de retrocesso. Mas como cada
uma é oposta a si mesma, contém em si a outra, tornando impossível saber quando um
movimento de curto ou longo prazo (“duração” dirão os braudelianos) cederá a vez ao
processo contrário. Se tal passagem for constante e tivar uma forma periódica, a figura
passa a ser a do ciclo, do tempo circular. Marx oferece várias explicações para este
fenômeno: alternâncias na relação entre o uso de mão de obra e de equipamento
produtivo, revolucionado por técnicas novas – a chamada composição orgânica de
capital –; ou a elevação e a queda da taxa de exploração da força de trabalho, que levará
em sucessão a seu emprego ou desemprego; ou ainda combinações desses fatores,
quando o emprego de força de trabalho diminui com a adoção generalizada de uma nova
tecnologia que reduz custos e eleva lucros, mas em seguida permite novo crescimento
do emprego, estreitando os lucros e forçando a adoção de tecnologia ainda mais capaz
de poupar mão de obra.
Em todos estes casos, contudo, os dois momentos se determinam
reciprocamente. Eles são igualmente necessários não só em si, não só porque se
originam na constituição contraditória do capital, mas em relação um ao outro – eles são
assim necessidades “relativas”. Nenhuma delas pode excluir a outra, pode sequer
rebaixá-la a algo só possível, casual. Porque se fosse assim, uma das tendências se
tornaria absoluta e impediria a outra de se tornar efetiva, a não ser por algum acaso. O
capital então deixaria de ser capital, valor cuja autovalorização depende da apropriação
do trabalho alheio, depende de simultaneamente incluir e excluir a força de trabalho.
Isso no nível do fundamento. Mas avançando para as condições da realização
dessas tendências, o que teríamos? A adoção de novas técnicas depende de que esteja
sempre em vista o perigo de uma queda da lucratividade, resultante do excessivo
emprego de força de trabalho. Mas será que cada um dos momentos determina o outro
de modo absoluto? Ou seja, as condições de uma crise trazem em seu bojo todas as
condições de superação da crise? E, inversamente, dentro de um momento de
acumulação normal estariam contidas todas as condições para a sua substituição pelas
de uma crise? Aqui é decisiva a palavra “todas”. Que um momento de acumulação
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contraditoriamente traz em si as condições que o negam, que o levam à crise, é certo.
Também a crise traz consigo os elementos que a negam e apontam para a superação
necessária. Necessária, mas não inevitável, isto é, não absolutamente necessária. Em
cada momento há condições opostas, mas nem todas estão contidas nele.
Mas quando uma das alternativas se realiza, fica oculta a existência da outra
dentro dela, a sua mútua dependência, pois então uma delas necessariamente predomina
sobre a outra e realiza sua determinação como se ela fosse a única, absoluta, diante da
qual a outra aparece como mera possibilidade.
O poder de automensuração do capital é a realização de uma necessidade que
parece absoluta, fazendo as crises parecerem casuais. Por outro lado, o fracasso
recorrente do capital em se medir parece absoluto quando ocorre, impedindo perceber
que ele é capaz de recompor a harmonia das medidas e voltar a se valorizar. Para além
destas aparências, a possibilidade da situação oposta à que está efetivamente ocorrendo
não é uma contingência exterior, extra-sistêmica, e sim uma potência imanente à
natureza do capital. Neste sentido, é idêntica à necessidade, só que a uma necessidade
relativa, determinada pela outra e determinante dela. O ocultamento desta relação e do
caráter de potência das possibilidades opostas, portanto, decorre do predomínio de uma
destas últimas sobre a outra.
A análise da “lei” de tendência à queda da taxa de lucro, por exemplo, é
complementada por Marx pela das condições que a anulam ou enfraquecem, as
chamadas tendências contra-atuantes. Analisemos o caso. Estão em jogo como sempre
as forças opostas de valorização e desvalorização. Mas mais uma vez é complexo o
estatuto modal destes processos.
Marx procurou demonstrar que a queda da taxa de lucro predomina a longo
prazo sobre as tendências contra-atuantes, que seriam movimentos passageiros. E ao
chamá-la de “lei”, deduzida das determinações mais íntimas da natureza do capital,
atribui a ela o estatuto de necessidade; que não é absoluta, contudo, por ser tendência –
que não vige sempre, que se alterna com momentos de vigência de seu oposto. E este,
por seu turno, aparece sob o estatuto de possibilidade, conferindo à tendência o de uma
necessidade relativa, pelo menos até que a tendência fosse forte o suficiente para
impedir a vigência possível de elevações temporárias da taxa de lucro, quando a queda
desta taxa seria uma necessidade absoluta. O capitalismo chegaria daí a uma situação de
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desvalorização crônica do capital existente, contrária à sua natureza de valor que se
valoriza e que o levaria a um colapso ou estagnação permanente.
A argumentação, entretanto, prova o contrário. E aqui Marx vai além de si
mesmo, do que pretende e afirma. Ele enumera seis condições atuando no sentido
contrário à queda da taxa de lucro: “a elevação do grau de exploração do trabalho”; “a
compressão dos salários para baixo do seu valor”; “o barateamento dos elementos do
capital constante”; “a sobrepopulação relativa”; “o comércio exterior”; “o crescimento
do capital acionário”. Em seguida, examina cada caso, e aí o estatuto modal deles se
reveste de importância maior do que o de uma simples possibilidade, que pudesse ser
abrigada na necessidade da queda da taxa de lucro. Em especial “o barateamento dos
elementos do capital constante”. Para que a queda da taxa de lucro predominasse sobre
ele, a composição orgânica do capital deveria crescer mais do que a taxa de mais-valia.
Isto implica, por seu turno, que o aumento da produtividade privilegie a redução do
valor dos meios de vida e não tanto a dos meios de produção. Ou ainda, que o progresso
técnico seja poupador dos custos da mão-de-obra. Mas se isto corresponde à
determinação essencial do sistema – a negação do trabalho vivo pelo morto –, a forma
com que esta determinação se realiza não garante que ela seja inevitavelmente o
resultado final: para o capitalista singular é indiferente que seu investimento na elevação
da produtividade leve a uma diminuição maior no valor dos elementos do capital
constante ou nos do capital variável. Assim, não se pode atribuir a ela o estatuto de mera
possibilidade, de contingência progressivamente absorvida pela necessidade da queda
da taxa de lucro até ser neutralizada por esta última. O caso das outras cinco é
semelhante.
No jogo entre a tendência à queda da taxa de lucro e as contra-tendências,
portanto, não se pode fazer prognósticos conclusivos. Um colapso inevitável do
capitalismo, devido à queda da taxa de lucro, é uma hipótese afastada pelo próprio
modo com que Marx define as variáveis de seu sistema.
E o mesmo se passa com os ciclos econômicos. A articulação dos elementos em
jogo também impede a demonstração de que as fases de valorização e de desvalorização
do capital se alternam necessariamente. Os determinantes do fim de uma fase não
determinam completamente o início da outra: estão parcialmente incluídas na outra, de
maneira que a sua sucessão não é um acaso resultante de fatores externos, e sim uma
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necessidade; mas só parcialmente incluídas. Daí se apresentarem como necessidade
relativa, e não absoluta. Ao invés de uma sucessão de formas puras, portanto, tem-se um
quadro no qual uma fase apenas pode ser mais facilmente caracterizada como de
expansão ou de crise; ou, inversamente, em que fica difícil distinguir os elementos de
cada uma, dada a sua coexistência e confusão. Torna-se difícil prever a duração de cada
etapa, e impossível determinar a passagem de uma para a outra como uma necessidade
absoluta.
Tomando por base os elementos discutidos por Marx, O resultado final é em
parte indeterminado. Não há movimento absoluto em direção a um fim pré-estabelecido,
pois nenhuma tendência pode prevalecer definitivamente sobre as tendências
contrárias. Os movimentos cíclicos e tendenciais que de fato ocorrem não resultam de
mero acaso, e sim das potencialidades imanentes ao capital. Para explicá-los, contudo, é
preciso recorrer a circunstâncias não previstas, não encontradas antes.
Não há como deduzir escatologias da crítica de Marx à sociedade capitalista –
não porque o capital não tenha seus fins e sua finitude necessariamente contida nele;
também não porque ele não tenha a potência para realizar a ambos; mas porque,
justamente ao tê-los, o capital é igualmente o processo de criação e destruição da
totalidade de relações sociais, é o movimento de possibilidades opostas cuja contradição
igualmente se soluciona e se repõe, é o "sujeito" que ao refletir sobre si, igualmente se
institui e se dissolve.
Esta relativa indeterminação quanto à forma da temporalidade da história do
capitalismo, porém, não passa de esqueleto, de arcabouço geral do sistema. Justamente
por causa dela, o historiador deve levar em conta os elementos que se acrescentam a tal
arcabouço, quando analisar uma crise real. Este é lado verdadeiro nos diagnósticos de
crise “estrutural”: a crise que presenciamos é uma das mais complexas das últimas
décadas, não só porque é sem precedentes a destruição de capital ocorrida – trilhões de
dólares simplesmente apagados dos livros contábeis dos Bancos, grandes empresas e
governos – mas também por terem sido atingidos indelevelmente os fundamentos
institucionais e técnicos que sustentaram a acumulação de capital desde meados do
século XX. Uma eventual solução para esta crise terá de recriar tais fundamentos, o que
é bem difícil.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 14
E sem eles, também não se sustenta o sistema de representação do valor, as
formas do que Marx chamou de capital “fictício”, das quais falamos no começo. Diante
da queda da taxa média de lucro nos países industrializados no final do século passado,
a alternativa foi o crédito, a representação da riqueza futura. O que vemos nos meses
recentes – a insolvência, primeiro dos agentes privados de financiamento e agora a dos
governos que tomaram para si aquelas dívidas, no velho afã de socializar as perdas –
tem a ver com isso. Rompida, não em um, mas em vários elos, a cadeia de pagamentos
que vinculava a todos resiste às mais bravas tentativas de restabelecê-la, evidenciando a
falência do dinheiro na principal função a ele atribuída. O fetiche da representação do
valor, da representação do poder social se esfuma, e assim o poder social mesmo. A
crise é a crise deste poder.
O que vimos sobre a indeterminação formal das tendências e contra-tendências
do capital ensina, entretanto, que assim como não há solução necessariamente à vista,
também não há como se afirmar ser a atual crise a última, o colapso do sistema. Pode
ser o fim, mas para isso deverão entrar em jogo outros fatores.
O “futuro passado” do título de Reinhart Koselleck deixa de existir como tal
agora que o futuro calculável não existe mais como sentido do presente. O presente
volta então a ser momento de transição, “entre passado e futuro”, como no título de um
livro não menos famoso de Hannah Arendt. Quem sabe, apesar de suas críticas em geral
errôneas ao marxismo, ela não tenha acertado numa coisa: abriu-se o espaço para a
política, mas uma política distinta da que vem sendo praticada nas instituições do
capitalismo das últimas décadas e que não conseguem mais salvá-lo. Como ela será? A
resposta deve estar batendo à porta. É a chance de voltarmos a experimentar o tempo, a
história, como vivência real.