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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA – LÍDIA MÁRCIA LIMA DE CERQUEIRA SILVEIRA
Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 3, nº 2, p. 67 – 87. Jul./dez. 2011. 67
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA:
Assimilacionista, indígena ou em espaço de fronteira?.
Lídia Márcia Lima de Cerqueira Silveira
Considerações iniciais
No Brasil, há uma crescente participação de movimentos sociais organizados por
indígenas e indigenistas que têm suas ações refletidas nas políticas públicas em diversas
áreas, dentre elas a educação. Esse movimento se fortalece no período de redemocratização,
pós 1964, e se consolida na nova Constituição de 1988, onde fica estabelecido, pela primeira
vez no sistema legislativo brasileiro, que os indígenas têm direito ao uso de suas línguas
maternas e de seus processos próprios de aprendizagem, ou seja, o índio passa a ter direito
de ser ele mesmo, com suas expressões socioculturais, língua, rituais, tradições e forma
própria de organização social.
A Educação Escolar Indígena do povo Fulni-ô passou por mudanças significativas. A
Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon foi criada na década de 1930 sob a
Pedagoga. [email protected] Mestranda em Educação pela UFPE pesquisadora na Linha de
Política Educacional, Planejamento e Gestão da Educação, Pedagoga pela UFPE. Especialista em Gestão de
Pessoas pela UPE. Especialista em Educação a Distância pelo SENAC. Agência Financiadora: CAPES.
Orientadora: Profª Drª Luciana Rosa Marques. Co-Orientador: Profº Drº Edson Hely Silva.
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tutela do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, após a extinção do órgão ficou sob a
responsabilidade da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Na década de 1990 a tutela da
EEI do povo Fulni-ô foi delegada ao município de Águas Belas e atualmente encontra-se
vinculada ao Estado de Pernambuco, processo que começou a partir de 2002 com o Decreto
Nº 24.628 de 12 de agosto de 2002 que trata do processo de estadualização da EEI no
âmbito da Educação Básica.
O interesse maior desse estudo é favorecer a reflexão sobre a escola indígena em
espaço de fronteira e contribuir para o debate referente às características da escola indígena
diferenciada e intercultural, refletindo sobre os entraves advindos das imposições
burocráticas da administração pública e as especificidades inerentes às questões
socioculturais dos povos indígenas sob a perspectiva da afirmação de Certeau (2009) de que
as táticas dos usuários ou consumidores são as engenhosidades do fraco para tirar partido do
forte e estas vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas.
Esse trabalho é fruto dos estudos teóricos e empíricos realizados em função do
Mestrado em Educação na UFPE, período 2010-2012, por meio da Linha de Pesquisa –
Política Educacional, Planejamento e Gestão da Educação, sob o tema: Processo de
Estadualização da Educação Escolar Indígena em Pernambuco: a experiência do povo Fulni-
ô.
O povo Fulni-ô tem séculos de contato com a sociedade não-indígena, o que resultou
em impactos significativos para sua história e organização sociocultural, história esta
marcada por inúmeros conflitos pela posse da terra. A convivência secular com os não-
indígenas tem suas bases nas relações de preconceito, perseguições, violências e resistência.
As informações aqui registradas são preliminares e decorrentes da pesquisa de campo
realizada na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon por meio de entrevistas
com professores/as, coordenadoras, conversas com crianças, funcionários, observação de
aulas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental I e análise de documentos: leis, decretos,
calendário letivo e diários de classe.
Povos indígenas: uma história de mobilizações
Refletir sobre povos indígenas e sua história nos faz pensar no início da organização
da sociedade brasileira. Lembramos alguns mitos que fazem parte de sua formação e são
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encontrados em comentários de Freyre (2001:166-167) ao afirmar que o indígena era
introvertido, desconfiado, preguiçoso, não muito afeito ao trabalho
A enxada é que não se firmou nunca na mão do índio nem na
do mameluco. Daí não terem as mulheres índias dado tão boas
escravas domésticas quanto as africanas, que mais tarde as
substituíram vantajosamente como cozinheiras e amas de menino, do
mesmo modo que os negros aos índios como trabalhadores de
campo.
E continua o sociólogo sobre a relação estabelecida entre indígena e português
colonizador defendendo o mito da relação harmônica:
Não houve por parte dele (o índio) capacidade técnica ou
política de reação que excitasse no branco a política do extermínio
seguida pelos espanhóis no México e no Peru [...] Nem as relações
sociais entre as duas raças, a conquistadora e a indígena, aguçaram-
se, nunca na antipatia ou no ódio... Suavizou-as aqui o óleo lúbrico
da profunda miscigenação, quer a livre e danada, quer a regular e
cristã sob a bênção dos padres e pelo incitamento da igreja e do
Estado. (FREYRE, 2001:162)
A escola, durante anos, reforçou essas ideias ao apresentar o indígena apenas a partir
de 1500 como parte integrante do momento do “Descobrimento”. No início da colonização e
na relação de datas comemorativas, por exemplo, “o ‘Dia do Índio’, quando crianças
comumente são enfeitadas à semelhança de indígenas que habitam os Estados Unidos”
(SILVA, 2007:2). Ainda para o referido autor, os estudos históricos têm passado por uma
reformulação que tem revisado o lugar dos povos indígenas na História. O “Descobrimento”
tem sido discutido enquanto resultado do processo de expansão européia no século XVI por
meio da colonização daquilo que chamaram de “Novo Mundo”, lugar de violento confronto
entre diferentes povos e suas culturas e os invasores de seus territórios, com a imposição da
cultura do colonizador.
Os índios não eram nem índios, nem brasileiros, em um momento em que sequer os
brasileiros existiam. De donos da terra os indígenas foram obrigados a aceitar que eram
índios e que faziam parte de uma nova unidade sociopolítica com sua autonomia retirada, e
desconhecendo completamente a sociedade européia e suas ambições que não tinha nenhum
interesse em conhecer as culturas locais (REESINK, 2005:8). O que ocorreu foi uma
colonização violenta do ponto de vista físico e simbólico. Foi “o início de uma exploração
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econômica com as terras e braços dos nativos”, de forma que Mem de Sá “se vangloriou de
ter matado tanto negro da terra que encheu 6 quilômetros de praia de corpos deitados lado a
lado”. Para o autor, os indígenas não irão desaparecer como se isso fosse uma lei da
Natureza, pois a Natureza do ser humano é de um ser cultural, sujeito a causas e
contingências, mas jamais um agente passivo com seu destino. Sobre o reconhecimento dos
povos indígenas Reesink fez a seguinte afirmação:
Reconhecer o direito dos povos indígenas de serem povos
diferenciados e, simultaneamente, cidadãos brasileiros, com o poder
de sua auto-determinação sobre o que é o seu destino é capital para
que a sociedade em sua totalidade se reconheça como compondo um
Estado pluriétnico e multicultural. O destino se faz de vontade
política e não obedece cegamente às trilhas predeterminadas.
(2005:16).
Os povos indígenas tiveram suas terras roubadas, foram proibidos de praticarem seus
rituais e de se comunicarem usando suas línguas maternas. Contraditoriamente, após quatro
séculos de dominação para serem reconhecidos enquanto povos indígenas e terem direito às
suas terras, o Estado cobra a apresentação de sinais diacríticos1, sendo os mais significativos
a prática de seus rituais e o uso da língua materna. Vale ressaltar que, mesmo após o
reconhecimento, a posse da terra para povos indígenas é para seu uso exclusivo (usufruto),
segundo a Constituição Federal aprovada em 1988, porém não há “terra de índio”, pois a
posse das terras indígenas brasileiras permanece sob o poder da União.
Os povos indígenas possuem uma relação direta com a terra que talvez seja incompreensível
aos olhos da sociedade ocidental. Os resultados preliminares do 1° Inquérito Nacional de Saúde e
Nutrição dos Povos Indígenas realizado em 2008 e 2009 mediante pesquisa realizada pela Fundação
Nacional de Saúde – FUNASA e divulgados no dia 11 de maio de 2010, relatam que as doenças
apresentadas pelos indígenas podem também ser consequência de outros problemas
enfrentados pelos povos no país, como a dificuldade de acesso a terra.
Os povos indígenas em Pernambuco construíram uma história de solidariedade
mútua entre si. O povo Fulni-ô foi o primeiro a ser reconhecido oficialmente, nas primeiras
décadas do século XX. Conforme Arruti (2004:238-239), na visão do funcionário do Serviço
1 No caso específico do reconhecimento dos povos indígenas pelo Estado sinais diacríticos são sinais de
diferenciação, aquilo que caracteriza e diferencia os povos indígenas dos não-indígenas. São conformadores de
uma etnicidade, de acordo com definição de Sheila Brasileiro (2004).
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de Proteção ao Índio – SPI, responsável pelo reconhecimento, o povo Fulni-ô reunia as
condições básicas nos aspectos de estrutura para instalação do Posto Indigenista – PI,
práticas de rituais, uso da língua materna, características antropofísicas (cabelo, tipo e cor da
pele, maçãs acentuadas, olhos oblíquos e estatura pequena), além viabilidade econômica
para o Estado.
O que o funcionário do órgão não sabia era que os Fulni-ô
reuniam também outras qualidades, que os fariam ponto de partida
das emergências seguintes e que condicionariam, e mesmo
orientariam, as ações posteriores do próprio órgão. Os Fulni-ô
servem a legitimidade etnológica de outros grupos de
‘remanescentes’ e chamam a atenção de uma série de comunidades,
com as quais mantinham laços rituais.
O processo de colonização no Brasil foi tão forte e destrutivo que muitos povos
indígenas tiveram dificuldades em reconhecerem-se indígenas, eles mesmos se reconheciam
e denominavam-se “caboclo”, conforme Viegas (2007). Apesar de tudo isso, o ritual do
Toré2 é fundamental na afirmação da identidade étnica, uma vez que “a comunhão que os
indivíduos do grupo realizam no toré os unifica e, além disso, torna-os diferentes dos
vizinhos, deixando claro para eles próprios que eles são os mesmos, dividindo uma mesma
força mística, repleta de ancestrais.” (GRÜNEWALD, 2005, p. 13).
Fulni-ô, povo da beira do rio: contado um pouco de sua história
O povo Fulni-ô, que até o início do século XX, era conhecido pelo nome de Carnijós,
tem sua moradia principal no município de Àguas Belas, no estado de Pernambuco, numa
região conhecida como Polígono da Seca Nordestino. Os Fulni-ô têm mais de 500 anos de
contato com a sociedade não-indígena e vivenciam grandes conseqüências em função desse
contato.
De acordo com Barbalho (2003), os atuais Fulni-ô podem ter sido o resultado da
junção de grupos étnicos diferentes aglutinados pela imposição dos aldeamentos definida
2 Toré – ritual sagrado praticado pelos povos indígenas. Circundado por segredos em torno de uma
alegada ‘ciência do índio’ de exclusividade indígena. (Grünewald, 2005:26).
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pelo Rei de Portugal através do Alvará de 1700, confirmado pela Lei de 4/7/1703 e realizada
pelas missões religiosas, onde cada aldeia deveria se compor de pelo menos cem casais. Os
Fulni-ô seriam os Carnijós, descendentes dos Carapotós (indígenas da Serra do Comunati) e
também dos Shocós (Carnijó do Ipanema). E foi essa junção que deu origem à aldeia Missão
da Lagoa do Comunati, pois El Rei ordenou que as aldeias com menos de 80 casais de
indígenas se unissem a outras.
A terra indígena Fulni-ô possui uma área de 11.505 hectares aproximadamente, e
situa-se em meio a espaço urbano de Águas Belas-PE, localizada a 340 Km de Recife,
capital do Estado.
Apesar da grande maioria dos Fulni-ô residirem na Aldeia Grande (local escolhido
para a instalação do Posto Indígena Dantas Barreto) e na Aldeia do Xyxyaklá, há registros
de comunidades Fulni-ô formadas em outros lugares como é o caso de mais duas
comunidades em São Paulo - Carapicuiba e Tremembé - devido à migração em busca de
melhores condições de vida. A respeito da Aldeia Grande e Aldeia Xyxyaklá, Quirino
(2004:4) declarou:
Os Fulni-ô têm como núcleos de morada a Aldeia Sede (aldeia
grande, aldeia de cima), a Aldeia do Ouricuri (aldeia de baixo - lugar
de expressão religiosa Fulni-ô) e a Aldeia do Xyxyaklá (que
significa em yathê muitas catingueiras). Esta última também é
chamada de Cipriano pelos não-índios. A aldeia sede é comumente
chamada pelos Fulni-ô de “aldeia grande”, como uma forma de
diferenciá-la do Xyxyaklá e do Ouricuri (...). A cidade e a aldeia
sede estão integradas fisicamente, ou seja, é como se aldeia fosse um
bairro de Águas Belas.
O povo Fulni-ô, cujo nome, segundo afirmam, significa Povo da Beira do Rio ou
Povo que Vive ao Lado do Rio, forma hoje uma população aproximada de 6.000 habitantes3,
o que corresponde a 16%, em média, da população do município de Águas Belas
contabilizada em aproximadamente, 37.992 habitantes.
A história desse Povo é uma história de mobilizações e reivindicações em função dos
inúmeros conflitos pela posse da terra. A convivência secular com os não-indígenas é
baseada na desconfiança, preconceitos, violências e perseguições, segundo Romani (2009).
3 Dados obtidos através do Projeto Político Pedagógico – PPP do povo Fulni-ô, cedido pela Secretaria
de Educação do Estado de Pernambuco – SEDUC.
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O povo Fulni-ô vivenciou uma história de violência dividida em dois momentos: primeiro
pelos portugueses colonizadores e na década de 1920 pelos coronéis e jagunços, sendo
proibidos, inclusive, de praticar seus rituais e se comunicar em sua língua materna.
O relatório do SPI para reconhecimento do povo Fulni-ô contém a seguinte
afirmação: “os Fulni-ô, apesar de alguma miscigenação racial e despossuídos de suas antigas
terras por políticos locais, conservam a língua e os costumes de seus antepassados, assim
como sua coesão social” (ARRUTI:237). A língua falada pelo povo Fulni-ô é o Yaathe,
símbolo de sua afirmação étnica, cujo significado, segundo os Fulni-ô, é: “nossa boca, nossa
fala, nossa língua”. Dentre as expressões socioculturais dos antepassados encontram-se
também o artesanato feito com a palha do ouricuri (planta da família das palmeiras), o toré e
a prática do Ouricuri, ritual permitido exclusivamente aos indígenas do próprio povo, que se
retiram para uma reserva de mesmo nome, nos meses de setembro a dezembro de cada ano,
constituindo-se em um mistério e fonte de muita curiosidade para a comunidade local não-
indígena.
Ao tratar sobre a relação conflituosa estabelecida entre o povo Fulni-ô e os não-
indígenas da cidade de Águas Belas-PE, a pesquisadora Quirino (2004:13) tratou da relação
de troca de favores, fazendo a seguinte afirmação:
Os Fulni-ô (...) buscam todo tempo afirmar sua identidade e
defender seus direitos históricos perante os não-índios de Águas
Belas. Existe notadamente uma separação étnica marcada por uma
interação bastante tensa e complicada. Todavia, mesmo em meio a
essa conturbada relação interétnica, existem as trocas de favores e as
alianças. Por exemplo, os não-índios de Águas Belas sabem o quanto
é importante o apoio político dos Fulni-ô para eleger um candidato
que está disputando um cargo público; os candidatos e os eleitores
sabem que as lideranças Fulni-ô, ao apoiar um candidato, levam
consigo um bom número de votos da aldeia para a mesma direção.
Os Fulni-ô, por sua vez, se dispõem a amparar a eleição do candidato
que poderá, possivelmente, lhe trazer um bom retorno, ou seja, lhe
dar voz política e defender alguns de seus interesses econômicos
dentro da cidade. Para citar outro exemplo, os Fulni-ô precisam do
comércio de Águas Belas para abastecer-se de suprimentos e
também para escoar suas mercadorias, seus produtos agrícolas e os
utensílios fabricados com a palha do Ouricuri.
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A esse respeito, Barbalho4 (2003:195) observou que há entre os indígenas Fulni-ô e a
sociedade local o que ele chama de “entrechoques culturais” decorrentes das intensas
relações sociais e do preconceito local expressos em boa parte dos embates entre indígenas e
não-indígenas, “numa sequência intercalada de altos e baixos”. De um lado está a
comunidade indígena, herdeira da história, terras e formação do município e do outro está o
município de Águas Belas, crescendo em população, desenvolvimento urbano e tentando
avançar ainda mais sobre as fronteiras do território Fulni-ô.
A organização social e política do povo Fulni-ô é semelhante aos demais povos
indígenas no Nordeste: um cacique (liderança política), um pajé (liderança religiosa) e um
grupo de lideranças. No caso específico dos Fulni-ô, o grupo de lideranças é composto por
oito pessoas, 50% da parte do Cacique e 50% do Pajé. Pouco se sabe sobre os critérios de
escolha desses líderes para indicação nos cargos, mas a idéia comum é de que seja utilizado
o de mais idade, o indígena mais antigo. Referente à escolha do Cacique e do Pajé, o povo
Fulni-ô difere de alguns povos no Nordeste, uma vez que não há eleição direta por voto, mas
é comumente feita mediante o critério de hereditariedade, de forma que, ambos devem fazer
parte de um mesmo clã, escolhidos dentro de uma mesma família e, portanto, a mudança de
cargo ocorrerá apenas por morte de um dos líderes, que terá como sucessor o seu filho mais
velho. (BARBALHO, 2003).
Os casamentos interétnicos ocorrem esporadicamente e sem muito aval dos indígenas
mais idosos. As crianças advindas dessas uniões participam da vida da comunidade, porém
só serão reconhecidas como indígenas se forem introduzidas logo cedo, desde o nascimento,
no ritual do Ouricuri. Para ser considerado Fulni-ô pelo próprio povo não basta falar o
Yaathe ou viver entre os indígenas, a identificação só será assegurada mediante o ingresso
na vida secreta Fulni-ô, que é a participação do indivíduo no Ouricuri e a observação
religiosa de suas normas. Vale salientar que apenas os filhos oriundos dessas relações é que
podem ser considerados indígenas, jamais seus cônjuges.
O povo Fulni-ô possui um modelo de SER INDÍGENA, cujo olhar é,
fundamentalmente, etnocêntrico e baseado em quatro categorias de identidade / indianidade
consideradas legítimas para ele, quais sejam: língua, aldeia, Toré e Ouricuri, de maneira tal
que as pessoas que fujam a essa regra dificilmente serão aceitas e reconhecidas como Fulni-
4 José Ivamilson Silva Barbalho foi missionário do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, órgão da
CNBB e desenvolveu trabalhos na Aldeia Grande e na Aldeia Xyxyaklá do povo Fulni-ô.
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ô. Vale ressaltar que a categoria mais forte é a participação no Ouricuri. (BARBALHO,
2003).
Para Quirino (2004), tanto os Fulni-ô quanto qualquer outro povo indígena do
Nordeste, não deve ser pensado como indígenas aculturados, mas enquanto indígenas que
reelaboraram e reelaboram a sua cultura, que salientam elementos diferenciadores, como o
Toré. E para os Fulni-ô, o Toré, a língua Yaathe e o ritual sagrado do Ouricuri também
ressignificam elementos da cultura não-indígena, como é o caso do samba-de-coco e das
festas católicas, com o objetivo de enquadrarem-se no padrão de indianidade da sociedade e
de serem reconhecidos como indígenas.
Ao comentar sobre a ideia de etnicidade, baseada em Fredrik Barth, elaborada na
década de 1960, Quirino (2004:9) fez a seguinte afirmação:
(...) os membros de um grupo indígena são índios porque assim
se definem publicamente e porque assim são identificados, não
porque falam uma língua distinta, cultuam outras divindades e
praticam rituais diferentes dos nossos. A partir do momento que um
grupo se identifica como diferente, como indígena, por exemplo, já
levantou uma fronteira étnica (social) em relação a outro grupo,
portanto, a fronteira é estabelecida em defesa da identidade
diferenciada. Essa perspectiva teórica será de suma importância para
se quebrar os preconceitos construídos em relação aos índios do
Nordeste indicados como ‘não-índios’ por não se perceber neles uma
descontinuidade cultural significativa.
Pensar sobre as relações históricas de contato estabelecidas entre as sociedades
indígenas entre si e destas com a sociedade não-indígena nos remete a tentar compreender a
problemática da Educação Escolar Indígena por meio da reflexão propiciada pela
antropóloga Tassinari (2001) ao tratar das três abordagens sobre contato e a respectiva a
escola indígena.
Três abordagens recentes sobre contato e sobre escola indígena
Os Estados nacionais, a partir do século XIX, viam na escola, segundo Enguita
(2007:64) “um poderoso instrumento para a formação de uma cultura (homogénea e leal) e
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de uma identidade nacionais” para a construção do Estado enquanto nação. O autor ao tratar
sobre a distância que separa as intenções dos atos reflete sobre alguns aspectos que
impediram que os níveis de integração e homogeneização fossem tão elevados. E dentre os
citados, um deles é que “determinadas minorias podem ter ficado à margem do processo de
construção nacional, principalmente por estratégias excludentes da maioria, mas também,
em certa medida, por estratégias assimilacionistas próprias, reactivas ou não”.
A antropóloga Tassinari (2001) apresenta três abordagens recentes sobre contato e
respectivamente, três abordagens sobre escolas indígenas. A primeira abordagem defende
que com a globalização há um único sistema mundial para o qual convergem todas as
populações e tradições e as diferenças culturais tendem à extinção ou à transfiguração
completa. A essa abordagem corresponde uma escola criada para concretização do projeto
assimilacionista que ameaça a sobrevivência indígena, posto que a ideologia dominante é
transmitida e veiculada por meio dessa escola.
A segunda abordagem é a de que apesar de populações indígenas participarem de
alguma forma do sistema mundial não formataram suas tradições conforme a lógica
capitalista nem pautaram seus valores à lógica de mercado, portanto, a escola se configura
enquanto espaço ressignificado de acordo com a cultura indígena, uma vez que os povos
indígenas possuem formas próprias de reordenar a experiência escolar e de reinterpretar os
conhecimentos advindos dessa escola, espaço de mediação que permite o trânsito entre
mundos.
A terceira abordagem é a de que populações indígenas sempre estiveram, de alguma
forma, conectadas com outras populações indígenas ou não, com contextos que
extrapolavam o ambiente de suas aldeias, tendo as diferenças culturais e étnicas surgidas em
virtude do contato e não apesar dele. A diferença cultural é fruto de processos históricos
compartilhados que tanto diferencia o mundo como o conecta. De acordo com essa
abordagem as populações em contato constante, inclusive englobando fluxo de pessoal,
estabelecem distinções étnicas entre si, de forma a não se considerarem parte de um grupo
homogêneo, pois as fronteiras são sociais e não necessariamente geográficas. A
pesquisadora declara que a sua opção é por essa terceira abordagem que concebe a escola,
enquanto espaço de contato, onde as diferenças interétnicas emergem e adquirem novos
contornos e as técnicas e conhecimentos provenientes de diferentes tradições podem ser
trocados e, assim, reinventadas. Portanto, não há uma forma de delinear nitidamente a
fronteira daquilo que seria 100% indígena ou 100% não-indígena. Existe uma situação
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complexa de embates e confrontos de maneira que as fronteiras vão sendo desenhadas por
meio desses processos históricos, não havendo algo totalmente original, tradicional,
puramente indígena. A autora compreende a escola em espaço de fronteira não enquanto
cosmologias separadas, mas como espaço de negociação que se concretiza em campo
intersocietário.
Para refletirmos sobre os processos vivenciados pela escola em espaço de fronteira,
buscamos apoio em Michael de Certeau (2009:41) que nos convida a estar atentos às
maneiras de fazer dos usuários, que no nosso caso é representado pelo povo Fulni-ô a quem
compete numa instância mais dinâmica e concreta, materializar as leis voltadas para a EEI
em seu cotidiano. As maneiras de fazer dos usuários segundo Certeau significam:
Mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço
organizado pelas técnicas da produção sociocultural. [...] modos de
proceder e astúcias de consumidores compõem, no limite, a rede de
uma antidisciplina. [...] Essas práticas colocam em jogo uma ratio
‘popular’, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir,
uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.
Esse é o campo das táticas que representa a ausência de poder; a astúcia, o ocasional; a
oportunidade; o fortuito; a teimosia; a arte do fraco (“homem ordinário”), que quebra o
determinismo e traz em si a dimensão do tempo, posto que ocupa um “não lugar” na sociedade.
(CERTEAU, 2009:94-95)
Por outro lado não se pode deixar de identificar e compreender as estratégias, ações
intencionais mais localizadas no viés da racionalidade e utilizadas pelos que representam o
poder, o cálculo, a manipulação das relações de forças, que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma
instituição científica) pode ser isolado.
É nessa perspectiva que compreendemos a afirmação de Tassinari (2001:44) de que
“nenhuma escola voltada para populações indígenas pode ser ‘verdadeiramente’ indígena
ou, tampouco, ser totalmente alheia a essas populações”.
Ao considerar que “nenhuma organização é simplesmente o que as suas autoridades
em exercício pretendem que seja” Enguita (1989:46), reconhece o poder dos atores locais. O
que é possível observar, por meio do tema em estudo, mediante a história de mobilizações
dos povos indígenas pelo direito a escola específica, diferenciada e intercultural e de
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maneira direta por meio da pesquisa de campo observando e aprendendo com o jeito Fulni-ô
de fazer escola.
Afirma ainda Tassinari (2001) que na escola em espaço de fronteira surge uma
crescente necessidade de combinar questões culturais dos povos indígenas com os entraves
burocráticos das administrações públicas, o que implica numa série de problemas que
necessitam ser compreendidos para que se busquem as soluções.
Reflexões iniciais do campo de pesquisa: Escola Estadual Indígena Fulni-Ô Marechal
Rondon
Por meio da pesquisa de campo podemos perceber mediante entrevistas e observação
ainda preliminares do cotidiano da Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon,
mudanças significativas identificadas a partir do momento que a EEI em Pernambuco passou
da tutela do Município para a responsabilidade do Estado. As mudanças ocorreram no
âmbito da estrutura física; merenda escolar; materiais didáticos; formação de professores;
calendário letivo diferenciado, elaborado pelo próprio povo respeitando fundamentalmente o
ritual do Ouricuri5; maior abertura ao diálogo e ampliação da oferta educacional que até
então só oferecia ensino de 1ª à 4ª série. Considerando que tais mudanças estão
recomendadas e subsidiadas legalmente pela LDB pensamos que trata-se de uma
aproximação à garantia do direito étnico do povo Fulni-ô.
Atualmente são oferecidas da Educação Infantil ao Ensino Médio, Normal Médio,
Telessala, Educação de Jovens e Adultos e Língua Materna. O ano letivo se inicia com a
saída do Ouricuri em início de dezembro e se encerra em final de agosto, com a entrada no
retiro do Ouricuri que acontece, comumente, no primeiro domingo de setembro.
A estrutura física da Escola Estadual Indígena Marechal Rondon é semelhante a
qualquer escola do Estado em outras localidades, porém algumas expressões, ainda que,
fruto de observações preliminares, realizadas durante a pesquisa de campo nos fizeram
pensar na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon mediante o conceito de
espaço de fronteira, proposto por Tassinari e nas maneiras de fazer dos usuários de Michel
de Certeau, para refletir sobre a escola diferenciada e intercultural, quais sejam:
5 O Ouricuri é um ritual sagrado e secreto praticado exclusivamente por índios Fulni-ô. Anualmente,
durante três meses – setembro a novembro – todo o povo Fulni-ô retira-se para a aldeia do Ouricuri, no interior
da área indígena.
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A quantidade de professores/as indígenas Fulni-ô: 116 de um total de 121, são do próprio
povo, apenas 5 professores/as não são Fulni-ô.
A seleção desses professores/as. Todos/as escolhidos/as pelas habilitações para o
magistério ou pela habilidade para ministrarem as aulas de língua materna, no entanto,
todos/as, sem exceção passaram pelo aval da liderança maior do povo, o Cacique e o
Pajé;
Alegria e liberdade presentes no comportamento, gestos e atitudes das crianças;
Presença de professores, do sexo masculino em sala de aula, algo pouco comum no
Ensino Fundamental I;
Presença de professor idoso, o Professor Liminha como é chamado carinhosamente pelas
crianças, a quem ensina a língua materna (o Yaathe);
A escola abre o portão às 07h30, mas desde as 07h as crianças se encontram
tranquilamente aguardando em frente à escola;
Ao abrir o portão todas as crianças se dirigem para as suas salas de aula. Não há nenhum
sinal condicionando as crianças, nem na entrada, nem na saída da escola, a não ser para
avisar que a hora do recreio;
As crianças do Ensino Fundamental I vêem sozinhas para a escola;
Aulas de Yaathe compondo o quadro de horário em conjunto com as aulas regulares;
O quanto às crianças gostam das aulas de Yaathe que tratam exclusivamente de suas
expressões socioculturais e sua História;
Quando a aula é de Yaathe (língua materna) as crianças não-indígenas, normalmente
residentes na periferia da cidade de Águas Belas que não encontraram vagas nas escolas
não-indigenas e foram matriculadas na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal
Rondon aguardam fora de sala de aula, junto com a sua professora, pois são aulas
exclusivas para quem é Fulni-ô;
O prazer das crianças em serem indígenas Fulni-ô;
O conhecimento demonstrado pelas crianças sobre a sua língua materna;
As pesquisas escolares que as crianças fazem cujos informantes naturalmente são os avôs,
avós, pais, mães, tios, irmãos;
O livre trânsito da família na escola “sem perturbar a ordem”;
A forma como professores/as, coordenadora, alunos/as e funcionários/as se organizam, se
entendem e resolvem problemas sem burocracia;
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A não diferença no tratamento de professores, professoras, coordenadora e
funcionários/as em relação às crianças não-indígenas, exceto nas aulas de Yaathe que são
de interesse do próprio povo;
No recreio as crianças se misturam nas brincadeiras e pelo comportamento não se sabe
quem é Fulni-ô e quem não é;
O fato de as crianças estudarem um horário na escola regular e outro horário na escola
exclusiva de Yaathe;
A autonomia das crianças, como por exemplo, para ir beber água, usar o banheiro a
qualquer momento e sem perturbar a aula;
Diretor de disciplina, professor/a e aluno/a fumando xanduca6 na escola.
Também foi possível perceber por meio da observação das aulas, bem como nas
entrevistas realizadas com professores, professoras e coordenadoras que há outro conflito
que se expressa em como ministrar aulas que desenvolvam os conteúdos impostos pelo
currículo comum. Aqueles que chamam de conteúdos nacionais ou conteúdos brasileiros e
os conteúdos relativos às expressões socioculturais do povo Fulni-ô. É certo que o povo
Fulni-ô quer preparar cidadãos e cidadãs para conviverem na sociedade brasileira,
desfrutando de seus direitos como tal, inclusive das oportunidades de vagas nas
universidades e o acesso ao mercado de trabalho. Todavia, sem perder de vista ou esquecer
as suas origens, mas acima de tudo, afirmando a identidade étnica de seu povo, seus valores,
tradições e sentindo orgulho de ser indígena Fulni-ô. A dificuldade está em como conseguir
planejar e efetivamente fazer valer isso na prática de sala de aula em meio ao tempo
determinado por lei – 200 dias letivos – e os conteúdos impostos pelo currículo comum.
No que diz respeito à formação continuada de professores/as foi unânime a
importância e necessidade do trabalho do Estado. Porém, segundo os entrevistados a
quantidade de encontros realizados em 2010 não foi suficiente, além do fato de alguns
encontros terem sido planejados e realizados no período em que o povo estava no Ouricuri o
que inviabilizou a participação de educadores Fulni-ô. A esse respeito Grupioni (2008:164)
afirmou em sua tese que apesar da legislação apontar para a possibilidade de arranjos
próprios de tempo, organização curricular, calendário e carga horária específica é visível o
descompasso entre o que os sistemas de ensino exigem e o que se pratica de fato nas escolas
6 Tipo de cachimbo comumente usado pelos Fulni-ô, um pouco semelhante ao cachimbo fumado pelas
pessoas na área rural da região circunvizinha. Segundo uma professora, a decisão sobre quando um indígena
Fulni-ô está pronto para fumar “xanduca” é da família. É tomada pelo jovem e por seus pais sem interferências
de pessoas externas, mesmo que sejam membros do povo.
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indígenas. E defende ainda o autor que “propiciar condições para que os professores
indígenas possam refletir a respeito de que conhecimentos a escola indígena deve tratar vem
sendo um calcanhar de Aquiles nas propostas de formação de professores indígenas
praticadas País afora”.
Outra dificuldade enfrentada é que o ano letivo das escolas indígenas Fulni-ô se
inicia na primeira semana de dezembro de cada ano. Entretanto, os diários de classe só
chegaram às escolas após meados de fevereiro e materiais como livro didático, fardas, lápis,
borracha, canetas, só foram entregues às escolas em final de março de 2011, conforme
qualquer outra escola do Estado, porém para uma escola cujo ano letivo se encerra em
agosto poderíamos dizer que as escolas Fulni-ô já estariam próximas de concluir o 1º
semestre letivo.
Na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon também foi percebido um
problema grave: a falta de água, até mesmo para beber! O que implica em má higienização
de banheiros, precariedade da limpeza da escola em geral, problemas para preparar a
merenda escolar e ensinar hábitos de higiene para as crianças. Um exemplo dessa situação é
que o dentista da FUNASA – Fundação Nacional de Saúde e sua assistente (indígena Fulni-
ô) visitaram a Escola Estadual Indígena Marechal Rondon conversaram com as crianças
sobre a importância da escovação, distribuíram escovas de dente com a solicitação de que
trouxessem-nas todos os dias para a escola para escovarem os dentes após a merenda e
entregaram uma pasta a cada professor/a. Na prática isso se tornou mais um problema para a
coordenadora Milene administrar em função da falta de água.
Na Constituição Federal de 1988, Título VIII, capítulo III (Da Educação), Art. 210,
2º parágrafo, encontramos que: “O Ensino Fundamental será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem”. Ainda por meio da coleta de dados já é
possível perceber essa realidade presente no campo de pesquisa, a Escola Estadual Indígena
Fulni-ô Marechal Rondon que atende da Educação Infantil ao Ensino Fundamental I. Essa
escola já existe desde a década de 1920 quando estava sob a tutela do extinto Serviço de
Proteção ao Índio (SPI) e servia ao modelo de uma sociedade assimilacionista. Hoje essa
escola, após passar pela responsabilidade da FUNAI e do município de Águas Belas,
encontra-se sob a responsabilidade do Estado por meio da Secretaria de Educação do Estado
de Pernambuco – SEE-PE e da Gerência Regional de Ensino – GRE Garanhuns. As crianças
e adolescentes Fulni-ô estudam um turno na escola indígena (situada na aldeia) ou não-
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indígena (situada na cidade) e outro turno estudam exclusivamente Yaathe, como tática para
o fortalecimento da identidade e afirmação das expressões socioculturais do povo Fulni-ô.
Para Enguita (2007) as estratégias educativas construídas para responder aos desafios
da interculturalidade ou a convivência entre diversas culturas, seguindo uma evolução
tendencialmente cronológica foram: a aculturação pela imposição do grupo, classe, etnia e
gênero dominantes por meio da cultura escolar; tolerância no sentido da aceitação do outro
tal como é, mesmo sem o compreender, mas com a permanência da superioridade da cultura
escolar; a aceitação e reconhecimento da cultura enquanto elemento constitutivo da
identidade dos indivíduos e, que, portanto, deve ser respeitado, e mais recentemente, a
diversidade cultural enquanto um bem em si mesma.
No Caderno SECAD 3 (2007:15), publicado pelo MEC, encontramos algumas
características de uma Educação Escolar Diferenciada e Intercultural que deve ser específica
a cada projeto societário, diferenciada em relação as outras escolas indígenas e não-
indígenas, pressupondo “a participação ativa das comunidades indígenas, representadas por
seus líderes, na elaboração, acompanhamento e execução dos projetos desenvolvidos em
seus territórios”, de forma que os próprios indígenas estejam à frente como professores e
gestores da prática escolar.
Essa é uma realidade parcialmente encontrada na Escola Estadual Indígena Fulni-ô
Marechal Rondon, no entanto, precisamos considerar que estamos em meio a um processo
que se iniciou a partir de 2002 em Pernambuco. A própria categoria “Professor Indígena”
está em discussão pelo Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena para posterior
estruturação e organização da carreira dos/as educadores/as indígenas que se encontram há
décadas em regime de contratação temporária, situação esta sob intervenção do Ministério
Público. Dos 121 professores/as das escolas indígenas Fulni-ô apenas dois são efetivos e
vieram de escolas não-indígenas do município de Águas Belas em regime de cedência, à
disposição das escolas indígenas Fulni-ô por serem indivíduos do próprio povo.
O discurso de uma educação diferenciada molda um outro modelo de como deveria
ser a escola indígena, que segundo Grupioni (2008) deveria ser caracterizada como uma
escola comunitária: com o papel preponderante da comunidade indígena; diferenciada: das
demais escolas brasileiras; específica: própria a cada povo onde fosse instalada;
intercultural: no estabelecimento de um diálogo entre conhecimentos ditos universais e
indígenas; e bilíngüe: com a conseqüente valorização das línguas maternas e não só de
acesso à língua nacional.
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Com o advento da globalização, ocorre uma crescente importância de trocas,
intercâmbios entre atores sociais, cujas maneiras de ver o mundo, produzirem
conhecimentos e atuar se constituem em diversos contextos e dão lugar a diferentes tipos de
saberes. Portanto, a colaboração intercultural na produção de conhecimentos torna-se mais
viável e imprescindível a cada dia. Nessa perspectiva, as relações interculturais tornam-se
importantes tanto para quem é formado quanto para quem forma nas universidades
interculturais, afirmou Mato (2008).
Ainda de acordo com o referido autor, a colaboração intercultural nas universidades
deve partir do princípio do diálogo e das relações interculturais de valorização e colaboração
mútuas. Numa via de mão dupla com formas de atuação honesta, respeitosa de interesse
recíproco, iniciadas mediante o reconhecimento da diversidade de contextos e de práticas
intelectuais e de saberes. Ao que parece, o autor está baseado na idéia gramsciana de que
todos os seres humanos são intelectuais e todo grupo social que possui função no mundo da
produção elabora seus intelectuais para dar maior homogeneidade e consciência da
importância da função da classe a qual pertence, no âmbito social, político e econômico.
Portanto, todas as sociedades, e não apenas a sociedade ocidental, produzem conhecimentos
válidos.
No Art. 78 da Seção III – Do Ensino Fundamental da LDB 9394/96 estão
relacionados os objetivos da educação escolar bilíngüe e intercultural voltada aos povos
indígenas, quais sejam:
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias
históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e
ciências;
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos
técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
O professor Daniel Mato7 afirmou que, na América Latina e especialmente em um
país como o Brasil, com a diversidade cultural que possui, não deveria haver criação de
universidade intercultural, porque todas as universidades deveriam ser interculturais. A
partir de 1988, após a Constituição aprovada naquele ano, a legislação brasileira contemplou
essa proposta para todas as escolas do Brasil, tornando-a um dos grandes temas do debate.
7 Exposição no seminário realizado no Centro de Educação/UFPE sobre Movimento Indígena,
Educação Superior e Interculturalidade com Equidade, em 16 de abril de 2010.
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Considerações finais
Pensar a partir dos aportes teóricos escolhidos para embasar a discussão do cotidiano
da Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon tem sido uma experiência
enriquecedora para a reflexão sobre a política pública voltada para a EEI no Brasil, e
particularmente em Pernambuco, presente em leis, decretos e documentos pertinentes e sua
materialização na vida real de uma escola indígena.
A pesquisadora Tassinari (2001:50) com suas reflexões contribui para pensar que não
é possível definir ou perceber a escola como uma instituição alheia e nem totalmente
inserida na cultura e no modo de vida indígena. Mas, sim um espaço de fronteira, de trânsito,
articulação e trocas de conhecimentos, espaço este, de incompreensões e de redefinições
identitárias dos grupos envolvidos nesse processo, quer sejam indígenas e não-indígenas.
Há uma afirmação de Certeau (2009:19) que deve ser levada em consideração
quando se analisa relações de poder ou forças que envolvem relações aparentes entre fortes e
fracos: “sempre é bom recordar que não se devem tomar os outros por idiotas”. Certeau
falava sobre a inversão e subversão pelos mais fracos e acreditava firmemente na liberdade
gazeteira das práticas. Para o referido autor as táticas dos usuários ou consumidores são as
engenhosidades do fraco para tirar partido do forte e estas vão desembocar então em uma
politização das práticas cotidianas em meio as estratégias do forte representado pelo poder,
nesse caso específico, o Estado.
Faz-se necessário e urgente a ampliação do debate sobre a escola diferenciada e
intercultural, tentando perceber e identificar as relações entre a escrita da política pública e
sua concretização ou materialização nos cotidianos das escolas indígenas. Com as reflexões
aqui apresentadas se pretende apenas fazer provocações em início de conversa. Muito ainda
se tem a estudar, compreender, debater, pesquisar, analisar, conhecer, perceber,
fundamentar, viver, sentir para contribuir com o debate sobre o tema proposto.
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