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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SULPR-REITORIA DE PESQUISA, INOVAO E
DESENVOLVIMENTO TECNOLGICOPROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTU SENSU
MESTRADO EM TURISMO
KRISCI PERTILE
EM PRATOS LIMPOS:AS COMIDAS DE RUA NO BRIQUE DA REDENO, EM PORTOALEGRE/RS BRASIL, E POSSIBILIDADES PARA O TURISMO
CAXIAS DO SUL2014
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KRISCI PERTILE
EM PRATOS LIMPOS:AS COMIDAS DE RUA NO BRIQUE DA REDENO, EM PORTOALEGRE/RS BRASIL, E POSSIBILIDADES PARA O TURISMO
Dissertao de Mestrado em Turismo paraobteno do ttulo de Mestre em Turismopela Universidade de Caxias do Sul. reade concentrao: Turismo, Cultura eEducao.
Orientadora: Prof. Dr. Susana de Arajo Gastal
CAXIAS DO SUL2014
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Universidade de Caxias do Sul
UCS - BICE - Processamento !cnico
"ndice #ara o cat$logo sistem$tico%
&' urismo e gastronomia Porto legre (*S) ++,',-.%.&/.0(,&.'1P2*2 3E4*E)0' Bri5ue da *edeno (Porto legre6*S) ++7'&8(,&.'1P2*2 3E4*E)
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar tomo a liberdade de parecer egosta e agradecer a mim
mesma pelo esforo, pela dedicao em querer fazer mais e melhor, e a todos os seres
de luz, de uma energia positiva e infinita, que me concederam sabedoria e determinao
para no desistir diante dos obstculos, mesmo quando eles pareciam intransponveis.
Agradeo minha orientadora, Prof. Dr. Susana de Arajo Gastal por aderir a
minha ideia, sem ressalvas, embora a princpio ela parecesse demasiadamente
inovadora. Jamais esquecerei sua frase, meses aps o incio da pesquisa: Tu mirou no
escuro e acertou, hoje consigo perceber que se no tivesses caminhado ao meu lado, no
escuro, nada disso teria sido possvel.
Ao Gustavo Perini, meu agradecimento por todo apoio, amor e compreenso,
mas principalmente pela companhia em todas as idas a campo, lanando olhares que por
vezes me ajudavam a entender como uma pessoa externa a pesquisa poderia
compreender o lugar e a atividade pesquisada.
Aos meus pais, Ftima e Valdicir, por me deixarem voar, por acreditarem em
minha capacidade que, s vezes, nem eu mesma consigo enxergar.
Ao meu irmo, Juliano, pelo incentivo e preocupao em me fazer ir alm, masacima de tudo agradeo por acreditar que posso chegar l.
Agradeo aos professores e colegas do Mestrado em Turismo da Universidade
de Caxias do Sul, que de uma forma ou outra auxiliaram minha caminhada dividindo
seus saberes e alimentando meu cabedal terico, durante estes dois anos.
Meu agradecimento infinito aos sujeitos da pesquisa: Dona Catarina Paltiano
Ferreira, Dona Maria Clia Santos Ribeiro, chamada carinhosamente de Dona Clia ou
Baiana, Dona Maria Olinda Massolini, Dona Margarida de Lurdes Medina da Silva eFilipe Gamba da Costa; por confiarem em mim, no meu trabalho e por dividirem
comigo seus silncios, seus conhecimentos relacionados prtica do comrcio de rua,
seus medos e expectativas.
Por fim, mas no menos importante, agradeo a Capes por viabilizar meu
crescimento pessoal, cientfico e profissional, por meio da realizao deste Mestrado.
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Se a aparncia explicasse aessncia, o sabor seria
desnecessrio.
Autor desconhecido
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RESUMO
A presente dissertao buscou analisar a presena das Comidas de Rua, na feira Briqueda Redeno, em Porto Alegre/RS Brasil, sobretudo no que tange a sua concepo eprticas, possveis contrapontos inerentes ao exerccio da atividade, e a relao dessevis gastronmico com o Turismo Cidado, na cidade e no local pesquisado. Para tanto,fez-se uso da metodologia qualitativa de carter exploratrio, na qual optou-se pelo usode tcnicas relacionadas quelas utilizadas por turistas durante suas viagens, sob ointuito de (re)conhecerem o local visitado, tais como: caminhada, observao eentrevistas semiestruturadas com cinco vendedores desse gnero gastronmico. Diantedo analisado, nota-se uma atividade marcadamente feminina e familiar, com prticasadotadas, em sua maioria, com o objetivo de produzir um alimento rico em sabor equalidade, um comrcio cujos contrapontos residem, sobretudo, nas diferenas esemelhanas com os estabelecimentos fixos de alimentao. Observa-se que, ao menosno Brique da Redeno, as Comidas de Rua desempenham papel fundamental no quetange o Turismo Cidado, embora os empreendedores no possuam as noesconceituais e nem mesmo compreendam sua relao com a atividade turstica.
Palavras-chave:Turismo. Gastronomia. Comidas de Rua. Brique da Redeno. PortoAlegre/RS Brasil.
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ABSTRACT
This investigate examines the presence of the street food in the Brique da Redeno inPorto Alegre / RS - Brazil, especially regarding its practices, the possible inherentcounterpoints in the activity, and its relationship with Tourism in Porto Alegre. Thestudy uses qualitative and exploratory methodology in which we opted for the use oftechniques related to those used by tourists to experience the place visited, during theirtravels, such as: walking, watching and semi-structured interviews with five sellers ofthis gastronomic genre. The analysis shows that in the Brique da Redeno there are anotoriously feminine and homelike activity, mostly with the goal of producing a foodrich in flavor and quality. It was observed that, at least in the Brique da Redeno, theStreet Food play key role regarding the Citizen Tourist, but the entrepreneurs do notconsider their relationship to tourism.
Keywords: Tourism. Gastronomy. Street Food. Brique da Redeno. Porto Alegre/RS Brazil.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Feira Medieval: comrcio entre produtor e consumidor ............................... 18
Figura 2 Aguadoras, foto de Catala-Roca, na Madri dos anos 1950 ....................... 20
Figura 3 Costumes alimentares na Frana ................................................................... 23
Figura 4 Food Trucks.................................................................................................. 30
Figura 5 Venda de Acaraj nas ruas de Salvador em 1909 ......................................... 31
Figura 6 Festa de Santa Brbara em Salvador, Bahia ................................................. 33
Figura 7 Escopo dos Setores Criativos Ministrio da Cultura..................................... 38
Figura 8 Breve desenvolvimento do Turismo e transformaes histricas ................. 57
Figura 9 Tipologias de Comidas de Rua e comerciantes entrevistados ...................... 65
Figura 10 Fonte geradora do estranhamento ............................................................... 68
Figura 11 Recepo ao imperador Dom Pedro II, em 1865, na Praa da Matriz ........ 69
Figura 12 Monumento do Expedicionrio ................................................................... 71
Figura 13 Vendedoras de sonhos, manus e alus, por Debret ................................... 76
Figura 14 Debret, Negra vendendo caju, 1827 ......................................................... 77
Figura 15 Mercado Pblico de Porto Alegre no sculo XIX ....................................... 78
Figura 16 Barraca de Dona Catarina ........................................................................... 84Figura 17 Barraca de Dona Clia ................................................................................ 85
Figura 18 Van do Filipe: Ligeirin Temakeria Mvel .................................................. 85
Figura 19 Carrinho de algodo doce da Dona Maria................................................... 86
Figura 20 Carrinho de Dona Margarida ...................................................................... 86
Figura 21 Recolhimento das barracas e equipamentos ................................................ 88
Figura 22 Continer de lixo prximo ao equipamento de Dona Margarida .............. 101
Figura 23 Mercado da Redeno ............................................................................... 103
Figura 24 Parquinho da Redeno ............................................................................. 115
Figura 25 Grupo de Yoga meditando prximo ao Monumento ao Expedicionrio .. 115
Figura 26 Apresentao musical no Brique da Redeno ......................................... 116
Figura 27 Ao da Brigada Militar para conscientizao no trnsito........................ 116
Figura 28 Posto de Informaes Tursticas no Mercado do Bom Fim ...................... 118
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SUMRIO
1 ABRINDO O LIVRO DE RECEITAS ................................................................................... 9
2 SEPARANDO OS INGREDIENTES: REVISO TERICA ........................................... 12
2.1 DA COMIDA GASTRONOMIA: BREVE PERCURSO HISTRICO .................... 14
2.1.1 Os Restaurantes
2.2 OS NOVOS SENTIDOS DA COMIDA ............................................................................ 24
2.2.1 Acaraj: o saber-fazer de uma comida de rua como patrimnio
2.3 A GASTRONOMIA E A ECONOMIA CRIATIVA ....................................................... 36
2.3.1 Eatertainment: o comer como lazer e entretenimento
2.4 A COMIDA ENTRE FIXOS E FLUXOS ......................................................................... 43
3 A PANELA DE PRESSO: CAMINHOS DA PESQUISA ............................................... 51
3.1 TEMPERANDO COM SAL E PIMENTA: OBJETIVOS E PROBLEMA DEPESQUISA ................................................................................................................................. 51
3.2 O MODO DE PREPARO ................................................................................................... 53
3.2.1 As tcnicas de preparo
3.2.1.1 Apresentando a cozinha: onde tudo acontece!
4 AS COMIDAS DE RUA ........................................................................................................ 73
4.1 COMIDA DE RUA: O INCIO .......................................................................................... 73
4.2 O PRATO FEITO ............................................................................................................... 80
4.2.1 Concepes e prticas atreladas atividade das Comidas de Rua
4.2.2 Os contrapontos inerentes ao exerccio da atividade nas ruas
4.2.3 Contribuies das Comidas de Rua para o Turismo Cidado, em Porto Alegre/RS Brasil
5 TAMPANDO A PANELA ................................................................................................... 120
REFERNCIAS ...................................................................................................................... 126
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1 ABRINDO O LIVRO DE RECEITAS
Abrindo o livro de receitas introduz a presente dissertao, abordando de
forma sucinta o processo de descoberta e escolha da temtica pesquisada, bem como o
desenrolar de toda a pesquisa, no que tange seus captulos e formas de construo.
Durante uma viagem So Paulo, sob o intuito de participar de um evento
acadmico, visitei alguns pontos tursticos, dentre eles o Parque da Independncia, e
nele observei que havia um grande nmero de barracas comercializando Comidas de
Rua, com uma movimentao considervel de clientes. Foi nesse momento que pensei:
ser que algum j estudou a presena desse tipo de gnero gastronmico atrelado a
atividade turstica?
No retorno iniciei a pesquisa prvia em bases de dados e, fiquei surpresa ao
constatar o baixo nmero de artigos cientficos, sendo que os existentes versavam sobre
aspectos sanitaristas e econmicos, mas nenhum sobre o Turismo. Mais tarde, descobri
que tambm no existiam dissertaes com essa temtica e, posso confessar que foi
justamente isso que me lanou a essa pesquisa, a possibilidade de dar visibilidade a uma
atividade intrinsicamente ligada ao Turismo, porm parcamente estudada. Como j
havia trabalhado com a temtica da enogastronomia em meu trabalho de concluso de
curso, j possua uma base terica considervel sobre cultura, identidade e alimentao.
Essa base inicia-se com a busca da comida, pelos nossos antepassados mais
longnquos, que emigravam para e por territrios muitas vezes hostis. A comida foi
causa de guerras e condicionou em muito o desenvolvimento humano. Mais
recentemente, o comer tambm se tornou uma forma de expresso cultural, de maneira
to ou at mais importante do que o ato de atender a uma necessidade bsica. Porm,
ainda que a alimentao esteja condicionada a normas culturais, tambm est atrelada afatores econmicos, que tornam os hbitos alimentares, por vezes, uma forma de
distino de classes sociais.
Assim, especificidades culturais e sociais tambm contribuem para diferenciar
formas de comer. Na atualidade, uma dessas especificidades a Comida de Rua, que de
alimentao precria, com ingredientes e modos de preparo nem sempre confiveis,
passou a incluir formas gastronmicas sofisticadas. No seu consumo nas grandes
cidades, possvel notar a presena de profissionais bem sucedidos que se misturam a
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estudantes universitrios e mesmo a populares, em busca de Comidas de Rua rpidas e,
pelo menos em princpio, baratas.
Nesses termos, a presente pesquisa tem como grande tema a Comida de Rua, e
como recorte as suas prticas no Brique da Redeno. O Brique uma grande feira que
se instala aos domingos, ao longo da Avenida Jos Bonifcio, em Porto Alegre, capital
do Rio Grande do Sul. Vrios stands ali instalados comercializam objetos de arte,
antiguidades e peas de artesanato. Mas, o local tambm se apresenta como espao onde
outras manifestaes artsticas e cvicas tm lugar, transformando-o em um corao
pulsante da cidade, que atrai moradores e turistas em grande nmero. A Comida de Rua,
em diferentes ofertas e grande quantidade, no poderia deixar de se fazer presente em
tal cenrio.
Para analisar tal objeto, a presente dissertao inicia com um primeiro captulo
dedicado a reviso bibliogrfica, que apresenta os ingredientes necessrios
compreenso do fenmeno Comida de Rua, tanto nos seus desdobramentos histricos,
como sociais. Para melhor entendimento, retoma-se o papel do alimento em tempos de
nomadismo e, depois, na passagem a sedentarizao, graas ao desenvolvimento da
agricultura. H um longo caminho, no condicionamento de hbitos alimentares em
termos de preparo e consumo de alimentos, at chegar-se aos restaurantes, como osconhecemos na atualidade, quando a comida ultrapassa a mera questo alimentar, e
consagra-se como expresso cultural, objeto de conhecimento cientfico e, inclusive,
forma de lazer, entretenimento e consumo cultural.
Curiosamente, ou no, a Comida de Rua ganha destaque neste novo cenrio,
em que novos comportamentos levam entre outros ao que Maffesoli (2001) denomina
como novos nomadismos, em que o Turismo e o turista tambm apresentam novas
performances, entre elas a que vem sendo tratada como Turismo Cidado. O Acaraj, nasua verso preparada pelas baianas de Salvador, talvez o prato mais significativo deste
cenrio contemporneo: seu saber-fazer patrimonializado no Brasil, ganhou status e
tratamento diferenciado tanto em termos culturais como de Turismo.
Posto tal cenrio, o captulo dois apresenta os caminhos percorridos na
investigao. A metodologia qualitativa de carter exploratrio priorizou tcnicas de
pesquisa de campo, escolhidas por serem utilizadas, tambm, pelos turistas durante suas
viagens, tais como: a caminhada, sempre acompanhada do estranhamento, a observao
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apoiada no uso da cmera fotogrfica e as entrevistas semiestruturadas, sempre
precedidas de conversas informais. Denominou-se a triangulao dessas tcnicas como
a Fonte Geradora do Estranhamento, utilizada para posterior anlise e composio dos
resultados.
A investigao teve como norte, responder a questo de pesquisa que visa
compreender a atividade do comrcio de Comidas de Rua, no Brique da Redeno, em
Porto Alegre/RS, no que tange as concepes, prticas e contrapontos atrelados ao
exerccio da atividade, e ainda, as possveis contribuies desse gnero alimentcio para
o Turismo dito tradicional, bem como para aquele denominado Turismo Cidado, na
capital.
O primeiro objetivo busca discutir, a partir das falas dos sujeitos produtores,
sua viso em termos de concepo e prticas atreladas a atividade das Comidas de Rua;
o segundo visa identificar, tambm a partir das falas, os possveis contrapontos
inerentes ao exerccio da atividade nas ruas; o terceiro e ltimo, analisar por meio das
falas, mas tambm das observaes, as possveis contribuies das Comidas de Rua
para o Turismo.
Cabe destacar que at o segundo captulo o texto foi escrito no infinitivo, aps,
j no terceiro optou-se por adotar a primeira pessoa do singular, assim como no inciodesta introduo, uma vez que se entende o momento como aquele em que a mestranda
j est apta para lanar e colocar seu prprio olhar diante do objeto de pesquisa,
demonstrando uma maior proximidade em relao ao aqui exposto, discutido e
analisado.
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2 SEPARANDO OS INGREDIENTES: REVISO TERICA
Separando os ingredientes traz a ideia do momento que antecede a
preparao de uma receita, o que ser utilizado para comp-la, quais sero seus sabores
e indicaes do que esperar como prato final, ou prato feito. exatamente isso que se
pretende ao longo deste captulo. A fim de orden-lo na sua proposta de reviso do
estado da arte em torno da questo, em primeiro lugar apresenta-se o cenrio
contemporneo, no mbito da ps-modernidade, com suas novas demandas sociais e
culturais. Descreve-se como a globalizao condicionou os hbitos alimentares, tanto
para ofast food, num extremo, como pela busca de um passado gastronmico perdido,
no outro. Na busca por alimentos do passado figuram as demandas por sabores
caseiros, o que pode ser observado nas narrativas e resultados obtidos pela pesquisa de
Fischler e Masson (2010) quanto aos hbitos alimentares presentes em seis pases. O
termo modernidade alimentar, trazido tona, pode servir para explicar de que forma
as transformaes sociais ocorridas na contemporaneidade serviram para alterar a
relao entre sujeito e alimento.
Incluem-se nesse cenrio, os desdobramentos culturais que consideram na
gastronomia, alm de sua importncia enquanto setor econmico, sua criatividade como
principal vetor de sucesso e inovao, da o seu tratamento estar includo na economia
criativa. Sinal de sua valorizao crescente, instituies governamentais como o
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN e a Organizao das
Naes Unidas ONU passaram a valorizar as imaterialidades vinculadas s comidas
emblemticas de cada regio e pas, como tcnicas de preparo e outros rituais
associados, assim como os valores simblicos que acompanham os alimentos. Alm
disso, citam-se os rgos estaduais e municipais, que na cidade pesquisada, PortoAlegre/RS, so, respectivamente: o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico do
Estado do Rio Grande do Sul IPHAE, e o Conselho Municipal do Patrimnio
Histrico e Cultural Compahc, esse ltimo vinculado Secretaria Municipal de
Cultura SMC.
Aps a contextualizao inicial, buscou-se traar um breve percurso entre a
comida e a gastronomia. Cabe destacar que se entende por comida tudo que prprio
para se comer (FERREIRA, 2004, p.505), enquanto a gastronomia,
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[...] entendida como o estudo das relaes entre a cultura e a alimentao,incluindo os conhecimentos das tcnicas culinrias, do preparo, dacombinao e da degustao de alimentos e bebidas, e ainda dos aspectos
simblicos e subjetivos que influenciam e orientam a alimentao humana(GIMENES, 2010, p.188).
Ainda em relao contextualizao, buscou-se compreender como a
sedentarizao da populao levou formao das cidades e, consequentemente, ao
surgimento de atividades mercantis, desde os mercados e feiras, at o comrcio de rua.
Desse cenrio surgiram os restaurantes que, alm de inicialmente alimentarem os
doentes servindo-lhes caldos restaurativos, tambm passaram a ser opo gastronmica
para viajantes e funcionrios citadinos, uma vez que esses se encontravam longe de suasmoradias. Todavia a importncia dos restaurantes na histria da alimentao vai muito
alm de suas funes comerciais. Aos poucos, eles se transformaram em locais de
sociabilidade, aonde se ia para ver, ser visto, e para troca de informaes sobre poltica,
moda e outros acontecimentos, configurando-se novas atitudes a partir dos seus sales.
Tais funes sociais se ampliam na atualidade, como o denominado
eatertainment extrapolando o at ento simples ato de comer nos espaos pblicos, em
atividade associada ao lazer e ao entretenimento (FORJAZ, 1988; COLAO, 2007). Talassociao da comida a atividades ldicas, entre outros leva a que moradores de centros
urbanos, como demonstrado por meio de pesquisa, em seu tempo livre desloquem-se
por distncias e tempos expressivos, em busca de diferenciais em termos de comidas
locais e caseiras, as denominadas comfort foods (LAGO, 2006; HECK, 2004).
Quanto s Comidas de Rua, buscou-se em um breve resgate bibliogrfico
compreender de que forma a atividade, no Brasil, foi influenciada pela histria
pregressa dos escravos negros trazidos da frica. Dessa forma, possvel compreender
que, embora naquele pas essa atividade de comrcio ambulante fosse liberada para as
mulheres, no Brasil apenas escravas libertas ou desejosas por conquistar a alforria que
se dedicavam a esse comrcio, sendo extremamente mal visto aos olhos dos brancos e
das elites letradas (FERREIRA FILHO, 1999). Ainda nesse vis, apresenta-se o Acaraj
enquanto Comida de Rua que teve seu saber-fazer patrimonializado, envolta de
significados e imaterialidades, que vo desde a preparao dos tabuleiros, nos utenslios
e ingredientes utilizados, at a receita desenvolvida por cada baiana e modificada ao
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longo dos anos. Outro importante fator que merece destaque a influncia da atividade
turstica nas modificaes e alteraes do Acaraj, antes vendido em tamanho menor e
com pouco ou nenhum acompanhamento, contrariamente aos dias atuais1.
Por fim, busca-se associar a lgica dos fixos e fluxos, como abordada por
Santos (2000), Maffesoli (2001) e Castells (1999; 2000), s Comidas de Rua, que se
tornam parte integrante dos fluxos medida que ali se colocam a fim de atender este
tipo de demanda. Ainda, cabe pontuar que as Comidas de Rua so comercializadas por
pessoas ditas ambulantes, que sero compreendidos nessa pesquisa como aqueles que
esto auto-empregados, vendendo produtos ou servios diretamente aos consumidores,
em vias e logradouros pblicos, legalizados ou no (PAMPLONA, 2004).
2.1 DA COMIDA GASTRONOMIA: BREVE PERCURSO HISTRICO
Pensar a histria da alimentao significa, num primeiro momento,
compreender que, nossos ancestrais mais remotos tinham a busca do alimento entre os
motivos principais para suas peregrinaes, tanto em termos de caa como de coleta de
frutos e sementes. Entretanto, isso no significa desconsiderar o papel dos alimentos,
tambm quando o nmade se sedentariza. O nmade na luta pela sobrevivncia tornou-
se caador e dessa forma migrava em busca de presas que viabilizassem sua
alimentao, incluindo-se a a caa e a pesca. provvel que no perodo Paleoltico2os
Cabe aqui destacar que a Associao das Baianas de Acaraj e Mingau ABAM, localizada emSalvador, vem enfrentando um grave problema em funo das medidas organizacionais impostas pelaFdration Internationale de Football Association - FIFA para Copa do Mundo de 2014, cujas normasprobem qualquer tipo de comrcio ambulante em um raio de dois quilmetros dos estdios ondeacontecero os jogos. Ou seja, no ser somente a venda de Acarajs e de outros tantos pratos locais queser prejudicada, mas principalmente a figura da baiana, responsvel direta na construo do imaginrioda baianidade. A notcia repercutiu na mdia nacional e estrangeira. O site americano da CBN Newsreferiu-se ao abaixo assinado promovido pela presidente da ABAM, que obteve 7.500 assinaturas emapenas um ms, como uma forma de pressionar a FIFA. Mdias alems tambm contriburam,comparando a tradio do Acaraj, bem como sua importncia para o povo brasileiro, ao currywurstchips, prato tpico entre as Comidas de Rua alems (A TARDE, 2012) . A histria do prato remonta a1949, quando Herta Heuwer, moradora da cidade de Berlim, conseguiu atravs de soldados britnicos,curry, molho ingls e ketchup. Herta misturou os ingredientes a algumas especiarias e derramou sobrelinguias de porco grelhadas. Seu prato tornou-se popular ao iniciar a venda em uma carrocinhalocalizada em uma rua de sua cidade, onde a clientela era composta de trabalhadores da construocivil, empenhados na reconstruo de Berlim. O currywurst, atualmente, tambm pode seracompanhado de batatas (THEGRUMBLINGTUMMY, 2013).
2Perodo compreendido da origem da humanidade at 10.000 a.C.
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primeiros alimentos coletados tenham sido [...] razes, tubrculos, talos tenros, frutas e
gros silvestres. Lentilha, framboesa, figo, uva e mel [...] (FREIXA; CHAVES, 2008,
p.27), esse ltimo utilizado para adoar os alimentos, j que o acar seria difundido
apenas ao final da Idade Mdia.
Para alguns autores (FLANDRIN, 1998; FREIXA; CHAVES, 2008), no
perodo Neoltico3 a Terra sofreu importantes transformaes climticas, as geleiras
deram lugar a temperaturas amenas que viabilizaram a fixao dos povos em locais
propcios para a agricultura e domesticao de animais.
Fixados em vales frteis onde puderam desenvolver a produo de cereais(sobretudo, trigo e centeio), os povoados mais primitivos de que se temregistro se fixaram, em cerca de 10.000 a.C., nos vales frteis do rio Nilo(Egito), no delta entre os rios Tigre e Eufrates (Mesopotmia), na bacia do rioAmarelo (China) e no vale do rio Indo (ndia). O homem aprendeu a se valerdas cheias dos rios como uma espcie de irrigao natural para suasplantaes (FREIXA; CHAVES, 2008, p.28).
O controle da produo de alimentos permitiu a sedentarizao, tanto pela
agricultura como pela domesticao de animais. Acredita-se que os primeiros animais
de confinamento foram ovelhas, cabras, porcos e vacas; sendo que o principal benefcio
do pastoreio e/ou da pecuria, que eles facilitam [...] a criao seletiva e pe [m] disposio da comunidade animais cujas caractersticas satisfazem exatamente suas
necessidades ou seu gosto [...]. [...] O pastoreio [...] sempre acompanhado de criao
seletiva (FERNNDEZ-ARMESTO, 2010, p.101).
Pode-se inferir que o ato de comer deixou de ser apenas uma necessidade
fisiolgica e nutricional a ser atendida, pois o ser humano passou a escolher e selecionar
de acordo com seu gosto os alimentos que seriam ingeridos, ou seja, a cultura da seleo
e do preparo comea a fazer parte do cotidiano e, desse modo, o conceito dealimentao implica tanto os processos nutritivos e a regulagem e o controle dietticos
como o marco cultural e social em que se localizam esses comportamentos e normas
alimentares (SCHLTER, 2003, p.13). Dessa forma, os alimentos e o alimentar-se
passam a ser submetidos a regras sociais, culturais e religiosas.
Alm da domesticao de animais e o desenvolvimento da agricultura, a cerca
de 500 mil a.C. teria iniciado a utilizao do fogo para cozer os alimentos. Mais tarde o
3Perodo compreendido de 10.000 a.C. at 6.000 a.C.
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fogo serviria, tambm, para fabricar peas de cermica, e para moldar o metal e outros
materiais, certamente muitos deles utilizados na agricultura. Juntamente a outras
tcnicas, como temperar, marinar e salgar, o cozimento, assim como a utilizao de
especiarias, tinham como funo primordial tornar os alimentos melhor digerveis e
apetitosos, alm de conserv-los. A partir disso surgiu a cozinha, ou seja, tcnicas
culinrias que levam em considerao hbitos alimentares baseados, sobretudo, em
crenas culturais (FLANDRIN, 1998).
Com o surgimento dos instrumentos que propiciaram a preparao da terra para
a agricultura, durante a Idade dos Metais4, como arados e demais utenslios metlicos,
houve a possibilidade de comercializao dos excedentes de produo, o que, segundo
Braudel (1970), transformou a agricultura na primeira forma de indstria.
O suficiente para intensificar o comrcio e para que surgissem as cidades,que evoluram como centros administrativos e urbanos com diviso dotrabalho e classes sociais sob uma liderana, como a do fara, no Egito, ou ado rei, na Mesopotmia. A necessidade de registrar as trocas de produtoscomo trigo, leo de oliva, vinho, cereal e gado estimularam o surgimento daescrita, por volta de 3.500 a.C. (FREIXA; CHAVES, 2008, p.31).
importante destacar que o incio do escoamento da produo de alimentos,
resultou, tambm, no surgimento de rotas mercantis. Exemplos ilustrativos so as rotas
martimas do Oriente, abertas em funo das especiarias, assim como as rotas do
Atlntico, que proporcionaram o trfego do acar (CARNEIRO, 2003).
Consequentemente, os alimentos se tornam produtos de mercado e movimentam a
economia de diversas regies e pases, assim como a falta deles tambm acarretar
fluxos migratrios, uma vez que a produo dos alimentos e a sua disponibilidade
social tm obedecido a uma dinmica milenar de desigualdades distributivas e de crises
alimentares (CARNEIRO, 2003, p.23).
No livro Civilizao material e Capitalismo: sculos XV-XVIII, de Fernand
Braudel (1970), o autor inicia o captulo sobre a formao das cidades colocando o
eterno contraponto existente entre o urbano e o rural, esse ltimo ligado economia da
produo agrcola, que mantinha o mercado urbano, seja pelo seu abastecimento de
alimentos ou mesmo pela fora de trabalho que empregava, j que nas cidades se
4 Perodo compreendido entre 5.000 e 4.000 a.C.
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consumiam os produtos alimentcios de primeira necessidade produzidos no campo,
como carne de porco, legumes, ovos, queijo [...] (FREIXA; CHAVES, 2008, p.67).
Assim no momento das colheitas, artfices, homens bons abandonam as suas profisses
e as suas casas pelo trabalho dos campos (BRAUDEL, 1970, p. 409), portanto para
existir a cidade necessrio que esteja anexado a ela o seu pedao de vida rural
(Ibidem, p.405).
Sobre essa diviso entre cidade e campo e/ou aldeia, Weber (1976) explica que
as grandes cidades possuam um vasto territrio, contudo nem sempre existiram dentro
delas espaos em proporo que sustentasse a produo de alimentos necessria, da
manter os espaos rurais, embora esses estivessem nas mos de camadas burguesas,
detentoras de propriedades agrrias. Grande parte das cidades tinham suas hortas e
criaes para fora das muralhas, porm no cenrio europeu medieval,
[...] os porcos criam-se em liberdade nas ruas, to sujas e cheias de lama que preciso atravess-las com andas ou lanar pontes de madeira de um lado aooutro. Nas vsperas das feiras, em Frankfurt, cobriam pressa com palha ouaparas de madeira as ruas principais (BRAUDEL, 1970, p.408).
Mais do que uma narrativa sanitria, nota-se uma ruptura entre o campo e o
urbano e, medida que o primeiro comea a permear o segundo, constata-se que
iniciam ali problemas estruturais, pois as cidades no teriam sido planejadas para
atividades agrcolas e/ou pastoris. Alm disso, h a informao de que na Idade Mdia
j ocorriam feiras de rua e, ao menos durante sua realizao, havia a preocupao em
deixar a cidade com um aspecto higinico e saudvel.
As feiras urbanas (Figura 1),
[...] mobilizam a economia de vastas regies; por vezes todo o Ocidentemarca a encontro, aproveitando-se das liberdades e franquias oferecidas quefazem desaparecer por instantes o obstculo dos mltiplos impostos, taxas eportagens. Tudo concorre desde ento para que a feira seja uma reunio forade srie (BRAUDEL, 1985, p.67).
No entanto, embora a atividade mercantil fosse a principal caracterstica das
feiras, alm da venda de tecidos, vinho, animais, couro e remdios, havia atividades que
movimentavam a vida social das cidades, pois elas eram tomadas por equilibristas,
arrancadores de dentes, msicos e cantores ambulantes (BRAUDEL, 1985, p.70), alm
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de apresentaes teatrais. A Feira Bartholomew Fair, em Londres, por exemplo, era
uma destas feiras residuais feitas para lembrar, se necessrio fosse, o ar de quermesse,
de liberdade, de vida s avessas, caractersticas de todas as feiras, as animadas e as
menos animadas (Ibidem, p.72). Ocorriam, via de regra, uma vez ao ms e eram
aguardadas pela clientela, que chegava cidade para sua abertura com at 15 dias de
antecedncia.
Figura 1 Feira Medieval: comrcio entre produtor e consumidor
Fonte: A Cidade Medieval (2013)
A situao das feiras abriu espao para o surgimento dos mercados urbanos.
Economicamente, a cidade menos o lugar da produo e mais o do consumo. [...] O
mercado [...] tambm ser o espao do encontro e das trocas simblicas (GASTAL,
2006, p.64). Assim sendo, no demorou muito para que se tornassem parte do cotidianocitadino, ocorrendo diariamente ou semanalmente. Representaram o maior volume de
todas as trocas conhecidas (BRAUDEL, 1985, p.18). Pensando nisso, as autoridades
urbanas trataram de mant-las organizadas e vigiadas, inclusive no que diz respeito aos
preos, tratando-os como questo vital do meio urbano, por envolver e fazer parte da
vida social dos que ali viviam.
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a que as pessoas se encontram, que conversam, que se insultam, quepassam da ameaa pancada; a que nascem incidentes, depois processosreveladores de cumplicidades, a que intervm a guarda, alis raramente,intervenes essa espetaculares mas tambm prudentes, a que circulam asnovidades polticas, e as outras (Ibidem, p.18).
Quanto s mercadorias eram as mais diversas, desde montes de manteiga,
amontoados de legumes, pilhas de queijos, de frutos, de peixes ainda a escorrerem gua,
de caa, de carnes que o carniceiro corta no prprio local, [...] (Ibidem, p.17), at feno
e madeira. Os mercados, desde o princpio, eram locais de barulho, mau cheiro e certa
desordem, porm sua importncia comercial fez com que as cidades construssem
mercados cobertos, que por vezes colocavam-se volta dos mercados e feiras livres,
mas tornavam-se, sobretudo, permanentes e especializados. Atualmente, conhecidos noBrasil como Mercados Pblicos, ainda possvel notar sua presena em grandes
cidades, onde a maior parte das mercadorias expostas venda so produtos alimentcios.
Para Weber (1976, p.70), a estrutura da cidade diferencia-se do campo
justamente por possuir centros econmicos, bem como diferentes tipos de mercados que
possuem certa regularidade, alm de feiras de comerciantes em trnsito.
Assim como ocorre atualmente no Brasil, em diversos locais da Europa,
conforme demonstra a Figura 2, por volta do sculo XVIII, pequenos comerciantescomeam a ocupar o espao pblico ao redor dos grandes mercados fechados, surgem
ao ar livre os mercados de trigo, de farinha, de manteiga, de velas, de cordis e cordas
para os poos (BRAUDEL, 1985, p.24), e ainda segundo o autor, j no sculo XVII, na
Frana, as mulheres eram responsveis por esse tipo de comrcio, ditas vendedeiras
eram conhecidas pela linguagem rude e grosseira.
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Figura 2 Aguadoras, foto de Catala-Roca, na Madri dos anos 1950
Fonte: Historias Matritenses (2013)
Em Londres algo muito parecido ocorreu. Devido ao rpido crescimento da
cidade inglesa, os mercadores invadiram a rea central de forma desordenada,
utilizando, tambm, ruas adjacentes s centrais, onde se formaram mercados
especializados, pois cada rua era responsvel por fornecer um tipo de produto. Em 1666ocorre um incndio na rea central, o que levou as autoridades construrem locais
especficos para esse tipo de comrcio, com o objetivo de desobstruir as ruas. So
grandes construes rodeadas de vastos ptios. [...] Mercados cercados, mas ao ar livre,
uns especializados esses sobretudo por atacado os outros mais diversificados
(BRAUDEL, 1985, p.25).
A ordem no durou por muito tempo e em meados de 1699 as bancadas
invadem de novo as ruas, ocupam a parte da frente das casas, revendedores espalham-se
atravs da cidade apesar das proibies que atingem os vendedores ambulantes
(Ibidem, p.25). possvel notar que nesse trecho inicia a apario do termo vendedores
ambulantes, denominados pelo autor como mercadores, geralmente miserveis, que
transportam ao pescoo ou simplesmente s costas, mercadorias modestssimas
(BRAUDEL, 1985, p.60), em sua maioria frutas, pes, legumes, carnes, carvo, joias e
panos. Para o senso comum, em locais onde essa atividade era prioritria ocorria certo
atraso econmico.
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2.1.1 Os Restaurantes
O surgimento dos restaurantes est ligado aos mercados e feiras, j que os
comerciantes que saiam das zonas rurais para vender na cidade, onde permaneciam por
vrios dias, necessitavam de locais para as refeies. Antes disso, havia estalagens e
postos de correio instalados nas principais estradas, que intermediavam servios de
alimentao e repouso (PITTE, 1998).
Na Paris no sculo XVIII enquanto os ricos desfrutavam de banquetes
preparados por cozinheiros, os viajantes, caso no pudessem viajar acompanhados de
seus cozinheiros particulares, deviam contentar-se em comer table dhte (mesa do
anfitrio) de um estalajadeiro ou de um traiteur (fornecedor de alimentos) (SPANG,
2003, p.18), o que significava,
[...] uma refeio servida em uma grande mesa, sempre mesma horamarcada, e na qual os comensais tinham pouca chance de escolher ou pedirpratos especiais, a table dhte no raro era um ponto de reunio regular aomeio-dia para os artesos e trabalhadores locais, velhos amigos e antigosmoradores de um bairro (Ibidem, p.19).
Mais do que locais para alimentar e recuperar as foras fsicas, essesestabelecimentos serviam tambm para descanso e, de certa forma, sociabilidade.
O surgimento dos restaurantes demorou a ocorrer em funo de decretos
monarquistas que organizavam os comerciantes de acordo com seu ofcio, assim,
padeiros no poderiam comercializar carnes, aougueiros apenas abatiam animais
domsticos, enquanto as charcutarias vendiam produtos sunos, logo a nenhum
negociante era permitido combinar essas funes (e outras) com a finalidade de operar o
que hoje definiramos como um restaurante (SPANG, 2003, p.20).Embora Braune (2007) considere Antoine Beauvilliers o primeiro homem a
inaugurar um restaurante, em 1789, alguns autores (SPANG, 2003; PITTE, 1998)
atribuem ao francs Mathurin Roze de Chantoiseau sua inveno, o primeiro
restaurateurvia os mecanismos de comrcio h muito estigmatizados (a circulao de
bens e o estmulo de desejos) como possveis canais para o benefcio social e o
desenvolvimento nacional (SPANG, 2003, p.27).
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Ouvindo as discusses sobre culinria que faziam parte dos discursos a sua
volta, ele percebeu que residia neles um clamor por uma instituio que dominasse
todos ou, ao menos, grande parte, dos ofcios antes separados, e que certamente se
sustentaria, a medida que o viajante encontraria em um s lugar um bom caldo
restaurador5, ensopados e vinhos de qualidade.
[...] entre seus clientes estavam duques e atrizes, clrigos e filsofos; e entreos amigos, funcionrios pblicos subalternos, advogados e outroscomerciantes. [...] Esses primeiros restaurateurs tambm tinham relaescomerciais e familiares estreitas com estabelecimentos de alimentos ebebidas de Paris (SPANG, 2003, p.39).
Para distinguir os restaurateursdaqueles que mantinham apenas um comrciovarejista de comida (trateurs), os primeiros intensificaram sua imagem demonstrando a
preocupao com a sade de seus clientes, oferecendo caldos restaurativos, baseados em
preceitos medicinais; assim o surgimento do restaurante como instituio cultural
diferente da estalagem, da loja do traiteurou do caf devia-se muito mais a um estilo
particular de nocomer (SPANG, 2003, p.50), uma vez que a alimentao era imbuda
de restries mdicas largamente defendidas e praticadas por chefs.
Por volta de 1767, um dirio parisiense destacava a abertura de um novoestabelecimento especializado em consoms excelentes ou restaurantscuidadosamente
aquecidos em um banho de gua quente (Ibidem, p.49), que, alm disso, oferecia os
pratos a preos razoveis, servidos em loua nobre, em mesas individuais, durante o dia
todo, e disponibilizando aos clientes os peridicos mensais que chegavam a Paris.
Nessa poca, j se vai ao restaurante para usufruir de alguma surpresa agradvel,
quebrando a rotina do cotidiano; por esse motivo, as visitas a esse gnero de
estabelecimento tornaram-se cada vez mais freqentes (PITTE, 1998, p.756).
Certamente o pblico era atrado, tambm, pelo ar modernista desses estabelecimentos
que alm de alimentar, distraiam, assim, os restaurantes podem ser analisados como
espaos simblicos, caracterizados como teatros de comer e estratificados em torno de
posies sociais tanto quanto de cardpios especficos (CARNEIRO, 2003, p.19).
5Esses caldos eram base de carnes de aves e boi, diversas razes, cebolas, ervas e, segundo as receitas,
especiarias, acar-cande, po torrado ou cevada, manteiga, assim como produtos de aparncia toinslita quanto ptalas secas de rosa, passas, mbar, etc (PITTE, 1998, p.755).
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Embora o restaurante, enquanto estabelecimento comercial de alimentao
possa ter surgido e reorganizado a vida social de muitas pessoas, que inclusive
necessitavam deste tipo de estabelecimento para suas refeies dirias, por estarem
longe de suas residncias ou mesmo em viagem, a Figura 3 mostra que as Comidas de
Rua continuaram a dividir o mesmo espao, contudo esse fato no tratado por Spang
(2003) que apenas cita a diferena entre aqueles que comiam de mais, possvel de notar
na imagem do homem que vomita da sacada; e aqueles que comem de menos, referindo-
se a sopa que servida na rua.
Apenas em 1835 o Dictionnaire oficializou a utilizao da palavra
restaurante para designar o tipo de estabelecimento que conhecemos atualmente,
anteriormente denominados estabelecimento do restaurateur. Com a Revoluo
Francesa o nmero de restaurantes cresce vertiginosamente, medida que os grandes
cozinheiros abandonam a corte e abrem seu prprio negcio. Assim, quando o Imprio
desmorona, a reputao dos restaurantes parisienses tal que todos os oficiais europeus
tm pressa em frequent-los (PITTE, 1998, p.758).
A partir do sculo XIX os grandes hotis comeam a contratar cozinheiros de
alta reputao, com o intuito de oferecer mais do que repouso, mas tambm uma
excelente comida e um bom servio aos viajantes que passavam pelas cidadeseuropeias. Antes disso havia alguns hotis com salas de refeio que, salvo raras
excees, ofereciam apenas o estritamente necessrio, tendo alm disso horrios fixos
(SAVARIN, 1995, p.280).
Figura 3 Costumes alimentares na Frana
Fonte: Spang (2003).
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Cabe inferir que o ato de fazer refeies fora do lar, desde o incio esteve
atrelado ao meio urbano, uma vez que nesse espao havia um maior fluxo de pessoas,
onde circulavam as notcias sobre poltica e moda, e por fim, onde havia a necessidade
de sociabilidade, e de certo narcisismo onde o que importava era ver e ser visto, figurar
entre aqueles que podiam frequentar esse tipo de estabelecimento e, sobretudo, o faziam
como uma forma de distino social.
O ato de comer fora de casa foi se transformando em uma necessidade, haja
vista que, no tempo das cidades medievais os mercados pblicos, de certa forma, j
traziam ao cotidiano citadino novos hbitos alimentares, inclusive o comer na rua, que
transformou-se rapidamente em uma boa opo queles viajantes que passavam pelas
cidades europias, onde, ao menos no incio, no havia uma oferta considervel de
estabelecimentos que atendessem aos diversos paladares, e muito menos, as condies
econmicas da maioria. Por ora possvel consider-las o incio das Comidas de Rua,
uma vez que estavam localizadas em centros urbanos, de fluxo contnuo; provavelmente
eram refeies de baixo custo e, sobretudo, rpidas, que dispensavam modos eruditos
mesa.
2.2 OS NOVOS SENTIDOS DA COMIDA
A ps-modernidade, expresso cultural da economia globalizada, considera
que mesmo atividades rotineiras, como se alimentar, so culturais, da sua insero em
todos os aspectos do cotidiano, inclusive no que tange o consumo, caracterstica
fundamental desse novo contexto, est presente no s nas compras, mas em diferentes
esferas do cotidiano, das atividades profissionais ao lazer (GASTAL, 2006, p.34),
transformando a prpria cultura em produto de mercado, como possvel notar,
inclusive, no que tange os hbitos alimentares.
Embora o momento ps-moderno esteja ligado ideia de um mundo
globalizado a partir de tecnologias de ponta, o conceito tambm est fortemente atrelado
ao surgimento dos meios de comunicao de massa, que conforme Vattimo (1990)
acabam por caracterizar uma sociedade complexa e catica, sendo justamente o caos a
possibilidade de emancipao. O autor afirma ainda que, as mdias de massa fizeram
com que os pontos de vista centrais e unitrios, que sempre ditaram o rumo da histria,
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fossem por elas dissolvidos, uma vez que trazem ao conhecimento de todos, inclusive
das minorias, fatos anteriormente ignorados, vozes que no tinham espao nas mdias e
tampouco na histria, j que a ltima era constituda a partir dos relatos de nobres,
monarcas e da burguesia, como se os aspectos considerados baixos no fizessem
histria. Assim, para Vattimo (1990, p.77) a sociedade ps-moderna tambm uma
sociedade transparente.
Nesse contexto notam-se rupturas em certos pontos, dentre eles a prpria
relao com a comida. Enquanto o mundo sofreria, segundo alguns, uma
mcdonaldizao, ou seja, um deslocamento daquilo que era tradicional para o consumo
de comidas rpidas e padronizadas, temos a responsvel por esse fenmeno, a rede
McDonalds, repensando sua oferta para atender demandas e hbitos locais. Em pases
como o Brasil e a Frana, as saladas j figuram entre as opes de hambrgueres e fritas
nas lojas da rede, a Argentina demandou o caf e vieram os McCafs e, no Mdio
Oriente, mesmo os sanduches so adequados s demandas muulmanas e judaicas para
o preparo de alimentos. Alm disso, ainda na Frana, a rede de fast food teve de se
adaptar aos modos locais, com a incluso de croissantse quichesem sua oferta. Nesses
termos, o espectro pessimista de uma tendncia de mecdonaldizao dos hbitos
alimentares parece, portanto, ultrapassada, quando pensamos que as pequenasdiferenas esto ficando cada vez mais importantes na sociedade ps-moderna
(HECK, 2004, p.143).Por outro lado, essa aparente valorizao de pratos locais e de
processos artesanais, por parte dosfast foods, vista por Carvalho e Luz (2011, p.151)
apenas como uma ressignificao, com o intuito de alavancar a venda de produtos.
Uma espcie de movimento inverso estaria atrelado ao fato de os consumidores
estarem, cada vez mais, preocupados com a ingesto de alimentos saudveis e,
sobretudo, com a esttica do corpo. Ainda de acordo com os autoreso natural tambmseria [...] um construto simblico da ps-modernidade, oriundo de um momento ps-
guerra de reconstruo dos pases que foram destrudos, e de rejeio a um ideal de
modernidade, de carter fordista, de produo em larga escala e de eugenia (Ibidem,
p.49).
Se em tempos mais remotos, de nomadismo, a preocupao era a de ter acesso
aos alimentos, a atual seria a de como produzi-los e escolh-los, uma vez que os
processos industriais os modificam de tal forma, que conhecer a sua composio parte
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de uma tarefa rdua. Isso tende a tornar a identidade alimentar confusa, tendo em vista
que cada indivduo necessita reconhecer o alimento para que, atravs de significaes
construdas em torno dele, este passe a fazer parte de sua dieta, bem como de sua
cultura. Logo, se por um lado, atualmente h uma maior praticidade, agilidade e
atratividade nos alimentos industrializados, por outro, desconhecer sua origem traz
tona certa desconfiana e a possibilidade de ingerir substncias nocivas sade
(FONSECA; SOUZA; FROZI; PEREIRA, 2011).
Em pesquisa realizada em trs pases (Frana, Itlia e Estados Unidos),
Fischler e Masson (2010) questionaram os entrevistados a respeito do significado de
comer bem. Como resposta constataram que, para os italianos, necessrio a
presena de algumas caractersticas como o gosto, a origem, a autenticidade, o natural, a
estao do ano, o frescor (p.56); os americanos adquirem condutas proibitivas, mais do
que saudveis, como no se servir vrias vezes e nada de lanchinhos noturnos
(p.57-58), o que pode caracterizar a falta de interesse e conhecimento por uma dieta
mais saudvel, no que diz respeito s caractersticas nutricionais e de qualidade. Os
franceses direcionaram as respostas para o formalismo e organizao das refeies, ou
seja, para eles h a necessidade de dedicar um tempo exclusivo para as refeies, que
deve incluir a convivialidade, ou seja,
[...] um clima de sociabilidade calorosa que resulta de interaesinterpessoais, de solidariedades familiares ou da amizade, empatia, simpatia eda comunicao que se estabelece entre os comensais. Tal sociabilidade temuma vantagem considervel: ela legitima o prazer. E, assim que o prazer dividido, socializado, ele pode, efetivamente, figurar de forma legtima nocentro da alimentao como uma de suas funes aceitas (FISCHLER;MASSON, 2010, p.126).
Outros questionamentos foram realizados na mesma pesquisa, embora nessecaso tenham sido pesquisados seis pases (Estados Unidos, Frana, Inglaterra, Sua,
Alemanha e Itlia), somando 6.023 pessoas. Quando questionados se os alimentos
seriam hoje mais ou menos sadios do que antigamente, 56% dos entrevistados
consideram que [...] so menos sadios do que h quarenta ou cinquenta anos (Ibidem,
p.77). Para 62% isso se deve piora dos hbitos alimentares da populao em geral.
Outra questo demonstrou a busca nostlgica pelo passado atrelada alimentao.
Cerca da metade dos americanos recorreria ao passado para comer bem, enquanto
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65% dos franceses creem que se alimentam bem no presente. Assim, para os americanos
a perda que se nota se d menos na qualidade dos produtos e do sabor e mais nos usos
e nos comportamentos (FISCHLER; MASSON, 2010, p.81), o que no caso francs
permaneceu.
Na pesquisa realizada entre britnicos foram evocados problemas em relao
ao desaparecimento da sazonalidade, que causa, principalmente aos moradores de
centros urbanos, a falta de referncia quanto aos alimentos das estaes; bem como a
perda de gosto e localidade, sendo que o primeiro diz respeito s modificaes genticas
que os produtos tm sofrido, o que os distanciam do sabor original, enquanto o segundo
demonstra a desconexo das regies de origem, como se a superdisponibilidade de
alguns alimentos, antes bastante raros e de provenincia bem particular, lhes privasse
imediatamente de interesse (BEARDSWORTH, 2010, p.157).
importante notar que, em todas as pesquisas, a nostalgia em relao ao
consumo e hbitos alimentares do passado est presente, fazendo com que ocorra a
mudana de paradigma, uma vez que os sujeitos estariam propensos a se acostumar
rapidamente aosfast foods e aos congelados. Segundo Fonseca et al.(2011, p.3854), o
conceito de modernidade alimentarsintetiza e representa os impactos que a alimentao
tem sofrido em funo das transformaes sociais, econmicas e culturais ocorridas nasociedade contempornea. Figuram entre as de maior impacto aquelas marcadas pela
industrializao, pela ampliao do comrcio e pela feminizao da sociedade, e as
novas relaes entre o indivduo e a coletividade (Ibidem, p.3855), que influenciaram
nas formas de relao entre sujeitos e alimentao.
A busca por estabelecimentos que ofeream comida simples e caseira cada
vez mais frequente, uma vez que remete o comensal ao conforto e segurana do lar,
aos sabores e aromas j conhecidos, utenslios e pratos que faziam parte da vida infantil.Trata-se de uma tendncia que valoriza a culinria local e regional. Heck (2004) lembra
que, nos Estados Unidos, tem sido cada vez mais frequente a busca pelos chamados
comfort foods, comidas que remetem a infncia do consumidor, embora servidas em
espaos pblicos. Alm disso, tambm crescente a procura e escolha por produtos
naturais tidos como,
[...] alimentos artesanalmente manufaturados, em estado mais prximo
possvel do seu estado na natureza, ou seja, in natura, sem aditivos ou
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maquiagem. A esttica do natural ressalta a beleza nua e simples,despida de embalagens plsticas e limpa de elementos oriundos daengenharia gentica [...] (CARVALHO; LUZ, 2011, p.150).
Ainda, segundo as autoras, o trabalho manual e as tecnologias antigas como
piles, moinhos e rodas dgua, so valorizados como aspectos que remetem ao natural,
fazendo com que os restaurantes deixem a cozinha mostra para que o comensal possa
assistir o trabalho manual empreendido na preparao dos pratos. Podemos inferir que,
mesmo de forma tmida, j h um interesse maior por parte do consumidor pelas
imaterialidades que constituem as preparaes, ali tambm esto os segredos. Conforme
Assuno (2008, p. 11):
A preparao da comida envolve a ocultao de alguns procedimentos. Acozinha , portanto, o territrio do segredo. O segredo uma forma dedistribuio social do conhecimento que diferencia os indivduos (entreaqueles que sabem e os que desconhecem) e cria uma relao socialespecfica, uma relao de poder, regida por uma tenso que se dissolve narevelao. Deste modo, oscila-se constantemente entre nveis de revelao ede ocultao.
Isso verificado tanto em restaurantes localizados em meio rural, como no
urbano. No rural, nota-se que a presena feminina de extrema importncia no resgate
dos saberes e fazeres inerentes a determinada comunidade de sujeitos que, via de regra,
identificam-se, tambm, atravs de hbitos alimentares que foram passados de gerao
em gerao, transformando-se em parte da cultura local. Esse, de fato, pode vir a ser
considerado um diferencial que desencadeia um movimento de pessoas urbanas para
reas rurais, em busca de sabores originais e pratos simples, que, por vezes, escondem
um tempo maior de preparo, alm de tcnicas e utenslios prprios.
Estas iguarias, preparadas ao longo dos tempos e integrantes da culturaimaterial de suas respectivas comunidades, destacam-se em meio aohorizonte das comidas padronizadas que prevalece nos grandes centrosurbanos, e muitas vezes se tornam uma possibilidade de conexo cultural oucom um estilo de vida que se deseja recuperar ou alcanar, potencializando aatratividade destas localidades (GIMENES, 2009, p.09).
Se o retorno ou a busca por costumes alimentares imbudos de significados
imateriais cada vez maior, no se pode deixar de pensar que levados para centros
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maiores, cada vez mais desejosos por gastronomias tradicionais, os pratos podem sofrer
alteraes e ressignificaes, distanciando-se da receita original, com o intuito de
agradar a um maior nmero de paladares volta-se para questes puramente
mercadolgicas.
O desejo de resgatar sabores que lembrem a infncia no est atrelado
diminuio da procura por fast foods, j que notvel a necessidade das pessoas por
refeies rpidas durante o dia a dia, sobretudo em cidades onde o tempo de
deslocamento inviabiliza a alimentao preparada no lar, e os preos cobrados por
restaurantes ainda sejam inviveis para as refeies dirias. Alm disso, entre os
adolescentes o comer fora, sobretudo em locais de comida fast, torna-se um meio de
diferenciao e incluso social no grupo a que pertencem, levando-se em conta a rede
de significaes e cdigos a que est condicionada a alimentao.
Em pases como Estados Unidos e Japo, conforme Figura 4, comum
encontrar executivos dividindo espao com estudantes que buscam nosfood trucks uma
alimentao rpida e, em princpio, barata. Outro exemplo dessa crescente alterao nos
hbitos alimentares uma publicao da revista Marie Claire, destinada ao pblico
feminino de classe mdia e alta, que traz em seu site um roteiro de Comidas de Rua pelo
mundo, incluindo destinos como Paris, Nova York, Londres, So Paulo e Rio deJaneiro. A matria enfatiza que a calada no local para comer apenas cachorro quente
ou crepes simples, mas pode sim, ser um espao para saborear ostras frescas, lagostas
suculentas, massas feitas em casa e at frango com quiabo (MALTA, 2013, s.p).
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Figura 4 Food Trucks
Fonte: American Enterprise Institute AEI (2013)
Uma iniciativa na ndia pode servir como caso ilustrativo da alimentao que
vai alm de aspectos econmicos e sociais; l comum as pessoas utilizarem marmitas
para as refeies realizadas no local de trabalho, inclusive executivos de grandes
centros, como Bombaim. Tudo isso devido a uma importante rede de logstica, na qual
os dabbawalas6 so responsveis pela entrega diria de 200 mil marmitas na hora do
almoo, utilizando-se de meios de transporte como bicicletas, carrinhos e at mesmo o
transporte pblico. Essa logstica permite aos usurios consumir uma refeio at 15
vezes mais barata do que aquela disponvel em restaurantes tradicionais e redes de fast
foods, com um ponto ainda mais positivo, os valores pagos mensalmente pelas entregas,
que variam entre U$ 4 e U$ 8 (AGUIAR, 2008).
Outro importante fator contemporneo est na valorizao dos aspectos ligados
comida, como expresso cultural, por parte tanto da Organizao das Naes Unidas
para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO, como da rea patrimonial do
governo brasileiro. O IPHAN, em 2005, inscreveu no Livro dos Saberes o Ofcio das
Baianas de Acaraj e, em 2008, o Modo artesanal de fazer Queijo de Minas, nas
regies do Serro e das serras da Canastra e do Salitre. Isso demonstra a presena de
polticas pblicas preocupadas em manter viva a cultura atrelada aos alimentos que cada
regio possui, e pelos quais identificam os de dentro e so identificadas pelos de fora.
6Carregadores de marmitas em hndi (AGUIAR, 2008, p.178).
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2.2.1 Acaraj: o saber-fazer de uma comida de rua como patrimnio
Diante do cenrio que nos mostra uma crescente valorizao da intangibilidade
e a preocupao em relao aos saberes culturalmente produzidos, destaca-se o caso do
Acaraj, um prato tradicionalmente vendido nas ruas de Salvador, conforme ilustra a
foto de 1909 (Figura 5), cidade que mantm a tradio de Comida de Rua, sendo essa
largamente consumida por turistas nacionais e estrangeiros.
O Acaraj um bolinho de feijo-fradinho, cebola e sal, frito em azeite de
dend [...], vendido com acompanhamentos como a pimenta, o camaro, o vatap e, s
vezes, molho de cebola e tomate [...] (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008,
p.11). Introduzido no Brasil pelos africanos escravizados, comida de santo nosrituais das religies afro, o que lhe d, portanto, sentido religioso. Nos terreiros do
candombl, preparam-se as iguarias oferecidas aos Orixs, uma vez que para os
praticantes a comida faz a ligao entre a terra (Ai) e o cu (Orum) (FARELLI;
SILVA, 1997). A cada Orix destinado um prato, sendo o Acaraj o favorito de Ians.
Segundo a crena, trata-se da mais ardente das deusas; sua roupa de fogo e segura uma
espada de luz. Responsvel por resolver casos difceis a nica que no tem medo das
almas (Eguns). Cabe lembrar que aps o ritual de oferenda de alimentos aos Orixs, ospratos so distribudos queles que participam do ritual ou mesmo comunidade.
Figura 5 Venda de Acaraj nas ruas de Salvador em 1909
Fonte: Literatura Clandestina (2013)
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A venda de Acaraj, saindo do espao do Candombl e passando s ruas, teve
origem na autorizao dada s mulheres, no sentido de produzi-los e vend-los a fim de
angariar recursos que cobrissem os gastos despendidos com as obrigaes iniciticas da
religio (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008). Atualmente, ainda mantm
uma forte ligao religiosa, mas agora vai muito alm, pois se tornou parte do comrcio
e da economia local. Nesses termos, ganhou papel importante no sustento de muitas
famlias: o ofcio atualmente organizado nos moldes de pequenas empresas
domsticas e realiza-se como estratgia de sobrevivncia ou de complementao da
renda familiar (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008, p.16).
possvel detectar, durante a leitura do Dossi do Ofcio das Baianas de
Acaraj, realizado pelo IPHAN, marcos histricos que vo ao encontro dos aportes
bibliogrficos aqui resgatados, como o caso das feiras, que na era medieval estavam
atreladas ao comrcio ambulante de alimentos, assim como os mercados; no caso do
bolinho de feijo fradinho a Feira de So Joaquim adquiriu papel importante.
Trata-se de um mercado onde possvel encontrar produtos caractersticos daBahia; apresenta-se tambm como mediador entre a produo e o consumodos principais ingredientes que fazem parte da culinria baiana: nessa feira,as baianas encontram os elementos necessrios preparao tanto dascomidas domsticas quanto das que compem seus tabuleiros, expostos noespao da rua (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008, p.25).
Outro importante espao para a tradio do Acaraj so as festas de largo, que
misturam rituais da religio catlica e do candombl, um ciclo festivo que inicia em
dezembro e se estende at o carnaval. A noo de largo no Brasil, associada a esse
contexto, refere-se, de modo geral, ao espao circunscrito em torno da igreja, o adro
(Ibidem, p.37). A de maior importncia, nesse caso, a Festa de Santa Brbara (Figura
6), pois na religio catlica trata-se da padroeira das baianas de Acaraj, durante a festa
comum a distribuio desse alimento por devotos na porta da igreja.
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Figura 6 Festa de Santa Brbara em Salvador, Bahia
Fonte: Dend Cultural (2013)
Muitos foram os ingredientes incorporados receita desde sua chegada ao
Brasil. Inicialmente ele era consumido e comercializado puro, no mximo, quando
solicitado por algum viajante, era acrescido um molho a base de pimenta, cebola e
camaro, alm disso, era frito em casa, no azeite de dend, e depois comercializado na
rua. A partir do sculo XX, outros tantos elementos culinrios foram incorporados em
seu recheio, modificando o tamanho do quitute, que passou de uma colher de sopa para
o tamanho de uma escumadeira. Em decorrncia desse aumento, passou a ser
conhecido, tambm, por sanduche nag ou Acaraj-burguer (OFCIO DAS
BAIANAS DE ACARAJ, 2008, p.27) e, nesse caso, frito na rua, no prprio ponto de
venda.
As mudanas trazidas pela contemporaneidade, e consequentemente pelo
Turismo, so descritas na narrativa de Ubiratan Castro de Arajo, ex-diretor do Centro
de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia:
Desde menino eu j comecei a ver o Acaraj com a possibilidade de abrir ecolocar o vatap e camaro, pouco camaro, muito pouco camaro [...]. Eunasci em 1948, mas meu pai, que era da Marinha e fez a Guerra aqui, contavaque foi de certa forma uma influncia muito americana porque a chegada dosamericanos em 43/44 mudou muita coisa [...]. A cidade se americanizoumuito, com gestos, costumes, namoro [...] e uma das coisas foi o Acaraj teressa relao com o cachorro-quente, como sanduche, essa coisa de vocabrir o Acaraj e colocar coisas dentro: o vatap e o camaro, que durantemuito tempo foi o padro; nos anos 70 a influncia dessas coisas de pizza,essas coisas, comearam a colocar salada que no tinha nada a ver [...]. Eravatap, camaro e pimenta, e mais recente, nos anos 80 para 90, comearam acolocar caruru j por conta do turismo, a vem a presso de fora, os turistasque querem provar a comida baiana, e a o tabuleiro fica farto, um pouquinho
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de caruru, um pouquinho de vatap, um pouquinho de cada coisa, e a voccomea a encher com uma srie de coisas para dar a oportunidade aos turistasde provar essas comidas, e o Acaraj passa a ser um continente, passa a fazerum papel de po, todas essas adaptaes foram adaptaes que ajudaram amodificar o Acaraj [...] mas ao mesmo tempo foi esse acaraburguer que
assegurou a manuteno do Acaraj e uma capacidade de competio com asesfihas e com os chamados sanduches (OFCIO DAS BAIANAS DEACARAJ, 2008, p.53).
Em contraponto, temos a exaustiva diferenciao realizada por Rial (2005) sob
o intuito de separar as caractersticas de Acarajs e hamburgers. As diferenas
comeam pelo contato entre quem prepara o alimento, e quem o consome.
No caso do Acaraj dificilmente no ocorrer uma conversa informal entre a
baiana e seu cliente, enquanto o hamburgerser manipulado por diferentes atendentesdurante seu processo de produo, tornando o contato com o cliente restrito ao caixa. A
prpria transmisso do saber-fazer ser diferenciada. Enquanto no Acaraj ela ser
realizada oralmente e atravs da observao da performance do/da cozinheiro/a que
passa adiante os pequenos detalhes que fazem a diferena (RIAL, 2005, p.16-17), o
hamburger ter a uniformidade como marca principal, ou seja, os seus aprendizes [...]
so orientados a repetirem em mincias os mesmos procedimentos que se encontram
registrados em livro e que garantem a uniformidade do menu (RIAL, 2005, p.17).Tambm est imbricada a questo de gnero, que no Acaraj d baiana sua
exclusividade enquanto detentora do saber, embora j existam homens vendendo, a
elas que o imaginrio associa sua feitura e comercializao nas ruas de Salvador. Em
contrapartida o hamburgerest ligado figura masculina, uma vez que sua produo
necessita de sujeitos fortes que sero, por exemplo, controladores de grill, o que
segundo a autora (RIAL, 2005), ir se tornar figura central no processo de produo.
Logo, de acordo com Rial (2005), que se recusa a chamar os Acarajs e os
outros alimentos que se come na rua da Bahia tambm de fast-food (Ibidem, p.19),
embora existam diferenas importantes entre Acarajs e hamburgers, notrio, em
ambos os casos, o consumo por parte de turistas, uma vez que diferentes comidas
instituem diferentes situaes (Ibidem, p.20), assim ao buscar um fast food tambm
est se alimentando um imaginrio de metrpole, enquanto no Acaraj se busca, alm
de um sabor caracterstico, o passado, as marcas culturais, religiosas e tnicas de um
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determinado povo. Mais do que a comida, o que se busca ali uma situao social
(Ibidem, p.20).
Retornando s palavras de Ubiratan Castro de Arajo, outras mudanas foram
significativas para o aumento do consumo do Acaraj enquanto Comida de Rua
emblemtica da Bahia. A substituio do moinho de pedra pelo eltrico, utilizado para
obteno da massa do feijo fradinho; a participao masculina no preparo e
comercializao, e por fim a entrada de evanglicos nesse comrcio. Certamente, as
duas ltimas ocorreram em funo do ganho econmico que a atividade propicia, assim
saem de cena todos os requisitos religiosos, para os quais apenas a mulher estaria apta
ao preparo e a comercializao enquanto filha-de-santo do orix Oi, e prevalecem os
interesses econmicos (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008).
A salvaguarda do ofcio da baiana de Acaraj de extrema importncia,
medida que a cultura no esttica e j possvel notar constantes ressignificaes, seja
pela diversificao nos modos de preparo e comercializao, ou mesmo por influncias
legais.
Em um decreto de 1998, a Prefeitura de Salvador dispe sobre a localizao e
funcionamento do comrcio exercido pelas baianas de Acaraj e de mingau em
logradouros pblicos (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008, p.57), almdisso, com a preocupao da higiene e da qualidade, algumas instituies comearam a
oferecer Associao das Baianas de Acaraj, Mingau, Receptivos e Similares do
Estado da Bahia, cursos que ao final podem conferir o selo de qualidade Acaraj 10,
que como bem colocado pelo dossi importante observar que o enquadrar tambm
pressupe o excluir (OFCIO DAS BAIANAS DE ACARAJ, 2008, p.57). Outra
questo so as linhas de financiamento para aquisio de panelas e tabuleiros, e a
comercializao da massa de Acaraj congelado em supermercados e aeroportos.Assim, o IPHAN entende que,
[...] o registro do bem enquanto patrimnio cultural nacional podermobilizar a sociedade a reconhecer, recolher, sistematizar, proteger esalvaguardar esses saberes tradicionais sem frear o fluxo natural das re-apropriaes simblicas que se processam inevitavelmente na dinmica dasculturas (Ibidem, p.59).
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Nesse caso o que est em jogo no apenas o alimento, mas tudo que a ele est
vinculado, os utenslios, a receita, os ingredientes, o local, a presena feminina
responsvel pelo preparo, alm das roupas e do tabuleiro; um cabedal de significados
culturais que constitui o imaginrio do visitante muito antes de seu deslocamento. A
figura da baiana est intimamente vinculada imagem e ao imaginrio das ruas da
Bahia, bem como todos os quitutes que fazem parte de seu tabuleiro.
Como se procurou demonstrar at aqui, a comida envereda em um percurso
que vai de sua presena entre s necessidades bsicas sobrevivncia do ser humano,
passa pelo seu reconhecimento entre as expresses culturais e, nesse patamar, sendo
submetida aos mesmos processos de salvaguarda dedicados a outros fazeres culturais,
pela autoridade pblica. Outra questo o avano, sob a ps-modernidade, de sua
organizao econmica no apenas como uma prestao de servio para venda de
comida fora do lar, mas o seu incentivo, tambm encabeada por instituies nacionais,
no caso, o Ministrio da Cultura MinC, e internacionais, no caso, a Organizao das
Naes Unidas ONU, como um setor econmico focado na inovao e criatividade,
que tem sido denominado como Economia Criativa.
2.3 A GASTRONOMIA E A ECONOMIA CRIATIVA
No Brasil, para o MinC, o desenvolvimento deve significar, sobretudo,
qualidade de vida e ampliao de escolhas (ECONOMIA CRIATIVA, 2011, p.11),
sendo os mtodos inventivos e o impulso criador fontes importantes nesse processo
desenvolvimentista, que deixa margem o modelo econmico que visava apenas
acumulao de riquezas e o crescimento do Produto Interno Bruto PIB:
[...] esse desenvolvimento se fundamentaria na valorizao das ticas e dasexpresses culturais, necessrias consolidao de prticas cooperativas, aocrescimento da confiana entre indivduos e grupos, alm da proteo aopatrimnio cultural e ambiental dos territrios envolvidos (Ibidem, p.14).
Assim, em 1 de junho de 2012 foi criada a Secretaria da Economia Criativa
SEC, cujo princpio fundamental o de buscar transformar a inovao em riqueza,
sendo ela econmica, cultural e social. Dessa forma, a cultura deixa de ser apenas
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passvel de valorizao simblica, passando a integrar sistemas econmicos e como tal,
gerar empregos, novos empreendimentos e produo diversificada.
Ao contrrio de pases anglo-saxes, latinos e asiticos que utilizam o termo
indstrias criativas, no Brasil optou-se por utilizar a expresso setores criativos,
definidos como todos aqueles cujas atividades produtivas tm como processo principal
um ato criativo gerador de valor simblico, elemento central da formao do preo, e
que resulta em produo de riqueza cultural e econmica (Ibidem, p.22).
Nesses termos entende-se que, na gastronomia, o valor simblico, gerador do
preo ou valor econmico, est no resultado do trabalho empreendido durante a
preparao do prato. Tal se d porque, durante o processo foram utilizados fatores como
criao, tcnicas, saber-fazer entre outros que vo alm da importncia de utenslios
e/ou maquinrio. Trata-se, portanto, do que vai alm da materialidade, ou seja, o
imaterial e o valor simblico que determinam o valor econmico. Assim, a Economia
Criativa definida,
[...] a partir das dinmicas culturais, sociais e econmicas construdas a partirdo ciclo de criao, produo, distribuio/ circulao/ difuso e consumo/fruio de bens e servios oriundos dos setores criativos, caracterizados pelaprevalncia de sua dimenso simblica (ECONOMIA CRIATIVA, 2011,p.23).
A fim de alcanar resultados positivos Reis (2008, p.127) afirma que,
[...] preciso que outras condies sejam garantidas, do amplo acesso infraestrutura de tecnologias e comunicaes ao reconhecimento do valorintangvel embutido nos bens criativos, passando pela reorganizao daarquitetura institucional entre os agentes pblicos, privados e do terceirosetor.
No Plano da Secretaria da Economia Criativa: polticas, diretrizes e aes 2011a 2014, j possvel identificar essa preocupao com a reorganizao dos setores e
instituies nacionais, uma vez que nele foram inseridas instituies bancrias,
instituies pblicas de fomento, instituies de pesquisa e ministrios. A UNESCO
definiu em 1986, com o intuito de auxiliar pesquisas e base de dados referentes
Economia Criativa, categorias culturais e seus respectivos setores e atividades que
estariam direta ou indiretamente interligados. O MinC, de acordo com a Figura 7,
ampliou esse escopo e definiu os setores criativos contemplados no Brasil.
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Embora a gastronomia no conste no escopo, pode-se inferir que ela permeia o
campo patrimonial, pois o fato do IPHAN consider-la dessa forma, medida que nela
esto contidos os saberes e fazeres, receitas e tcnicas especficas de preparao; um
importante indicador de como os demais rgos federais a classificam.
Em relao aos dados econmicos das atividades criativas brasileiras, o MinC
explica ser de grande dificuldade mensur-los, uma vez que no h mtodo estatstico
especfico para esse fim, e ainda devido o alto grau de informalidade da economia
criativa brasileira, boa parte da produo e circulao domstica de bens e servios
criativos nacionais no incorporada aos relatrios estatsticos (ECONOMIA
CRIATIVA, 2011, p.30). Nessa ltima perspectiva possvel incluir os ambulantes de
Comidas de Rua, dos quais grande parte, possivelmente, est na informalidade. Reis
(2008, p.129) corrobora quanto importncia de dados estatsticos, medida que os
nmeros mostram a distncia a que se est do objetivo e permitem balizar a eficcia
das aes e polticas pblicas para transformar o quadro ideal em real.
Figura 7 Escopo dos Setores Criativos Ministrio da Cultura
Fonte: Economia Criativa (2011).
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So quatro os princpios norteadores da Economia Criativa Brasileira:
diversidade cultural, sustentabilidade, incluso social e inovao. Refletindo esses
princpios em relao gastronomia e, sobretudo, as Comidas de Rua, o plano ao
abordar a sustentabilidade afirma que,
A proliferao de uma cultura de consumo global massificou mercados com aoferta de produtos de baixo valor agregado, destitudos de elementosoriginais e identificadores de culturas locais. Desta forma, aqueles que tmmaior capacidade produtiva passam a dominar um mercado que se tornacompulsivo e pouco crtico. A homogeneidade cultural passa a oprimir adiversidade, impossibilitando o desenvolvimento endgeno (ECONOMIACRIATIVA, 2011, p. 33).
Os mercados massificadores podem ser compreendidos, na esfera
gastronmica, como as grandes redes de fast food, cujos princpios, embora possam ter
servido de base para tantos comerciantes de Comida de Rua, se distanciam dos hbitos
alimentares locais e inibem, pelo seu tamanho e poder econmico, pequenos ambulantes
munidos de criatividade aplicada em todos os processos, desde a aquisio at a
produo e comercializao de alimentos. Como o caso das baianas de Acaraj, que se
adaptaram as modificaes impostas pela contemporaneidade, desde o modo de fazer,
deixando para trs utenslios que despendiam um tempo maior para preparao da
massa, at a arrumao do tabuleiro que chama a ateno dos transeuntes pelo colorido
e aroma.
Quanto s aes de cooperao entre SEC e ministrios, causa estranheza que a
gastronomia esteja atrelada somente ao Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, e seja
contemplado apenas seu aspecto regional interligado ao Projeto Talentos do Brasil
Rural. Faz-se necessrio (re)pensar a gastronomia como um todo, em suas diferentes
facetas. Seja no meio rural ou urbano, existem diversos estabelecimentosregulamentados e informais que oferecem mais do que apenas alimentao, mas lazer,
entretenimento, diversidade cultural e necessitam estar inseridos em projetos da
Economia Criativa, principalmente aqueles voltados capacitao. Logo, no se trata de
uma economia solidria que deve visar apenas projetos ministeriais em andamento,
como forma de dinamiz-los e dar a eles visibilidade, deve sim focar na economia em
seu sentido amplo e complexo, inclusive no que diz respeito ao lucro e a gerao de
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emprego, j que a cultura atrelada criatividade transformou-se, tambm, em produto
de mercado.
Para melhor compreenso desse, hoje, pujante mercado convm retomar uma
breve contextualizao histrica do percurso do alimento nas sociedades ocidentais.
2.3.1 Eatertainment7: o comer como lazer e entretenimento
Entre as dcadas de 1780 e 1790, na Frana, bero do surgimento dos
restaurantes, ocorreu uma mudana significativa nos menusofertados aos clientes que,
inicialmente, procuravam apenas caldos restaurativos. Nessa poca, os estabelecimentoscomearam a oferecer, tambm, ceias e refeies completas, sem por isso
assemelharem-se com as antigas estalagens, tabernas ou casas de pasto, anteriormente
as nicas a oferecerem esse tipo de refeio. Para Spang (2003, p.86) foi a partir dessa
mudana que o restaurante deu novo significado s emoes, expresses e aes
individuais e elaborou toda uma nova lgica de sociabilidade e convivncia, voltada
aos padres urbanos de socializao que se encontrava em pleno desenvolvimento.
No Brasil, o lazer ainda tratado como tempo livre, prazer e liberdade o quepode restringi-lo esfera ldica de fuga e alvio das tenses cotidianas, fazendo com
que muitos sujeitos busquem atividades diferentes daquelas realizadas durante a
semana.
Atualmente, alm dos restaurantes, existem outros locais que oferecem
alimentao e podem ser considerados meios de sociabilidade, como os fast foods, os
mercados pblicos, as praas de alimentao de shoppings centerse a prpria Comida
de Rua. Assim sendo, comer deixa de ter apenas a sua funo biolgica bvia, denutrio para sobreviver, e entra para a categoria de lazer e entretenimento8, assim como
tambm passa a ser indicador de status e classe social, classificando e distinguindo
gostos culinrios (HECK, 2004, p.137).
7 Utilizado por autores como Pine e Gilmore (1998), Beardsworth e Bryman (1999) para denominar oentretenimento atrelado ao prazer da alimentao, amplamente encontrado em restaurantes temticos,cujo diferencial est presente na arte tnica, decorao, msica, fachada externa, nome e vrios sinaisestereotipados, para criar um ambiente distinto, que reivindica ser um reflexo de qualquer cultura
extica embora reconhecvel (BEARDSWORTH; BRYMAN, 1999, p.242).8Compreendido aqui como forma de brincadeira, distrao e divertimento (BUENO, 2000, p.237).
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A questo que as pessoas sentem um grande prazer em consumir alimentosem locais pblicos. Sair de casa para comer demonstra uma vontade deinteragir socialmente antes de significar a necessidade de se alimentar. Trata-se de uma forma de o indivduo se apresentar na sociedade e, por meio darefeio, intermediar suas relaes sociais, pois o restaurante visto como
um lugar onde a sua imagem refletida (Ibidem, p.138).
Alm de espaos pblicos destinados alimentao, possvel somar a eles o
prprio espao domstico, uma vez que o ato de receber pessoas em casa, por vezes, vai
alm dos prazeres gastronmicos, estando intimamente atrelado hospitalidade, ao lazer
e ao entretenimento.
O comer fora passa a figurar entre os diversos itens de consumo que fazem
parte do cotidiano. Esse fato no recente, e pode ser notado durante as colocaes de
Spang (2003), no livroA inveno do Restaurante, onde, inicialmente, esse tipo de local
nada mais era do que um espao onde se podia imitar os hbitos de uma aristocracia em
plena decadncia, atravs do consumo de pratos finos preparados cuidadosamente por
grandes chefs. Atualmente, alm do status,outros aspectos esto em jogo na hora de
escolher o melhor lugar para uma refeio, como por exemplo o aspecto ldico, que est
presente em restaurantes que oferecem comidas de outras nacionalidades, criando uma
atmosfera a partir da decorao e do atendimento personalizado, fazendo com que o
cliente seja transportado para outro lugar, permitindo que o ato de saciar a fome deixe,
por vezes, de ser o principal objetivo de quem opta por esse tipo de estabelecimento
(HECK, 2004).
No estudo realizado em praas de alimentao de shoppings de So Paulo,
Colao (2007) obteve, atravs de entrevistas, duas principais motivaes que levam as
pessoas a procurarem esse tipo de espao para refeies, a necessidade e o lazer. A
primeira est vinculada ao fato de ser uma alternativa mais barata que restaurantes
tradicionais, envolver um tempo menor de deslocamento e adaptar-se aos gostos
diversos. No ltimo caso so tidos como locais para passear, beber e comer, alm de
conversar.
A necessidade est vinculada ao pouco tempo e as grandes distncias que,
estudantes e trabalhadores, sobretudo de metrpoles, possuem para o deslocamento
entre seus locais de atividade e o lar, assim h a necessidade de frequentar locais
pblicos, como praas de alimentao, com o intuito de viabilizar as refeies dirias.
Embora possamos pensar que o comer transformou-se em lazer e entretenimento
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durante o sculo XXI, ou seja, atrelado globalizao e a ps-modernidade,
observamos que o estudo realizado por Forjaz (1988), na dcada de 1980, j
demonstrava, a partir de entrevistas, que a elite colocava o comer, beber e danar em
quarto lugar dentre as prticas mais usuais de lazer e consumo cultural, perdendo apenas
para leitura, cinema, televiso e rdio, atividades que no necessitam de um grau
significativo de sociabilidade, ao contrrio da alimentao.
Independente da classe social, o fato que as pessoas cada vez mais enxergam
no comer fora uma possibilidade de contato social, prazer, lazer e entretenimento.
Mesmo aqueles que durante a semana o fazem por necessidade, aos finais de semana, ou
em momentos oportunos, encaram a comida e a alimentao em locais pblicos como
um diferencial, uma fuga da rotina, seja atravs do consumo de bebidas e petiscos ou
mesmo refeies completas, que geralmente tornam-se prazerosas e diferenciadas
daquelas realizadas durante a semana, por incluir familiares, amigos e/ou parceiros (as).
Cabe lembrar que, alm dos circuitos gastronmicos disponveis no meio
urbano, atualmente a busca por atividades ligadas ao espao rural tm sido cada vez
maior, conforme constatou Lago (2006) em sua pesquisa realizada em dois restaurantes
rurais no Distrito Federal. Ao questionar os clientes sobre qual teria sido o fator
principal que os levara a esse tipo de estabelecimento, o lazer apareceu em primeirolugar, seguido de encontro com a famlia, amigos e outros e hbito alimentar
regional. Neste caso, alm do fator gastronmico, tambm temos o espao como
aspecto determinante para escolha desse cliente, j que 58% deles disseram residir a
uma distncia de 20 a 40 km do restaurante, o que demonstra claramente a fuga do
cotidiano, uma vez que mais da metade afirmou fazer isso semestralmente na
companhia de familiares.
Certamente a noo de lazer e entretenimento ser ditada, tambm, pela lgicado tempo do relgio, sendo ele mecnico, ou o tempo percebido, que pode dar maior
ou menor extenso a um acontecimento estabelecido por uma ordem subjetiva. [...]
Esses dois tempos acompanham os diferentes ritmos da comida dos dias da semana e
dos finais de semana (GARCIA, 1