Download - Dissertacao - Jamerson Farias
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Artes e Letras
Escola de Msica
Programa de Ps-Graduao em Msica
O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): a
construo estilstica de um cavaco-centro no choro.
Jamerson Farias Ribeiro
Rio de Janeiro
2014
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CAVACO RTMICO-HARMNICO NA MSICA DE WALDIRO FREDERICO TRAMONTANO (CANHOTO):
A construo estilstica de um cavaco-centro no choro
Por
Jamerson Farias Ribeiro
Dissertao de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro; concentrao em Musicologia: Etnografia das prticas musicais, como parte integrante dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre. Orientadora: Prof. Dr. Regina Meirelles
Rio de Janeiro, 2014.
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Agradecimentos
Primeiramente agradeo a minha famlia, especialmente minha me Eleonora, meu pai
Janio e meu irmo Jander, que sempre me apoiaram e me deram suporte para que eu pudesse
dar continuidade minha formao acadmica.
professora Dra. Regina Meirelles, minha orientadora, pelos conselhos, sugestes e
infindvel bom humor.
Aos professores Dr. Pedro Arago e Dra. Mrcia Taborda pelas sugestes dadas no
exame de qualificao.
banca examinadora: prof. Dr. Celso Ramalho e prof. Dr. Pedro Arago.
Ao CNPq, pela ajuda financeira durante o ltimo ano de pesquisa.
Aos entrevistados: Bernardo Diniz, Henrique Cazes, Maurcio Verde, Luciana Rabelo
e Adilson Tramontano.
Miguel ngelo de Azevedo, mais conhecido como Nirez, pela ateno e acesso a
sua coleo de discos em 78rpm.
Aos amigos prof. Me. Pablo Garcia e prof. Dr. Pedro Rogrio, pela iniciao
pesquisa acadmica, alm de todos os outros que, de alguma forma, contriburam para o
desenvolvimento deste estudo.
A todos os amigos e professores do Programa de Ps-Graduao em Msica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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RIBEIRO, Jamerson Farias. O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): A construo estilstica de um cavaco-centro no choro. 2014. Dissertao (Mestrado em Musicologia: Etnografia das prticas musicais) Programa de Ps-graduao em Msica, Escola de Msica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Resumo
Este trabalho visa refletir acerca da construo estilstica de Waldiro Frederico Tramontano,
Canhoto do Cavaquinho, descrevendo, analisando e transcrevendo aspectos importantes para
caracterizao de seu estilo a partir da audio de gravaes realizadas com o seu regional nas
dcadas de 1950 e 1960. Canhoto foi um dos primeiros cavaquinistas a se tornar msico
profissional atravs do rdio, atuando em grupos importantes para a consolidao de um
modelo de acompanhamento atravs dos conjuntos regionais. Atualmente o msico uma das
principais referncias para o cavaquinho na funo de acompanhamento, tendo no repertrio
gravado muitos clssicos da msica popular. Aps a elaborao de um relato biogrfico do
msico, a partir de depoimentos e documentos presentes no acervo pessoal de seu filho,
Adilson Tramontano, analisamos o contexto musical do perodo que corresponde a seu
aprendizado e profissionalizao com o objetivo de investigar a relao de seu estilo com as
transformaes rtmicas que culminariam no samba urbano carioca na virada das dcadas de
1920 e 1930. A transmisso musical ser observada a partir do conceito de ordem sonora, do
etnomusiclogo John Blacking e as anlises norteadas por conceitos de Philipp Tagg sobre a
anlise da msica popular gravada. No intuito de contribuir para estudos posteriores, tambm
foi realizado um mapeamento rtmico das levadas de Canhoto.
Palavras chave: Canhoto; choro; cavaquinho; msica popular; etnomusicologia.
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RIBEIRO, Jamerson Farias. O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): A construo estilstica de um cavaco-centro no choro. 2014. Dissertao (Mestrado em Musicologia: Etnografia das prticas musicais) Programa de Ps-graduao em Msica, Escola de Msica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Abstract
This study aims to have a reflexive look on the stylistic musical construction of Waldiro
Frederico Tramontano, Canhoto do Cavaquinho, by describing, analyzing and transcribing
important aspects of his performances. We develop this research from listening to the
recorded material made with his regional group in the 1950s and 1960s. Canhoto was one of
the first musicians to become a professional artist on the radio era, perfoming in conceited
groups in terms of developing a harmonic style via conjuntos regionais. Currently the
musician is one of the main references on cavaquinho, having recorded many classics in the
repertoire of popular music. After the description of his biography from the testimonies and
documents presented in the personal collection of his son, Adilson Tramontano, we have
analyzed the musical context from the period he became a professional musician aiming to
unravel the connections from his personal style and the rythmical changes that ended up in the
creation of the urban samba in Rio de Janeiro in the late 1920's and 1930s. The musical
transmission will be observed from the concept of sonic order, proposed by the
ethnomusicologist John Blacking and the analysis guided by the concepts of Philipp Tagg,
that deals with the analysis of recorded popular music. In order to contribute to further studies
a rhythmic mapping based on Canhoto's way of playing was written.
Keywords: Canhoto; choro; cavaquinho; popular music; ethnomusicology.
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Lista de Ilustraes Fotografia 1: Casa de Caboclo..................................................................................................19 Fotografia 2: Capa de disco......................................................................................................21 Fotografia 3: Convite do concurso de choros...........................................................................23 Fotografia 4: Panfleto de divulgao........................................................................................24 Fotografia 5: Gente do Morro...................................................................................................30 Fotografia 6: Aurora Miranda e Regional de Benedito Lacerda...............................................32 Fotografia 7: Regional de Benedito Lacerda............................................................................35 Fotografia 8: Matria Revista do Rdio....................................................................................39 Fotografia 9: Canhoto e Seu Regional......................................................................................42 Exemplos musicais 1: Paradigma do Tresillo...........................................................................78 Exemplos musicais 2: Sncope caracterstica............................................................................79 Exemplos musicais 3: Habanera...............................................................................................79 Exemplos musicais 4: Cinquillo...............................................................................................79 Exemplos musicais 5: Paradigma do Estcio............................................................................80 Exemplos musicais 6: Paradigma do Estcio............................................................................80 Levadas e palhetadas 1: Levada violo tamborim.................................................................81 Levadas e palhetadas 2: Levada teleco teco .........................................................................81 Levadas e palhetadas 3: Acompanhamento Amanh Eu Volto.................................................82 Levadas e palhetadas 4: Palhetada Visite o Terreiro................................................................82 Levadas e palhetadas 5: Exemplo grafia de direo de movimentos .......................................88 Levadas e palhetadas 6: Exemplo grafia do stacatto de dedo...................................................89 Levadas e palhetadas 7: Palhetada Jonas 1..............................................................................92 Levadas e palhetadas 8: Palhetada Jonas 2...............................................................................92 Levadas e palhetadas 9: Palhetada de choro.............................................................................94 Levadas e palhetadas 10: Palhetada alternada..........................................................................95 Levadas e palhetadas 11: Palhetada de choro em Uma noite no Sumar.................................95 Levadas e palhetadas 12: Contraponto caracterstico em Cuidado, Violo..............................97 Levadas e palhetadas 13: Contraponto caracterstico...............................................................97 Levadas e palhetadas 14: Duetos Doce de Coco.......................................................................98 Levadas e palhetadas 15: Palhetada de maxixe........................................................................99 Levadas e palhetadas 16: Palhetada de maxixe (Jayme Vignoli)...........................................100 Levadas e palhetadas 17: Palhetada de maxixe (Luciana Rabello).........................................100 Levadas e palhetadas 18: Palhetada de polca..........................................................................101 Levadas e palhetadas 19: Levada de polca (violo)................................................................102 Levadas e palhetadas 20: Palhetada Roda de Bamba (introduo).........................................103 Levadas e palhetadas 21: Palhetada de Samba 1....................................................................103 Levadas e palhetadas 22: Palhetada de Samba 2....................................................................104 Levadas e palhetadas 23: Contraponto no improviso.............................................................104 Levadas e palhetadas 24: Palhetada Visite o terreiro (introduo).........................................105 Levadas e palhetadas 25: Palhetada de baio 1.......................................................................106 Levadas e palhetadas 26: Palhetada de baio 2.......................................................................106 Levadas e palhetadas 27: Palhetada de rojo..........................................................................107 Partitura grfica 1: Cuidado, Violo.........................................................................................93 Partitura grfica 2: Doce de Coco.............................................................................................94
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Partitura grfica 3: Dorinha, Meu Amor...................................................................................99 Partitura grfica 4: Rato Rato..................................................................................................101 Partitura grfica 5: Roda de Bamba........................................................................................102 Partitura grfica 6: Visite O Terreiro......................................................................................102 Partitura grfica 7: Baio De Dois..........................................................................................105
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Sumrio
Introduo................................................................................................................................10
Capitulo 1 Canhoto no choro: Contextualizao...............................................................16
1.1. Biografia.............................................................................................................................16
1.2. Trajetria artstica e profissional: os Conjuntos Regionais, o Rdio e o Disco.................27
1.2.1. Gente do Morro.................................................................................................27
1.2.2. Conjunto Regional de Benedito Lacerda...........................................................34
1.2.3. Canhoto e Seu Regional....................................................................................39
Captulo 2 Que choro esse? O cavaco-centro na msica popular brasileira................45
2.1. Choro e samba: mtuas influncias na msica popular....................................................45
2.2. Estruturao formal e instrumental no choro....................................................................55
2.3. A construo estilstica de Canhoto..................................................................................66
2.3.1. Antecessores: a linhagem lvares-Galdino-Canhoto e os processos de transmisso musical..................................................................................................................68
2.3.2. Transformaes rtmicas e o legado de Canhoto................................................78
Captulo 3 Anlise tcnica e caracterizao estilstica......................................................86
3.1. Metodologia de anlise......................................................................................................86
3.2. Caracterizao estilstica e mapeamento rtmico das palhetadas.......................................89
3.3.1. Choro........................................................................................................................93
3.3.2. Maxixe.....................................................................................................................99
3.3.3. Polca ......................................................................................................................101
3.3.4. Samba e batuque....................................................................................................102
3.3.5. Baio......................................................................................................................105
Concluso...............................................................................................................................108
Bibliografia............................................................................................................................111
Anexos....................................................................................................................................121
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Introduo
Canhoto do Cavaquinho , certamente, uma das personalidades mais importantes do
choro brasileiro. No apenas por sua atuao em gravaes durante mais de 50 anos, mas pela
contribuio deixada msica popular e a seu instrumento. O cavaco-centro, acima de tudo,
uma funo que, executada pelo instrumento, embasa a sonoridade do conjunto regional e d
sentido a intervenes e variaes rtmicas e meldicas dentro formao. Ainda so poucas os
estudos sobre as prticas de acompanhamento no contexto do choro (Taborda, 1995; Becker,
1996; Bittar, 2011) e quase nenhuma sobre o cavaquinho, ficando a reflexo sobre a prtica
no choro voltada para solistas e compositores. Nesse sentido o estudo da prxis do
cavaquinista Waldiro Frederico Tramontano - o Canhoto (1908 - 1987), atravs da descrio e
anlise de sua trajetria artstica e de aspectos peculiares de sua execuo que o
transformaram em uma das maiores referncias para o cavaco-centro na msica popular,
extremamente importante. Esperamos com esse trabalho contribuir para preencher esta lacuna
na bibliografia sobre o choro e cavaquinho.
O captulo inicial deste estudo tem dois principais objetivos: produzir um relato
biogrfico sobre Canhoto e descrever sua carreira artstica, focalizando sua atuao em trs
importantes grupos da histria da msica popular brasileira: o Gente do Morro, o Conjunto
Regional de Benedito Lacerda e Canhoto e Seu Regional. A escolha justifica-se pela
importncia desses grupos na consolidao de um modelo bsico de acompanhamento na
msica brasileira atravs da atuao do trio de acompanhamento Dino-Meira-Canhoto,
aliando violes em contraponto e cavaquinho centrista percusso.
Foi realizada uma reviso de literatura no intuito de levantar os dados biogrficos
disponveis e compar-los com as duas principais fontes de informaes sobre Canhoto
conhecidas at o momento: o acervo pessoal de Waldiro em posse de seu filho Adilson
Tramontano e um depoimento do prprio msico registrado em 1978 por Lilian Zaremba,
que acreditamos ser o nico registro em udio da voz do msico. Zaremba registou uma srie
de depoimentos em 1978 para sua monografia do curso de graduao em Histria da PUC
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Ao todo foram 12 fitas cassetes que,
posteriormente, foram entregues ao professor Henrique Cazes que nos revelou que a nica
defeituosa era a gravao de Canhoto. O material foi totalmente digitalizado e nos foi cedido
gentilmente pelo professor. Dentre os depoimentos esto o de Dino Sete Cordas, Abel
Ferreira, Severino Arajo, Copinha, Radams Gnatalli e Orlando Silveira.
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Presentes no acervo de Adilson esto documentos e fotos que retratam vrios
momentos da carreira artstica do msico, alm de recortes de jornais e revistas (tambm
encontradas no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional1). Tambm foram realizadas
entrevistas com Adilson e alguns cavaquinistas cariocas que conheceram pessoalmente o
msico ou que possuem bastante conhecimento de sua obra. Trechos dos depoimentos sero
utilizados constantemente ao longo do texto devido relevncia das informaes em todos os
mbitos que abordamos na pesquisa. Vale lembrar que as entrevistas ainda tiveram como
objetivo discutir algumas questes tcnicas sobre o instrumento e a construo dos estilos de
palhetadas, sendo alguns dos entrevistados fontes dos dois tipos de dados, o que torna
necessrio que as intervenes do entrevistador sejam pontuais e feitas somente quando as
perguntas tiverem a finalidade de gerar um conhecimento ou dialogar sobre possveis
concluses e hipteses sobre a questo principal. Julgamos ser mais apropriadas entrevistas
em formato semiestruturado (Fraser e Gondim, 2004), o que possibilitaria a mudana de
abordagem de acordo com o objetivo das perguntas. Outro tpico do captulo reservado
descrio de sua trajetria profissional sendo necessrio, em alguns casos, investigar possveis
informaes contraditrias.
No segundo captulo basicamente demonstraremos como foram estruturados ao longo
dos anos os procedimentos bsicos e convenes encontrados na execuo do cavaquinho
centro dentro do contexto musical que lhe comum, contextualizando e preparando o leitor
para o captulo 3 onde realizaremos a anlise e caracterizao do estilo de Canhoto atravs
das gravaes. Demonstraremos tambm como acontece a chamada diviso de tarefas em
relao aos procedimentos rtmicos e harmnicos por parte do trio base de acompanhamento:
cavaco, violo de 6 e violo de 7 cordas.
O primeiro tpico est reservado reviso de literatura, onde discutiremos sobre os
processos de transformao dos gneros choro e samba e suas relaes, evidenciado o debate
existente na literatura ps-1980 onde observamos uma crtica aos lugares de origem. A
escolha de samba, choro e regional se justifica pelo fato de ser este o contexto onde se
desenvolve a prtica de Canhoto. Na segunda seco fizemos um histrico sobre as principais
formaes instrumentais utilizadas ao longo dos anos para execuo do repertrio dito
popular, bem como de sua estruturao sonora/instrumental, alm dos aspectos estruturais do
gnero choro que, em alguns casos, auxiliava e at facilitava o aprendizado dos instrumentos
e garantia aos msicos um conhecimento musical genrico sobre teoria musical. Sero
1 < http://hemerotecadigital.bn.br/>
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focalizados tambm aspectos do acompanhamento harmnico, frente s consideraes de
Carlos Almada em Harmonia Funcional (2009) e A estrutura do choro (2002).
Na ltima seco ser abordada a construo estilstica de Canhoto, partindo de seus
antecessores, transformaes rtmicas at sua transformao em referncia para as novas
geraes. Discutimos a prxis musical de acompanhamento no choro e alguns aspectos de
transmisso e aprendizado a fim de relacion-los com a prtica aqui estudada, dando nfase
em seu perodo de aprendizagem musical, naturalmente, pois onde acreditamos existir maior
influncia do contexto sociocultural e de seu eventual professor (Galdino Barreto). A relao
entre indivduo e sociedade foi estudada por Mirian Goldenberg em seu livro A arte de
pesquisar (1997) onde so apresentadas diversas abordagens para a realizao de uma
pesquisa qualitativa em cincias sociais. O mtodo biogrfico figura como importante
ferramenta na tentativa de entender uma coletividade atravs de uma histria de vida. A
autora afirma que cada individuo uma sntese individualizada e ativa de uma sociedade,
uma reapropriao singular do universo social e histrico que o envolve (Goldemberg,
1997:36). O mtodo foi utilizado na pesquisa com o objetivo de relacionar o contexto
histrico no qual Canhoto estava inserido com sua prtica musical. A relao se torna
importante, pois partimos da hiptese que a construo estilstica do acompanhamento de
Canhoto sofre influncia do processo de mudana de estilo nos padres rtmicos empregados
nos acompanhamentos do samba e choro no incio da dcada de 1930 segundo padres
mencionados por Sandroni (2001). A transmisso musical foi observada a partir do conceito
de ordem sonora, do etnomusiclogo John Blacking.
No ltimo captulo ser realizada a descrio, anlise e extrao dos elementos que
compem o estilo de Canhoto tendo como fontes primrias as gravaes dos chamados
discos de carreira e as entrevistas. Como metodologia de anlise utilizamos alguns
conceitos de Phillip Tagg para anlise de msica popular gravada (Tagg, 1979; Ulha
1999a,1999b, 2006) . Os musemas seriam fragmentos musicais presentes na msica que
possam ter um significado dentro de um contexto musical especfico. Definidos como
timbres, levadas, cadncias, etc. os musemas so apresentados em partituras grficas ou
grades musemticas podendo ser extrados para uma anlise individual. Nesse sentido a
metodologia foi utilizada em algumas gravaes ilustrativas, com relao s caractersticas
estilsticas do msico e a utilizao das palhetadas de gneros mais importantes, onde foi
possvel observar tambm a recorrncia de certos motivos rtmicos em seus
acompanhamentos.
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Para as anlises foi realizado, inicialmente, um grande levantamento fonogrfico dos
trs principais grupos que Canhoto participou ao longo da carreira: Gente do Morro, Conjunto
Regional de Benedito Lacerda e Canhoto e Seu Regional. A pesquisa fonogrfica foi
realizada em trs etapas. Iniciou-se em 2011 no Arquivo Nirez em Fortaleza-Ce, onde
pudemos ter um panorama inicial da quantidade de gravaes realizadas pelo msico em 78
RPM, principalmente dos dois primeiros grupos, j que Canhoto e Seu Regional atravessa
uma fase hbrida em relao aos discos (78rpm e Lps). H uma segunda etapa de ampliao
do acervo da pesquisa atravs de blogs da internet especializados em gravaes antigas como
o Forr em vinil e Ao chiado brasileiro alm de valiosas contribuies dos entrevistados que
nos indicaram e nos cederam gravaes e outros materiais. Consultamos tambm o acervo
digital do Instituto Moreira Sales (IMS) e do Instituto Memria Musical Brasileira (IMMUB),
onde pudemos escutar gravaes de difcil acesso alm de obter informaes sobre os discos
(ano de lanamento, gravadora, nmero de catlogo, etc). Atualmente estamos trabalhando
para reunir todo esse acervo de gravaes realizadas por Canhoto ao longo da carreira. A
tarefa difcil, pois como vimos anteriormente as fichas tcnicas so inexistentes em muitos
casos. H outros mecanismos menos confiveis como associ-los s gravadoras das quais
eram funcionrios ou ainda contar com a memria de alguns msicos que viveram no perodo
como Jorginho do Pandeiro2, sempre atentando para os eventuais problemas deste mtodo.
Porm a melhor maneira de identific-lo nas gravaes ainda a escuta crtica e, pensamos
que a partir de agora, uma escuta guiada.
Devido ao grande nmero de gravaes foi preciso criar categorias que limitassem a
amostragem, j que o arco temporal em que o msico atuou de quase 50 anos (1932 1980).
Sabemos ainda que alguns dos msicos dessas formaes, mais precisamente Dino e Meira
juntamente com Canhoto, tambm esto presentes em vrios outros discos da msica popular,
porm sob outra denominao ou mesmo sem serem devidamente identificados quando
estavam na condio de acompanhadores. Segundo o Instituto Memria Musical Brasileira
(IMMUB) somente com nome de Canhoto e Seu Regional, foram oito Lps, cerca de trinta e
seis 78rpm, trs coletneas e projetos extras, alm de participaes em lanamentos que
reuniam vrios artistas do choro e tambm do samba. O site Discos do Brasil indica a
participao como acompanhador em, aproximadamente, mais de 360 msicas divididas em
2 Jorge Jos da Silva (1930) atualmente um dos ltimos representantes do choro da era do rdio ainda vivo e em atividade. Nascido numa famlia de importantes msicos para choro como Dino 7 Cordas, entrou em 1956 para o Regional do Canhoto onde ficou at a dcada de 1960. Em 1972 passou a integrar o poca de Ouro que estava parado devido o falecimento de seu fundador Jacob do Bandolim.
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65 discos (vinil) durante sua carreira. Assim, no intuito de no aumentar ainda mais um leque
considervel de gravaes, foi preciso criar categorias que limitassem a amostragem,
considerando a carreira do instrumentista. Os critrios para essa seleo foram,
principalmente, a qualidade das gravaes e a capacidade de ilustrar elementos estilsticos
representativos que encontramos na execuo do msico. Nesse sentido so importantes os
discos de carreira entre 1951 e 1969, onde o regional de Canhoto aparece como artista
principal, e os discos do paraense Ary Lobo3. Ary foi cantor e compositor de baies, cocos e
rojes. Seus discos foram importantes nesse estudo pelo fato de o cavaquinho ter sua
sonoridade destacada nas gravaes devido instrumentao utilizada (com predominncia de
instrumentos de percusso), favorecendo uma boa audio das dinmicas rtmicas do
instrumento durante as msicas. Tambm foi produzido um catlogo parcial das gravaes
realizadas por Canhoto em discos de 78 rpm entre os anos de 1932 e 1965, alm dos citados
no texto, no intuito de facilitar a identificao em gravaes mais antigas, assim como
referenciar este trabalho.
Outra importante fonte para anlise foram as entrevistas realizadas com Bernardo
Diniz, Luciana Rabelo, Henrique Cazes e Mauricio Verde que so cavaquinistas e alguns,
pesquisadores. A escolha dos entrevistados se deu pelo fato de trs desses msicos terem
conhecido pessoalmente Canhoto e outro ter sido aluno da principal representante do estilo na
atualidade, Luciana Rabello. Alm do contato consideramos a relevncia dos msicos no
cenrio atual e os traos estilsticos identificveis em sua prtica, com relao a de Canhoto.
Os depoimentos so bastante esclarecedores sobre aspectos tcnicos, tecnolgicos (construo
do instrumento utilizado pelo msico), contexto sociocultural, dentre outras informaes.
Ressaltamos a importncia destes depoimentos para caracterizao, j que a partir deles
podemos ver de vrios prismas como os msicos percebem as nuances estilsticas e
compreendem a prxis do cavaquinista. Foram realizadas audies conjuntas de gravaes
junto com os entrevistados na tentativa de dialogar sobre caractersticas mais importantes
alm da identificao do msico em gravaes mais antigas. O ato de descrever, explicar o
estilo que j to internalizado para eles na prtica, nos rendeu boas observaes.
Lembramos que Canhoto tocava com as cordas na posio comum, a de destro, mas
virando o instrumento para o lado oposto do usual. Apesar das questes ergonmicas (postura
3 Gabriel Eusbio dos Santos Lobo (1930-1980), o Ary Lobo, era soldado da aeronutica antes de vir seguir carreira artstica no Rio de Janeiro. Comeou apresentando-se em programas de calouros na Rdio Clube do Par. Gravou seu primeiro disco pela RCA em 1958. Depois disso popularizou grandes sucessos como O ltimo pau-de-arara e vendedor de caranguejo (RCA Victor BPL 3060).
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e mo motora) representaremos os exemplos, com suas devidas articulaes, considerando a
direo dos movimentos sonoros: do grave para o agudo (para baixo) ou ao contrrio (para
cima) a segunda caracterizando um de seus principais elementos identitrios que
denominamos de volta.
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Capitulo 1 Canhoto no choro: Contextualizao
1.1. Biografia
Talvez se nos referssemos figura central deste estudo somente por seu nome de
registro em cartrio, Waldiro Frederico Tramontano, poucos seriam capazes de associ-lo a
figura emblemtica que ele se tornou para o cavaquinho, para o choro e, porque no dizer,
para msica popular brasileira. Referir-se, ento, somente ao seu apelido, Canhoto,
certamente geraria mais dvidas quanto a sua identificao no meio musical principalmente
no contexto do choro j que outros msicos brasileiros j se utilizaram dessa caracterstica
motora para criao de seu nome artstico. Para ficarmos somente nos mais conhecidos, como
Waldiro, Amrico Jacomino (1889-1928) e Rogrio Guimares (1900-1980) tambm tem seus
nomes artsticos relacionados com o apelido, deixando para os momentos no-musicais seus
nomes de batismo. Sem esquecermos Francisco Soares de Arajo, o Canhoto da Paraba
(1928 - 2008), que alm do apelido ainda teve sua naturalidade agregada ao nome. Ainda
possvel encontrar vrios outros msicos com o mesmo codinome nos relatos sobre msica
popular do final do sculo XIX e incio do sculo XX, talvez pelo fato de causar estranheza a
execuo de um instrumento do lado contrrio do normal (na viso dos destros), sendo logo
associado ao apelido quando surgia.
Ento, para no restar dvidas, falaremos aqui sobre o cavaquinista Canhoto do
cavaquinho nascido em 9 de agosto de 1908, na rua So Clemente, na vila de nmero 216, no
bairro de Botafogo situado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (tendo em vista a atual
disposio social da cidade). Filho mais velho de 5 irmos, perdeu o pai ainda menino tendo
que ajudar na renda familiar desde muito cedo, catando bolas de tnis em um clube localizado
no bairro onde nascera. Um leitor interessado em msica popular brasileira, certamente, em
algum momento, j se deparou com o nome do msico na literatura especializada.
considerado, por muitos msicos e chores espalhados pelo pas, como um dos maiores
representantes da escola de cavaquinho-centro, rtmico-harmnico ou de acompanhamento da
histria de nossa msica, fato que infelizmente no se traduziu em materiais biogrficos sobre
sua carreira e sua prtica musical, como observamos j ter acontecido com seus eternos
companheiros de regional Dino Sete Cordas e Meira 4.
4 Dino (Horondino Jos da Silva) o Dino Sete Cordas, certamente um dos nomes mais importantes do violo de sete cordas, ajudando a definir o modelo de execuo adotado por muitos instrumentistas posteriores a ele
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De ascendncia italiana, como nos revela seu sobrenome Tramontano, Waldiro teve
sua iniciao musical cedo, comeou a tocar cavaquinho bastante jovem, tomando parte,
desde os seus oito anos de idade [1916] em numerosas reunies festivas, integrando diferentes
conjuntos que iam exibir-se Rua General Polidoro (RCA Victor, 1956). Em depoimento,
Canhoto tambm comenta sobre as reunies festivas que ocorriam em sua casa e sobre seu
inicio no instrumento.
Eu tinha oito anos de idade, e ia sempre uma turma l em casa, quando eles saam dos bares eles iam pra minha casa tocar... quatro, cinco horas da manh eles iam tocar. E eu vi o cavaquinho e gostei muito! Ento falei com meu pai e ele colocou um professor de cavaquinho, mas eu sou canhoto. Ento eu aprendi virando as cordas. (Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978)
O trecho nos revela pontos importantes sobre o perodo de iniciao e aprendizado
musical de Canhoto onde havia um ambiente movimentado por reunies musicais
provavelmente patrocinadas por seu pai alm da presena de um professor de cavaquinho. A
prtica coletiva proporcionada pelas rodas de choro, reunies festivas alm das
participaes em conjuntos que realizavam apresentaes em espaos de seu bairro,
tambm ganham, assim, relevncia no processo no sentido de vivenciar as lies aprendidas
com o professor. Outro ponto importante para o estilo de Canhoto ser a disposio das
cordas no cavaquinho.
Logo na sequncia da entrevista o msico comenta que logo aps ter aprendido todas
as posies como um canhoto normalmente faz, invertendo as cordas, um violonista
chamado Seu Oscar disse a Canhoto: voc tem que aprender com as cordas direitas [grifo do
autor], se no voc no toca instrumento nenhum e os outro no tambm no tocam seu
instrumento... a tive que aprender novamente. (Zaremba, 1978). Dessa forma o msico teria
adquirido a primeira grande caracterstica de seu estilo no por uma necessidade tcnica, mas
por sugesto de outra pessoa frente ao contexto sociocultural da poca onde o
compartilhamento e comunho musical pareciam permear as rodas de choro e reunies
festivas.
Ainda sobre seu provvel professor, cogitada a possibilidade do cavaquinista
Galdino Barreto ter ocupado tal posio, como veremos adiante. Para Arago (2011) essa
prtica de ensino considerada informal devido a uma srie de fatores, como mtodos e
legitimidade em relao s instituies de ensino de msica da poca. Na virada do sculo
XIX para o sculo XX, professores informais eram comumente encontrados no ambiente do
e Meira (Jayme Thoms Florence) violonista pernambucano, professor de violo de instrumentistas como Raphael Rabello e Baden Powell.
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choro, principalmente em relao ao violo e cavaquinho. O termo utilizado, por Arago
(2011) de modo a demonstrar uma oposio ao formalismo no ensino de msica vinculado as
instituies tradicionais da sociedade carioca no perodo como, por exemplo, o Conservatrio
de Msica e os professores ligados a ele. A oralidade tambm sugere que certas prticas se
tornem um modelo, referncia de uma prtica ideal para algum ou, ainda, para determinados
grupos. A relao entre Galdino e Canhoto ser aprofundada no captulo seguinte.
Em 1927/1928, devido a uma epidemia de febre amarela, Canhoto foi trabalhar na
sade pblica como mata-mosquito onde conheceu um trombonista de nome Benjamim e esta
amizade lhe possibilitou a frequncia em vrias festas e rodas de choro da cidade do Rio de
Janeiro. Em uma dessas festas, na casa de Alfredo Jos Rodrigues, o Alfredinho Flautim
(1884 1958) que participou do Grupo da Velha Guarda5 organizado por Almirante na
dcada de 1950 , conheceu o violonista Gorgulho (Jacy Pereira). Segundo o texto biogrfico
da RCA Victor (1956) sobre Canhoto, teria sido o violonista Gorgulho, ento integrante do
recm-criado Gente do Morro liderado pelo flautista Benedito Lacerda, quem o convidou para
participar do grupo. Porm, no depoimento Zaremba (1978), Canhoto credita sua entrada no
grupo e sua posio na msica popular a Antnio Carlos Martins (1913 1985), tambm
conhecido como Russo do Pandeiro e considerado por muitos um virtuose em seu
instrumento, esclarecendo tambm a data de ingresso no grupo Gente do Morro como
veremos a seguir. Paulo Flores (2007) no encarte do disco Ben, o flautista tambm cita
informaes sobre o trabalho na sade pblica. Segundo Flores, Waldiro ganhava a vida
como mata-mosquitos ansiando poder se dedicar a msica completamente (Flores, 2007:21)
o que foi possvel somente nos primeiros anos da dcada de 1930 com sua profissionalizao
atravs do Gente do Morro e da consequente fixao dos conjuntos regionais nas rdios.
O rdio possibilita, assim, o incio da carreira profissional de Waldiro e de muitos
outros msicos de choro na capital federal que passam a assinar contratos com emissoras de
rdio e gravadoras da poca, mudando sua posio trabalhista de autnomo para empregado,
sendo considerados funcionrios das emissoras recebendo salrio fixo e at multas por
eventuais atrasos. Os contratos de exclusividade existiam em alguns casos, mas era grande a
rotatividade de msicos e regionais entre as emissoras de rdio e gravadoras atravs de
artifcios como a mudana de nome dos conjuntos ou at mesmo gravaes isoladas/pontuais.
A profissionalizao tambm abriu um leque de possibilidades para o msico, como a
participao em outras formaes instrumentais alm dos regionais. Aps a entrada para o
5 O grupo contava ainda com as participaes de Pixinguinha, Donga, Joo da Baiana, Bide, dentre outros, e gravou entre 1955 e 1956 trs discos: A Velha Guarda, Carnaval da Velha Guarda e Festival da Velha Guarda.
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grupo de Benedito, Canhoto atuou em uma orquestra que acompanhava a famosa bailarina
Eros Voluzia Machado (1914-2004) e tambm na tradicional Casa de Caboclo, fundada por
Antnio Lopes de Amorim, o Duque (1884 1953), dentre outro artistas como Jaraca &
Ratinho e Pixinguinha. O espao localizava-se na Praa Tiradentes, no centro da cidade do
Rio de Janeiro, mais precisamente no saguo do teatro So Jos e era dedicado a encenao de
peas do Teatro de Revistas com temticas sertanejas, alm da prtica de msicos populares.
Segundo o depoimento de Meira a Snia Maria Braucks Calazans Rodrigues no livro
Jararaca e Ratinho: a famosa dupla caipira (1983) antes do incio das apresentaes teatrais,
um grupo de msicos se apresentava na sala de espera do teatro com o objetivo de atrair
pblico para a parte interna. Dentre os msicos citados no depoimento esto Meira, Canhoto,
Benedito Lacerda, Joo Frazo, Romualdo Miranda, Jacob Palmieri, Vidraa e Joo de Deus.
Segundo Bittar (2011) este teria sido o primeiro encontro de Meira com Lacerda e Canhoto.
Como msico profissional participou da inaugurao de duas importantes emissoras de
rdio nos anos de 1934 e 1935: a Rdio Guanabara e a Rdio Tupi. As viagens tambm foram
constantes nos primeiros anos de carreira, tendo participado de excurses com o Gente do
Morro s cidades de Campos, Muqui e Vitria, em 1934, onde contaram com a luxuosa
participao de Noel Rosa (Almirante, 1977). As viagens no incio de carreira eram comuns,
Fotografia 1: Casa de Caboclo em 1932. Foto do acervo pessoal de Adilson Tramontano, 2008.
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mas logo os compromissos com o rdio e gravaes tomariam conta do dia a dia de Canhoto o
impedindo de viajar frequentemente, como nos contou Adilson em depoimento. O retorno ao
Rio de Janeiro marca tambm a mudana do nome do grupo, que passa a se chamar Conjunto
Regional de Benedito Lacerda. Em depoimento a Jos Eduardo Homem de Mello (ZUZA)
para o encarte do disco Os Choros dos Chores (1977) o prprio Canhoto comenta sobre a
mudana de nome.
Em 1932 eu entrei para o conjunto Gente do Morro de Benedito Lacerda. Ns fizemos uma viagem para Campos em 34 [1934] com Noel Rosa e l, o pessoal comeou a perguntar se a gente no andava de tamanco. Sabe como , Gente do Morro, tu j viu, no ? A, quando voltamos pro Rio, o Benedito resolveu mudar o nome do conjunto. Bobagem botar Gente do Morro. (CANHOTO, 1977)
O antigo nome foi sugerido por Jos Barbosa da Silva, o Sinh (1888 1930), em uma
tentativa de referncia a origem de alguns dos integrantes do grupo, como veremos mais
detalhadamente no tpico a seguir. No ano seguinte a viagem, Canhoto seguiu para uma
temporada em Buenos Aires, na Argentina, acompanhando Francisco Alves e Alzirinha
Camargo que foram contratados para inaugurao da rdio El Mundo. Em 1937, tambm foi a
So Paulo apresentar-se com o Almirante (Henrique Foris Domingues, 1908 1980) (RCA
Victor, 1956).
No rdio, era comum cada emissora contar com seu conjunto regional que, em alguns
casos, tinha um carter exclusivo. Canhoto, como participante do regional de Benedito,
trabalhou sob contrato de 1938 a 1945 na Rdio Clube do Brasil e, aps viagem ao Uruguai
para tocar junto com a orquestra do Cassino de Copacabana ingressou na Radio Tupi onde
permaneceu at 1950 (RCA Victor, 1956). Em dezembro de 1950 devido a vrias questes
(dentre elas salariais, o cncer de Benedito e sua indisponibilidade por conta dos
compromissos na campanha poltica de Adhemar de Barros presidncia da repblica)
criado o Regional do Canhoto, que contava ainda com Altamiro Carrilho (substituindo
Lacerda) e Orlando Silveira. O conjunto passa a atuar na Rdio Mayrink Veiga at seu
fechamento por questes politicas em 1965. Tornou-se artista exclusivo da RCA Victor e,
segundo consta no texto biogrfico do msico produzido pela gravadora seu primeiro disco
apareceu a 13 de abril de 1951 reunindo o baio Gracioso, e a popular composio Meu
limo, meu limoeiro num sugestivo arranjo do prprio Canhoto. Na poca a gravadora
planejava lanar tambm o long play BPL-3013 que viria a ser o primeiro disco em long
play (vinil), de Canhoto e Seu Regional, sob o titulo de Baiomania (1956). O regional
atuava no acompanhamento de vrios cantores de sucesso, mas tambm tinha sua carreira
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Fotografia 2: No papel de lder, Canhoto tambm cedia sua imagem para divulgao e capa dos discos do grupo. Capa do disco 78rpm lanado em 1959 pela Odeon (14512).
como grupo de msica instrumental lanando diversos discos como artistas principais.
Passou a ser considerado um modelo por excelncia por conta da competncia e versatilidade
que tinha em acompanhar uma grande variedade de gneros.
Canhoto faz parte de um seleto grupo de msicos que contrariavam o procedimento
comum para poca de nomeao dos regionais. Normalmente os solistas nomeavam os grupos
como, por exemplo, o Conjunto Regional de Benedito Lacerda, Regional de Dante Santoro,
entre outros, e Waldiro, mesmo sendo um msico acompanhador, passa a dar nome ao
regional. H, na discografia e bibliografia, trs nomenclaturas utilizadas para se referir ao seu
regional: Regional do Canhoto, Canhoto e Seu Conjunto e Canhoto e Seu Regional.
Adotaremos no texto o ltimo nome, pois nos parece ser o nome artstico do grupo por
aparecer na maior parte dos discos. Antes poucos regionais haviam optado por essa dinmica
de liderana. Para citar alguns temos o Grupo do Canhoto (do violonista Amrico Jacomino),
e mais tarde o Regional de Rogrio Guimares (violonista), dentre outros (Taborda, 1995).
Vale ressaltar que nos ltimos dois casos os lderes, apesar de violonistas, eram solistas e
compositores.
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Em outro texto sobre o msico, Castro (2008) destacada a liderana e organizao do
msico, caractersticas que o teriam ajudado a assumir a liderana do regional com a sada de
Benedito Lacerda em 1951, alm do respeito que os outros integrantes tinham por ele ser o
msico mais antigo naquela formao. A relao de companheirismo entre Lacerda e Canhoto
era tamanha que ao criar uma cooperativa financeira para os componentes de seu conjunto, o
flautista indicou Waldiro para tesouraria, que segundo as informaes do bigrafo de
Benedito Jadir Zanardi sempre desempenhou bem as atividades (2008).
Depois de ter se aposentado, Canhoto recebeu algumas homenagens. Uma delas
aconteceu em 26 de Maio de 1977 na primeira edio da srie de shows O Fino da msica,
promovido pela Rdio Jovem Pan, e realizado no Palcio das Convenes do Anhembi, So
Paulo. Entre os organizadores do evento estava o musiclogo e jornalista Zuza, o mesmo do
disco Os Choros dos Chores citado anteriormente. O show do Anhembi virou disco, e no
texto de apresentao da contracapa o jornalista explica:
Acho que a ideia de reunir os componentes originais do regional do Canhoto comeou a me cutucar a cabea em novembro de 76 no II Encontro dos Pesquisadores da Msica Popular Brasileira, quando nossas reunies foram abertas com uma apresentao do trio Canhoto-Dino-Meira e mais o Altamiro. Mas s meses depois que a imagem daqueles colossos me voltou: foi quando a Rdio Jovem Pan decidiu fazer o primeiro Fino da Msica ideia do Tuta [Antnio Augusto Amaral de Carvalho] uma nova etapa de sua campanha que j tinha 2 anos, em favor do msico brasileiro, um sujeito que se no fosse prestigiado logo logo, corria srios riscos de vida. (Depoimento de Zuza na contracapa do disco O Fino da msica, 1977).
Canhoto e Seu Regional faziam, naquela ocasio, 25 anos da reunio de sua primeira
formao e Dino, Meira e Canhoto fariam 40 anos de parceria nos regionais que atuaram.
Aps receber o convite nos estdios da RCA, Waldiro declarou ao jornalista certa dificuldade
em reunir os antigos companheiros de regional com um intuito profissional novamente:
"Olha, tem muita gente que j tentou fazer isso. Eu j estou aposentado, a gente no toca mais
em pblico... (Zuza, 1977). As quatro ltimas faixas de O Fino da msica, que ainda contou
com a participao de nomes importantes do choro como Paulo Moura e Raul de Barros, so
reservadas a homenagem ao cavaquinista e seu regional com a formao original (com
exceo de Gilson). Ao fim da penltima faixa do disco, Altamiro Carrilho discursa atestando
a importncia do trio Canhoto-Dino-Meira para msica popular brasileira.
E agora se vocs me permitem, duas palavras, duas palavras emocionadas de minha parte e tenho certeza que estarei, nesse momento, representando o pensamento de todos vocs, bons brasileiros que so. A esses trs homens: Dino, Meira e Canhoto,
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que h 40 anos vem trabalhando em favor da msica popular brasileira, tendo acompanhado os mais famosos cantores que pelo rdio brasileiro passaram, e sem contar com os estrangeiros que tem passado por aqui, as mais famosas gravaes de regional foram feitas por esse trio de cordas, ora com clarinete, ora com a flauta de Benedito Lacerda, ora com o saxofone de Pixinguinha, ora com o bandolim de Jacob, mas sempre os trs sustentculos da msica popular brasileira [comeam as palmas]. E para esses trs homens que eu peo uma salva de palmas muito especial. (transcrio do discurso de Altamiro Carrilho na faixa 13 do disco O Fino da msica, 1977)
Em outra oportunidade foi homenageado no do 5 Concurso Conjuntos de Choro
promovido pela Fundao Rio6. Em seu acervo pessoal, encontramos tambm um panfleto e
um convite para o evento que ocorreu entre os meses de novembro e dezembro de 1981. No
panfleto h um pequeno texto intitulado Homenagem a Canhoto, de autoria de Srgio Cabral,
reverenciando a atuao do msico e sua importncia para a msica popular.
O cavaquinho de Canhoto j atravessou mais de meio sculo da histria da msica popular brasileira e est registrada em milhares de discos. Como instrumentista e como lder de conjuntos musicais, Canhoto percorreu toda a sua longa carreia, contribuindo para nossa msica com muito talento e muita dignidade. Todos nos devemos muito a ele. (Panfleto do 5 Concurso Conjuntos de Choro, 1981).
6 rgo vinculado secretaria Municipal de Educao e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Fotografia 3: Convite para a final do 5 concurso de conjuntos choros em 1981. Acervo Adilson Tramontano, 2008.
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Apesar desta posio de prestgio entre os pares, como foi ilustrado pelas citaes
acima, h, desde a chegada do Rdio, uma desvalorizao dos msicos responsveis pelo
acompanhamento que, segundo Ary Vasconcelos em Carinhoso e etc: histria e inventrio do
choro (1984) acontece em duas estncias: num primeiro momento em relao aos solistas nos
regionais, e posteriormente, aos cantores da Era do Rdio. No livro o autor divide a histria
do choro em seis geraes identificando a poca dos regionais e cantores de rdio como sendo
a quarta gerao (1927-1946). O fato tambm se reflete nos trabalhos de cunho acadmico e
at mesmo biogrfico onde o foco, na maioria das vezes, est sobre os grandes solistas e
compositores. Observando dissertaes sobre o choro, solistas como Jacob do Bandolim,
Altamiro Carrilho, Raphael Rabello e K-Ximbinho (Crtes, 2006; Cndido e Sarmento, 2005;
Borges, 2008; Costa, 2009) j haviam recebido alguma ateno. Os companheiros de regional
de Waldiro, Dino Sete Cordas e Meira, tambm j foram objetos de estudo sendo o ltimo
um pouco mais recente (Taborda, 1995; Pellegrini, 2005; Bittar, 2011).
Chamamos ateno para uma faceta pouco comentada do msico: a de solista.
Sabemos que Canhoto no gostava de solar, como ele mesmo j declarou em depoimento,
Fotografia 4: Panfleto de divulgao do 5 Concurso Conjuntos de Choro, 1981. Acervo Adilson Tramontano, 2008.
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mas de certo teve que faz-lo em algumas eventualidades. No peridico Radiolndia datado
de 19/2/1955, o jornalista Oswaldo Miranda em matria sobre Canhoto e Seu Conjunto
ressalta o processo de mudana de como um modesto regional se transforma numa das
maiores atraes do Rdio brasileiro (Radiolndia, 1955). Logo no inicio do texto, o autor
comenta sobre o passado recente do regional que possua apenas quatro: dois violes, um
cavaquinho e um pandeiro, onde algumas vezes Canhoto aparecia como solista, certamente
substituindo o flautista Benedito em suas frequentes faltas. Miranda ainda comenta:
vez por outra, Canhoto, o notvel solista, dava uns ares de sua graa. Fazia um solinho, muito certinho, muito rico e sonoridade, mas depois do nmero, seco como , mal agradecia os aplausos do pblico, escondendo-se por detrs de Dino, Florence ou Gilson, ou seja, os violes e o pandeiro (Radiolndia, 1955)
Srgio Cabral (1997) tambm nos revela um fato ocorrido em que o msico solou o
restante da msica no cavaquinho em uma das apresentaes do programa O Pessoal da
Velha Guarda quando Lacerda foi vencido por uma crise de choro ao executar uma
composio de Pixinguinha, que estava com problemas de sade na poca. Na pesquisa
fonogrfica tambm identificamos uma gravao rarssima, onde Canhoto sola a primeira
parte de uma composio da qual assina sozinho em 1952: Canhotinho (RCA Victor 80-0991-
b), sugerindo certa habilidade com as melodias. Apesar de ter declarado no ser compositor
(Zaremba, 1978) a pesquisa fonogrfica tambm revelou algumas parceiras em choros
gravados nos primeiros anos de Canhoto e Seu Regional como Gingando (RCA Victor 80-
0808-a), Teco Teco (RCA Victor 80-1148-b), Visitando (RCA Victor 80-1364-b), Leno
branco (RCA Victor 80-1509-a) e O beijo do meu bem (RCA Victor 80-1633-b). A maior
parte das parcerias so com seus companheiros de regional (Dino, Meira e Orlando Silveira).
Acreditamos que, por ser contratado da gravadora, o grupo tinha que produzir discos
constantemente, fato que poderia ter desencadeado as composies e parcerias dos msicos.
Ou ainda por ser lder do conjunto seu nome pode ter sido vinculado em algumas
composies.
Em 2008, o Instituto Casa do Choro e a Escola Porttil de msica (EPM) organizaram
outra grande homenagem memria do msico atravs da IV edio do Festival Nacional do
Choro Ano Canhoto. Sobre o homenageado foi produzido um texto informativo que
encontra-se disponvel no site da EPM. Como sugere o ttulo, o texto comemora os 100 anos
de nascimento do msico e traz algumas curiosidades como o gosto por tocar em p nas rodas
e no ingerir bebidas alcolicas nessas ocasies, preferindo leite. O gosto peculiar pela bebida
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chegou a ser piada registrada em disco, onde Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro brincam
ao ver a mesa cenogrfica do show Teleco Teco Opus N 1 (Philips P 632.788 L) sem
nenhuma bebida alcolica: Olha... olha que mesa de boteco mais desmoralizada...leite!
Parece at a mesa da casa do Canhoto! (transcrio da fala de Ciro Monteiro no inicio do
show, 1966).
Na dcada de 1980 Canhoto passa a atuar cada vez menos profissionalmente,
participando apenas de encontros informais e frequentando rodas de choro em bairros do Rio
de Janeiro como a Penha e Ilha do Governador (Castro, 2008) 7. Em agosto de 1987 na coluna
Msica: Seus nomes suas histrias do jornalista Lauro Gomes, aps fazer um resumo da
carreira do regional de Canhoto, volta a ateno para as condies de sade do lder do grupo
que nas proximidades dos 80 anos, encontra-se seriamente enfermo. No merece e no deve
ser esquecido (recorte de peridico no identificado, 1987 Acervo Adilson). Trs meses
depois, em 24/11/1987, Canhoto falecia no Rio de Janeiro abatido pela doena de Alzheimer.
Canhoto era casado com Adelaide Franco Tramontano e juntos tiveram somente um filho,
Adilson.
Pensar que a canhotice do msico (uma de suas principais marcas) o ajudou na
criao de um estilo prprio natural, porm sempre nos ficou a dvida do porqu desse
estilo ter se tornado to popular (entre destros e canhotos) a ponto de se transformar em uma
referncia para o instrumento. Neste ponto pensamos que a visibilidade e difuso
proporcionadas pelas gravaes realizadas atravs do rdio, a parceria com Dino e Meira e a
presena em diversos discos de estilos diferentes podem ser alguns dos motivos a se
considerar, alm da sempre comentada preciso rtmica de sua prtica e uma integrao com
os outros instrumentos da formao. Na seo a seguir discutiremos mais detalhadamente
alguns pontos da trajetria artstica de Canhoto tendo como ponto de apoio sua participao
nos trs principais regionais que participou: Gente do Morro, Regional de Benedito Lacerda e
Canhoto e Seu Regional.
7 Disponvel em: < http://www.escolaportatil.com.br/SiteFestEditionsLink.asp >. Acedido em 10 de Jul. de 2013.
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1.2. Trajetria artstica e profissional: os Conjuntos Regionais, o Rdio e o Disco.
1.2.1. Gente do Morro
O grupo Gente do Morro foi criado em 1928/1929 pelo flautista e lder do grupo
Benedito Lacerda e foi nomeado a partir de uma sugesto de Sinh, em aluso aos msicos
que vinham das regies menos nobres da cidade do Rio de Janeiro, j que os primeiros
integrantes do grupo eram, em sua maioria, moradores do bairro do Estcio e alguns outros
pertenciam classe mdia da populao carioca. O conjunto gravou muitas canes populares
que eram interpretadas por cantores da poca como Idelfonso Norat e pelo prprio Benedito,
alm da execuo de musicas instrumentais.
Segundo o bigrafo de Lacerda, Jadir Zanardi em E a saudade ficou (2009) o grupo
se destacou pela qualidade musical e organizao, reunindo importantes msicos (Zanardi,
2009: 25). Ary Vasconcelos em Carinhoso e etc. (1984) destaca caractersticas sonoras como
sendo os breques e as pontuaes das percusses as principais caractersticas do grupo. Em
sua dissertao de mestrado o violonista Jos Paulo Thaumaturgo Becker, tambm destaca o
desempenho da percusso, os breques e os ponteios da flauta alm das inverses
harmnicas que fazia nos sambas (Becker, 1996:51). De fato a sonoridade do grupo
bastante caracterstica j que desde as primeiras gravaes mostravam-se capazes de aliar a
instrumentao bsica dos conjuntos de choro (cavaquinho e violes) com a percusso esta
j com forte influncia do pessoal do Estcio, referindo-se ao bairro onde cresceu o flautista
e alguns dos percussionistas do grupo conhecidos por suas contribuies rtmicas ao samba
como Russo do Pandeiro.
Uma das primeiras gravaes a trazer instrumentos de percusso foi o samba Na
Pavuna gravado em 1929 pelo Bando dos Tangars (Almirante, 1977:68), porm o Gente do
Morro quem apresentar recorrentemente esse recurso em suas gravaes. Ao comparar os
registros fonogrficos dos dois grupos, Bittar constata que a presena da batucada no to
recorrente nas gravaes do Bando dos Tangars ao contrrio do Gente do Morro (Bittar,
2011:52). Essa marca constante nas gravaes do Gente do Morro anuncia o que viria a ser a
base instrumental da formao dos conjuntos regionais com a ascenso do rdio no inicio da
dcada de 1930: violes, cavaquinho, percusso e um instrumento solista.
Sobre a formao inicial do grupo as informaes so divergentes, necessitando assim
de alguns esclarecimentos. Vasconcelos (1984) aponta os seguintes msicos: o lder do grupo
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Benedito Lacerda (flauta), Macrino, Bernardo e Doidinho (violes), Canhoto (cavaquinho) e
Russo do Pandeiro. Taborda (2010) indica formao parecida com a de Vasconcelos: tendo
Waldiro, Benedito, Maurinho, Bernardo e Doidinho na percusso. Henrique Cazes em Choro:
do quintal ao municipal (1988) e o pesquisador Srgio Prata em A histria dos regionais8
identificam Canhoto como integrante primeiro, no determinando uma formao especifica
identificando apenas os mais famosos como Benedito, Russo do Pandeiro e Canhoto. O
ltimo ainda sugere que foi a primeira reunio de dois dos mais importantes msicos
brasileiros: o flautista Benedito Lacerda e Waldiro Frederico Tramontano, o Canhoto do
cavaquinho 9, enquanto Zanardi (2009) refere-se formao mais famosa no se atendo ao
perodo cronolgico: Benedito, Canhoto, Gorgulho (Jacy Pereira) e Ney Orestes nos violes e
Russo do Pandeiro.
A parte da biografia de Benedito reservada a sua participao dos regionais identifica
substituies na formao sem, novamente, indicar o ano. O nome do cavaquinista Jlio dos
Santos aparece como integrante do grupo sem deixar claro, no entanto, sobre a sada ou no
de Waldiro. Em As escolas de samba do Rio de Janeiro (2004) o nome Jlio dos Santos
aparece em destaque como secretrio do bloco Unio do Estcio de S, porm no se tem, at
o momento, informaes biogrficas o cavaquinista. Ainda faziam parte da primeira formao
do grupo, segundo Zanardi (2009), o cantor Idelfonso Norat, Bide (Alcebades Barcelos) e
Cipriano Silva. J a ficha tcnica fornecida por Becker (1996) equivocada, merecendo
pequenas correes.
A mencionada dissertao que citaremos algumas vezes ao longo desse texto devido a
sua rica reviso bibliogrfica sobre o choro, dentre outras qualidades, tem como objetivo
relatar o funcionamento do violo de 6 cordas no conjunto regional tendo como exemplo um
grupo representativo do gnero, o poca de Ouro criado por Jacob do Bandolim na dcada
de 1960. Becker inicia seu texto citando alguns dos importantes regionais da histria como o
de Dante Santoro, Garoto, Waldir Azevedo, Luperce Miranda, dentre outros. Sobre a criao
do grupo Gente do Morro no fim da dcada de 1920, o autor comete um deslize ao identificar
o cavaquinista Canhoto como Amrico Jacomino (1889-1928) quando sabemos, conforme
vimos anteriormente, que seu verdadeiro nome Waldiro Frederico Tramontano. O erro
bastante comum j que existem em nossa msica popular no mnimo mais trs instrumentistas
ligados ao choro com o mesmo apelido, conforme vimos anteriormente. Na dvida, sugerimos
8 Em: < http://www.samba-choro.com.br/fotos/porexposicao/exposicao?exposicao_id=1 > Acesso em: 12 Jun. 2013. 9 Idem.
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que sempre faamos a relao dos msicos com seus instrumentos para no confundi-los j
que dos trs somente Waldiro era o nico cavaquinista, sendo os outros trs violonistas.
Podemos observar tambm que Jacomino faleceu no mesmo ano de nascimento de Canhoto
da Paraba (1928) e, consequentemente, das primeiras gravaes de Waldiro como
profissional. Na condio de estudante, diversas vezes foi necessrio esclarecer a outras
pessoas durante o perodo de desenvolvimento da pesquisa que o estudo se tratava do
cavaquinista e no dos violonistas.
Coincidentemente, dois dos instrumentistas citados eram solistas e/ou compositores,
condio que na histria de nossa msica popular mais valorizada assim como a posio de
cantor segundo Vasconcelos (1984) que comenta sobre o grande sucesso do rdio entre as
dcadas de 1927 e 1946, onde sobraro apenas migalhas para os msicos, alguns
simplesmente maravilhosos, porm todos reduzidos ao papel humilde s vezes at
humilhante de acompanhadores (Vasconcelos, 1984:29). Entretanto, no achamos que a
posio de msicos acompanhante fosse desonrosa j que os conjuntos regionais foram
criados com a funo de acompanhar os grandes astros da msica vocal como diz o autor
logo em seguida. Porm sensato dizer que os devidos crditos no foram dados a esses
msicos a comear pela inexistncia das fichas tcnicas de muitas gravaes do perodo,
dificultando estudos como este que tem como foco os msicos acompanhadores. Essas
informaes acabam ficando a cargo da memria de alguns msicos que viveram no perodo e
da transmisso oral dessas informaes dentro da cultura do choro e, claro, do trabalho dos
dedicados pesquisadores e estudiosos do gnero.
Outro trabalho que nos ajuda a esclarecer sobre as formaes do Gente do Morro e,
posteriormente, Conjunto Regional de Benedito Lacerda, a dissertao do tambm
violonista Iuri Lana Bittar sobre o emblemtico Jayme Tomaz Florence, o Meira. O trabalho
visa analisar os acompanhamentos executados pelo violonista ao longo de sua carreira que
tem incio em 1928 (com a participao no grupo Voz do Serto), passando por sua
participao no Conjunto Regional de Benedito Lacerda e se prolongando at a dcada de
1980 (com a participao no Regional de Canhoto, outros trabalhos importantes e a morte do
instrumentista). O estudo est dividido em trs captulos referentes aos principais grupos em
que Meira atuou, citados acima. Os conceitos de Phillip Tagg (1979) 10 so utilizados como
ferramenta analtica das gravaes, alm de uma discusso de aspectos histricos e
bibliogrficos. O autor identifica a formao que nos parece ser a mais prxima do grupo
inicial, tendo em vista as verses apresentadas anteriormente, com Gorgulho e Henrique Brito 10 [...] se baseia no estudo da msica popular dentro de uma perspectiva semitica (BITTAR, 2011, Pg. 05).
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(violes), Jlio dos Santos (cavaquinho), Bide e Gasto de Oliveira (tamborins), Juvenal
Lopes (chocalho) e Russo (pandeiro), alm de Benedito. Formao que tambm observada
no sitio eletrnico Discos do Brasil11 (criado e organizado por Maria Luiza Kfouri) que,
aparentemente, repassa as informaes contidas no encarte do Box de CDs Ben, o Flautista
que rene algumas gravaes emblemticas da carreira do flautista. 12
Frente ao apresentado acima, nos parece razovel afirmar que no h dvidas quanto
participao de Canhoto no grupo, porm o perodo de ingresso no precisado corretamente
na literatura. No momento da identificao dos msicos, alguns autores confundem as
11 Em: < http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/ > 12 Projeto realizado por Paulo Flores e Corina Meyer, com patrocnio da Petrobrs, e pesquisa nos acervos de Jos Ramos Tinhoro e Humberto Franceschi no Instituto Moreira Salles e, tambm, no acervo da Collector's Studio.
Fotografia 5 - Gente do Morro com Jlio dos Santos (Cavaquinho), Panderista no identificado, Juvenal Lopes (Chocalho), Bide (Surdo) e Gasto de Oliveira (Tamborim), Benedito Lacerda (Flauta),
Henrique Brito e Jacy Pereira (Violes). Saxofonista no identificado. Imagem da internet.
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formaes ou identificam somente os msicos que ficaram mais conhecidos na histria,
devido falta de informaes mais precisas sobre as fichas tcnicas. Pelo fato do Gente do
Morro ser encarado como um estgio anterior do consagrado Conjunto Regional de Benedito
Lacerda, os integrantes do segundo so constantemente identificados como os msicos
originais da formao do primeiro, como o caso de Canhoto.
Porm a importncia do Gente do Morro para a consolidao do formato regional
fundamental, havendo diferenas cruciais entre os grupos como os msicos e, principalmente,
a sonoridade. Em depoimento Zaremba (1978), no que pode ser um dos nicos registros
sonoros do cavaquinista, o prprio esclarece sobre sua entrada no grupo.
Em 1927 eu fui trabalhar na sade pblica, que teve uma epidemia de febre amarela, onde conheci um senhor que tinha um conjunto, Benjamim (tocava trombone). A travei conhecimento com Pixinguinha, o pessoal do choro. Ele me levou na casa do Alfredinho Flautim, que tocava junto com o Pixinguinha, na Rua do Riachuelo. Fui eu, Caninha que era autor antigo Caninha13 que meu compadre... e l encontrei o Russo do Pandeiro que tocava com o Bendicto Lacerda. O Russo me vendo tocar disse: voc quer ir pro conjunto do Benedito? Eu no era profissional, era amador. Isso em 1931 pra 1932. Ai eu digo: quero! Ento eu agradeo ser profissional e nome que tenho ao Russo do Pandeiro. (Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978).
As informaes sobre a data de entrada de Canhoto no conjunto no so precisas e, por
esse motivo, nos parece sensato considerar esta e outra possibilidade. Trata-se de outro
depoimento de Canhoto presente no j mencionado encarte do disco de 1977, onde Canhoto
inicia seu relato, aps um prembulo onde o autor comenta sobre a ligao entre os msicos
que formavam a mais slida base harmnica e rtmica do choro brasileiro:
Em 1932 eu entrei para o conjunto Gente do Morro de Benedito Lacerda. Ns fizemos uma viagem para Campos em 34 [1934] com Noel Rosa e l, o pessoal comeou a perguntar se a gente no andava de tamanco. Sabe como , Gente do Morro, tu j viu, no ? A, quando voltamos pro Rio, o Benedito resolveu mudar o nome do conjunto. Bobagem botar Gente do Morro. (Depoimento de Canhoto a Zuza no encarte do disco Chorinho e Chores, 1977)
Os dois depoimentos so claros em indicar a passagem dos anos de 1931 para 1932
como o perodo de ingresso no grupo de Lacerda. Nos parece sensato, tambm, afirmar que
Jlio dos Santos era o cavaquinista na primeira formao do grupo como atestado em nas
fontes citadas. A anlise das gravaes do Gente do Morro entre os anos de 1930 a 1934,
perodo em que o grupo gravou sob essa alcunha, identificamos diferenas na sonoridade do
13 Jos Lus de Moraes (1883 1961).
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Fotografia 6 Aurora Miranda e o Regional de Benedito Lacerda. Imagem retirada do filme "Al, al Carnaval" (Wallace Downey, 1936).
cavaquinho em algumas gravaes, o que nos permitir concordar com os depoimentos do
msico. A questo relacionada s sonoridades e anlises das gravaes sero abordadas mais
adiante e, portanto, no iremos nos ater a elas neste momento. Porm podemos adiantar que
nas gravaes antes de 1933, o cavaquinho no apresenta caractersticas peculiares a Canhoto
como a integrao rtmica com os violes e nem os contratempos rtmicos. A participao no
grupo Gente do Morro coloca Canhoto como o mais antigo e constante parceiro de Benedito
em seus regionais (FLORES, 2007).
Para o desenvolvimento do estudo, precisar este perodo significa desconsiderar da
anlise gravaes do perodo anteriores ao ano de 1932 como D nele (Brunswick 10.049-a)
que antes havamos considerado como a primeira gravao do msico com o grupo. Podemos
tambm contestar as informaes anexas ao encarte incluso no Box Ben, o Flautista e
repassadas pelo site Discos do Brasil onde nas gravaes de Gorgulho (Continental 22.129-
b), Mirthes (Odeon 11.061-a), Minha flauta de prata (Odeon 11.061-b), Olinda (Continental
22.129-b) e Pretencioso (Odeon 10.993-a) indicam Jlio como cavaquinista o que no est de
acordo com o exposto acima.
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A dvida tambm se estende aos demais integrantes devido as constantes mudanas
que aconteceram no grupo at o ano de 1937, quando a formao reunir msicos de vital
importncia para a fixao do principal formato de acompanhamento de msica popular.
Nessa poca o conjunto era assim: no violo, Macrino que j morreu h muito tempo e no era um violo muito forte. O outro era mais fraco ainda, porque era comediante, o Coringa, um mulato. Em 35 eles saram e entraram o Carlos Lentini e um violo do Rio Grande do Sul, o Nei Orestes que j morreu, e mais o Russo do Pandeiro. Ns inauguramos a Rdio Tupi em 35, e em 36 fomos Argentina com o Chico Alves e a Alzirinha Camargo. Foi no ms de agosto, e ningum tinha coragem de tomar banho frio de dia. Eu ficava num apartamento com o Benedito. E esse gacho, o Nei, ficava no outro com o Russo e o Lentini, que tambm bebia bem. Quando voltamos em setembro, ele j estava doente, com os 2 pulmes afetados, e eu internei-o no Hospital de So Sebastio em fevereiro. Foi quando o Dino veio para o conjunto: fevereiro de 37. Em julho o Lentini saiu e a veio o Meira que j tinha trabalhado na Casa de Caboclo com o conjunto do Jararaca e Ratinho. O Gilson pandeirista veio na poca dos discos do Pixinguinha. Antes era o Popeye. Os demais eram Dino, Meira, eu e Benedito. (Depoimento de Canhoto Zuza no encarte do disco Chorinho e Chores, 1977)
Na biografia de Benedito h situaes de inverso das informaes sobre os msicos j que
Canhoto e Ney Orestes so apresentados como participantes da primeira formao, porm
vimos na citao que estes s passam a integrar o grupo em 1932 e 1935, respectivamente.
At a data parece correto afirmar que Jlio era msico do conjunto e no que se juntou ao
grupo aps substituies, como aponta Zanardi (2009). Quanto aos violes, a dupla pioneira
nos parece ter sido mesmo Jacy Pereira (Gorgulho) e Henrique Brito, de acordo com as
afirmaes de Almirante (1977) e os registros fotogrficos. Vasconcelos (1984) parece
confundir-se ao indicar Bernardo e Doidinho como violonistas alm de Canhoto, como
msico da formao original. Os dois primeiros no eram violonistas e sim percussionistas, de
acordo com Bittar (2011) em exame aos registros de Almirante (1977) referente excurso
do Gente do Morro a Campos de Goitacazes, Muqui e Vitria alm de seus nomes aparecem
referenciados somente no ano de 1932, no depoimento de Canhoto. Bittar tambm relata que a
formao nessa excurso j aparece bastante modificada como observamos anteriormente.
Frente mudana dos msicos so duas as principais formaes do grupo. A inicial
com Jlio dos Santos (cavaquinho), Russo do Pandeiro, Juvenal Lopes, Bide e Gasto de
Oliveira (percusses), Benedito Lacerda (flauta), Henrique Brito e Jacy Pereira (violes) e a
de 1932 com Canhoto (cavaquinho), Russo do Pandeiro, Bide (percusso), Benedito Lacerda
(flauta), Macrino e Coringa (violes). O grupo realizou cerca de 63 gravaes variando o
repertrio entre msicas instrumentais e vocais das quais, muitas vezes, o prprio Lacerda
assumiu a funo de cantor.
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1.2.2. Conjunto Regional de Benedito Lacerda
O grupo Gente do Morro tem vida relativamente curta com esse nome, pois em 1934
muda para Conjunto Regional de Benedito Lacerda. Sobre a data da mudana Zanardi (2009)
aponta para 1935 como o ano da troca de nome, relacionando o momento com a volta de
Buenos Aires em decorrncia da inaugurao da Rdio Belgrano. Porm acreditamos que a
mudana ocorre realmente no ano anterior no retorno do grupo de uma excurso para Campos
conforme podemos observar no depoimento de Canhoto (1977) j mencionado. Em relao
a viagem a Argentina, j vimos que o grupo tinha sido convidado para inaugurar a Rdio El
Mundo, fincando a inaugurao da emissora concorrente por conta de Carmen Miranda e O
Bando da Lua14.
A sonoridade do conjunto mudar o foco dos breques da percusso para os efeitos e
contrapontos das cordas e da flauta. A formao inicial deste regional segundo Vasconcelos
(1984) ter alm de Benedito na flauta, Canhoto no cavaquinho, Ney Orestes e Jacy Pereira
(Gorgulho) nos violes alm de Russo no pandeiro. Com essa formao o grupo se apresentou
no rdio e teve muitos discos lanados pela Odeon entre os anos de 1934 e 1937, dentre esses
alguns dos momentos mais importantes do choro gravado (Vasconcelos, 1984: 21) como
Dinor (Odeon 11.266-a), Venenoso (Odeon 11.226-a) e Entre amigos (Odeon 11.469-a).
Sobre a formao Bittar (2011) aponta para Ney Orestes e Carlos Lentine como
violonistas. A rotatividade nos violes grande tendo em 1937 novas mudanas em sua
formao com as sadas de Ney Orestes e Carlos Lentine e as entradas de Horondino da Silva
(Dino Sete Cordas) e Jayme Florence (Meira) nos violes alm da substituio de Russo por
Popeye no pandeiro, formao esta que perduraria durante muitos anos. Assim, reunia-se pela
primeira vez o mais clebre trio de base de toda a histria dos regionais: Dino-Meira-
Canhoto (Cazes, 1999:86) e uma das formaes mais importantes da histria da msica
popular brasileira. Taborda tambm comenta sobre o regional que estabeleceu modelo de
organizao e sonoridade que permaneceria na msica brasileira, como influncia para as
geraes futuras (Taborda, 2009:66). A excelncia e a importncia do regional para a msica
brasileira novamente atestada por Flores (2007) no encarte do box sobre Lacerda. Segundo o
organizador:
14 Conforme depoimento de Russo do Pandeiro ao pesquisador Renato Vivacqua em 25 de julho de 1982. Disponvel em: < http://www.renatovivacqua.com/entrevista-russo-do-pandeiro.html >
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[...] foi o grupo preferido de dez entre dez cantores que prevaleceu nas gravaes dos anos de 30 e 40, tambm como Regional do Canhoto, Bomios da Cidade e Regional de Luiz Americano. Mas era na precisa mo de Benedito [Benedito], com suas introdues e contrapontos, sua ginga, seu alto padro de exigncia, que essa dinastia mais brilhava. Por trs de cantores com Chico Alves e Slvio Caldas, Orlando Silva e Mrio Reis, Almirante e Noel Rosa, Aracy de Almeida e Carmem Miranda, Benedito, com seu regional, dava o tom em todos os possveis sentidos da palavra. (Flores, 2007: 64)
A citao bastante ilustrativa para observarmos a quantidade de gravaes e a
variedade de estilos musicais e cantores que o grupo acompanhou, alm da utilizao de
outros nomes para o mesmo grupo de msicos. Segundo o catlogo de gravaes fornecido
por Nirez, o regional de Benedito aparece em mais de 700 gravaes entre janeiro de 1935 e
setembro de 1950 variando entre acompanhadores e intrpretes/artistas.
Com essa formao o grupo gravaria vrias msicas significativas para a discografia
do choro, segundo Vasconcelos (1984), como Romance de uma valsa e Meu sabi (Odeon
11.609), mas nessa poca as gravaes com cantores e eram bem mais frequentes. O livro A
cano no tempo: 85 anos de msicas brasileiras (1997) de Jairo Severiano e Zuza Homem
de Mello indica no mnimo uma msica gravada pelo regional entre os grandes sucessos do
perodo de 1935 a 1950. Dentre os sucessos destacamos as gravaes de Cho de estrelas
Fotografia 7 - Regional de Benedito Lacerda em 1938. Popeye, Dino, Lacerda, Canhoto e Meira. Foto do Acervo Adilson Tramontano, 2008.
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(Odeon 11.475-b), Praa Onze (Continental 55.319-a), Por tua Causa (Continental 55.065-b),
Mesma histria (Continental 55.218-a), Tico-tico no fub (Continental 55.368-a), Apanhei-te
cavaquinho (Continental 55.432-a), Aperto de mo (Victor 80.0058-b), Falsa baiana (Victor
80.0181-a) e Rugas (Victor 80.0406-a). Os vrios nomes de grupo que foram utilizados
devido a alteraes dos msicos para realizao de gravaes espordicas dificulta, em parte,
a construo de um panorama geral das atuaes de Canhoto em disco, ficando necessrio
relacionar grande parte das gravaes aos principais grupos que participou. Segundo Flores
(2007) o grupo tambm atuou como Bomios da Cidade e Regional de Luiz Americano,
possibilidade que existe, porm no tivemos tempo de realizar uma audio mais detalhada
ficando para outra oportunidade essa averiguao. Henrique Cazes nos contou em entrevista
que Carmem Miranda chegou a gravar com o regional de Benedito Lacerda sem a presena do
flautista, pois a cantora preferia introdues executadas por clarinete.
O ano de 1946 marcado pelo incio da famosa e polmica parceria entre Lacerda e
Pixinguinha, que passava por problemas pessoais, e pela entrada no regional de Gilson Freitas
no pandeiro. Desde a primeira metade da dcada de 1940, Pixinguinha atravessava momentos
difceis na vida pessoal. Era cada vez menos requisitado para gravaes, tinha problemas
financeiros e com o lcool que se agravavam, alm da fase de adaptao devido a mudana da
flauta para o saxofone. Aps fechar um contrato com a RCA Victor e a Editora Irmos Vitale,
Lacerda firma um acordo com Pixinguinha onde ganharia parceria em todas as msicas que
fossem gravadas pela dupla mesmo as composies mais antigas onde a contribuio do
flautista era inexistente. O resultado da parceria foram um total de 34 gravaes entre os anos
de 1946 e 1951, alm da edio de 25 msicas realizadas pela Irmos Vitale. Entre as
gravaes antolgicas esto Sofre porque queres e 1x0 (Victor 80-0442-a), Naquele tempo
(Victor 80-0447-a), dentre outras. Interessante o fato de algumas composies como
Cochichando (Pixinguinha), Atraente (Chiquinha Gonzaga) e Urubu malandro (domnio
pblico) terem sido registradas ao vivo no programa Pessoal da Velha Guarda de Almirante
em 1947, no sendo lanadas em disco no perodo.
Segundo Cabral (2007), Lacerda foi bastante criticado na poca, sendo acusado de se
aproveitar da situao difcil enfrentada por Pixinguinha que nos anos seguinte conseguiu
quitar suas dvidas com o dinheiro referente ao contrato. O autor tambm cita um depoimento
de Canhoto Zuza onde o cavaquinista defendia seu companheiro de grupo, caracterstica
esta que tambm observamos em outro momento marcante na histria dos regionais.
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Pixinguinha estava esquecido, ningum falava dele. Benedito combinou: faziam os discos, mas ele entrava na parceria. Muitas pessoas meteram o pau no Benedito, mas no tinham razo. Ele foi franco. Iam tomar a casa do Pixinguinha. A o Benedito Lacerda foi ao Vitale e arranjou o dinheiro para o Pixinguinha ficar em dia. (Depoimento de Canhoto Zuza Apud Cabral, 1997:182)
A sada de Benedito Lacerda da Rdio Tupi em 1951 faria com que os msicos de seu
ento regional ficassem desempregados, situao que logo mudaria sob a liderana de
Canhoto. Entendamos melhor o caso a partir da entrevista dos msicos veiculada na Revista
do Rdio de n 78 do ano de 1951. Benedito havia alcanado um prestgio muito grande junto
sociedade brasileira com suas composies para o carnaval, alm de sua atuao junto ao
seu regional. Em 1949 foi eleito presidente da SBACEM (Sociedade brasileira de autores,
compositores e editores), onde pode estreitar laos polticos com Getlio Vargas e, mais tarde,
Caf Filho na luta pelos direitos autorais.
No final dos anos 1950 comeou a se afastar de suas atividades musicais devido ao seu
cncer de pulmo, passando a acompanhar seu amigo, Ademar de Barros em sua campanha a
presidncia da repblica. O ento candidato a presidncia e criador do Partido Social
Progressista (PSP) tinha em sua agremiao um departamento musical com grandes nomes da
msica popular como Benedito, Herivelto Martins, Ataulfo Alves alm de uma empresa
especializada em marketing poltico, segundo Cotta (2008). O departamento musical foi
responsvel por compor e gravar msicas para promover a campanha de Ademar como Mar
de Rosas e Caixinha abenoada. Chegou a disponibilizar um jatinho ao flautista para que ele
pudesse comparecer aos compromissos de campanha poltica do candidato e, respaldado pelo
seu carisma junto a populao, angariar mais votos. Encontramos duas citaes sobre a
aeronave que foi comprada por Benedito e Herivelto Martins, com o objetivo de transport-
los em excurses e depois vendida por Herivelto para compra de um nibus (Revista do
Rdio, n 206).
Canhoto e os outros msicos reclamavam do desinteresse de Lacerda com o grupo
desde o incio da campanha poltica, declarando: vrias vezes fui chamado direo para
explicar as faltas dele e em uma ocasio fomos surpreendidos com uma multa afixada na
tabela de servios imposta a Benedito por faltar aos programas (Revista do Rdio, n 78).
Importante observarmos no trecho acima a posio de liderana e responsabilidade na
ausncia de seu ento lder, alm de adotar uma postura firme ao defender os outros msicos,
incluindo o prprio flautista. Na continuao da entrevista, Canhoto argumenta novamente
sobre os atrasos de Lacerda: procurei sempre melhorar a situao, mas houve um instante em
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que os artistas tambm cansaram de ver sempre o regional desfalcado e eu apenas ensaiando
os seus nmeros (Revista do Rdio, n78).
Outra questo, que tambm contribuiu para o rompimento de Lacerda e os outros
msicos de seu regional: os msicos haviam pedido a Benedito que propusesse ao diretor da
Rdio Tupi na poca, Dr. Jos Mauro, um aumento salarial que no aconteceu. Lacerda teria
ento proposto ao grupo que no renovariam o contrato e ficariam de frias por um ms,
retornando com contrato em outra emissora de rdio. O acordo foi aceito por Canhoto e seus
companheiros, mas depois de passados dois meses, o rompimento foi inevitvel. Em tom de
indignao, Canhoto retrucava o jornalista dizendo: como voc deve ter compreendido,
Benedito ao deixar a Tupi no se preocupou em conseguir outro compromisso para
trabalharmos. Eu tenho emprego [fiscal da Unio Brasileira de Compositores, UBC], o Meira
leciona violo, mas os outros, Dino e Gilson, no tem outra coisa para viver! (Revista do
Rdio, 1951).
O posicionamento de liderana de Canhoto assumido frente deciso de abandonar
um famoso conjunto para montar um novo, de defesa a seus companheiros desempregados
alm, obviamente, do respeito dos outros integrantes por Waldiro (mais antigo membro do
grupo naquele momento) foram fatores decisivos para que Dino, Meira e Gilson confiassem a
Canhoto a direo do novo regional.
O conjunto passa a se chamar Canhoto e Seu Conjunto, juntando-se a eles o notvel
flautista Altamirro Carrilho, e assina contrato com a Rdio Mayrink Veiga em 1951. J na
PRA-9, Luiz Gonzaga indicaria o acordeonista Orlando Silveira para integrar o conjunto que
ganhava, assim, a formao que ficaria eternizada em nossa msica popular. Surgia ento o
que segundo Prata ficou conhecido como modelo de regional por excelncia o Regional do
Canhoto 15. O grupo tinha uma sonoridade bastante caracterstica com a presena do
acordeom de Orlando, fosse na execuo de melodias ou nos acompanhamentos, alm de ser
tambm nessa poca que Dino comea a utilizar o violo de sete cordas.
15 A histria dos Regionais. Em: < http:// www.samba-choro.com.br > Acesso em: 3 Mai. 2013.
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1.2.3. Canhoto e Seu Regional
A formao era extremamente verstil para acompanhar diversos gneros musicais e
contava com a experincia do trio Dino-Meira-Canhoto alm dos j citados Altamiro na
flauta, Orlando no acordeom e Gilson no pandeiro. O nvel das gravaes e apresentaes era
extremamente elevado pelo fato da maioria dos msicos saberem ler partituras e/ ou cifras,
exceto Canhoto e Gilson, o que possibilitavam a execuo de arranjos mais trabalhados como
Fotografia 8 - Matria veiculada na Revista do Rdio sobre o rompimento de Dino, Meira, Canhoto e Gilson com Benedito Lacerda. N 78 (1951). Fonte Hemeroteca da Biblioteca Nacional
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no caso do choro Conversa Mole (RCA Victor 80-1440-a) do maestro Radams Gnatalli
(Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978). Tambm foram integrantes do grupo os flautistas
Arthur Atade e Carlos Poyares e os panderistas Jorginho do Pandeiro e Herclio
(respectivamente na ordem de substituio). Em entrevista jornalista Nana Vaz, Jorginho do
Pandeiro comenta sobre sua participao e da qualidade do Regional do Canhoto.
verdade. Era to bom o conjunto que as gravadoras mudavam o horrio das gravaes s para poder gravar com o Regional do Canhoto. O conjunto era muito solicitado. Todos os cantores queriam gravar com a gente. Todo mundo gravava com o Regional do Canhoto. O Luiz Gonzaga gravou tanto com eles com o Regional antes de eu entrar que deu um violo para o Dino, um violo para o Meira, um cavaquinho para o Canhoto e um pandeiro para o Gilson, que foi o pandeirista antes de mim. Porque todo disco do Luiz Gonzaga voc encontra l: Regional do Canhoto. (Entrevista a Nana Vaz16)
De fato o regional fez grande sucesso, sendo constantemente notcia nos peridicos
destinados ao rdio na dcada de 1950, fato que no era comum para um regional. O Novo
lbum do Rdio (1954, n5) destinou uma pgina para apresentao do conjunto, dando
destaque a sada do conjunto de Benedito e para uma curiosidade sobre um princpio
disciplinar do ento chefe do grupo, Canhoto, em relao a atrasos: uma caixinha onde as
multas relacionadas aos eventuais atrasos eram depositadas e, posteriormente, dvidas entre os
integrantes. A Revista Carioca de 23/01/1954 trazia na coluna Variedades Musicais os
melhores do ano de 1953, tendo Canhoto e Seu Conjunto como vencedores do prmio de
melhor conjunto internacional [instrumental?] 17. O prmio seria mais uma vez destinado ao
grupo no ano seguinte atravs de outra revista, a TV Show, em seu primeiro nmero. Alm
dos peridicos especializados sobre o mundo do Rdio e suas celebridades, o regional
tambm era assunto em outras revistas como o Jornal das Moas (14/01/1954) peridico
especializado em assuntos femininos da poca como moda, economia domstica, poemas,
piadas, etc.
A discografia do grupo se divide de acordo com as funes que executavam nas
gravaes: a de acompanhadores e de artistas principais.