Download - despersonalização
-
7/23/2019 despersonalizao
1/191
-
7/23/2019 despersonalizao
2/191
DEBATES PERTINENTES
para entender a sociedade contempornea
Volume 1
-
7/23/2019 despersonalizao
3/191
Pontif cia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
Chanceler:
Dom Dadeus Grings
Reitor:Joaquim Clotet
Vice-Reitor:
Evilzio Teixeira
Conselho Editorial:
Antnio Carlos HohlfeldtElaine Turk Faria
Gilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoJaderson Costa da Costa
Jane Rita Caetano da SilveiraJernimo Carlos Santos Braga
Jorge Campos da CostaJorge Luis Nicolas Audy (Presidente)
Jos Antnio Poli de FigueiredoJussara Maria Rosa Mendes
Lauro Kopper FilhoMaria Eunice Moreira
Maria Lcia Tiellet NunesMarlia Costa Morosini
Ney Laert Vilar CalazansRen Ernaini Gertz
Ricardo Timm de SouzaRuth Maria Chitt Gauer
EDIPUCRS:
Jernimo Carlos Santos Braga DiretorJorge Campos da Costa Editor-chefe
-
7/23/2019 despersonalizao
4/191
Hermlio Santos
Organizador
DEBATES PERTINENTES
para entender a sociedade contempornea
Volume 1
Porto Alegre2009
-
7/23/2019 despersonalizao
5/191
EDIPUCRS, 2009
Capa: Deborah Cattani
Diagramao: Stephanie Schmidt Skuratowski
Reviso: Rafael Saraiva
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
D286 Debates pertinentes : para entender a sociedade
contempornea [recurso eletrnico] / org. HermlioSantos. Dados eletrnicos. Porto Alegre: EDIPUCRS,2009.v.
Modo de Acesso: World Wide Web:
ISBN 978-85-7430-938-5
1. Cincias Sociais. 2. Sociologia. 3. Sociedade SculoXXI. 4. Antropologia Social. I. Santos, Hermlio. II. Ttulo.
CDD 301.24
Ficha Catalogrfica elaborada peloSetor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS
Av. Ipiranga, 6681 - Prdio 33Caixa Postal 1429
90619-900 Porto Alegre, RS - BRASILFone/Fax: (51) 3320-3711
E-mail: [email protected]://www.edipucrs.com.br
mailto:[email protected]://www.edipucrs.com.br/http://www.edipucrs.com.br/mailto:[email protected] -
7/23/2019 despersonalizao
6/191
SUMRIO
Apresentao ........................................................................................................ 6
Hermlio Santos
Justia social e democracia na modernidade perifrica .................................. 7
Emil Sobottka
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica .................. 25
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociedades complexas e polticas pblicas .................................................... 41Hermlio Santos
Propaganda Poltica, Partidos e Eleies ........................................................ 68
Marcia Ribeiro Dias
Poltica e integrao na Amrica do Sul .......................................................... 88
Maria Izabel Mallmann
Pentecostais e poltica no Brasil: do apolitismo ao ativismo
corporativista .................................................................................................... 112
Ricardo Mariano
Mercado Religioso e a Internet no Brasil ....................................................... 139
Airton Jungblut
Antropologia das instituies e organizaes econmicas ......................... 155Lcia Mller
H limites para a Sociologia do Conhecimento em uma Sociedade do
Conhecimento ? .............................................................................................. 176
Lo Peixoto Rodrigues
-
7/23/2019 despersonalizao
7/191
6 Hermlio Santos (Org.)
Apresentao
Com este volume iniciamos a publicao da srie Debates Pertinentes. Um
conjunto de trs livros dedicados a analisar, por um lado, temas importantes para
a compreenso das sociedades contemporneas, por outro lado, a contribuio
de autores clssicos e contemporneos, tanto da sociologia, da cincia poltica
quanto da antropologia, para a compreenso desses temas. Trata-se de uma
iniciativa do Departamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-Graduao
em Cincias Sociais da PUCRS em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre.
Os textos publicados neste primeiro volume, cujo subttulo Para entender a
sociedade contempornea, foram apresentados em um seminrio realizado entre
os dias 9 e 12 de junho de 2008 no auditrio do Goethe-Institut de Porto Alegre,
espao reconhecido por fomentar o debate pblico e por tornar a pesquisa
acadmica acessvel tambm comunidade no acadmica.
O Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da PUCRS, que
passa a contar com o Doutorado a partir de 2010, vem ocupando um espao
importante na produo das cincias sociais no Brasil, expresso, dentre outros
indicadores, pela avaliao positiva que vem sendo conferida pela CAPES,quanto pelo papel ocupado pela Civitas Revista de Cincias Sociais, publicada
pelo PPGCS da PUCRS. Este primeiro volume da srie Debates Pertinentes
pretende dar maior visibilidade contribuio dos professores e pesquisadores do
PPGCS para o entendimento de problemas sociais contemporneos, ao analisar
temas sociais relevantes e que constituem objeto de pesquisas conduzidas pelos
professores do PPGCS. Nesse sentido, a publicao da presente coleo tem
como objetivo consolidar a contribuio terica e de estudos empricosconduzidos recentemente pelos autores. Alm disso, a coleo visa oferecer
instrumental analtico para introduzir o leitor iniciante em temas e teorias de
sociologia, antropologia e cincia poltica. Trata-se de uma obra que poder ser
utilizada tanto nos cursos de graduao, quanto ainda do ensino mdio e em
certa medida tambm no ensino de ps-graduao, na medida em que alguns
autores que sero apresentados (sobretudo no Volume 2 desta coleo) possuem
poucas obras de referncia publicadas no Brasil.Hermlio Santos Organizador
-
7/23/2019 despersonalizao
8/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica
Sobre a distribuio da riqueza socialmente produzida
Emil A. Sobottka1
O ttulo dado a esta apresentao, sugerido dentro da proposta de debates
pertinentes que ajudem a compreender a sociedade contempornea, foi justia
social e democracia na modernidade perifrica. O subttulo especifica a temtica,
ao apontar para a questo sobre como se distribui a riqueza produzida em
sociedades modernas. Assim, os trs grandes conceitos: justia social,
democracia e modernidade perifrica podem confluir para a questo da
distribuio da riqueza produzida socialmente.
A referncia para refletir sobre a sociedade contempornea a
modernidade clssica, aquele modo de organizar a vida que surgiu em
substituio ao perodo medieval. Trata-se de uma forma de organizar as relaes
sociais que tem entre seus traos mais caractersticos estar constantemente em
mudana. Alguns autores interpretam algumas mudanas particulares como se
elas indicassem a superao desse modelo de sociedade e o surgimento de umnovo tipo; isso tem permitido a esses autores propor que a atualidade seja uma
modernidade tardia, uma ps-modernidade, uma hiper-modernidade. Mas mesmo
esses autores retornam modernidade clssica como sua referncia para
dimensionar as transformaes.
Na questo de como se distribui a riqueza socialmente produzida e como
se estruturam as relaes sociais, tambm eu gostaria de comear com uma
reflexo sobre aquilo que, pelo menos classicamente, se reivindica como asituao normal dentro da sociedade moderna. Comeo analisando a ideia do
trabalho como a forma central tanto de alocar a riqueza produzida socialmente
como tambm o eixo constitutivo, estruturador central das relaes dentro da
sociedade moderna.
1Doutor em Sociologia e Cincia Poltica, pesquisador do CNPq e professor do PPG em Cincias
Sociais da PUCRS. O texto apresenta resultados parciais da pesquisa Reconhecimento, cidadaniae democracia: Direitos sociais e poltica social no Brasil e na Alemanha nas ltimas duas dcadas,apoiada pelo CNPq e pelas Fundaes Humboldt e Thyssen.
-
7/23/2019 despersonalizao
9/191
8 Emil A. Sobottka
Trabalho e distribuio da riqueza socialmente produzida
Diferente de outros perodos histricos, na sociedade moderna, em
especial aquela que se fez modernidade capitalista, o trabalho foi transformado no
centro gerador e estruturador dessas duas dimenses da sociedade. Na obra
denominada Princpios de filosofia do direito, um escrito do perodo da
maturidade, Hegel reflete explicitamente sobre a questo de como a sociedade
moderna que se torna individualizada, que vai perdendo certos vnculos
tradicionais externos, pode encontrar novos fundamentos para se estruturar e
tambm novos critrios para que as pessoas possam construir nela sua
identidade. Hegel v no trabalho o lugar social desses dois processos. O trabalho
visto a partir do homem que se encontra face natureza e, mediante sua
transformao, produz a partir dela meios para suprir as suas necessidades.
Nessa sociedade, porm, a base do trabalho no mais o artesanato, como em
perodos histricos anteriores, e sim a diviso social e tcnica: as pessoas no
fazem mais "de tudo um pouco", segundo as necessidades concretas, mas se
especializam em determinadas atividades. No conjunto tornou-se possvel
produzir muito mais diz-se que aumentou a produtividade , mas as pessoasindividualmente passam a concentrar-se crescentemente sobre um nmero
restrito de procedimentos. Para diversos tericos esse novo trabalho pareceu
muito centrpeto, dispersivo, individualizante, e colocou a pergunta pelo modo
adequado de manter unida a sociedade agora sem os vnculos tradicionais.
Quando Hegel d ao trabalho esse lugar central nas relaes sociais, ele
no se refere ao avano tcnico, ao aumento da produtividade. Se isso fosse a
caracterstica central da nova forma de trabalho nessa sociedade moderna ecapitalista, ela seria extremamente pobre. Hegel, ao contrrio, v nessa nova
modalidade de transformar a natureza em satisfao das necessidades uma base
tica (Honneth, 2008). A pessoa que trabalha no produz mais o produto na sua
integridade e tambm no se apropria apenas da quantidade de produtos que ela
produziu para suprir as suas necessidades; agora ela est inserida em processos
atravs dos quais contribui para as necessidades dos outros e os outros
contribuem para as suas necessidades. Assim forma-se uma interdependnciaque, segundo Hegel, deveria motivar os indivduos a deixarem o seu cio, a sua
-
7/23/2019 despersonalizao
10/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 9
preguia de lado e a trabalharem para que, com os frutos do seu trabalho,
pudessem contribuir para a satisfao das necessidades tambm dos outros.
Assim, esse autor constri uma ponte tica que ele julga ser capaz superar o
comodismo, a eventual vontade de curtir o cio indeterminadamente, para dar
uma contribuio social. Nessa viso, no so as necessidades como tais que
impelem o homem a trabalhar, num sentido mais animalesco, e sim o
compromisso tico com a coletividade. Mas o novo lugar que o trabalho ocupa na
sociedade no compromete eticamente de forma unilateral o indivduo com a
coletividade. Segundo Hegel, a sociedade deve corresponder a essa disposio
do indivduo, permitindo que ele receba o suficiente para sustentar
adequadamente a si e a sua famlia. Ou seja, o indivduo que renunciar liberdade de curtir o cio e se dispor a contribuir com o trabalho para a satisfao
das necessidades de outros membros da sociedade tem direito expectativa
fundada de ter supridas as suas necessidades dele e de sua famlia, altura
das prticas usuais no seu tempo e contexto. Dessa forma cria-se um sistema de
interdependncia e se estabelece um critrio, uma medida padro para alocao
das riquezas em sociedade. Esse esquema de argumentao revela uma
proximidade com o contratualismo: ao invs de o indivduo tentar viver o mximodo cio possvel e apenas se contentar com alguma transformao da natureza
para as suas necessidades, ele cede parte de sua liberdade para receber em
troca um grau maior de satisfao das necessidades, suas e de sua famlia. Hegel
introduz aqui uma dimenso que ser vista com muita frequncia na discusso
das relaes econmicas na sociedade moderna: a ideia de que, de alguma
forma, a famlia e no s o indivduo ocupa um lugar importante nas relaes de
trabalho.Essa reflexo de Hegel foi apropriada por Marx de um modo muito
especfico, colocando as relaes de produo no centro da estruturao da
sociedade. A sociedade capitalista, que para ele eclipsa a sociedade moderna,
tem um modo peculiar de alocao da riqueza: os proprietrios dos meios de
produo ficam com quase tudo e trabalhadores, que na viso dele so os
efetivos produtores da riqueza, ficam com to pouco, que insuficiente para viver
e sustentar a famlia. Mudanas no modo de produzir que, em linguagem atual,
podem ser chamados de avanos tecnolgicos permitiram um aumento da
-
7/23/2019 despersonalizao
11/191
10 Emil A. Sobottka
gerao de valor, de riqueza. Mas o poder maior dos proprietrios dos meios de
produo, dos donos da indstria, na hora de barganhar o preo da fora de
trabalho, faz com que eles possam ficar com uma parcela muito maior da riqueza
e pagar uma parcela menor para aqueles que vendem sua fora de trabalho. A
dificuldade que Marx tem nesse contexto encontrar critrios aceitveis para uma
distribuio diferente. Para ser aceitvel, numa sociedade moderna, um critrio
deve satisfazer vrias condies um dos principais no ser aleatrio. Para
diversos autores, como Axel Honneth (2008), os critrios precisam ser internos ao
prprio processo social em questo. Intuitivamente, com base no bom senso,
talvez seja possvel argumentar em favor de uma distribuio mais equitativa. Mas
um critrio aceitvel precisa ser consistente em termos tericos. E Marx temdificuldade em apresentar uma boa argumentao que fundamente como deveria
ser a distribuio da riqueza.
A argumentao feita por Hegel pode no ser convincente na atualidade,
mas ela tinha uma importncia para a sociedade do seu tempo: era uma
fundamentao interna ao prprio processo. No momento em que o indivduo
cede algo que ele no precisaria ceder no caso, uma parte da sua liberdade e
se dispe a trabalhar e assim a cooperar com o bem coletivo, ele tem direito a tera expectativa de receber dessa coletividade algo em troca. Marx no levou
suficientemente a srio a necessidade de uma fundamentao, mas essa hoje
uma exigncia central em quase toda teoria social. A atividade terica dele tem
sido muito mais produtiva em diagnosticar patologias sociais do que em
apresentar critrios aceitveis com os quais pudessem ser fundamentadas
exigncias de mudana social.
Um autor que trabalhou mais nessa argumentao hegeliana foi EmileDurkheim (1984). Ele no foi muito explcito nesse sentido, mas no difcil
encontrar nele o parentesco com Hegel atravs daquilo que Max Weber
denominou de afinidades eletivas. Durkheim retoma a ideia do trabalho como um
dos pontos centrais da sociedade moderna em seu estudo sobre a diviso do
trabalho social, e tenta demonstrar como o trabalho cria solidariedade mesmo na
sociedade moderna individualizada e com diviso tcnica do trabalho. Segundo
ele, o trabalho tradicional criava um tipo de solidariedade mecnica, por imitao,
que no correspondia mais aos tempos modernos. Mas ele, tal como Hegel,
-
7/23/2019 despersonalizao
12/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 11
julgava infundado o temor de que a sociedade se decomporia em uma infinidade
de indivduos isolados. Exatamente a interdependncia da diviso tcnica do
trabalho na qual so necessrias muitas pessoas realizando tarefas parciais
para produzir determinado produto e da diviso do trabalho social na qual as
diversas funes necessrias ao bom andamento da sociedade esto
amplamente distribudas, mas de algum modo coordenadas entre si geraria um
tipo novo de solidariedade, especifico da modernidade: a solidariedade orgnica.
Tudo isso bastante conhecido. Menos conhecido possivelmente seja que
na teoria de Durkheim h uma reflexo sobre a fundamentao tica que esse
novo processo de estruturao das relaes sociais atravs do trabalho exigiria.
Em sintonia com a tradio liberal, ele coloca a igualdade de condies comoponto de partida eticamente normativo. Nessa tradio, a igualdade da formao
para o desenvolvimento pleno das habilidades vocacionais profissionais permitiria
que todas as pessoas tivessem na sua juventude, no momento da definio da
sua carreira profissional, a oportunidade de ter uma formao que as habilitasse a
competir no mercado em condies de igualdade e, acima de tudo, a realizar
plenamente a sua vocao e no ser frustrado nela. Isso seria, a rigor j por
antecipao, um dever da sociedade para com o indivduo, para que ele possacontribuir com ela melhor depois. Seria quase como uma hipoteca que a
sociedade j coloca para o indivduo e tem depois a expectativa fundada de
receber a sua contribuio de volta.
Um segundo ponto que, pelo menos na tradio das cincias sociais, se
enfatiza pouco na leitura de Durkheim, sua defesa de uma remunerao do
trabalho segundo o seu valor para a sociedade. Quase l no final da obra A
diviso do trabalho social(Durkheim, 1984, v. 2) h todo um subcaptulo que tratadessa questo. Nele o autor defende que trabalho no pode ser remunerado
segundo os humores do mercado, de quem contrata o trabalho do assalariado,
mas deve ser recompensado segundo aquilo que esse trabalho contribui para a
sociedade. Portanto, o que deveria orientar a distribuio da riqueza no o valor
de mercado, mas sim a importncia da funo que aquele trabalho tem dentro da
sociedade. Isso aproxima a argumentao de Durkheim da tese hegeliana do
direito a uma compensao adequada para a renncia feita pelo indivduo ao
deixar o cio e contribuir para o bem de todos.
-
7/23/2019 despersonalizao
13/191
12 Emil A. Sobottka
Um terceiro ponto que Durkheim coloca nesse contexto merece ser
enfatizado. Segundo ele, necessrio que o trabalhador possa sentir dentro do
prprio processo de trabalho que ele est dando uma contribuio para a
sociedade. O oposto aparece no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin
(1936), que mostra a pessoa sendo reduzida a um trabalho extremamente
rotineiro, no qual quase no precisa usar mais a sua cabea para pensar; ela
apenas precisa cumprir a rotina com eficcia. Durkheim, ao contrrio, reivindica
uma tica, segundo a qual as atividades devem ser divididas de tal modo que
quem as executa possa perceber dentro do prprio processo de trabalho que est
dando uma contribuio para a sociedade. H tambm aqui a preocupao de
no buscar externamente, como na tradio, por exemplo, uma fundamentaopara os critrios de distribuio do fruto do trabalho. Comum a Hegel aqui a
ideia de que quem trabalha consiga reconhecer dentro desse trabalho que est
dando uma contribuio para a sociedade. Talvez seja possvel dizer que nas
reivindicaes feitas por Durkheim h uma componente identitria.
Esses so apenas alguns exemplos de tericos que tm colocado o
trabalho como central para a sociedade. Central no apenas para o
desenvolvimento da economia, para o aumento da produtividade, para a geraode riquezas, mas tambm para a estruturao de relaes sociais e para a
conformao de aspectos ticos da convivncia em sociedade. Com essas
construes de critrios ticos, feitas a partir de dentro do prprio mundo de
trabalho, torna-se possvel dar respostas bem fundamentadas para a questo de
como a riqueza deveria ser distribuda socialmente. Mas a observao de
situaes histricas mostra que tem sido grande a dificuldade para cumprir esses
critrios. As razes para isso no podem ser analisadas aqui. Principalmente emmomentos de crise, quando tem ficado evidente que havia falhas na distribuio
da riqueza socialmente produzida, em muitas sociedades recorreu-se poltica
para construir critrios que justificassem formas de distribuio da riqueza que
no fosse a via da renda salarial. Essa nova forma de distribuio da riqueza
socialmente criada a poltica social.
-
7/23/2019 despersonalizao
14/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 13
Poltica social e distr ibuio supletiva da riqueza
Quando polticas sociais comearam a ser institudas, elas tiveram vrias
vertentes tericas ou polticas que buscavam justific-las. Uma das razes mais
comumente alegadas a necessidade de um complemento ou uma correo do
mercado em momentos ou situaes em que este falha na alocao da riqueza.
Dentro dessa maneira de pensar, o mercado capitalista em geral, e o mercado de
trabalho em particular, seriam o melhor instrumento para distribuir a riqueza
socialmente produzida. Apenas quando houver algum distrbio grave seria
eticamente justificvel e, portanto, aceitvel uma interveno corretiva. Essa
interveno em regra delegada ao estado, para que ele faa algum
complemento ou que ajude a superar a situao que o mercado
momentaneamente no conseguiu gerir.
Alm dos momentos de crise, outra rea admitida como justificada para
polticas sociais a cobertura de certos riscos do ciclo de vida. Um desses riscos
previsveis o perodo em que, em tese, cessaro as foras para o trabalho. Para
cada trabalhador estatisticamente previsvel o prazo normal, dentro de
determinada sociedade, at quando ele ter foras para trabalhar e se sustentar;a questo que se coloca : o que vir depois disso? Como ele sobreviver depois
de findo seu ciclo de vida profissional, para no recair na dependncia de
terceiros, que um dos grandes temores do indivduo emancipado na
modernidade? A seguridade social uma instituio que permite ao indivduo que
ele prprio seja previdente, que faa alguma contribuio a algum fundo, ou que a
coletividade reserve uma parte da riqueza social, e assim o trabalhador tenha
assegurado o direito a receber o seu sustento vitalcio quando deixar a vidalaboral. Essa poltica a aposentadoria que muitas vezes extensiva a
determinados membros da famlia na forma de penso. Atravs dessa poltica
haver uma alocao de uma parcela da riqueza social para que aquela pessoa
que contribuiu para o bem da sociedade com seu trabalho possa viver e
envelhecer dignamente.
H outros riscos do ciclo da vida que so previsveis no conjunto de uma
populao, mas dificilmente podem ser individualizados como enfermidade edesemprego. Entre as primeiras polticas sociais em diversos pases figuram
-
7/23/2019 despersonalizao
15/191
14 Emil A. Sobottka
aquelas que buscavam responder preocupao com a continuidade da renda, e,
com isso, a possibilidade de seguir dando sustento famlia nos casos de
impossibilidade de trabalhar devido a uma enfermidade ou ao desemprego. Hoje
a preocupao com o custo do tratamento de sade ocupa o lugar central, mas
nas primeiras polticas sociais de sade a questo era a interrupo da
remunerao que afetava diretamente a satisfao das necessidades do
trabalhador e de sua famlia. H razes histricas para que os custos do
tratamento de sade passassem a esse lugar central, como maior valorizao da
longevidade e o aumento do prprio custo dos tratamentos pela incorporao de
tecnologia, pela maior abrangncia dos tratamentos possveis e assim por diante.
Outro momento em que a poltica social pode cobrir riscos o dodesemprego. Dentro de certo nvel de flutuao macroeconmica, o desemprego
considerado normal; ele faz parte da coordenao de oferta e procura pelo
mercado. Mas mesmo que na teoria econmica se considere normal uma
pequena oscilao nos nveis de emprego, quando o desemprego afeta o
indivduo, ocorre uma interrupo na renda que pode ameaar a sua
sobrevivncia. Para assegurar a continuidade na satisfao das suas
necessidades e de sua famlia, mesmo a tradio liberal passou a aceitar algumaforma de suprimento dessas necessidades via poltica social.
Mas h tambm outra reivindicao na poltica social, uma utopia mais
prxima da vertente socialista, de que a poltica social possa decomodificar as
relaes de trabalho. Essa expresso, usada por Esping-Anderson (1990), talvez
fique mais compreensvel se utilizada em outro contexto: o do mercado de gros,
minrios ou petrleo. Dentro desse contexto, commodityse refere a um produto
com caractersticas genricas, mais ou menos igual em qualquer lugar do mundo.Ele tem pouca variao e, portanto, no apenas seu preo ser relativamente
igual, mas pode ser trocado por outro sem maiores consequncias. A commodity
fora de trabalho num mercado capitalista pode chegar a este extremo em que
as pessoas que trabalham so intercambiveis porque aquilo que elas tm a
oferecer, a sua fora de trabalho, passa a ser considerado como uma mercadoria
qualquer, que pode trocar por outra em qualquer momento. Isso valia por muito
tempo principalmente naquelas atividades em que a qualificao, a experincia ou
a habilidade tcnica tinham uma importncia menor. Hoje, cada vez ampliam-se
-
7/23/2019 despersonalizao
16/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 15
mais as reas de atuao em que a fora de trabalho passa a ser tratada como
uma commodity. A consequncia que to logo houver uma oferta um pouco
mais barata, ela substituda. A utopia de uma poltica social que decomodifique
o trabalho seria associar no ao trabalho, mas pessoa que o executa o direito
de participar da riqueza da sociedade de tal modo, que ela no dependa direta e
exclusivamente do mercado de trabalho para satisfazer as suas necessidades. A
proposta no que o cio fosse permanente, que a pessoa deixasse de trabalhar;
a ideia que a pessoa tivesse condies de rejeitar ofertas de trabalho
consideradas atentatrias a sua dignidade enquanto pessoa ou indignificantes da
riqueza socialmente produzida porque a contrapartida proposta em forma de
remunerao muito baixa. Portanto, uma poltica social decomodificadora dotrabalho criaria a situao na qual as pessoas poderiam ficar tanto tempo sem
trabalhar at que alguma oferta no mercado de trabalho estivesse altura de sua
dignidade enquanto pessoa e enquanto produtoras de riqueza. No difcil
perceber que essa reivindicao tem um horizonte utpico, ainda relativamente
distante. Mas ao mesmo tempo interessante observar que h pases que se
aproximaram razoavelmente desse tipo de situao.
As polticas sociais na grande maioria dos pases no ocidente capitalista seja na Europa, nos EUA ou no Brasil esto vinculadas condio de
trabalhador formal; no Brasil, inclusive, por dcadas muitos direitos relativos
poltica social beneficiavam apenas o trabalhador urbano. Alguns poucos pases,
em especial os escandinavos, orientaram sua poltica social para o cidado, sem
restringi-la ao vendedor da fora de trabalho. Com isso eles criaram espaos mais
amplos de autonomia do cidado para escolher onde ele se inserir no mercado
de trabalho modestos quando comparados aos ideais utpicos de umareumanizao plena da mercadoria fora de trabalho, mas uma valorizao do
cidado.
A poltica social coloca na pauta da discusso pblica a questo da
distribuio da riqueza socialmente produzida e, assim, a pergunta pela justia
social. No se pode fazer poltica social sem confrontar-se com a questo sobre o
que aceitvel como socialmente justo, sobre como deve ser distribuda a
riqueza socialmente produzida e como devem ser supridas as necessidades das
pessoas dentro da situao biolgica, cultural e social da sociedade especfica.
-
7/23/2019 despersonalizao
17/191
16 Emil A. Sobottka
Cada sociedade se confronta, ademais, com a questo sobre como agir nas
situaes em que a pessoa no tem possibilidade de suprir suas necessidades
autonomamente.
Uma contribuio interessante para essa questo feita por Claus Offe
(2005). Para esse autor existem trs princpios de justia social: ajuda,
previdncia e direito de cidadania. O princpio da ajudaimplica em que a pessoa
com necessidade tem direito a receber ajuda, e sua comunidade tem o dever
moral de ajud-la. A tradio de ajuda aos pobres milenar (Geremek, 1991), e
no Ocidente ela esteve fortemente vinculada tradio crist; hoje
crescentemente esse dever moral de ajudar o prximo em necessidade visto
como um compromisso humanitrio. O princpio da ajuda ao necessitado, noentanto, no serve como regra geral para a distribuio da riqueza na sociedade.
A riqueza na sociedade moderna no se distribui por sentimentos interindividuais;
para contrapor-se ao acmulo privado so necessrias regras mais abrangentes e
bem fundamentadas, so necessrias instituies que deem suporte aos
princpios da igualdade e da fraternidade.
O princpio da previdncia est amplamente presente na poltica social e se
refere a uma relao em que atravs de uma contribuio prvia o indivduoadquire o direito a receber dessa proviso uma remunerao. Exemplos so os
seguros sociais, os fundos mutualistas, a previdncia social. Face ao fato que
certos riscos da vida tm um grau razovel de previsibilidade de virem a ocorrer,
pode-se instituir formas coletivas de contribuio para um fundo, e essa
participao gera o direito de receber do seguro social uma remunerao quando
for necessrio. Todos contribuem enquanto podem e aqueles que necessitam
recebem segundo critrios previamente estabelecidos. Esse princpio tem sidocomum para antecipar-se ao desemprego, a situaes de doena e ao perodo de
aposentadoria. Os seguros sociais geralmente so amparados por legislaes
nas quais o estado define e zela pelo cumprimento das regras e tambm d seu
aval como garantidor ltimo para as situaes em que as necessidades de
desencaixe forem maiores que os fundos acumulados. Eles diferem dos seguros
comerciais porque no se orientam por categorias definidoras de risco, mas
contm uma dimenso redistributiva da riqueza na medida em que a contribuio
-
7/23/2019 despersonalizao
18/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 17
se orienta pela renda e a definio do benefcio se orienta principalmente pela
necessidade.
Dentro do princpio da previdncia h uma variante impulsionada por
liberais que tm dificuldade em aceitar a socializao dos riscos e benefcios: a
previdncia individual que segue o clculo atuarial. Essa forma de previdncia
pode ter uma dimenso distributiva indireta, por exemplo, via incentivos fiscais
para a capitalizao, mas se orienta fortemente pela relao entre contribuio e
benefcio, deixando em plano secundrio a necessidade do beneficirio.
Aposentadorias complementares e planos de sade no Brasil tm esse carter. A
contribuio independe da renda, mas se orienta pela expectativa do futuro
benefcio, enquanto no seguro social, ao contrrio, a dimenso redistributivaprepondera.
O terceiro critrio de justia social mencionado por Offe o direito de
cidadania.
A agregao de direitos sociais cidadania ocorreu basicamente ao longo
do sculo 20. Uma de suas origens foi a responsabilidade que sociedades
europeias assumiram para com ex-combatentes que perderam a capacidade para
o trabalho e/ou familiares de combatentes mortos na guerra. Outra, sistematizadapor T. H. Marshall (1967) para o caso da Inglaterra, v a poltica social como
ampliao da participao nas conquistas do processo civilizatrio: os membros
da comunidade podiam esperar uma participao nas condies gerais de vida
por serem cidados daquela localidade ou regio uma noo que foi evoluindo
at tornar-se uma cidadania nacional. Segundo esse princpio, o direito a
participar da riqueza da sociedade derivado da condio de ser membro dela.
A maioria dos sistemas de poltica social, na atualidade, mesclam em maiorou menor grau esses trs princpios, mas todos eles esto presentes. Contudo,
para os defensores do mercado capitalista moderno a pergunta prioritria que se
coloca no pelo princpio de justia social, mas, sim, se a poltica social
intervm indevidamente nas regras do mercado e assim desequilibra a lei da
oferta e da procura. Nas ltimas dcadas, os defensores radicais do mercado tm
conseguido fora poltica capaz de desfazer algumas conquistas civilizatrias nas
relaes sociais feitas no sculo 20 e tornar plausveis para a esfera das relaes
de trabalho ideais dos sculos anteriores.
-
7/23/2019 despersonalizao
19/191
18 Emil A. Sobottka
Resis tncia just ia social e processos de excluso
H diversas preocupaes e temores que eram expressos j no sculo 19
e que ressurgiram mais persistentemente a partir de meados do sculo 20, na
esteira do renascimento do liberalismo conservador e que tem em Friedrich Hayek
(1987) um de seus expoentes. Um desses temores que a poltica social seja um
sustentculo da preguia; no se fala em cio, como Hegel, que um direito do
indivduo, mas em preguia, que tem conotao moral negativa e indicaria que a
pessoa no quer cumprir com seu dever de trabalhar para descansar sobre os
benefcios da poltica social. Assim, surge a exigncia de fortalecimento de
mecanismos que impeam que as pessoas se acomodem condio de
beneficiado de alguma poltica social e as forcem a voltar, pela fora de seu
trabalho, a fazer jus participao na riqueza socialmente produzida.
H outro temor, antigo, mas ainda presente na atualidade, de que o
fortalecimento dos segmentos considerados dependentes do trabalho pudesse
criar uma fora poltica que demandaria participar mais intensamente dos
assuntos pblicos; como pela sua proporo no conjunto da populao poderiam
se constituir em maiorias, eles em algum momento colocariam em risco aestabilidade da sociedade. Os defensores desse temor no consideram que
essas maiorias tenham civilidade suficiente para poder decidir sobre os destinos
da nao. Esse preconceito elitista raramente admite, hoje expressamente, ser
avesso democracia por consider-la um risco; ele aparece antes na forma de
despolitizao da poltica, como nos regimes militares da Amrica Latina do final
do sculo 20, ou de transformao da poltica social em populismo clientelista,
como se os benefcios fossem devidos generosidade do governante.Nas ltimas dcadas tambm tem sido expresso com frequncia o temor
de que a poltica social se tornaria como uma bola de neve: seus custos poderiam
at comear modestos e justificveis, mas criariam vulto at exacerbar qualquer
limite e tornar invivel a produo de riqueza; chegaria o momento em que no
apenas haveria mais consumidores do que criadores de riqueza, mas a proporo
da riqueza apropriada privadamente seria to pequena face quela dada em
benefcio da sociedade, que deixaria de haver estmulo econmico para seguirtrabalhando. Olhando a evoluo estatstica de alguns oramentos pblicos,
-
7/23/2019 despersonalizao
20/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 19
pode-se perceber efetivamente um crescimento dos gastos considerados sociais.
Contudo, uma anlise mais detalhada desses gastos pode revelar um panorama
bem mais diferenciado: nem tudo que apresentado como gasto social tem
relao com distribuio da riqueza socialmente produzida nem est em sintonia
com os princpios de justia social. No Brasil, por exemplo, a maioria dos gastos
declarados como sociais tem um efeito concentrador de riqueza; eles tiram mais
riqueza de quem tem pouco para dar mais a quem j tem muito. Quem afirma isso
um relatrio do Banco Mundial (World Bank, 2003); ele mostra, por exemplo,
como o sistema de aposentadorias no servio pblico, em particular no judicirio,
um forte concentrador de renda, que s fica atrs da poltica de juros.
Face a esses temores, principalmente temores de que os gastos sociais setornariam incontrolveis, foram lanadas diversas propostas de reformas.
Algumas pretendiam deslegitimar a reivindicao de maior participao dos
cidados na riqueza socialmente produzida para, depois, retirar das polticas
sociais suas dimenses redistributivas. Como consequncia ocorreram cortes nos
oramentos sociais e uma reorganizao das prioridades de investimentos. O
montante total de impostos arrecadados e de gastos governamentais no caiu; o
que houve foi uma diminuio proporcional dos oramentos sociais e umarealocao maior de recursos em outros lugares. Em alguns pases, como no
Brasil, pode-se observar uma migrao da riqueza social arrecadada das polticas
que beneficiavam os cidados mais necessitados em direo ao que chamado
de atrao de investimento. Ou seja, a riqueza socialmente produzida
canalizada na forma de subsdios ou de benefcios fiscais para empreendimentos
que prometem se instalar e gerar mais emprego e riqueza, assim
empreendedores forneos se apropriam por antecipao de uma riquezasocialmente produzida pela populao local com a promessa de futuramente
produzir mais riqueza. H duas distores nesse modelo de alocao da riqueza
social. Primeiro, via de regra so concedidos a esses empreendimentos amplos
benefcios fiscais, isentando-os, portanto tambm no futuro de participarem da
mais importante forma de redistribuio da riqueza socialmente produzida em
sociedades capitalistas, que so os impostos. Segundo, nos contratos de atrao
de investimento em regra no so previstas auditorias para conferir se essa
-
7/23/2019 despersonalizao
21/191
20 Emil A. Sobottka
riqueza ser realmente produzida tal como prometido, nem exigncias de
restituio da riqueza social local em caso de descumprimento das promessas.
Nas discusses pblicas sobre reformas se fazem reiteradamente
presentes propostas de maior mercantilizao do trabalho. Sugestes de reforma
em polticas sociais, na legislao trabalhista, no sistema de ensino e em outras
reas com frequncia derivam da pretenso de que as pessoas sejam
impulsionadas a estarem no mercado de trabalho, a venderem sua fora pelo
preo que o mercado quiser oferecer por ela. O resultado de muitas dessas
reformas seria uma recomodificao da fora de trabalho; no uma
decomodificao, como era a expectativa de defensores de polticas sociais, mas
uma reinsero do trabalho como commodity. Essa impulso maior presenadas pessoas no mercado de trabalho leva, segundo as leis da oferta e da procura,
a uma saturao do mercado de trabalho e a uma desvalorizao da mercadoria
fora de trabalho. A consequncia um achatamento do rendimento que o
mercado est disposto a pagar pela fora de trabalho ofertada.
Um risco adicional que haja uma reduo das possibilidades de venda da
fora de trabalho. Isso teria, para voltar a Hegel e Durkheim, a dramtica
consequncia de impedir que esses indivduos contribuam para o bem-estarsocial e assim pudessem ter a justificada expectativa de ter a recompensa de
poder suprir adequadamente as necessidades suas e de sua famlia. Talvez
nesse contexto se possa falar de riscos de excluso social, um tema
extremamente controvertido e difcil de ser definido. Niklas Luhmann (1992),
quando confrontado com as limitaes da teoria sistmica por ele concebida para
interpretar a situao concreta de alguns pases, como os da Amrica Latina e
especialmente o Brasil, formulou a tese de que em determinadas circunstnciash uma anteposio de critrios que interferem no funcionamento dos sistemas
sociais. Essa anteposio pode provocar a excluso social. A situao de
normalidade seria a incluso social: quando a pessoa depende de um sistema
social e tem acesso aos benefcios de seu desempenho. Por exemplo: em dada
circunstncia a pessoa depende de uma boa formao para participar do mercado
de trabalho e tem acesso ao sistema de formao que a prepara para o exerccio
profissional. Essa pessoa estaria, na concepo de Luhmann, includa. Ela
depende do desempenho de um sistema social e tem acesso a ele. E quando se
-
7/23/2019 despersonalizao
22/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 21
daria a excluso? Na concepo de Luhmann, excluso social no ocorre porque
a pessoa est fora da sociedade, mas quando ela depende de algo dentro da
sociedade e no tem acesso quele algo. A excluso social seria a anteposio
de uma barreira ao acesso quilo que d plenitude integrao social; seria
quando o indivduo no consegue se colocar adequadamente naquele lugar no
qual so definidas as relaes sociais importantes para ele. Se for o mercado de
trabalho, no consegue uma qualificao para o emprego; se for a formao, no
consegue um local adequado para a formao; se forem as relaes afetivas, por
alguma razo a discriminao no permite que estabelea relaes afetivas.
Quando essa situao se generaliza, quando desigualdade e excluso
social transcendem as facetas da vida em que se originaram e se reproduzem emoutros mbitos, ento possvel que se esteja naquela situao que Marcelo
Neves (1992) descreve como modernidade perifrica. Para esse autor,
modernidade perifrica a situao de um pas, de uma sociedade que reivindica
ter criado relaes sociais modernas, mas tem uma estruturao deficiente das
suas relaes sociais concretas, porque h uma anteposio que restringe ou que
facilita desproporcionalmente o acesso a recursos vitais e torna assim as
perspectivas de vida muito desiguais.Para alm da proposio de Luhmann, na qual a excluso foi definida a
partir da interdio do acesso a recursos vitais de um sistema social do qual o
indivduo depende, com base em Marcelo Neves pode-se falar de uma situao
dupla: uma anteposio que restringe ou que facilita desproporcionalmente o
acesso queles recursos vitais. Alm da possibilidade de deficincia na
organizao da sociedade de modo a produzir excluso, porque as pessoas no
conseguem acesso a recursos extremamente importantes para elas, pode haveruma anteposio de privilgios para outras pessoas de tal modo que tenham
acesso a todos os recursos vitais dos sistemas sociais sem dependerem deles;
elas podem beneficiar-se da riqueza socialmente produzida, dos bens culturais,
sociais e econmicos, sem contribuir para eles. Essas pessoas ficam acima da
responsabilidade e das restries que a sociedade moderna cria para coordenar
as relaes sociais dentro dela.
Uma sociedade em que esto institucionalizadas formas to dspares de
acesso aos recursos vitais e a validade das normas to seletiva e, por
-
7/23/2019 despersonalizao
23/191
22 Emil A. Sobottka
conseguinte, a desigualdade de uma esfera da vida se transmite tambm s
outras , no corresponde a uma sociedade moderna e democrtica, ainda que
gravite na periferia de sociedades modernas, pelas quais se orienta. Neves
designa as pessoas com facilidades desproporcionais de sobreintegradas e
aquelas que padecem com as restries desproporcionais de subintegradas.
Pode-se dizer, ento, que uma modernidade perifrica tem trs segmentos sociais
muito distintos: pessoas que contribuem e participam da riqueza socialmente
produzida e se submetem s normas; aquelas pessoas sobreintegradas, que se
beneficiam da riqueza, frequentemente pouco contribuem para ela e no se
submetem s normas que estruturam as relaes sociais; e aquelas pessoas que
dependem dessa riqueza, mas tm acesso restrito ou at interditado a ela,pessoas que experimentam muito mais as restries e punies previstas nas
normas do que a proteo e garantia de seus direitos.
Quando a interdio de acesso se expande para as diversas reas da vida
e se configura a pobreza extrema, a poltica social de cunho mais liberal se
prope a oferecer um prmio de consolao, denominado gesto social da
pobreza. Uma distribuio limitada da riqueza social incentivada para assegurar
que essas pessoas sobrevivam, e no sejam gerados focos de insatisfao social.Na modernidade perifrica, um grande contingente de pessoas no consegue ser
participante pleno de uma sociedade que se estrutura fundamentalmente a partir
do mundo do trabalho. Ento pode ocorrer que parte importante das polticas
sociais no tem como fundamento o princpio da previdncia nem expresso de
direitos de cidadania os dois princpios centrais de justia social em sociedades
modernas e, sim, fruto da transferncia unilateral de renda do estado para o
cidado. Programas como o Bolsa Famlia so, no limite, a reedio em grandeescala do princpio da ajuda apontado por Offe. Ao ser estruturado como ajudae
no como direito de cidadania, torna-se possvel que essa poltica social, ao
repartir a riqueza social com cidados em situao de necessidade, no leve a
que o cidado reconhea nela sua incluso social numa sociedade que se orienta
por princpios modernos de justia social, mas seja simbolicamente apropriada e
transferida como uma benesse do governante para aquelas pessoas para quem
alegadamente quer fazer algum bem. Com isso, a poltica de transferncia de
riqueza social na forma de ajuda tira das pessoas a possibilidade de sentirem-se
-
7/23/2019 despersonalizao
24/191
Justia social e democracia na modernidade perifrica 23
includos em sua sociedade, construtores de outras riquezas sociais, mesmo que
temporariamente estejam impossibilitados de gerarem riqueza econmica e
recriam dependncia ao torn-las devedoras de favor.
Creio ser possvel concluir dessas reflexes que em sociedades de
modernidade perifrica h atualmente duas ameaas srias democracia. De um
lado, um conjunto pequeno de pessoas sobreintegradas, que podem participar da
riqueza socialmente produzida, apropriar-se, servir-se e abusar dela, transferi-la
inclusive para fora, sem terem uma vinculao orgnica com a produo e justa
distribuio dessa riqueza e sem assumirem como vinculantes para si as regras
que estruturam as relaes sociais. E, no outro extremo, um conjunto crescente
de pessoas que no so plenamente reconhecidas como cidados, com acessorestrito s possibilidades de produzir e usufruir da riqueza social, sendo
arregimentadas por favores; para essas pessoas dificultado o acesso ao direito
de reivindicar aquilo que pelas leis lhes assegurado e que, em tese, pelo
menos, aceito como justo dentro da sociedade: que cada pessoa, na
eventualidade de alguma crise da vida, tenha supridas as suas necessidades pela
sociedade da qual participa. Em sociedades como a brasileira rompeu-se o
vnculo que a sociedade moderna estabelece entre aquilo que o indivduo pode eeticamente deve contribuir para o bem-estar de toda sociedade e aquilo que
justificadamente pode ter a expectativa de receber e de fato receber dela em
compensao. Restabelecer esse vnculo uma necessidade e um desafio, no
apenas pela convico de que seja uma exigncia tica de justia social, mas
porque essa seria uma contribuio para a estabilizao e para o aprofundamento
da democracia.
Referncias
CHAPLIN, Charles. Tempos modernos[Modern times], 1936.
DURKHEIM, Emile.A diviso do trabalho social. 2 v. Lisboa: Presena, 1984.
ESPING-ANDERSEN, Gosta. The three worlds of welfare capitalism. Princeton:Princeton University Press, 1990.
-
7/23/2019 despersonalizao
25/191
24 Emil A. Sobottka
GEREMEK, Bronislaw. Geschichte der Armut: Elend und Barmherzigkeit inEuropa. Mnchen: DTV, 1991.
HAYEK, Friedrich A. O caminho da servido. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,
1987.
HEGEL, Georg W. F. Princpios da filosofia do direito. So Paulo: Martins Fontes,1997.
HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma definio. Civitas,v. 8, n 1, p. 46-67.
LUHMANN, Niklas. Zur Einfhrung. In: Neves, Marcelo. Verfassung und Positivittdes Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eineInterpretation des Falls Brasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992, p. 1-4.
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1967.
NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivitt des Rechts in der peripherenModerne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des FallsBrasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992.
OFFE, Claus. Princpios de justia social e o futuro do estado de bem-estar social.In: SOUZA, Draiton G. ; PETERSEN, Nikolai. Globalizao e justia. v. 2. PortoAlegre: Edipucrs, 2005, p. 69-85.
WORLD BANK. Inequality and economic development in Brazil. Report n. 24487-BR, 2003.
-
7/23/2019 despersonalizao
26/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo1
1. O controle social e os processos de criminalizao
O conceito de controle social j se encontra, pelo menos de forma indireta,
nas obras dos clssicos da filosofia poltica. Est presente, por exemplo, na teoria
do Estado de Hobbes, entendido como a limitao do agir individual exigida pela
vida em sociedade. Explicitamente, o conceito de controle social formulado pela
primeira vez pelo socilogo americano Edward A. Ross, no final do sculo XIX,
em uma srie de artigos sob o ttulo Social Control, publicada no American
Journal of Sociology,entre maro e maio de 1898 (Ross, 1969, p. vii).
Embora j estivesse presente, portanto, desde os primrdios do
pensamento social moderno, o tema do controle social vai adquirir lugar de
destaque na teoria sociolgica dentro da perspectiva do estrutural-funcionalismo.
Para Talcott Parsons, principal representante dessa corrente, continuidade e
consenso so as caractersticas mais evidentes das sociedades. Assim como umcorpo biolgico consiste em vrias partes especializadas, cada uma das quais
contribuindo para a sustentao da vida do organismo, Parsons, seguindo
Durkheim, considera que o mesmo ocorre na sociedade. Para que uma sociedade
tenha continuidade ao longo do tempo, ocorre uma especializao das instituies
(sistema poltico, religioso, familiar, educacional, econmico), que devem
trabalhar em harmonia. A continuidade da sociedade depende da cooperao,
que por sua vez presume um consenso geral entre seus membros a respeito decertos valores fundamentais.
Parsons define a teoria do controle social como a anlise dos processos do
sistema social que se confrontam com as tendncias desviantes, e das condies
em que operam tais processos (Parsons, 1966, p. 305). O ponto de referncia
terico para essa anlise o equilbrio estvel do processo social interativo. Uma
vez que os fatores motivacionais desviantes esto atuando constantemente, os
1Professor dos Programas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e em Cincias Criminais daPUCRS.
-
7/23/2019 despersonalizao
27/191
26 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
mecanismos de controle social no tm por objeto sua eliminao, apenas a
limitao de suas consequncias, impedindo que se propaguem alm de certos
limites (Parsons, 1966, p. 306). Existe grande relao, para Parsons, entre os
processos de socializao e de controle social. Ambos consistem em processos
de ajustamento a tenses.
A partir da dcada de 60, o conceito de controle social foi reinterpretado
pelo pensamento sociolgico, no interior das novas teorias do conflito, para as
quais a sociedade passa a ser compreendida como um campo de foras
conflitual, em que se enfrentam diferentes grupos, com diversas estratgias de
poder. Mas foi o interacionismo simblico que, ao concentrar sua ateno sobre
os aspectos definicionais da conduta humana e sobre a reao que provocam osdistintos gestos significantes, produziu uma verdadeira revoluo cientfica no
mbito dos estudos sociocriminolgicos, provocando o deslocando do paradigma
etiolgico pelo paradigma do controle ou da reao social (Bergalli, 1991).
Assumindo a perspectiva interacionista, Dias e Andrade (1991) sustentam
queo estudo da seleo da criminalidade operada pelos mecanismos formais de
controle social, e em particular pelos tribunais, deve privilegiar os conceitos e
teorias de ndole interacionista, permitindo captar a estrutura de uma aoeminentemente subjetiva como a ao jurisdicional. Segundo estes autores,
(...) no ser, por isso, de estranhar que as teorias sociolgicasque mais recentemente tm ensaiado enquadrar a acojurisdicional - entre as mais credenciadas: teoria do papel, dogrupo, da interaco simblica, do domnio, do sistema, daorganizao, da deciso - sejam, todas elas, directa ouindirectamente subsidirias da aparelhagem conceitual bsica dointeraccionismo. (Dias e Andrade, 1991, p. 519)
O interesse dos estudos criminolgicos, e em especial da sociologia
criminal, se desloca da criminalidade para os processos de criminalizao. O
direcionamento da questo criminal para os processos de criminalizao
reforado pela anlise materialista dialtica, que lanou mo do instrumental
metodolgico marxista para compreender at que ponto a velha criminologia
positivista e seus distintos objetos de conhecimento transmitiam uma viso
ideologizada da criminalidade, e como o direito penal era o principal irradiador deideologias sobre todo o sistema de controle penal.
-
7/23/2019 despersonalizao
28/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 27
A partir de uma perspectiva conflitual da ordem social, o controle social
passa a ser conceituado como o conjunto de mecanismos tendentes a naturalizar
e normalizar uma determinada ordem social, construda pelas foras sociais
dominantes (Pavarini e Pegoraro, 1995, p. 82).
Essa concepo foi assumida por diversas correntes criminolgicas,
orientadas ora no sentido da erradicao do sistema penal tal como hoje se
conhece, para voltar a formas privadas de soluo dos conflitos, ora para uma
restrio do sistema, atravs de estratgias de descriminalizao e
informalizao, e outras ainda voltadas para a utilizao do sistema para a
proteo dos setores sociais vulnerveis. Essas orientaes so representadas,
respectivamente, pelo abolicionismo escandinavo (Mathiesen, Christie, Hulsman),pelo garantismo jurdico-penal (Baratta, Ferrajoli, Pavarini), e pelo realismo de
esquerda britnico (Young, Lea, Matthews), que so as posies mais destacadas
da criminologia crtica, e coincidem com uma sociologia do controle penal na
revalorizao de todos os nveis do sistema.
2. Nveis de realizao do s istema de controle penal
Os nveis de atuao das instncias de controle social so dois: o ativo ou
preventivo, mediante o processo de socializao; e o reativo ou estrito, quando
atuam para coibir as formas de comportamento no desejado ou desviado. O
nvel reativo constitui o terreno concreto da sociologia do controle social, e se
expressa por meios informais e formais. Os meios informais so de natureza
psquica (desaprovao, perda de status, etc.), fsica (violncia privada), ou
econmica (privao de emprego ou de salrio). Nesse caso, as normas jurdicasatuam como limite para excluir alguns em determinadas circunstncias.
J os meios formais de controle social reativo so constitudos por
instncias ou instituies especialmente voltadas para este fim (a lei penal, a
polcia, os tribunais, as prises, os manicmios, etc.), caracterizando o uso da
coero por instncias centralizadas para manter a ordem social, legitimado pelo
discurso do direito. Teoricamente sua atuao est prvia e estritamente
estabelecida pelo direito positivo, nos cdigos penais e leis processuais.
-
7/23/2019 despersonalizao
29/191
28 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Em sociedades que possuem uma organizao jurdico-constitucional e um
Estado de Direito, o controle penal baseado na institucionalizao normativa. O
direito penal constitudo pelo conjunto de normas a partir das quais a conduta
das pessoas pode ser tipificada e valorada em relao a certas pautas de dever.
Nesse sentido, no h dvida que as normas penais materiais e processuais
configuram o sistema de controle jurdico-penal, embora sujeitas a
descontinuidades, interrupes ou interferncias quanto sua aplicao.
Para o exame das normas penais, necessrio esclarecer em que
consistem e quais so os elementos que as compem, bem como a insero
desse sistema normativo no conjunto de normas que integram uma estrutura ou
ordenamento jurdico. Desde a positivao ou formalizao do direito penal, essenvel constitui a preocupao central dos juristas, dando origem teoria das
normas penais.
A chamada cincia do direito penal dedicou-se anlise lgico-formal das
normas e do ordenamento, procurando tornar previsvel a conduta do juiz que
aplicar a norma e com isso alcanar o mximo de segurana jurdica,
fundamento do Estado de Direito. No logrou, no entanto, dar respostas decisivas
sobre a origem ou gnese das normas penais, na medida em que a presena deuma norma penal em um momento concreto de uma sociedade dada deve ser
buscada na individualizao dos interesses e representaes sociais que
impulsionaram a criao da norma, e continuam sustentando sua presena no
ordenamento jurdico respectivo.
Uma compreenso metanormativa do direito que v alm da dogmtica
penal deve, portanto, partir da investigao sobre a gnese da norma e seu
impacto nas relaes sociais, desvelando o contedo de incerteza eimprevisibilidade por trs do ideal de segurana jurdica.
O segundo nvel de realizao de um sistema de controle penal o que
envolve os momentos de aplicao concreta da legislao penal, isto , sua
eficcia. Enquanto a legitimidade de um sistema normativo diz respeito
correspondncia das normas com os valores socialmente reconhecidos como
justos em uma dada sociedade, e a legalidade corresponde ao juzo de fato que
se emite sobre a existncia formal das normas, segundo as formas e os
procedimentos legalmente previstos, a eficcia a capacidade das normas em
-
7/23/2019 despersonalizao
30/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 29
encontrar uma efetiva aplicao na realidade, em relao a comportamentos
concretos dos sujeitos a quem elas se dirigem.
Para a anlise da eficcia de determinada norma ou ordenamento jurdico,
e em particular das normas penais, preciso levar em conta o complexo de
momentos em que se fragmenta o controle penal, articulado atravs da
interveno da polcia, do Ministrio Pblico, dos juzes e tribunais e dos crceres,
que receberam da perspectiva interacionista a denominao de processos de
criminalizao.
A superao do paradigma esttico do estrutural-funcionalismo, promovida
pelo labeling approach, abriu a possibilidade de uma viso e abordagem dinmica
e contnua do sistema penal, no qual possvel individualizar segmentos que vodesde o legislador at os rgos judiciais e prisionais. Nessa perspectiva, os
processos de criminalizao promovidos pelo sistema penal se integram na
mecnica de um sistema mais amplo de controle social e de seleo das
condutas consideradas desviantes (Andrade, 1997, p. 210).
Para a sociologia, a anlise desse nvel envolve no apenas o
comportamento dos indivduos cuja conduta est sujeita aplicao das normas
penais, mas fundamentalmente o comportamento daqueles que devem fazercumprir os mandamentos e proibies penais, os operadores do sistema. Assim,
uma sociologia jurdico-penal de carter emprico deve levar em conta os aportes
da sociologia das profisses e da sociologia das organizaes, investigando a
fundo as instncias de aplicao das normas penais, desvelando os mecanismos
que se movem no interior do aparato policial, judicial e penitencirio,
democratizando o conhecimento a respeito do seu funcionamento para toda a
sociedade (Bergalli, 1991, p. 36).
3. Direito e Controle Social no Estado Moderno
O processo de formao do Estado moderno teve como elemento
constitutivo caracterstico o modo abstrato e formal que assumiu o discurso
jurdico. O direito passa a ser considerado como um conjunto de regras gerais e
abstratas, emanadas de um poder soberano, formando um sistema ouordenamento jurdico, e no mais como um conjunto de pretenses e
-
7/23/2019 despersonalizao
31/191
30 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
reivindicaes particularistas, baseadas na tradio e em prerrogativas
especficas.
Durante o perodo que se estendeu da Baixa Idade Mdia at a Revoluo
Francesa, em que o Estado Moderno se consolidou, desenvolveu-se uma disputa
poltica entre vrios grupos sociais. No processo judicial, destacaram-se duas
tendncias: de um lado, a manuteno de jurisdies particularistas, de carter
local (as justias das aldeias, vilas e cidades) e de carter funcional (justias
especializadas de certas corporaes); de outro lado, a par das disputas entre
juzes letrados e juzes leigos, entre funcionrios ou delegados reais e
representantes de outros poderes locais ou senhoriais, desenvolveu-se uma
definio crescente de regras procedimentais, relativas, inclusive, a provas eprocedimentos de recurso, com o objetivo de racionalizar e uniformizar de tal
modo o sistema judicial que os tribunais centrais pudessem exercer um poder
centralizador (Lima Lopes, 1996, p. 247-248).
O passo seguinte foi dado pelo estabelecimento do Estado liberal, no
sculo XIX. Entre os sculos XVI e XVIII firmam-se os Estados nacionais, mas a
vida social ainda se configura em torno de estamentos e categorias que impedem
a universalizao do direito de julgar uniformemente. O triunfo do Estado liberaltraz consigo a promessa de universalizao da cidadania: todos so iguais
perante a lei, e a lei ser uma s para todos. A partir da, todos os conflitos podem
ser universalmente submetidos a um nico sistema de tribunais, com um nico
sistema de regras procedimentais desenvolvidas pouco a pouco. Do ponto de
vista das instituies, o direito de julgar adquirido pelo Estado desenvolveu a
profissionalizao do direito, pela organizao da burocracia estatal e
especializada e pelo estabelecimento da fora pblica (polcia).O moderno Estado constitucional pode ento ser visualizado como um
conjunto legalmente constitudo de rgos para a criao, aplicao e
cumprimento das leis. Ocorre a despersonalizao do poder do Estado, que
passa a fundar sua legitimidade no mais no carisma ou na tradio, mas em uma
racionalidade legal, isto , na crena na legalidade de ordenaes estatudas e no
direito de mando dos chamados por essas ordenaes a exercerem a autoridade
(Weber, 1996, p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva do fato de
terem as normas sido produzidas de modo formalmente vlido, com a pretenso
-
7/23/2019 despersonalizao
32/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 31
de serem respeitadas por todos aqueles situados dentro do mbito de poder
daquele Estado.
Entre as principais caractersticas desse tipo de Estado, est o controle
centralizado dos meios de coero. O Estado moderno se apresenta, assim,
como um complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamente
erigido, que tem como caracterstica estrutural mais destacada o monoplio da
violncia legtima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo
(Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coero fortalecido
pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurdica, tornando a coero
mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializado do Estado.
Essa caracterstica constitui-se em um marco do que Elias denomina processocivilizador, com a adoo de formas mais racionais e previsveis de instaurao
de processos e de punio pela prtica de atos legalmente e previamente
previstos como crimes2
Embora reconhea que as relaes de poder so sempre potenciais,
instveis e moleculares, Foucault identifica, tal como Weber e Elias, os
mecanismos de racionalizao que do mquina estatal a capacidade de
governo sobre a sociedade. Para ele, no entanto, esse processo se desenvolveuatravs de dois polos interligados por um feixe intermedirio de relaes. O
primeiro deles o que se concentra no adestramento do corpo como mquina, no
crescimento paralelo de sua docilidade e utilidade, na sua integrao em sistemas
de controle eficazes e econmicos, atravs de procedimentos de poder que
caracterizam as disciplinas. O segundo centrou-se no corpo-espcie, na
natalidade e mortalidade, no nvel de sade, atravs de uma bio-poltica da
populao, do seu controle demogrfico e atuarial (Foucault, 1999, p. 285 e seg.).
.
Para Habermas, embora a compreenso formalista do direito, tomada
como base de orientao por Weber, nunca tenha expressado de forma exata a
realidade do fenmeno jurdico, a atualidade do diagnstico weberiano no fruto
do acaso, uma vez que
(...) a tese relativa desformalizao do direito comprovou-secomo enunciado comparativo sobre uma tendncia existente na
2 Sobre este tema, vide o Vol. 2 da obra O Processo Civilizador, de Norbert Elias, sobre aformao do Estado, em especial o captulo II, Sobre a sociognese do Estado, p. 87-190.
-
7/23/2019 despersonalizao
33/191
32 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
autocompreenso e na prtica dos especialistas em direito.(Habermas, 1997, p. 204)
Segundo ele, o debate atual sobre a "desformalizao" do direito toma
Weber como ponto de partida,
(...) pois seu questionamento da racionalidade da forma do direitovisava medidas para um direito ao mesmo tempo correto efuncional. Nesta medida, sua discusso ajuda a entender osproblemas que envolvem a legitimidade decorrente da legalidade.(Habermas, 1997, p. 206).
Correspondendo, como paradigma terico, aos modernos Estados liberais,
a doutrina do direito como conjunto orgnico e universalmente vlido de normas
institucionalmente reconhecidas progressivamente minada, com o avano da
providncia estatal, por tentativas de adequar a regulamentao legal e a sua
implementao pelas instncias judiciais a um contexto no qual emergem
discursos normativos rivais e se exige do Estado a execuo de funes
crescentemente poltico-administrativas.
A concentrao de poder nas mos do Estado, a complexificao da
sociedade e a regulamentao legal de setores cada vez mais amplos da vida
social, culminam, nas sociedades urbano-industriais contemporneas, com a crise
de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurdico esvaziado,
paralela e simultaneamente crise fiscal do Estado-Providncia. Comeam a
aparecer as fissuras nesse aparato que ainda sustenta sua legitimidade em uma
legalidade abstrata, constituda de acordo com normas gerais e apropriadamente
promulgadas.
Isso ocorre porque algumas premissas da racionalidade legal comeam aser minadas ou desgastadas (a diviso de poderes, a supremacia e generalidade
da lei, etc.), frente concentrao de expectativas no polo do Poder Executivo, e
dos recursos limitados de que dispe para garantir a estabilidade social e a
acumulao de capital.
Alm disso, na medida em que se desgasta a crena na naturalidade das
hierarquias de poder ou de distribuio de riqueza existentes, a atividade
governamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suasconsequncias em termos da satisfao de interesses fracionrios, e a linha
-
7/23/2019 despersonalizao
34/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 33
divisria entre Estado e sociedade civil comea a se tornar cada vez mais difusa,
aumentando a influncia e a presso sobre as polticas governamentais e as
decises judiciais por diferentes grupos sociais, que se rebelam contra a estrita
observncia de normas processuais e legais.
A renovao das fontes de legitimidade do Estado , ento, buscada na
sua capacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento
econmico, vistos como padro necessrio e suficiente para o desempenho de
cada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controle
social para a manuteno da ordem, justificando com isso deslocamentos na linha
Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidade interna,
como um fim em si mesmo, e a manuteno da ordem pblica, tornam-se asprincipais justificaes para a existncia do Estado, e a sua fonte de legitimidade,
sobrepondo-se mera racionalidade jurdico-legal.
Depois de uma fase ininterrupta de prosperidade econmica, desde o final
da Segunda Guerra, que consolida o keynesianismo como poltica econmica de
governo nas democracias liberais do Ocidente, o choque do petrleo, nos anos
70, e a crise fiscal da maioria dos Estados industrializados, aprofundou o
predomnio da racionalidade instrumental sobre o iderio iluminista. Num primeiromomento, a partir do final da dcada de 70, o Estado passa a ser totalmente
dominado pela fora e os interesses da globalizao capitalista. a fase urea do
neoliberalismo, representada pelos governos de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, na qual foi implementada uma ampla reestruturao produtiva nos
principais centros industriais do mundo capitalista. A partir desse momento, em
termos de poltica criminal, se fortalecem e disseminam as tendncias
paleorepressivas de criminalizao e encarceramento, que nos E.U.A. resultaramem um crescimento geomtrico da populao submetida ao sistema prisional, que
era de 200.000 presos na dcada de 70 e 30 anos depois chega a quase 2
milhes de pessoas, correspondendo a 800 presos para cada 100 mil habitantes.
4. A situao da Segurana Pbl ica no Brasi l
Historicamente no Brasil as Universidades tm tido muita dificuldade paraestabelecer uma agenda de pesquisa sobre a temtica da segurana pblica e do
-
7/23/2019 despersonalizao
35/191
34 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
controle de violncia, por uma srie de fatores que tem a ver com a distncia que,
no Brasil, existe tanto entre os diferentes atores sociais que atuam nessa rea
policiais, integrantes do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico , mas tambm
pelo fato de que a Universidade no Brasil, pela sua estrutura, pelos seus
objetivos, pelas suas finalidades, teve sempre uma dificuldade muito grande de
lidar com os problemas que afetam mais diretamente as populaes de baixa
renda. Essa dificuldade vem sendo superada nos ltimos anos pela iniciativa de
alguns pesquisadores da rea da violncia e da segurana pblica, que ao
realizarem suas pesquisas no tm apenas uma preocupao acadmica, tm
tambm uma preocupao em contribuir de alguma forma para o equacionamento
desse problema social, com o incremento de mecanismos de elaborao,monitoramento e avaliao das polticas pblicas de segurana.
Temos na rea da segurana pblica no Brasil uma situao bastante
paradoxal. Trata-se de uma combinao perversa entre elementos que vm do
medievo o sistema penitencirio e elementos de ps-modernidade. Essa
combinao perversa porque justamente o que caracteriza o que chamo de ps-
modernidade no mbito penal so algumas propostas que se vinculam s
polticas de tolerncia zero contra a criminalidade, maior interveno punitivacontra pequenos delitos, a utilizao do direito penal como remdio e soluo
para todos os problemas sociais, com a ampliao dessa interveno pelo
legislativo, abarcando todas as reas nas quais se manifestam problemas sociais:
meio ambiente, trnsito, conflitos interpessoais, relaes de consumo, etc.
Outro elemento desse contexto de ps-modernidade penal o chamado
direito penal do inimigo, a ideia de que para aumentar a eficincia dos
mecanismos de controle penal preciso reduzir garantias dentro do processopenal. Vale lembrar a velha mxima de que a polcia prende e o judicirio solta,
uma forma de questionar a interveno do judicirio, porque se pretende que o
judicirio tambm adote uma forma de atuao mais repressiva e menos
preocupada com a garantia de direitos fundamentais do acusado.
Observando as taxas de encarceramento no Brasil, verificamos o enorme
crescimento ocorrido na ltima dcada, que faz com que tenhamos hoje nos
crceres brasileiros 460 mil presos (no final dos anos 90 a populao carcerria
no Brasil estava em torno de 150 mil presos). Levando em conta os dados gerais
-
7/23/2019 despersonalizao
36/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 35
do sistema carcerrio, o que mais cresce a utilizao da priso preventiva, ou
seja, pessoas que esto presas sem uma condenao criminal, e que
representam hoje 43% do total de presos no pas.
Outro elemento da ps-modernidade penal o modelo RDD (Regime
Disciplinar Diferenciado), ou seja, a ideia de que como a ressocializao no
acontece, como no se consegue reintegrar socialmente, embora seja esse o
propsito do encarceramento do ponto de vista das disposies legais e
constitucionais, o papel da priso seria simplesmente de conteno e no mais a
recuperao ou a reinsero do indivduo na vida social.
Todas essas caractersticas so novas. Se formos pensar h 10 ou 20
anos atrs, na mentalidade social e na mentalidade dos operadores do direito,mesmo durante o perodo autoritrio, estava ainda distante dessas caractersticas
elencadas aqui.
No entanto, possvel afirmar tambm que o Estado brasileiro no um
bloco monoltico. E tambm no so monolticas as instituies policiais, o
Ministrio Pblico, a Magistratura. Em todas as corporaes existem diferentes
formas de interveno. O discurso dos direitos humanos, reiteradamente
apresentado, h mais de 10 anos, desde a Constituio de 88, enquanto discursooficial, e o fato de que ano aps ano, so elaborados planos, programas, projetos
de segurana pblica e direitos humanos incorporando todo o iderio presente na
Constituio, nos remetem pergunta: por que a maioria dessas questes fica no
papel? Por que ano aps ano, apesar do discurso oficial, continuam as chacinas,
os homicdios, continuam todos os problemas que afetam o campo da segurana
pblica?
inquestionvel que isso tem relao com a nossa estrutura social, com asituao de desigualdade social que ainda marca a sociedade brasileira. Sem
dvida que essas questes estruturais tm um peso importante, mas quando se
fala em segurana pblica possvel sustentar tambm que as coisas poderiam
ser diferentes, mesmo se tudo o que acontece em termos de estrutura social e de
educao no avanasse, ns poderamos avanar um pouco mais na rea de
segurana pblica se algumas coisas fossem encaminhadas, se os mecanismos
de gerenciamento das agncias envolvidas com a segurana fossem melhor
utilizados.
-
7/23/2019 despersonalizao
37/191
36 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Mas, em primeiro lugar, o aperfeioamento gerencial e institucional no
to simples, porque h diferenas entre os juzes, entre os promotores, entre os
policiais, entre as pessoas que atuam nessa rea: diferenas de concepo. H
no interior das instituies uma viso que mais vinculada a ideia de que para
haver segurana preciso abrir mo de direitos, preciso reduzir a margem de
garantias individuais. Est presente nas pesquisas que tem sido feitas com
operadores do direito e perceptvel no contato com policiais civis e militares, nos
cursos de especializao em segurana pblica promovidos por diversas
universidades brasileiras em parceria com a SENASP.
H na verdade uma diviso no interior das instncias de poder do Estado
brasileiro e no interior dessas diferentes corporaes, sendo que de um lado esto discurso republicano da garantia dos direitos humanos com segurana pblica,
mas de outro h ainda uma concepo que se conecta com parcelas importantes
da opinio pblica no Brasil, no sentido do endurecimento penal, de mais prises,
de presos em condies precrias, sem garantias individuais bsicas. Discurso
que se manifesta muitas vezes pela defesa da pena de morte, da reduo da
idade penal, dos direitos humanos s para humanos direitos.
Para que se coloquem em prtica as declaraes programticas e asprevises legais, preciso enfrentar essa questo de que estamos lidando com
diferentes concepes, diferentes paradigmas. E que o paradigma hoje dominante
o do endurecimento penal como resposta ao problema da violncia, do crime e
da insegurana pblica. Nunca como hoje houve tanta gente presa. Nunca como
hoje, no mundo, o sistema penal teve o papel que ele tem no sentido de que o
Estado recua no campo dos direitos sociais, mas avana no campo da
criminalizao e do encarceramento. preciso construir outro modelo de enfrentamento da violncia e da
criminalidade tanto no plano do debate terico e normativo, quanto no dia a dia,
no cotidiano. preciso construir experincias concretas. A desconstruo do
paradigma dominante ainda uma tarefa necessria. Ainda necessrio mostrar
a cada dia que prender no resolve. Pelo contrrio, prender cria novos problemas
e, portanto, preciso afirmar isso. Mas preciso ir alm. preciso apresentar
solues. Esse o grande desafio. preciso pensar sobre as polcias. No h
democracia sem polcia democrtica. preciso continuar a construo de uma
-
7/23/2019 despersonalizao
38/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 37
polcia para a democracia, que seja tcnica e gerencialmente preparada, voltada
para a resoluo de problemas, capaz de combater a truculncia policial, de
combater a corrupo interna, porque s dessa forma a polcia ser respeitada
pelo cidado.
Por outro lado, precisamos avanar na discusso sobre a preveno ao
delito. preciso construir os mecanismos adequados para uma preveno eficaz
da criminalidade. Isso passa pela incluso social para a juventude, programas de
melhorias do ambiente urbano, polticas de reduo das oportunidades para o
crime, recolhimento e controle de armas, discusso sobre o controle da bebida
alcolica, tema polmico, porque na verdade a forma como isso vai ser colocado
em prtica deve ser sempre bem pensada e feita de acordo com um debate, umprocesso poltico com a participao da comunidade, no como uma
determinao que vem de cima para baixo, imposta.
Precisamos pensar algumas coisas que vo tocar diretamente o sistema de
justia, porque muitos conflitos chegam ao poder judicirio, e dentro do poder
judicirio precisaro ser equacionadas. As reformas da justia, especialmente da
justia penal, tem que ser bem avaliadas, porque o sistema penal tem que se
colocar enquanto mecanismo de pacificao social, de melhoria das condies devida e segurana da populao, coisa que at hoje ele no foi. Ao contrrio, o
sistema penal brasileiro, at hoje, foi um sistema crimingeno e voltado sujeio
criminal dos setores sociais mais vulnerveis e tidos como perigosos.
Por fim, temos que pensar sobre o problema do encarceramento no Brasil.
preciso pensar a priso a partir da perspectiva da reduo de dano, porque a
priso causa dano. Temos hoje 460 mil presos, e mesmo que boa parte deles
seja composta por presos provisrios, ou presos que j teriam o direito deprogredir de regime, ainda assim no temos o poder de esvaziar as prises
brasileiras. A tendncia , pelo contrrio, aumentar a demanda de
encarceramento. Mas o Estado, caso pretenda exercer seu poder punitivo,
precisa garantir tambm as condies carcerrias estabelecidas em lei. Sem
dvida possvel descartar a priso como alternativa eficaz para o controle do
crime, na grande maioria dos casos. Mas no momento o que ns temos so 460
mil presos, e menos de 250 mil vagas no sistema. Isso no aceitvel. O Estado
-
7/23/2019 despersonalizao
39/191
38 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Brasileiro precisa investir e garantir condies carcerrias at que se rediscuta o
modelo punitivo at hoje adotado.
Entra a o debate da descarcerizao. Quem est nas prises brasileiras?
O sistema prisional brasileiro composto por 40% de presos por trfico e 40% por
roubo. Esta a porta de entrada do sistema prisional: o pequeno vendedor de
drogas que vai preso e a pessoa que est numa situao economicamente
vulnervel em meio urbano e que vai roubar e ser encarcerado. O pequeno
praticante desse tipo de delito vai preso e a primeira coisa que ele tem que fazer
na priso entrar para uma faco. Se at ento ele no pertencia a faco
nenhuma, a partir dali passa a fazer parte de uma e vai estabelecer relaes que
vo garantir sua verdadeira reinsero social, porque vo garantir uma renda euma aceitao que a sociedade no vai lhe oferecer. O pequeno traficante e o
assaltante eventual vo se tornar a mo de obra de que a criminalidade precisa
para a prtica de crimes maiores.
Alm disso, precisamos pensar num outro modelo para o tratamento das
questes que chegam ao sistema penal, como deveriam ser os Juizados
Especiais Criminais. Eles faliram, e a Lei Maria da Penha a demonstrao cabal
dessa falncia. Os delitos contra a mulher e a violncia domstica, que chegavamaos Juizados Especiais Criminais, agora no chegam mais. Na prtica no se
conseguiu implantar, de fato, aquilo que era sustentado em 1995, quando a lei foi
criada. Essa falncia se deu por problemas na lei e por problemas com os
operadores do direito, ao no se conseguir abrir espao no mbito do sistema de
justia para a mediao de conflitos. A mediao no aconteceu porque os
operadores do direito no trabalharam no sentido de uma mediao penal. O que
poderia ter avanado no avanou e o que ocorre nos Juizados um processomuito mais formal do que real de enfrentamento dos conflitos sociais, o que
acabou levando ao descontentamento das vtimas, levando a uma srie de
problemas que fizeram com que a experincia dos Juizados Especiais Criminais
esteja numa situao de impasse, a partir da entrada em vigor da lei Maria da
Penha.
Outra questo relevante diz respeito s penas alternativas, porque embora
ns estejamos no mbito do sistema penal, possvel pensar nesses
mecanismos como mecanismos inclusivos e no de excluso social. Incluir
-
7/23/2019 despersonalizao
40/191
Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 39
dignamente pela priso um desafio na prtica inalcanvel. Incluir por meio de
uma pena alternativa sabemos que possvel, como demonstra a experincia da
Vara de Execues de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, com
importantes resultados alcanados nessa perspectiva de incluir socialmente uma
populao que vulnervel e que tem dificuldade de se conectar socialmente.
Fato que todos estes desafios dizem respeito a uma revoluo
democrtica da justia no Brasil, que redirecione a estrutura e os esforos de
milhares de operadores do sistema de segurana pblica e justia criminal para
objetivos diversos do foco at agora direcionado para a manuteno da ordem
pblica. Uma estrutura policial capaz de estabelecer vnculos com a comunidade
e atuar na resoluo de conflitos cotidianos, e de realizar a represso qualificadada criminalidade violenta, e um sistema de justia capaz de colocar-se perante a
sociedade enquanto um canal legtimo e adequado para a mediao dos conflitos
sociais so a exigncia colocada para que possamos avanar no sentido da
reduo da violncia e da garantia de direitos no Brasil.
Referncias Bibliogrficas
ANDRADE, Vera Regina Pereira.A Iluso de Segurana Jurdica. Porto Alegre,Livraria do Advogado Ed., 1997.
BERGALLI, Roberto. Sociology of Penal Control Within The Framework of TheSociology of Law. Oati Proceedings n 10, I.I.S.L.,1991, p. 25-45.
DIAS, J.F.; A NDRADE, M.C. Criminologia: o homem delinqente e a sociedadecrimingena. Coimbra, Ed. Coimbra, 1992, 1 reimpresso.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizadorvol. 2 - Formao do Estado e Civilizao.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993 (trad. Ruy Jungamnn e Renato JanineRibeiro).
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999.
HABERMAS, Jurgen. Direito e DemocraciaVol. II - Entre Facticidade e Validade.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 (trad. Flvio Beno Siebeneichler).
LIMA LOPES, Jos Reinaldo de. Uma Introduo Histria Social e Poltica doProcesso. In Wolkmer, A.C. (org.), Fundamentos de Histria do Direito. BeloHorizonte, Ed. Del Rey, 1996.
-
7/23/2019 despersonalizao
41/191
40 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
PARSONS, Talcott. El Sistema Social. Madrid, Editorial Revista de Occidente,1966.
PAVARINI, Massimo ; PEGORARO, Juan. El Control Social en el Fin del Siglo.
Univ. de Buenos Aires, Buenos Aires, 1995.
POGGI, Gianfranco.A Evoluo Do Estado Moderno- Uma IntroduoSociolgica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981 (trad. lvaro Cabral).
ROSS, Edward Alsworth. Social Control- A survey of the foundations of order.The Press of Case Western Reserve University, Cleveland, 1969.
WEBER, Max. Economia Y Sociedad- Esbozo de sociologa comprensiva.Mxico, Fondo de Cultura Econmica, Segunda Edio, Dcima Reimpresso,1996 (trad. Jos Medina Echavarra et. alii).
-
7/23/2019 despersonalizao
42/191
Sociedades complexas e polticas pblicas
Hermlio Santos*
Introduo
As polticas pblicas constituem um dos principais resultados da ao do
Estado. Contudo, algumas questes se impem: por um lado, devemos nos
perguntar se o Estado possui a legitimidade necessria para produzir efeitos no
processo de polticas pblicas. Com um mundo cada vez mais globalizado
economicamente, o que significa dizer com atores institucionais do mercado cada
vez mais potentes politicamente, e com uma sociedade civil que se diversifica
tanto na sua agenda quanto na quantidade de atores relevantes, previsvel que
esse cenrio represente algum desafio adicional s tarefas estatais relacionadas
formulao e implementao de polticas. Por outro lado, relacionado a esse
contexto, aumenta o interesse em saber como se d a relao entre os agentes
estatais e demais atores no estatais, seja do mercado, seja da sociedade civil,
na produo dessas polticas. Assistimos, nas ltimas dcadas, em praticamentetodas as democracias contemporneas, a um processo relativamente rpi