despersonalização

Upload: midoes100

Post on 17-Feb-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 despersonalizao

    1/191

  • 7/23/2019 despersonalizao

    2/191

    DEBATES PERTINENTES

    para entender a sociedade contempornea

    Volume 1

  • 7/23/2019 despersonalizao

    3/191

    Pontif cia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Chanceler:

    Dom Dadeus Grings

    Reitor:Joaquim Clotet

    Vice-Reitor:

    Evilzio Teixeira

    Conselho Editorial:

    Antnio Carlos HohlfeldtElaine Turk Faria

    Gilberto Keller de AndradeHelenita Rosa FrancoJaderson Costa da Costa

    Jane Rita Caetano da SilveiraJernimo Carlos Santos Braga

    Jorge Campos da CostaJorge Luis Nicolas Audy (Presidente)

    Jos Antnio Poli de FigueiredoJussara Maria Rosa Mendes

    Lauro Kopper FilhoMaria Eunice Moreira

    Maria Lcia Tiellet NunesMarlia Costa Morosini

    Ney Laert Vilar CalazansRen Ernaini Gertz

    Ricardo Timm de SouzaRuth Maria Chitt Gauer

    EDIPUCRS:

    Jernimo Carlos Santos Braga DiretorJorge Campos da Costa Editor-chefe

  • 7/23/2019 despersonalizao

    4/191

    Hermlio Santos

    Organizador

    DEBATES PERTINENTES

    para entender a sociedade contempornea

    Volume 1

    Porto Alegre2009

  • 7/23/2019 despersonalizao

    5/191

    EDIPUCRS, 2009

    Capa: Deborah Cattani

    Diagramao: Stephanie Schmidt Skuratowski

    Reviso: Rafael Saraiva

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    D286 Debates pertinentes : para entender a sociedade

    contempornea [recurso eletrnico] / org. HermlioSantos. Dados eletrnicos. Porto Alegre: EDIPUCRS,2009.v.

    Modo de Acesso: World Wide Web:

    ISBN 978-85-7430-938-5

    1. Cincias Sociais. 2. Sociologia. 3. Sociedade SculoXXI. 4. Antropologia Social. I. Santos, Hermlio. II. Ttulo.

    CDD 301.24

    Ficha Catalogrfica elaborada peloSetor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS

    Av. Ipiranga, 6681 - Prdio 33Caixa Postal 1429

    90619-900 Porto Alegre, RS - BRASILFone/Fax: (51) 3320-3711

    E-mail: [email protected]://www.edipucrs.com.br

    mailto:[email protected]://www.edipucrs.com.br/http://www.edipucrs.com.br/mailto:[email protected]
  • 7/23/2019 despersonalizao

    6/191

    SUMRIO

    Apresentao ........................................................................................................ 6

    Hermlio Santos

    Justia social e democracia na modernidade perifrica .................................. 7

    Emil Sobottka

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica .................. 25

    Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    Sociedades complexas e polticas pblicas .................................................... 41Hermlio Santos

    Propaganda Poltica, Partidos e Eleies ........................................................ 68

    Marcia Ribeiro Dias

    Poltica e integrao na Amrica do Sul .......................................................... 88

    Maria Izabel Mallmann

    Pentecostais e poltica no Brasil: do apolitismo ao ativismo

    corporativista .................................................................................................... 112

    Ricardo Mariano

    Mercado Religioso e a Internet no Brasil ....................................................... 139

    Airton Jungblut

    Antropologia das instituies e organizaes econmicas ......................... 155Lcia Mller

    H limites para a Sociologia do Conhecimento em uma Sociedade do

    Conhecimento ? .............................................................................................. 176

    Lo Peixoto Rodrigues

  • 7/23/2019 despersonalizao

    7/191

    6 Hermlio Santos (Org.)

    Apresentao

    Com este volume iniciamos a publicao da srie Debates Pertinentes. Um

    conjunto de trs livros dedicados a analisar, por um lado, temas importantes para

    a compreenso das sociedades contemporneas, por outro lado, a contribuio

    de autores clssicos e contemporneos, tanto da sociologia, da cincia poltica

    quanto da antropologia, para a compreenso desses temas. Trata-se de uma

    iniciativa do Departamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais da PUCRS em parceria com o Goethe-Institut Porto Alegre.

    Os textos publicados neste primeiro volume, cujo subttulo Para entender a

    sociedade contempornea, foram apresentados em um seminrio realizado entre

    os dias 9 e 12 de junho de 2008 no auditrio do Goethe-Institut de Porto Alegre,

    espao reconhecido por fomentar o debate pblico e por tornar a pesquisa

    acadmica acessvel tambm comunidade no acadmica.

    O Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da PUCRS, que

    passa a contar com o Doutorado a partir de 2010, vem ocupando um espao

    importante na produo das cincias sociais no Brasil, expresso, dentre outros

    indicadores, pela avaliao positiva que vem sendo conferida pela CAPES,quanto pelo papel ocupado pela Civitas Revista de Cincias Sociais, publicada

    pelo PPGCS da PUCRS. Este primeiro volume da srie Debates Pertinentes

    pretende dar maior visibilidade contribuio dos professores e pesquisadores do

    PPGCS para o entendimento de problemas sociais contemporneos, ao analisar

    temas sociais relevantes e que constituem objeto de pesquisas conduzidas pelos

    professores do PPGCS. Nesse sentido, a publicao da presente coleo tem

    como objetivo consolidar a contribuio terica e de estudos empricosconduzidos recentemente pelos autores. Alm disso, a coleo visa oferecer

    instrumental analtico para introduzir o leitor iniciante em temas e teorias de

    sociologia, antropologia e cincia poltica. Trata-se de uma obra que poder ser

    utilizada tanto nos cursos de graduao, quanto ainda do ensino mdio e em

    certa medida tambm no ensino de ps-graduao, na medida em que alguns

    autores que sero apresentados (sobretudo no Volume 2 desta coleo) possuem

    poucas obras de referncia publicadas no Brasil.Hermlio Santos Organizador

  • 7/23/2019 despersonalizao

    8/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica

    Sobre a distribuio da riqueza socialmente produzida

    Emil A. Sobottka1

    O ttulo dado a esta apresentao, sugerido dentro da proposta de debates

    pertinentes que ajudem a compreender a sociedade contempornea, foi justia

    social e democracia na modernidade perifrica. O subttulo especifica a temtica,

    ao apontar para a questo sobre como se distribui a riqueza produzida em

    sociedades modernas. Assim, os trs grandes conceitos: justia social,

    democracia e modernidade perifrica podem confluir para a questo da

    distribuio da riqueza produzida socialmente.

    A referncia para refletir sobre a sociedade contempornea a

    modernidade clssica, aquele modo de organizar a vida que surgiu em

    substituio ao perodo medieval. Trata-se de uma forma de organizar as relaes

    sociais que tem entre seus traos mais caractersticos estar constantemente em

    mudana. Alguns autores interpretam algumas mudanas particulares como se

    elas indicassem a superao desse modelo de sociedade e o surgimento de umnovo tipo; isso tem permitido a esses autores propor que a atualidade seja uma

    modernidade tardia, uma ps-modernidade, uma hiper-modernidade. Mas mesmo

    esses autores retornam modernidade clssica como sua referncia para

    dimensionar as transformaes.

    Na questo de como se distribui a riqueza socialmente produzida e como

    se estruturam as relaes sociais, tambm eu gostaria de comear com uma

    reflexo sobre aquilo que, pelo menos classicamente, se reivindica como asituao normal dentro da sociedade moderna. Comeo analisando a ideia do

    trabalho como a forma central tanto de alocar a riqueza produzida socialmente

    como tambm o eixo constitutivo, estruturador central das relaes dentro da

    sociedade moderna.

    1Doutor em Sociologia e Cincia Poltica, pesquisador do CNPq e professor do PPG em Cincias

    Sociais da PUCRS. O texto apresenta resultados parciais da pesquisa Reconhecimento, cidadaniae democracia: Direitos sociais e poltica social no Brasil e na Alemanha nas ltimas duas dcadas,apoiada pelo CNPq e pelas Fundaes Humboldt e Thyssen.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    9/191

    8 Emil A. Sobottka

    Trabalho e distribuio da riqueza socialmente produzida

    Diferente de outros perodos histricos, na sociedade moderna, em

    especial aquela que se fez modernidade capitalista, o trabalho foi transformado no

    centro gerador e estruturador dessas duas dimenses da sociedade. Na obra

    denominada Princpios de filosofia do direito, um escrito do perodo da

    maturidade, Hegel reflete explicitamente sobre a questo de como a sociedade

    moderna que se torna individualizada, que vai perdendo certos vnculos

    tradicionais externos, pode encontrar novos fundamentos para se estruturar e

    tambm novos critrios para que as pessoas possam construir nela sua

    identidade. Hegel v no trabalho o lugar social desses dois processos. O trabalho

    visto a partir do homem que se encontra face natureza e, mediante sua

    transformao, produz a partir dela meios para suprir as suas necessidades.

    Nessa sociedade, porm, a base do trabalho no mais o artesanato, como em

    perodos histricos anteriores, e sim a diviso social e tcnica: as pessoas no

    fazem mais "de tudo um pouco", segundo as necessidades concretas, mas se

    especializam em determinadas atividades. No conjunto tornou-se possvel

    produzir muito mais diz-se que aumentou a produtividade , mas as pessoasindividualmente passam a concentrar-se crescentemente sobre um nmero

    restrito de procedimentos. Para diversos tericos esse novo trabalho pareceu

    muito centrpeto, dispersivo, individualizante, e colocou a pergunta pelo modo

    adequado de manter unida a sociedade agora sem os vnculos tradicionais.

    Quando Hegel d ao trabalho esse lugar central nas relaes sociais, ele

    no se refere ao avano tcnico, ao aumento da produtividade. Se isso fosse a

    caracterstica central da nova forma de trabalho nessa sociedade moderna ecapitalista, ela seria extremamente pobre. Hegel, ao contrrio, v nessa nova

    modalidade de transformar a natureza em satisfao das necessidades uma base

    tica (Honneth, 2008). A pessoa que trabalha no produz mais o produto na sua

    integridade e tambm no se apropria apenas da quantidade de produtos que ela

    produziu para suprir as suas necessidades; agora ela est inserida em processos

    atravs dos quais contribui para as necessidades dos outros e os outros

    contribuem para as suas necessidades. Assim forma-se uma interdependnciaque, segundo Hegel, deveria motivar os indivduos a deixarem o seu cio, a sua

  • 7/23/2019 despersonalizao

    10/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 9

    preguia de lado e a trabalharem para que, com os frutos do seu trabalho,

    pudessem contribuir para a satisfao das necessidades tambm dos outros.

    Assim, esse autor constri uma ponte tica que ele julga ser capaz superar o

    comodismo, a eventual vontade de curtir o cio indeterminadamente, para dar

    uma contribuio social. Nessa viso, no so as necessidades como tais que

    impelem o homem a trabalhar, num sentido mais animalesco, e sim o

    compromisso tico com a coletividade. Mas o novo lugar que o trabalho ocupa na

    sociedade no compromete eticamente de forma unilateral o indivduo com a

    coletividade. Segundo Hegel, a sociedade deve corresponder a essa disposio

    do indivduo, permitindo que ele receba o suficiente para sustentar

    adequadamente a si e a sua famlia. Ou seja, o indivduo que renunciar liberdade de curtir o cio e se dispor a contribuir com o trabalho para a satisfao

    das necessidades de outros membros da sociedade tem direito expectativa

    fundada de ter supridas as suas necessidades dele e de sua famlia, altura

    das prticas usuais no seu tempo e contexto. Dessa forma cria-se um sistema de

    interdependncia e se estabelece um critrio, uma medida padro para alocao

    das riquezas em sociedade. Esse esquema de argumentao revela uma

    proximidade com o contratualismo: ao invs de o indivduo tentar viver o mximodo cio possvel e apenas se contentar com alguma transformao da natureza

    para as suas necessidades, ele cede parte de sua liberdade para receber em

    troca um grau maior de satisfao das necessidades, suas e de sua famlia. Hegel

    introduz aqui uma dimenso que ser vista com muita frequncia na discusso

    das relaes econmicas na sociedade moderna: a ideia de que, de alguma

    forma, a famlia e no s o indivduo ocupa um lugar importante nas relaes de

    trabalho.Essa reflexo de Hegel foi apropriada por Marx de um modo muito

    especfico, colocando as relaes de produo no centro da estruturao da

    sociedade. A sociedade capitalista, que para ele eclipsa a sociedade moderna,

    tem um modo peculiar de alocao da riqueza: os proprietrios dos meios de

    produo ficam com quase tudo e trabalhadores, que na viso dele so os

    efetivos produtores da riqueza, ficam com to pouco, que insuficiente para viver

    e sustentar a famlia. Mudanas no modo de produzir que, em linguagem atual,

    podem ser chamados de avanos tecnolgicos permitiram um aumento da

  • 7/23/2019 despersonalizao

    11/191

    10 Emil A. Sobottka

    gerao de valor, de riqueza. Mas o poder maior dos proprietrios dos meios de

    produo, dos donos da indstria, na hora de barganhar o preo da fora de

    trabalho, faz com que eles possam ficar com uma parcela muito maior da riqueza

    e pagar uma parcela menor para aqueles que vendem sua fora de trabalho. A

    dificuldade que Marx tem nesse contexto encontrar critrios aceitveis para uma

    distribuio diferente. Para ser aceitvel, numa sociedade moderna, um critrio

    deve satisfazer vrias condies um dos principais no ser aleatrio. Para

    diversos autores, como Axel Honneth (2008), os critrios precisam ser internos ao

    prprio processo social em questo. Intuitivamente, com base no bom senso,

    talvez seja possvel argumentar em favor de uma distribuio mais equitativa. Mas

    um critrio aceitvel precisa ser consistente em termos tericos. E Marx temdificuldade em apresentar uma boa argumentao que fundamente como deveria

    ser a distribuio da riqueza.

    A argumentao feita por Hegel pode no ser convincente na atualidade,

    mas ela tinha uma importncia para a sociedade do seu tempo: era uma

    fundamentao interna ao prprio processo. No momento em que o indivduo

    cede algo que ele no precisaria ceder no caso, uma parte da sua liberdade e

    se dispe a trabalhar e assim a cooperar com o bem coletivo, ele tem direito a tera expectativa de receber dessa coletividade algo em troca. Marx no levou

    suficientemente a srio a necessidade de uma fundamentao, mas essa hoje

    uma exigncia central em quase toda teoria social. A atividade terica dele tem

    sido muito mais produtiva em diagnosticar patologias sociais do que em

    apresentar critrios aceitveis com os quais pudessem ser fundamentadas

    exigncias de mudana social.

    Um autor que trabalhou mais nessa argumentao hegeliana foi EmileDurkheim (1984). Ele no foi muito explcito nesse sentido, mas no difcil

    encontrar nele o parentesco com Hegel atravs daquilo que Max Weber

    denominou de afinidades eletivas. Durkheim retoma a ideia do trabalho como um

    dos pontos centrais da sociedade moderna em seu estudo sobre a diviso do

    trabalho social, e tenta demonstrar como o trabalho cria solidariedade mesmo na

    sociedade moderna individualizada e com diviso tcnica do trabalho. Segundo

    ele, o trabalho tradicional criava um tipo de solidariedade mecnica, por imitao,

    que no correspondia mais aos tempos modernos. Mas ele, tal como Hegel,

  • 7/23/2019 despersonalizao

    12/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 11

    julgava infundado o temor de que a sociedade se decomporia em uma infinidade

    de indivduos isolados. Exatamente a interdependncia da diviso tcnica do

    trabalho na qual so necessrias muitas pessoas realizando tarefas parciais

    para produzir determinado produto e da diviso do trabalho social na qual as

    diversas funes necessrias ao bom andamento da sociedade esto

    amplamente distribudas, mas de algum modo coordenadas entre si geraria um

    tipo novo de solidariedade, especifico da modernidade: a solidariedade orgnica.

    Tudo isso bastante conhecido. Menos conhecido possivelmente seja que

    na teoria de Durkheim h uma reflexo sobre a fundamentao tica que esse

    novo processo de estruturao das relaes sociais atravs do trabalho exigiria.

    Em sintonia com a tradio liberal, ele coloca a igualdade de condies comoponto de partida eticamente normativo. Nessa tradio, a igualdade da formao

    para o desenvolvimento pleno das habilidades vocacionais profissionais permitiria

    que todas as pessoas tivessem na sua juventude, no momento da definio da

    sua carreira profissional, a oportunidade de ter uma formao que as habilitasse a

    competir no mercado em condies de igualdade e, acima de tudo, a realizar

    plenamente a sua vocao e no ser frustrado nela. Isso seria, a rigor j por

    antecipao, um dever da sociedade para com o indivduo, para que ele possacontribuir com ela melhor depois. Seria quase como uma hipoteca que a

    sociedade j coloca para o indivduo e tem depois a expectativa fundada de

    receber a sua contribuio de volta.

    Um segundo ponto que, pelo menos na tradio das cincias sociais, se

    enfatiza pouco na leitura de Durkheim, sua defesa de uma remunerao do

    trabalho segundo o seu valor para a sociedade. Quase l no final da obra A

    diviso do trabalho social(Durkheim, 1984, v. 2) h todo um subcaptulo que tratadessa questo. Nele o autor defende que trabalho no pode ser remunerado

    segundo os humores do mercado, de quem contrata o trabalho do assalariado,

    mas deve ser recompensado segundo aquilo que esse trabalho contribui para a

    sociedade. Portanto, o que deveria orientar a distribuio da riqueza no o valor

    de mercado, mas sim a importncia da funo que aquele trabalho tem dentro da

    sociedade. Isso aproxima a argumentao de Durkheim da tese hegeliana do

    direito a uma compensao adequada para a renncia feita pelo indivduo ao

    deixar o cio e contribuir para o bem de todos.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    13/191

    12 Emil A. Sobottka

    Um terceiro ponto que Durkheim coloca nesse contexto merece ser

    enfatizado. Segundo ele, necessrio que o trabalhador possa sentir dentro do

    prprio processo de trabalho que ele est dando uma contribuio para a

    sociedade. O oposto aparece no filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin

    (1936), que mostra a pessoa sendo reduzida a um trabalho extremamente

    rotineiro, no qual quase no precisa usar mais a sua cabea para pensar; ela

    apenas precisa cumprir a rotina com eficcia. Durkheim, ao contrrio, reivindica

    uma tica, segundo a qual as atividades devem ser divididas de tal modo que

    quem as executa possa perceber dentro do prprio processo de trabalho que est

    dando uma contribuio para a sociedade. H tambm aqui a preocupao de

    no buscar externamente, como na tradio, por exemplo, uma fundamentaopara os critrios de distribuio do fruto do trabalho. Comum a Hegel aqui a

    ideia de que quem trabalha consiga reconhecer dentro desse trabalho que est

    dando uma contribuio para a sociedade. Talvez seja possvel dizer que nas

    reivindicaes feitas por Durkheim h uma componente identitria.

    Esses so apenas alguns exemplos de tericos que tm colocado o

    trabalho como central para a sociedade. Central no apenas para o

    desenvolvimento da economia, para o aumento da produtividade, para a geraode riquezas, mas tambm para a estruturao de relaes sociais e para a

    conformao de aspectos ticos da convivncia em sociedade. Com essas

    construes de critrios ticos, feitas a partir de dentro do prprio mundo de

    trabalho, torna-se possvel dar respostas bem fundamentadas para a questo de

    como a riqueza deveria ser distribuda socialmente. Mas a observao de

    situaes histricas mostra que tem sido grande a dificuldade para cumprir esses

    critrios. As razes para isso no podem ser analisadas aqui. Principalmente emmomentos de crise, quando tem ficado evidente que havia falhas na distribuio

    da riqueza socialmente produzida, em muitas sociedades recorreu-se poltica

    para construir critrios que justificassem formas de distribuio da riqueza que

    no fosse a via da renda salarial. Essa nova forma de distribuio da riqueza

    socialmente criada a poltica social.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    14/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 13

    Poltica social e distr ibuio supletiva da riqueza

    Quando polticas sociais comearam a ser institudas, elas tiveram vrias

    vertentes tericas ou polticas que buscavam justific-las. Uma das razes mais

    comumente alegadas a necessidade de um complemento ou uma correo do

    mercado em momentos ou situaes em que este falha na alocao da riqueza.

    Dentro dessa maneira de pensar, o mercado capitalista em geral, e o mercado de

    trabalho em particular, seriam o melhor instrumento para distribuir a riqueza

    socialmente produzida. Apenas quando houver algum distrbio grave seria

    eticamente justificvel e, portanto, aceitvel uma interveno corretiva. Essa

    interveno em regra delegada ao estado, para que ele faa algum

    complemento ou que ajude a superar a situao que o mercado

    momentaneamente no conseguiu gerir.

    Alm dos momentos de crise, outra rea admitida como justificada para

    polticas sociais a cobertura de certos riscos do ciclo de vida. Um desses riscos

    previsveis o perodo em que, em tese, cessaro as foras para o trabalho. Para

    cada trabalhador estatisticamente previsvel o prazo normal, dentro de

    determinada sociedade, at quando ele ter foras para trabalhar e se sustentar;a questo que se coloca : o que vir depois disso? Como ele sobreviver depois

    de findo seu ciclo de vida profissional, para no recair na dependncia de

    terceiros, que um dos grandes temores do indivduo emancipado na

    modernidade? A seguridade social uma instituio que permite ao indivduo que

    ele prprio seja previdente, que faa alguma contribuio a algum fundo, ou que a

    coletividade reserve uma parte da riqueza social, e assim o trabalhador tenha

    assegurado o direito a receber o seu sustento vitalcio quando deixar a vidalaboral. Essa poltica a aposentadoria que muitas vezes extensiva a

    determinados membros da famlia na forma de penso. Atravs dessa poltica

    haver uma alocao de uma parcela da riqueza social para que aquela pessoa

    que contribuiu para o bem da sociedade com seu trabalho possa viver e

    envelhecer dignamente.

    H outros riscos do ciclo da vida que so previsveis no conjunto de uma

    populao, mas dificilmente podem ser individualizados como enfermidade edesemprego. Entre as primeiras polticas sociais em diversos pases figuram

  • 7/23/2019 despersonalizao

    15/191

    14 Emil A. Sobottka

    aquelas que buscavam responder preocupao com a continuidade da renda, e,

    com isso, a possibilidade de seguir dando sustento famlia nos casos de

    impossibilidade de trabalhar devido a uma enfermidade ou ao desemprego. Hoje

    a preocupao com o custo do tratamento de sade ocupa o lugar central, mas

    nas primeiras polticas sociais de sade a questo era a interrupo da

    remunerao que afetava diretamente a satisfao das necessidades do

    trabalhador e de sua famlia. H razes histricas para que os custos do

    tratamento de sade passassem a esse lugar central, como maior valorizao da

    longevidade e o aumento do prprio custo dos tratamentos pela incorporao de

    tecnologia, pela maior abrangncia dos tratamentos possveis e assim por diante.

    Outro momento em que a poltica social pode cobrir riscos o dodesemprego. Dentro de certo nvel de flutuao macroeconmica, o desemprego

    considerado normal; ele faz parte da coordenao de oferta e procura pelo

    mercado. Mas mesmo que na teoria econmica se considere normal uma

    pequena oscilao nos nveis de emprego, quando o desemprego afeta o

    indivduo, ocorre uma interrupo na renda que pode ameaar a sua

    sobrevivncia. Para assegurar a continuidade na satisfao das suas

    necessidades e de sua famlia, mesmo a tradio liberal passou a aceitar algumaforma de suprimento dessas necessidades via poltica social.

    Mas h tambm outra reivindicao na poltica social, uma utopia mais

    prxima da vertente socialista, de que a poltica social possa decomodificar as

    relaes de trabalho. Essa expresso, usada por Esping-Anderson (1990), talvez

    fique mais compreensvel se utilizada em outro contexto: o do mercado de gros,

    minrios ou petrleo. Dentro desse contexto, commodityse refere a um produto

    com caractersticas genricas, mais ou menos igual em qualquer lugar do mundo.Ele tem pouca variao e, portanto, no apenas seu preo ser relativamente

    igual, mas pode ser trocado por outro sem maiores consequncias. A commodity

    fora de trabalho num mercado capitalista pode chegar a este extremo em que

    as pessoas que trabalham so intercambiveis porque aquilo que elas tm a

    oferecer, a sua fora de trabalho, passa a ser considerado como uma mercadoria

    qualquer, que pode trocar por outra em qualquer momento. Isso valia por muito

    tempo principalmente naquelas atividades em que a qualificao, a experincia ou

    a habilidade tcnica tinham uma importncia menor. Hoje, cada vez ampliam-se

  • 7/23/2019 despersonalizao

    16/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 15

    mais as reas de atuao em que a fora de trabalho passa a ser tratada como

    uma commodity. A consequncia que to logo houver uma oferta um pouco

    mais barata, ela substituda. A utopia de uma poltica social que decomodifique

    o trabalho seria associar no ao trabalho, mas pessoa que o executa o direito

    de participar da riqueza da sociedade de tal modo, que ela no dependa direta e

    exclusivamente do mercado de trabalho para satisfazer as suas necessidades. A

    proposta no que o cio fosse permanente, que a pessoa deixasse de trabalhar;

    a ideia que a pessoa tivesse condies de rejeitar ofertas de trabalho

    consideradas atentatrias a sua dignidade enquanto pessoa ou indignificantes da

    riqueza socialmente produzida porque a contrapartida proposta em forma de

    remunerao muito baixa. Portanto, uma poltica social decomodificadora dotrabalho criaria a situao na qual as pessoas poderiam ficar tanto tempo sem

    trabalhar at que alguma oferta no mercado de trabalho estivesse altura de sua

    dignidade enquanto pessoa e enquanto produtoras de riqueza. No difcil

    perceber que essa reivindicao tem um horizonte utpico, ainda relativamente

    distante. Mas ao mesmo tempo interessante observar que h pases que se

    aproximaram razoavelmente desse tipo de situao.

    As polticas sociais na grande maioria dos pases no ocidente capitalista seja na Europa, nos EUA ou no Brasil esto vinculadas condio de

    trabalhador formal; no Brasil, inclusive, por dcadas muitos direitos relativos

    poltica social beneficiavam apenas o trabalhador urbano. Alguns poucos pases,

    em especial os escandinavos, orientaram sua poltica social para o cidado, sem

    restringi-la ao vendedor da fora de trabalho. Com isso eles criaram espaos mais

    amplos de autonomia do cidado para escolher onde ele se inserir no mercado

    de trabalho modestos quando comparados aos ideais utpicos de umareumanizao plena da mercadoria fora de trabalho, mas uma valorizao do

    cidado.

    A poltica social coloca na pauta da discusso pblica a questo da

    distribuio da riqueza socialmente produzida e, assim, a pergunta pela justia

    social. No se pode fazer poltica social sem confrontar-se com a questo sobre o

    que aceitvel como socialmente justo, sobre como deve ser distribuda a

    riqueza socialmente produzida e como devem ser supridas as necessidades das

    pessoas dentro da situao biolgica, cultural e social da sociedade especfica.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    17/191

    16 Emil A. Sobottka

    Cada sociedade se confronta, ademais, com a questo sobre como agir nas

    situaes em que a pessoa no tem possibilidade de suprir suas necessidades

    autonomamente.

    Uma contribuio interessante para essa questo feita por Claus Offe

    (2005). Para esse autor existem trs princpios de justia social: ajuda,

    previdncia e direito de cidadania. O princpio da ajudaimplica em que a pessoa

    com necessidade tem direito a receber ajuda, e sua comunidade tem o dever

    moral de ajud-la. A tradio de ajuda aos pobres milenar (Geremek, 1991), e

    no Ocidente ela esteve fortemente vinculada tradio crist; hoje

    crescentemente esse dever moral de ajudar o prximo em necessidade visto

    como um compromisso humanitrio. O princpio da ajuda ao necessitado, noentanto, no serve como regra geral para a distribuio da riqueza na sociedade.

    A riqueza na sociedade moderna no se distribui por sentimentos interindividuais;

    para contrapor-se ao acmulo privado so necessrias regras mais abrangentes e

    bem fundamentadas, so necessrias instituies que deem suporte aos

    princpios da igualdade e da fraternidade.

    O princpio da previdncia est amplamente presente na poltica social e se

    refere a uma relao em que atravs de uma contribuio prvia o indivduoadquire o direito a receber dessa proviso uma remunerao. Exemplos so os

    seguros sociais, os fundos mutualistas, a previdncia social. Face ao fato que

    certos riscos da vida tm um grau razovel de previsibilidade de virem a ocorrer,

    pode-se instituir formas coletivas de contribuio para um fundo, e essa

    participao gera o direito de receber do seguro social uma remunerao quando

    for necessrio. Todos contribuem enquanto podem e aqueles que necessitam

    recebem segundo critrios previamente estabelecidos. Esse princpio tem sidocomum para antecipar-se ao desemprego, a situaes de doena e ao perodo de

    aposentadoria. Os seguros sociais geralmente so amparados por legislaes

    nas quais o estado define e zela pelo cumprimento das regras e tambm d seu

    aval como garantidor ltimo para as situaes em que as necessidades de

    desencaixe forem maiores que os fundos acumulados. Eles diferem dos seguros

    comerciais porque no se orientam por categorias definidoras de risco, mas

    contm uma dimenso redistributiva da riqueza na medida em que a contribuio

  • 7/23/2019 despersonalizao

    18/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 17

    se orienta pela renda e a definio do benefcio se orienta principalmente pela

    necessidade.

    Dentro do princpio da previdncia h uma variante impulsionada por

    liberais que tm dificuldade em aceitar a socializao dos riscos e benefcios: a

    previdncia individual que segue o clculo atuarial. Essa forma de previdncia

    pode ter uma dimenso distributiva indireta, por exemplo, via incentivos fiscais

    para a capitalizao, mas se orienta fortemente pela relao entre contribuio e

    benefcio, deixando em plano secundrio a necessidade do beneficirio.

    Aposentadorias complementares e planos de sade no Brasil tm esse carter. A

    contribuio independe da renda, mas se orienta pela expectativa do futuro

    benefcio, enquanto no seguro social, ao contrrio, a dimenso redistributivaprepondera.

    O terceiro critrio de justia social mencionado por Offe o direito de

    cidadania.

    A agregao de direitos sociais cidadania ocorreu basicamente ao longo

    do sculo 20. Uma de suas origens foi a responsabilidade que sociedades

    europeias assumiram para com ex-combatentes que perderam a capacidade para

    o trabalho e/ou familiares de combatentes mortos na guerra. Outra, sistematizadapor T. H. Marshall (1967) para o caso da Inglaterra, v a poltica social como

    ampliao da participao nas conquistas do processo civilizatrio: os membros

    da comunidade podiam esperar uma participao nas condies gerais de vida

    por serem cidados daquela localidade ou regio uma noo que foi evoluindo

    at tornar-se uma cidadania nacional. Segundo esse princpio, o direito a

    participar da riqueza da sociedade derivado da condio de ser membro dela.

    A maioria dos sistemas de poltica social, na atualidade, mesclam em maiorou menor grau esses trs princpios, mas todos eles esto presentes. Contudo,

    para os defensores do mercado capitalista moderno a pergunta prioritria que se

    coloca no pelo princpio de justia social, mas, sim, se a poltica social

    intervm indevidamente nas regras do mercado e assim desequilibra a lei da

    oferta e da procura. Nas ltimas dcadas, os defensores radicais do mercado tm

    conseguido fora poltica capaz de desfazer algumas conquistas civilizatrias nas

    relaes sociais feitas no sculo 20 e tornar plausveis para a esfera das relaes

    de trabalho ideais dos sculos anteriores.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    19/191

    18 Emil A. Sobottka

    Resis tncia just ia social e processos de excluso

    H diversas preocupaes e temores que eram expressos j no sculo 19

    e que ressurgiram mais persistentemente a partir de meados do sculo 20, na

    esteira do renascimento do liberalismo conservador e que tem em Friedrich Hayek

    (1987) um de seus expoentes. Um desses temores que a poltica social seja um

    sustentculo da preguia; no se fala em cio, como Hegel, que um direito do

    indivduo, mas em preguia, que tem conotao moral negativa e indicaria que a

    pessoa no quer cumprir com seu dever de trabalhar para descansar sobre os

    benefcios da poltica social. Assim, surge a exigncia de fortalecimento de

    mecanismos que impeam que as pessoas se acomodem condio de

    beneficiado de alguma poltica social e as forcem a voltar, pela fora de seu

    trabalho, a fazer jus participao na riqueza socialmente produzida.

    H outro temor, antigo, mas ainda presente na atualidade, de que o

    fortalecimento dos segmentos considerados dependentes do trabalho pudesse

    criar uma fora poltica que demandaria participar mais intensamente dos

    assuntos pblicos; como pela sua proporo no conjunto da populao poderiam

    se constituir em maiorias, eles em algum momento colocariam em risco aestabilidade da sociedade. Os defensores desse temor no consideram que

    essas maiorias tenham civilidade suficiente para poder decidir sobre os destinos

    da nao. Esse preconceito elitista raramente admite, hoje expressamente, ser

    avesso democracia por consider-la um risco; ele aparece antes na forma de

    despolitizao da poltica, como nos regimes militares da Amrica Latina do final

    do sculo 20, ou de transformao da poltica social em populismo clientelista,

    como se os benefcios fossem devidos generosidade do governante.Nas ltimas dcadas tambm tem sido expresso com frequncia o temor

    de que a poltica social se tornaria como uma bola de neve: seus custos poderiam

    at comear modestos e justificveis, mas criariam vulto at exacerbar qualquer

    limite e tornar invivel a produo de riqueza; chegaria o momento em que no

    apenas haveria mais consumidores do que criadores de riqueza, mas a proporo

    da riqueza apropriada privadamente seria to pequena face quela dada em

    benefcio da sociedade, que deixaria de haver estmulo econmico para seguirtrabalhando. Olhando a evoluo estatstica de alguns oramentos pblicos,

  • 7/23/2019 despersonalizao

    20/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 19

    pode-se perceber efetivamente um crescimento dos gastos considerados sociais.

    Contudo, uma anlise mais detalhada desses gastos pode revelar um panorama

    bem mais diferenciado: nem tudo que apresentado como gasto social tem

    relao com distribuio da riqueza socialmente produzida nem est em sintonia

    com os princpios de justia social. No Brasil, por exemplo, a maioria dos gastos

    declarados como sociais tem um efeito concentrador de riqueza; eles tiram mais

    riqueza de quem tem pouco para dar mais a quem j tem muito. Quem afirma isso

    um relatrio do Banco Mundial (World Bank, 2003); ele mostra, por exemplo,

    como o sistema de aposentadorias no servio pblico, em particular no judicirio,

    um forte concentrador de renda, que s fica atrs da poltica de juros.

    Face a esses temores, principalmente temores de que os gastos sociais setornariam incontrolveis, foram lanadas diversas propostas de reformas.

    Algumas pretendiam deslegitimar a reivindicao de maior participao dos

    cidados na riqueza socialmente produzida para, depois, retirar das polticas

    sociais suas dimenses redistributivas. Como consequncia ocorreram cortes nos

    oramentos sociais e uma reorganizao das prioridades de investimentos. O

    montante total de impostos arrecadados e de gastos governamentais no caiu; o

    que houve foi uma diminuio proporcional dos oramentos sociais e umarealocao maior de recursos em outros lugares. Em alguns pases, como no

    Brasil, pode-se observar uma migrao da riqueza social arrecadada das polticas

    que beneficiavam os cidados mais necessitados em direo ao que chamado

    de atrao de investimento. Ou seja, a riqueza socialmente produzida

    canalizada na forma de subsdios ou de benefcios fiscais para empreendimentos

    que prometem se instalar e gerar mais emprego e riqueza, assim

    empreendedores forneos se apropriam por antecipao de uma riquezasocialmente produzida pela populao local com a promessa de futuramente

    produzir mais riqueza. H duas distores nesse modelo de alocao da riqueza

    social. Primeiro, via de regra so concedidos a esses empreendimentos amplos

    benefcios fiscais, isentando-os, portanto tambm no futuro de participarem da

    mais importante forma de redistribuio da riqueza socialmente produzida em

    sociedades capitalistas, que so os impostos. Segundo, nos contratos de atrao

    de investimento em regra no so previstas auditorias para conferir se essa

  • 7/23/2019 despersonalizao

    21/191

    20 Emil A. Sobottka

    riqueza ser realmente produzida tal como prometido, nem exigncias de

    restituio da riqueza social local em caso de descumprimento das promessas.

    Nas discusses pblicas sobre reformas se fazem reiteradamente

    presentes propostas de maior mercantilizao do trabalho. Sugestes de reforma

    em polticas sociais, na legislao trabalhista, no sistema de ensino e em outras

    reas com frequncia derivam da pretenso de que as pessoas sejam

    impulsionadas a estarem no mercado de trabalho, a venderem sua fora pelo

    preo que o mercado quiser oferecer por ela. O resultado de muitas dessas

    reformas seria uma recomodificao da fora de trabalho; no uma

    decomodificao, como era a expectativa de defensores de polticas sociais, mas

    uma reinsero do trabalho como commodity. Essa impulso maior presenadas pessoas no mercado de trabalho leva, segundo as leis da oferta e da procura,

    a uma saturao do mercado de trabalho e a uma desvalorizao da mercadoria

    fora de trabalho. A consequncia um achatamento do rendimento que o

    mercado est disposto a pagar pela fora de trabalho ofertada.

    Um risco adicional que haja uma reduo das possibilidades de venda da

    fora de trabalho. Isso teria, para voltar a Hegel e Durkheim, a dramtica

    consequncia de impedir que esses indivduos contribuam para o bem-estarsocial e assim pudessem ter a justificada expectativa de ter a recompensa de

    poder suprir adequadamente as necessidades suas e de sua famlia. Talvez

    nesse contexto se possa falar de riscos de excluso social, um tema

    extremamente controvertido e difcil de ser definido. Niklas Luhmann (1992),

    quando confrontado com as limitaes da teoria sistmica por ele concebida para

    interpretar a situao concreta de alguns pases, como os da Amrica Latina e

    especialmente o Brasil, formulou a tese de que em determinadas circunstnciash uma anteposio de critrios que interferem no funcionamento dos sistemas

    sociais. Essa anteposio pode provocar a excluso social. A situao de

    normalidade seria a incluso social: quando a pessoa depende de um sistema

    social e tem acesso aos benefcios de seu desempenho. Por exemplo: em dada

    circunstncia a pessoa depende de uma boa formao para participar do mercado

    de trabalho e tem acesso ao sistema de formao que a prepara para o exerccio

    profissional. Essa pessoa estaria, na concepo de Luhmann, includa. Ela

    depende do desempenho de um sistema social e tem acesso a ele. E quando se

  • 7/23/2019 despersonalizao

    22/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 21

    daria a excluso? Na concepo de Luhmann, excluso social no ocorre porque

    a pessoa est fora da sociedade, mas quando ela depende de algo dentro da

    sociedade e no tem acesso quele algo. A excluso social seria a anteposio

    de uma barreira ao acesso quilo que d plenitude integrao social; seria

    quando o indivduo no consegue se colocar adequadamente naquele lugar no

    qual so definidas as relaes sociais importantes para ele. Se for o mercado de

    trabalho, no consegue uma qualificao para o emprego; se for a formao, no

    consegue um local adequado para a formao; se forem as relaes afetivas, por

    alguma razo a discriminao no permite que estabelea relaes afetivas.

    Quando essa situao se generaliza, quando desigualdade e excluso

    social transcendem as facetas da vida em que se originaram e se reproduzem emoutros mbitos, ento possvel que se esteja naquela situao que Marcelo

    Neves (1992) descreve como modernidade perifrica. Para esse autor,

    modernidade perifrica a situao de um pas, de uma sociedade que reivindica

    ter criado relaes sociais modernas, mas tem uma estruturao deficiente das

    suas relaes sociais concretas, porque h uma anteposio que restringe ou que

    facilita desproporcionalmente o acesso a recursos vitais e torna assim as

    perspectivas de vida muito desiguais.Para alm da proposio de Luhmann, na qual a excluso foi definida a

    partir da interdio do acesso a recursos vitais de um sistema social do qual o

    indivduo depende, com base em Marcelo Neves pode-se falar de uma situao

    dupla: uma anteposio que restringe ou que facilita desproporcionalmente o

    acesso queles recursos vitais. Alm da possibilidade de deficincia na

    organizao da sociedade de modo a produzir excluso, porque as pessoas no

    conseguem acesso a recursos extremamente importantes para elas, pode haveruma anteposio de privilgios para outras pessoas de tal modo que tenham

    acesso a todos os recursos vitais dos sistemas sociais sem dependerem deles;

    elas podem beneficiar-se da riqueza socialmente produzida, dos bens culturais,

    sociais e econmicos, sem contribuir para eles. Essas pessoas ficam acima da

    responsabilidade e das restries que a sociedade moderna cria para coordenar

    as relaes sociais dentro dela.

    Uma sociedade em que esto institucionalizadas formas to dspares de

    acesso aos recursos vitais e a validade das normas to seletiva e, por

  • 7/23/2019 despersonalizao

    23/191

    22 Emil A. Sobottka

    conseguinte, a desigualdade de uma esfera da vida se transmite tambm s

    outras , no corresponde a uma sociedade moderna e democrtica, ainda que

    gravite na periferia de sociedades modernas, pelas quais se orienta. Neves

    designa as pessoas com facilidades desproporcionais de sobreintegradas e

    aquelas que padecem com as restries desproporcionais de subintegradas.

    Pode-se dizer, ento, que uma modernidade perifrica tem trs segmentos sociais

    muito distintos: pessoas que contribuem e participam da riqueza socialmente

    produzida e se submetem s normas; aquelas pessoas sobreintegradas, que se

    beneficiam da riqueza, frequentemente pouco contribuem para ela e no se

    submetem s normas que estruturam as relaes sociais; e aquelas pessoas que

    dependem dessa riqueza, mas tm acesso restrito ou at interditado a ela,pessoas que experimentam muito mais as restries e punies previstas nas

    normas do que a proteo e garantia de seus direitos.

    Quando a interdio de acesso se expande para as diversas reas da vida

    e se configura a pobreza extrema, a poltica social de cunho mais liberal se

    prope a oferecer um prmio de consolao, denominado gesto social da

    pobreza. Uma distribuio limitada da riqueza social incentivada para assegurar

    que essas pessoas sobrevivam, e no sejam gerados focos de insatisfao social.Na modernidade perifrica, um grande contingente de pessoas no consegue ser

    participante pleno de uma sociedade que se estrutura fundamentalmente a partir

    do mundo do trabalho. Ento pode ocorrer que parte importante das polticas

    sociais no tem como fundamento o princpio da previdncia nem expresso de

    direitos de cidadania os dois princpios centrais de justia social em sociedades

    modernas e, sim, fruto da transferncia unilateral de renda do estado para o

    cidado. Programas como o Bolsa Famlia so, no limite, a reedio em grandeescala do princpio da ajuda apontado por Offe. Ao ser estruturado como ajudae

    no como direito de cidadania, torna-se possvel que essa poltica social, ao

    repartir a riqueza social com cidados em situao de necessidade, no leve a

    que o cidado reconhea nela sua incluso social numa sociedade que se orienta

    por princpios modernos de justia social, mas seja simbolicamente apropriada e

    transferida como uma benesse do governante para aquelas pessoas para quem

    alegadamente quer fazer algum bem. Com isso, a poltica de transferncia de

    riqueza social na forma de ajuda tira das pessoas a possibilidade de sentirem-se

  • 7/23/2019 despersonalizao

    24/191

    Justia social e democracia na modernidade perifrica 23

    includos em sua sociedade, construtores de outras riquezas sociais, mesmo que

    temporariamente estejam impossibilitados de gerarem riqueza econmica e

    recriam dependncia ao torn-las devedoras de favor.

    Creio ser possvel concluir dessas reflexes que em sociedades de

    modernidade perifrica h atualmente duas ameaas srias democracia. De um

    lado, um conjunto pequeno de pessoas sobreintegradas, que podem participar da

    riqueza socialmente produzida, apropriar-se, servir-se e abusar dela, transferi-la

    inclusive para fora, sem terem uma vinculao orgnica com a produo e justa

    distribuio dessa riqueza e sem assumirem como vinculantes para si as regras

    que estruturam as relaes sociais. E, no outro extremo, um conjunto crescente

    de pessoas que no so plenamente reconhecidas como cidados, com acessorestrito s possibilidades de produzir e usufruir da riqueza social, sendo

    arregimentadas por favores; para essas pessoas dificultado o acesso ao direito

    de reivindicar aquilo que pelas leis lhes assegurado e que, em tese, pelo

    menos, aceito como justo dentro da sociedade: que cada pessoa, na

    eventualidade de alguma crise da vida, tenha supridas as suas necessidades pela

    sociedade da qual participa. Em sociedades como a brasileira rompeu-se o

    vnculo que a sociedade moderna estabelece entre aquilo que o indivduo pode eeticamente deve contribuir para o bem-estar de toda sociedade e aquilo que

    justificadamente pode ter a expectativa de receber e de fato receber dela em

    compensao. Restabelecer esse vnculo uma necessidade e um desafio, no

    apenas pela convico de que seja uma exigncia tica de justia social, mas

    porque essa seria uma contribuio para a estabilizao e para o aprofundamento

    da democracia.

    Referncias

    CHAPLIN, Charles. Tempos modernos[Modern times], 1936.

    DURKHEIM, Emile.A diviso do trabalho social. 2 v. Lisboa: Presena, 1984.

    ESPING-ANDERSEN, Gosta. The three worlds of welfare capitalism. Princeton:Princeton University Press, 1990.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    25/191

    24 Emil A. Sobottka

    GEREMEK, Bronislaw. Geschichte der Armut: Elend und Barmherzigkeit inEuropa. Mnchen: DTV, 1991.

    HAYEK, Friedrich A. O caminho da servido. Rio de Janeiro: Instituto Liberal,

    1987.

    HEGEL, Georg W. F. Princpios da filosofia do direito. So Paulo: Martins Fontes,1997.

    HONNETH, Axel. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma definio. Civitas,v. 8, n 1, p. 46-67.

    LUHMANN, Niklas. Zur Einfhrung. In: Neves, Marcelo. Verfassung und Positivittdes Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eineInterpretation des Falls Brasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992, p. 1-4.

    MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1967.

    NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivitt des Rechts in der peripherenModerne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des FallsBrasilien. Berlin: Duncker & Humblot, 1992.

    OFFE, Claus. Princpios de justia social e o futuro do estado de bem-estar social.In: SOUZA, Draiton G. ; PETERSEN, Nikolai. Globalizao e justia. v. 2. PortoAlegre: Edipucrs, 2005, p. 69-85.

    WORLD BANK. Inequality and economic development in Brazil. Report n. 24487-BR, 2003.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    26/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica

    Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo1

    1. O controle social e os processos de criminalizao

    O conceito de controle social j se encontra, pelo menos de forma indireta,

    nas obras dos clssicos da filosofia poltica. Est presente, por exemplo, na teoria

    do Estado de Hobbes, entendido como a limitao do agir individual exigida pela

    vida em sociedade. Explicitamente, o conceito de controle social formulado pela

    primeira vez pelo socilogo americano Edward A. Ross, no final do sculo XIX,

    em uma srie de artigos sob o ttulo Social Control, publicada no American

    Journal of Sociology,entre maro e maio de 1898 (Ross, 1969, p. vii).

    Embora j estivesse presente, portanto, desde os primrdios do

    pensamento social moderno, o tema do controle social vai adquirir lugar de

    destaque na teoria sociolgica dentro da perspectiva do estrutural-funcionalismo.

    Para Talcott Parsons, principal representante dessa corrente, continuidade e

    consenso so as caractersticas mais evidentes das sociedades. Assim como umcorpo biolgico consiste em vrias partes especializadas, cada uma das quais

    contribuindo para a sustentao da vida do organismo, Parsons, seguindo

    Durkheim, considera que o mesmo ocorre na sociedade. Para que uma sociedade

    tenha continuidade ao longo do tempo, ocorre uma especializao das instituies

    (sistema poltico, religioso, familiar, educacional, econmico), que devem

    trabalhar em harmonia. A continuidade da sociedade depende da cooperao,

    que por sua vez presume um consenso geral entre seus membros a respeito decertos valores fundamentais.

    Parsons define a teoria do controle social como a anlise dos processos do

    sistema social que se confrontam com as tendncias desviantes, e das condies

    em que operam tais processos (Parsons, 1966, p. 305). O ponto de referncia

    terico para essa anlise o equilbrio estvel do processo social interativo. Uma

    vez que os fatores motivacionais desviantes esto atuando constantemente, os

    1Professor dos Programas de Ps-Graduao em Cincias Sociais e em Cincias Criminais daPUCRS.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    27/191

    26 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    mecanismos de controle social no tm por objeto sua eliminao, apenas a

    limitao de suas consequncias, impedindo que se propaguem alm de certos

    limites (Parsons, 1966, p. 306). Existe grande relao, para Parsons, entre os

    processos de socializao e de controle social. Ambos consistem em processos

    de ajustamento a tenses.

    A partir da dcada de 60, o conceito de controle social foi reinterpretado

    pelo pensamento sociolgico, no interior das novas teorias do conflito, para as

    quais a sociedade passa a ser compreendida como um campo de foras

    conflitual, em que se enfrentam diferentes grupos, com diversas estratgias de

    poder. Mas foi o interacionismo simblico que, ao concentrar sua ateno sobre

    os aspectos definicionais da conduta humana e sobre a reao que provocam osdistintos gestos significantes, produziu uma verdadeira revoluo cientfica no

    mbito dos estudos sociocriminolgicos, provocando o deslocando do paradigma

    etiolgico pelo paradigma do controle ou da reao social (Bergalli, 1991).

    Assumindo a perspectiva interacionista, Dias e Andrade (1991) sustentam

    queo estudo da seleo da criminalidade operada pelos mecanismos formais de

    controle social, e em particular pelos tribunais, deve privilegiar os conceitos e

    teorias de ndole interacionista, permitindo captar a estrutura de uma aoeminentemente subjetiva como a ao jurisdicional. Segundo estes autores,

    (...) no ser, por isso, de estranhar que as teorias sociolgicasque mais recentemente tm ensaiado enquadrar a acojurisdicional - entre as mais credenciadas: teoria do papel, dogrupo, da interaco simblica, do domnio, do sistema, daorganizao, da deciso - sejam, todas elas, directa ouindirectamente subsidirias da aparelhagem conceitual bsica dointeraccionismo. (Dias e Andrade, 1991, p. 519)

    O interesse dos estudos criminolgicos, e em especial da sociologia

    criminal, se desloca da criminalidade para os processos de criminalizao. O

    direcionamento da questo criminal para os processos de criminalizao

    reforado pela anlise materialista dialtica, que lanou mo do instrumental

    metodolgico marxista para compreender at que ponto a velha criminologia

    positivista e seus distintos objetos de conhecimento transmitiam uma viso

    ideologizada da criminalidade, e como o direito penal era o principal irradiador deideologias sobre todo o sistema de controle penal.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    28/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 27

    A partir de uma perspectiva conflitual da ordem social, o controle social

    passa a ser conceituado como o conjunto de mecanismos tendentes a naturalizar

    e normalizar uma determinada ordem social, construda pelas foras sociais

    dominantes (Pavarini e Pegoraro, 1995, p. 82).

    Essa concepo foi assumida por diversas correntes criminolgicas,

    orientadas ora no sentido da erradicao do sistema penal tal como hoje se

    conhece, para voltar a formas privadas de soluo dos conflitos, ora para uma

    restrio do sistema, atravs de estratgias de descriminalizao e

    informalizao, e outras ainda voltadas para a utilizao do sistema para a

    proteo dos setores sociais vulnerveis. Essas orientaes so representadas,

    respectivamente, pelo abolicionismo escandinavo (Mathiesen, Christie, Hulsman),pelo garantismo jurdico-penal (Baratta, Ferrajoli, Pavarini), e pelo realismo de

    esquerda britnico (Young, Lea, Matthews), que so as posies mais destacadas

    da criminologia crtica, e coincidem com uma sociologia do controle penal na

    revalorizao de todos os nveis do sistema.

    2. Nveis de realizao do s istema de controle penal

    Os nveis de atuao das instncias de controle social so dois: o ativo ou

    preventivo, mediante o processo de socializao; e o reativo ou estrito, quando

    atuam para coibir as formas de comportamento no desejado ou desviado. O

    nvel reativo constitui o terreno concreto da sociologia do controle social, e se

    expressa por meios informais e formais. Os meios informais so de natureza

    psquica (desaprovao, perda de status, etc.), fsica (violncia privada), ou

    econmica (privao de emprego ou de salrio). Nesse caso, as normas jurdicasatuam como limite para excluir alguns em determinadas circunstncias.

    J os meios formais de controle social reativo so constitudos por

    instncias ou instituies especialmente voltadas para este fim (a lei penal, a

    polcia, os tribunais, as prises, os manicmios, etc.), caracterizando o uso da

    coero por instncias centralizadas para manter a ordem social, legitimado pelo

    discurso do direito. Teoricamente sua atuao est prvia e estritamente

    estabelecida pelo direito positivo, nos cdigos penais e leis processuais.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    29/191

    28 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    Em sociedades que possuem uma organizao jurdico-constitucional e um

    Estado de Direito, o controle penal baseado na institucionalizao normativa. O

    direito penal constitudo pelo conjunto de normas a partir das quais a conduta

    das pessoas pode ser tipificada e valorada em relao a certas pautas de dever.

    Nesse sentido, no h dvida que as normas penais materiais e processuais

    configuram o sistema de controle jurdico-penal, embora sujeitas a

    descontinuidades, interrupes ou interferncias quanto sua aplicao.

    Para o exame das normas penais, necessrio esclarecer em que

    consistem e quais so os elementos que as compem, bem como a insero

    desse sistema normativo no conjunto de normas que integram uma estrutura ou

    ordenamento jurdico. Desde a positivao ou formalizao do direito penal, essenvel constitui a preocupao central dos juristas, dando origem teoria das

    normas penais.

    A chamada cincia do direito penal dedicou-se anlise lgico-formal das

    normas e do ordenamento, procurando tornar previsvel a conduta do juiz que

    aplicar a norma e com isso alcanar o mximo de segurana jurdica,

    fundamento do Estado de Direito. No logrou, no entanto, dar respostas decisivas

    sobre a origem ou gnese das normas penais, na medida em que a presena deuma norma penal em um momento concreto de uma sociedade dada deve ser

    buscada na individualizao dos interesses e representaes sociais que

    impulsionaram a criao da norma, e continuam sustentando sua presena no

    ordenamento jurdico respectivo.

    Uma compreenso metanormativa do direito que v alm da dogmtica

    penal deve, portanto, partir da investigao sobre a gnese da norma e seu

    impacto nas relaes sociais, desvelando o contedo de incerteza eimprevisibilidade por trs do ideal de segurana jurdica.

    O segundo nvel de realizao de um sistema de controle penal o que

    envolve os momentos de aplicao concreta da legislao penal, isto , sua

    eficcia. Enquanto a legitimidade de um sistema normativo diz respeito

    correspondncia das normas com os valores socialmente reconhecidos como

    justos em uma dada sociedade, e a legalidade corresponde ao juzo de fato que

    se emite sobre a existncia formal das normas, segundo as formas e os

    procedimentos legalmente previstos, a eficcia a capacidade das normas em

  • 7/23/2019 despersonalizao

    30/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 29

    encontrar uma efetiva aplicao na realidade, em relao a comportamentos

    concretos dos sujeitos a quem elas se dirigem.

    Para a anlise da eficcia de determinada norma ou ordenamento jurdico,

    e em particular das normas penais, preciso levar em conta o complexo de

    momentos em que se fragmenta o controle penal, articulado atravs da

    interveno da polcia, do Ministrio Pblico, dos juzes e tribunais e dos crceres,

    que receberam da perspectiva interacionista a denominao de processos de

    criminalizao.

    A superao do paradigma esttico do estrutural-funcionalismo, promovida

    pelo labeling approach, abriu a possibilidade de uma viso e abordagem dinmica

    e contnua do sistema penal, no qual possvel individualizar segmentos que vodesde o legislador at os rgos judiciais e prisionais. Nessa perspectiva, os

    processos de criminalizao promovidos pelo sistema penal se integram na

    mecnica de um sistema mais amplo de controle social e de seleo das

    condutas consideradas desviantes (Andrade, 1997, p. 210).

    Para a sociologia, a anlise desse nvel envolve no apenas o

    comportamento dos indivduos cuja conduta est sujeita aplicao das normas

    penais, mas fundamentalmente o comportamento daqueles que devem fazercumprir os mandamentos e proibies penais, os operadores do sistema. Assim,

    uma sociologia jurdico-penal de carter emprico deve levar em conta os aportes

    da sociologia das profisses e da sociologia das organizaes, investigando a

    fundo as instncias de aplicao das normas penais, desvelando os mecanismos

    que se movem no interior do aparato policial, judicial e penitencirio,

    democratizando o conhecimento a respeito do seu funcionamento para toda a

    sociedade (Bergalli, 1991, p. 36).

    3. Direito e Controle Social no Estado Moderno

    O processo de formao do Estado moderno teve como elemento

    constitutivo caracterstico o modo abstrato e formal que assumiu o discurso

    jurdico. O direito passa a ser considerado como um conjunto de regras gerais e

    abstratas, emanadas de um poder soberano, formando um sistema ouordenamento jurdico, e no mais como um conjunto de pretenses e

  • 7/23/2019 despersonalizao

    31/191

    30 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    reivindicaes particularistas, baseadas na tradio e em prerrogativas

    especficas.

    Durante o perodo que se estendeu da Baixa Idade Mdia at a Revoluo

    Francesa, em que o Estado Moderno se consolidou, desenvolveu-se uma disputa

    poltica entre vrios grupos sociais. No processo judicial, destacaram-se duas

    tendncias: de um lado, a manuteno de jurisdies particularistas, de carter

    local (as justias das aldeias, vilas e cidades) e de carter funcional (justias

    especializadas de certas corporaes); de outro lado, a par das disputas entre

    juzes letrados e juzes leigos, entre funcionrios ou delegados reais e

    representantes de outros poderes locais ou senhoriais, desenvolveu-se uma

    definio crescente de regras procedimentais, relativas, inclusive, a provas eprocedimentos de recurso, com o objetivo de racionalizar e uniformizar de tal

    modo o sistema judicial que os tribunais centrais pudessem exercer um poder

    centralizador (Lima Lopes, 1996, p. 247-248).

    O passo seguinte foi dado pelo estabelecimento do Estado liberal, no

    sculo XIX. Entre os sculos XVI e XVIII firmam-se os Estados nacionais, mas a

    vida social ainda se configura em torno de estamentos e categorias que impedem

    a universalizao do direito de julgar uniformemente. O triunfo do Estado liberaltraz consigo a promessa de universalizao da cidadania: todos so iguais

    perante a lei, e a lei ser uma s para todos. A partir da, todos os conflitos podem

    ser universalmente submetidos a um nico sistema de tribunais, com um nico

    sistema de regras procedimentais desenvolvidas pouco a pouco. Do ponto de

    vista das instituies, o direito de julgar adquirido pelo Estado desenvolveu a

    profissionalizao do direito, pela organizao da burocracia estatal e

    especializada e pelo estabelecimento da fora pblica (polcia).O moderno Estado constitucional pode ento ser visualizado como um

    conjunto legalmente constitudo de rgos para a criao, aplicao e

    cumprimento das leis. Ocorre a despersonalizao do poder do Estado, que

    passa a fundar sua legitimidade no mais no carisma ou na tradio, mas em uma

    racionalidade legal, isto , na crena na legalidade de ordenaes estatudas e no

    direito de mando dos chamados por essas ordenaes a exercerem a autoridade

    (Weber, 1996, p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva do fato de

    terem as normas sido produzidas de modo formalmente vlido, com a pretenso

  • 7/23/2019 despersonalizao

    32/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 31

    de serem respeitadas por todos aqueles situados dentro do mbito de poder

    daquele Estado.

    Entre as principais caractersticas desse tipo de Estado, est o controle

    centralizado dos meios de coero. O Estado moderno se apresenta, assim,

    como um complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamente

    erigido, que tem como caracterstica estrutural mais destacada o monoplio da

    violncia legtima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo

    (Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coero fortalecido

    pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurdica, tornando a coero

    mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializado do Estado.

    Essa caracterstica constitui-se em um marco do que Elias denomina processocivilizador, com a adoo de formas mais racionais e previsveis de instaurao

    de processos e de punio pela prtica de atos legalmente e previamente

    previstos como crimes2

    Embora reconhea que as relaes de poder so sempre potenciais,

    instveis e moleculares, Foucault identifica, tal como Weber e Elias, os

    mecanismos de racionalizao que do mquina estatal a capacidade de

    governo sobre a sociedade. Para ele, no entanto, esse processo se desenvolveuatravs de dois polos interligados por um feixe intermedirio de relaes. O

    primeiro deles o que se concentra no adestramento do corpo como mquina, no

    crescimento paralelo de sua docilidade e utilidade, na sua integrao em sistemas

    de controle eficazes e econmicos, atravs de procedimentos de poder que

    caracterizam as disciplinas. O segundo centrou-se no corpo-espcie, na

    natalidade e mortalidade, no nvel de sade, atravs de uma bio-poltica da

    populao, do seu controle demogrfico e atuarial (Foucault, 1999, p. 285 e seg.).

    .

    Para Habermas, embora a compreenso formalista do direito, tomada

    como base de orientao por Weber, nunca tenha expressado de forma exata a

    realidade do fenmeno jurdico, a atualidade do diagnstico weberiano no fruto

    do acaso, uma vez que

    (...) a tese relativa desformalizao do direito comprovou-secomo enunciado comparativo sobre uma tendncia existente na

    2 Sobre este tema, vide o Vol. 2 da obra O Processo Civilizador, de Norbert Elias, sobre aformao do Estado, em especial o captulo II, Sobre a sociognese do Estado, p. 87-190.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    33/191

    32 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    autocompreenso e na prtica dos especialistas em direito.(Habermas, 1997, p. 204)

    Segundo ele, o debate atual sobre a "desformalizao" do direito toma

    Weber como ponto de partida,

    (...) pois seu questionamento da racionalidade da forma do direitovisava medidas para um direito ao mesmo tempo correto efuncional. Nesta medida, sua discusso ajuda a entender osproblemas que envolvem a legitimidade decorrente da legalidade.(Habermas, 1997, p. 206).

    Correspondendo, como paradigma terico, aos modernos Estados liberais,

    a doutrina do direito como conjunto orgnico e universalmente vlido de normas

    institucionalmente reconhecidas progressivamente minada, com o avano da

    providncia estatal, por tentativas de adequar a regulamentao legal e a sua

    implementao pelas instncias judiciais a um contexto no qual emergem

    discursos normativos rivais e se exige do Estado a execuo de funes

    crescentemente poltico-administrativas.

    A concentrao de poder nas mos do Estado, a complexificao da

    sociedade e a regulamentao legal de setores cada vez mais amplos da vida

    social, culminam, nas sociedades urbano-industriais contemporneas, com a crise

    de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurdico esvaziado,

    paralela e simultaneamente crise fiscal do Estado-Providncia. Comeam a

    aparecer as fissuras nesse aparato que ainda sustenta sua legitimidade em uma

    legalidade abstrata, constituda de acordo com normas gerais e apropriadamente

    promulgadas.

    Isso ocorre porque algumas premissas da racionalidade legal comeam aser minadas ou desgastadas (a diviso de poderes, a supremacia e generalidade

    da lei, etc.), frente concentrao de expectativas no polo do Poder Executivo, e

    dos recursos limitados de que dispe para garantir a estabilidade social e a

    acumulao de capital.

    Alm disso, na medida em que se desgasta a crena na naturalidade das

    hierarquias de poder ou de distribuio de riqueza existentes, a atividade

    governamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suasconsequncias em termos da satisfao de interesses fracionrios, e a linha

  • 7/23/2019 despersonalizao

    34/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 33

    divisria entre Estado e sociedade civil comea a se tornar cada vez mais difusa,

    aumentando a influncia e a presso sobre as polticas governamentais e as

    decises judiciais por diferentes grupos sociais, que se rebelam contra a estrita

    observncia de normas processuais e legais.

    A renovao das fontes de legitimidade do Estado , ento, buscada na

    sua capacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento

    econmico, vistos como padro necessrio e suficiente para o desempenho de

    cada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controle

    social para a manuteno da ordem, justificando com isso deslocamentos na linha

    Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidade interna,

    como um fim em si mesmo, e a manuteno da ordem pblica, tornam-se asprincipais justificaes para a existncia do Estado, e a sua fonte de legitimidade,

    sobrepondo-se mera racionalidade jurdico-legal.

    Depois de uma fase ininterrupta de prosperidade econmica, desde o final

    da Segunda Guerra, que consolida o keynesianismo como poltica econmica de

    governo nas democracias liberais do Ocidente, o choque do petrleo, nos anos

    70, e a crise fiscal da maioria dos Estados industrializados, aprofundou o

    predomnio da racionalidade instrumental sobre o iderio iluminista. Num primeiromomento, a partir do final da dcada de 70, o Estado passa a ser totalmente

    dominado pela fora e os interesses da globalizao capitalista. a fase urea do

    neoliberalismo, representada pelos governos de Ronald Reagan e Margaret

    Thatcher, na qual foi implementada uma ampla reestruturao produtiva nos

    principais centros industriais do mundo capitalista. A partir desse momento, em

    termos de poltica criminal, se fortalecem e disseminam as tendncias

    paleorepressivas de criminalizao e encarceramento, que nos E.U.A. resultaramem um crescimento geomtrico da populao submetida ao sistema prisional, que

    era de 200.000 presos na dcada de 70 e 30 anos depois chega a quase 2

    milhes de pessoas, correspondendo a 800 presos para cada 100 mil habitantes.

    4. A situao da Segurana Pbl ica no Brasi l

    Historicamente no Brasil as Universidades tm tido muita dificuldade paraestabelecer uma agenda de pesquisa sobre a temtica da segurana pblica e do

  • 7/23/2019 despersonalizao

    35/191

    34 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    controle de violncia, por uma srie de fatores que tem a ver com a distncia que,

    no Brasil, existe tanto entre os diferentes atores sociais que atuam nessa rea

    policiais, integrantes do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico , mas tambm

    pelo fato de que a Universidade no Brasil, pela sua estrutura, pelos seus

    objetivos, pelas suas finalidades, teve sempre uma dificuldade muito grande de

    lidar com os problemas que afetam mais diretamente as populaes de baixa

    renda. Essa dificuldade vem sendo superada nos ltimos anos pela iniciativa de

    alguns pesquisadores da rea da violncia e da segurana pblica, que ao

    realizarem suas pesquisas no tm apenas uma preocupao acadmica, tm

    tambm uma preocupao em contribuir de alguma forma para o equacionamento

    desse problema social, com o incremento de mecanismos de elaborao,monitoramento e avaliao das polticas pblicas de segurana.

    Temos na rea da segurana pblica no Brasil uma situao bastante

    paradoxal. Trata-se de uma combinao perversa entre elementos que vm do

    medievo o sistema penitencirio e elementos de ps-modernidade. Essa

    combinao perversa porque justamente o que caracteriza o que chamo de ps-

    modernidade no mbito penal so algumas propostas que se vinculam s

    polticas de tolerncia zero contra a criminalidade, maior interveno punitivacontra pequenos delitos, a utilizao do direito penal como remdio e soluo

    para todos os problemas sociais, com a ampliao dessa interveno pelo

    legislativo, abarcando todas as reas nas quais se manifestam problemas sociais:

    meio ambiente, trnsito, conflitos interpessoais, relaes de consumo, etc.

    Outro elemento desse contexto de ps-modernidade penal o chamado

    direito penal do inimigo, a ideia de que para aumentar a eficincia dos

    mecanismos de controle penal preciso reduzir garantias dentro do processopenal. Vale lembrar a velha mxima de que a polcia prende e o judicirio solta,

    uma forma de questionar a interveno do judicirio, porque se pretende que o

    judicirio tambm adote uma forma de atuao mais repressiva e menos

    preocupada com a garantia de direitos fundamentais do acusado.

    Observando as taxas de encarceramento no Brasil, verificamos o enorme

    crescimento ocorrido na ltima dcada, que faz com que tenhamos hoje nos

    crceres brasileiros 460 mil presos (no final dos anos 90 a populao carcerria

    no Brasil estava em torno de 150 mil presos). Levando em conta os dados gerais

  • 7/23/2019 despersonalizao

    36/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 35

    do sistema carcerrio, o que mais cresce a utilizao da priso preventiva, ou

    seja, pessoas que esto presas sem uma condenao criminal, e que

    representam hoje 43% do total de presos no pas.

    Outro elemento da ps-modernidade penal o modelo RDD (Regime

    Disciplinar Diferenciado), ou seja, a ideia de que como a ressocializao no

    acontece, como no se consegue reintegrar socialmente, embora seja esse o

    propsito do encarceramento do ponto de vista das disposies legais e

    constitucionais, o papel da priso seria simplesmente de conteno e no mais a

    recuperao ou a reinsero do indivduo na vida social.

    Todas essas caractersticas so novas. Se formos pensar h 10 ou 20

    anos atrs, na mentalidade social e na mentalidade dos operadores do direito,mesmo durante o perodo autoritrio, estava ainda distante dessas caractersticas

    elencadas aqui.

    No entanto, possvel afirmar tambm que o Estado brasileiro no um

    bloco monoltico. E tambm no so monolticas as instituies policiais, o

    Ministrio Pblico, a Magistratura. Em todas as corporaes existem diferentes

    formas de interveno. O discurso dos direitos humanos, reiteradamente

    apresentado, h mais de 10 anos, desde a Constituio de 88, enquanto discursooficial, e o fato de que ano aps ano, so elaborados planos, programas, projetos

    de segurana pblica e direitos humanos incorporando todo o iderio presente na

    Constituio, nos remetem pergunta: por que a maioria dessas questes fica no

    papel? Por que ano aps ano, apesar do discurso oficial, continuam as chacinas,

    os homicdios, continuam todos os problemas que afetam o campo da segurana

    pblica?

    inquestionvel que isso tem relao com a nossa estrutura social, com asituao de desigualdade social que ainda marca a sociedade brasileira. Sem

    dvida que essas questes estruturais tm um peso importante, mas quando se

    fala em segurana pblica possvel sustentar tambm que as coisas poderiam

    ser diferentes, mesmo se tudo o que acontece em termos de estrutura social e de

    educao no avanasse, ns poderamos avanar um pouco mais na rea de

    segurana pblica se algumas coisas fossem encaminhadas, se os mecanismos

    de gerenciamento das agncias envolvidas com a segurana fossem melhor

    utilizados.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    37/191

    36 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    Mas, em primeiro lugar, o aperfeioamento gerencial e institucional no

    to simples, porque h diferenas entre os juzes, entre os promotores, entre os

    policiais, entre as pessoas que atuam nessa rea: diferenas de concepo. H

    no interior das instituies uma viso que mais vinculada a ideia de que para

    haver segurana preciso abrir mo de direitos, preciso reduzir a margem de

    garantias individuais. Est presente nas pesquisas que tem sido feitas com

    operadores do direito e perceptvel no contato com policiais civis e militares, nos

    cursos de especializao em segurana pblica promovidos por diversas

    universidades brasileiras em parceria com a SENASP.

    H na verdade uma diviso no interior das instncias de poder do Estado

    brasileiro e no interior dessas diferentes corporaes, sendo que de um lado esto discurso republicano da garantia dos direitos humanos com segurana pblica,

    mas de outro h ainda uma concepo que se conecta com parcelas importantes

    da opinio pblica no Brasil, no sentido do endurecimento penal, de mais prises,

    de presos em condies precrias, sem garantias individuais bsicas. Discurso

    que se manifesta muitas vezes pela defesa da pena de morte, da reduo da

    idade penal, dos direitos humanos s para humanos direitos.

    Para que se coloquem em prtica as declaraes programticas e asprevises legais, preciso enfrentar essa questo de que estamos lidando com

    diferentes concepes, diferentes paradigmas. E que o paradigma hoje dominante

    o do endurecimento penal como resposta ao problema da violncia, do crime e

    da insegurana pblica. Nunca como hoje houve tanta gente presa. Nunca como

    hoje, no mundo, o sistema penal teve o papel que ele tem no sentido de que o

    Estado recua no campo dos direitos sociais, mas avana no campo da

    criminalizao e do encarceramento. preciso construir outro modelo de enfrentamento da violncia e da

    criminalidade tanto no plano do debate terico e normativo, quanto no dia a dia,

    no cotidiano. preciso construir experincias concretas. A desconstruo do

    paradigma dominante ainda uma tarefa necessria. Ainda necessrio mostrar

    a cada dia que prender no resolve. Pelo contrrio, prender cria novos problemas

    e, portanto, preciso afirmar isso. Mas preciso ir alm. preciso apresentar

    solues. Esse o grande desafio. preciso pensar sobre as polcias. No h

    democracia sem polcia democrtica. preciso continuar a construo de uma

  • 7/23/2019 despersonalizao

    38/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 37

    polcia para a democracia, que seja tcnica e gerencialmente preparada, voltada

    para a resoluo de problemas, capaz de combater a truculncia policial, de

    combater a corrupo interna, porque s dessa forma a polcia ser respeitada

    pelo cidado.

    Por outro lado, precisamos avanar na discusso sobre a preveno ao

    delito. preciso construir os mecanismos adequados para uma preveno eficaz

    da criminalidade. Isso passa pela incluso social para a juventude, programas de

    melhorias do ambiente urbano, polticas de reduo das oportunidades para o

    crime, recolhimento e controle de armas, discusso sobre o controle da bebida

    alcolica, tema polmico, porque na verdade a forma como isso vai ser colocado

    em prtica deve ser sempre bem pensada e feita de acordo com um debate, umprocesso poltico com a participao da comunidade, no como uma

    determinao que vem de cima para baixo, imposta.

    Precisamos pensar algumas coisas que vo tocar diretamente o sistema de

    justia, porque muitos conflitos chegam ao poder judicirio, e dentro do poder

    judicirio precisaro ser equacionadas. As reformas da justia, especialmente da

    justia penal, tem que ser bem avaliadas, porque o sistema penal tem que se

    colocar enquanto mecanismo de pacificao social, de melhoria das condies devida e segurana da populao, coisa que at hoje ele no foi. Ao contrrio, o

    sistema penal brasileiro, at hoje, foi um sistema crimingeno e voltado sujeio

    criminal dos setores sociais mais vulnerveis e tidos como perigosos.

    Por fim, temos que pensar sobre o problema do encarceramento no Brasil.

    preciso pensar a priso a partir da perspectiva da reduo de dano, porque a

    priso causa dano. Temos hoje 460 mil presos, e mesmo que boa parte deles

    seja composta por presos provisrios, ou presos que j teriam o direito deprogredir de regime, ainda assim no temos o poder de esvaziar as prises

    brasileiras. A tendncia , pelo contrrio, aumentar a demanda de

    encarceramento. Mas o Estado, caso pretenda exercer seu poder punitivo,

    precisa garantir tambm as condies carcerrias estabelecidas em lei. Sem

    dvida possvel descartar a priso como alternativa eficaz para o controle do

    crime, na grande maioria dos casos. Mas no momento o que ns temos so 460

    mil presos, e menos de 250 mil vagas no sistema. Isso no aceitvel. O Estado

  • 7/23/2019 despersonalizao

    39/191

    38 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    Brasileiro precisa investir e garantir condies carcerrias at que se rediscuta o

    modelo punitivo at hoje adotado.

    Entra a o debate da descarcerizao. Quem est nas prises brasileiras?

    O sistema prisional brasileiro composto por 40% de presos por trfico e 40% por

    roubo. Esta a porta de entrada do sistema prisional: o pequeno vendedor de

    drogas que vai preso e a pessoa que est numa situao economicamente

    vulnervel em meio urbano e que vai roubar e ser encarcerado. O pequeno

    praticante desse tipo de delito vai preso e a primeira coisa que ele tem que fazer

    na priso entrar para uma faco. Se at ento ele no pertencia a faco

    nenhuma, a partir dali passa a fazer parte de uma e vai estabelecer relaes que

    vo garantir sua verdadeira reinsero social, porque vo garantir uma renda euma aceitao que a sociedade no vai lhe oferecer. O pequeno traficante e o

    assaltante eventual vo se tornar a mo de obra de que a criminalidade precisa

    para a prtica de crimes maiores.

    Alm disso, precisamos pensar num outro modelo para o tratamento das

    questes que chegam ao sistema penal, como deveriam ser os Juizados

    Especiais Criminais. Eles faliram, e a Lei Maria da Penha a demonstrao cabal

    dessa falncia. Os delitos contra a mulher e a violncia domstica, que chegavamaos Juizados Especiais Criminais, agora no chegam mais. Na prtica no se

    conseguiu implantar, de fato, aquilo que era sustentado em 1995, quando a lei foi

    criada. Essa falncia se deu por problemas na lei e por problemas com os

    operadores do direito, ao no se conseguir abrir espao no mbito do sistema de

    justia para a mediao de conflitos. A mediao no aconteceu porque os

    operadores do direito no trabalharam no sentido de uma mediao penal. O que

    poderia ter avanado no avanou e o que ocorre nos Juizados um processomuito mais formal do que real de enfrentamento dos conflitos sociais, o que

    acabou levando ao descontentamento das vtimas, levando a uma srie de

    problemas que fizeram com que a experincia dos Juizados Especiais Criminais

    esteja numa situao de impasse, a partir da entrada em vigor da lei Maria da

    Penha.

    Outra questo relevante diz respeito s penas alternativas, porque embora

    ns estejamos no mbito do sistema penal, possvel pensar nesses

    mecanismos como mecanismos inclusivos e no de excluso social. Incluir

  • 7/23/2019 despersonalizao

    40/191

    Violncia e segurana pblica em uma perspectiva sociolgica 39

    dignamente pela priso um desafio na prtica inalcanvel. Incluir por meio de

    uma pena alternativa sabemos que possvel, como demonstra a experincia da

    Vara de Execues de Penas e Medidas Alternativas de Porto Alegre, com

    importantes resultados alcanados nessa perspectiva de incluir socialmente uma

    populao que vulnervel e que tem dificuldade de se conectar socialmente.

    Fato que todos estes desafios dizem respeito a uma revoluo

    democrtica da justia no Brasil, que redirecione a estrutura e os esforos de

    milhares de operadores do sistema de segurana pblica e justia criminal para

    objetivos diversos do foco at agora direcionado para a manuteno da ordem

    pblica. Uma estrutura policial capaz de estabelecer vnculos com a comunidade

    e atuar na resoluo de conflitos cotidianos, e de realizar a represso qualificadada criminalidade violenta, e um sistema de justia capaz de colocar-se perante a

    sociedade enquanto um canal legtimo e adequado para a mediao dos conflitos

    sociais so a exigncia colocada para que possamos avanar no sentido da

    reduo da violncia e da garantia de direitos no Brasil.

    Referncias Bibliogrficas

    ANDRADE, Vera Regina Pereira.A Iluso de Segurana Jurdica. Porto Alegre,Livraria do Advogado Ed., 1997.

    BERGALLI, Roberto. Sociology of Penal Control Within The Framework of TheSociology of Law. Oati Proceedings n 10, I.I.S.L.,1991, p. 25-45.

    DIAS, J.F.; A NDRADE, M.C. Criminologia: o homem delinqente e a sociedadecrimingena. Coimbra, Ed. Coimbra, 1992, 1 reimpresso.

    ELIAS, Norbert. O Processo Civilizadorvol. 2 - Formao do Estado e Civilizao.Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993 (trad. Ruy Jungamnn e Renato JanineRibeiro).

    FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    HABERMAS, Jurgen. Direito e DemocraciaVol. II - Entre Facticidade e Validade.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 (trad. Flvio Beno Siebeneichler).

    LIMA LOPES, Jos Reinaldo de. Uma Introduo Histria Social e Poltica doProcesso. In Wolkmer, A.C. (org.), Fundamentos de Histria do Direito. BeloHorizonte, Ed. Del Rey, 1996.

  • 7/23/2019 despersonalizao

    41/191

    40 Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

    PARSONS, Talcott. El Sistema Social. Madrid, Editorial Revista de Occidente,1966.

    PAVARINI, Massimo ; PEGORARO, Juan. El Control Social en el Fin del Siglo.

    Univ. de Buenos Aires, Buenos Aires, 1995.

    POGGI, Gianfranco.A Evoluo Do Estado Moderno- Uma IntroduoSociolgica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981 (trad. lvaro Cabral).

    ROSS, Edward Alsworth. Social Control- A survey of the foundations of order.The Press of Case Western Reserve University, Cleveland, 1969.

    WEBER, Max. Economia Y Sociedad- Esbozo de sociologa comprensiva.Mxico, Fondo de Cultura Econmica, Segunda Edio, Dcima Reimpresso,1996 (trad. Jos Medina Echavarra et. alii).

  • 7/23/2019 despersonalizao

    42/191

    Sociedades complexas e polticas pblicas

    Hermlio Santos*

    Introduo

    As polticas pblicas constituem um dos principais resultados da ao do

    Estado. Contudo, algumas questes se impem: por um lado, devemos nos

    perguntar se o Estado possui a legitimidade necessria para produzir efeitos no

    processo de polticas pblicas. Com um mundo cada vez mais globalizado

    economicamente, o que significa dizer com atores institucionais do mercado cada

    vez mais potentes politicamente, e com uma sociedade civil que se diversifica

    tanto na sua agenda quanto na quantidade de atores relevantes, previsvel que

    esse cenrio represente algum desafio adicional s tarefas estatais relacionadas

    formulao e implementao de polticas. Por outro lado, relacionado a esse

    contexto, aumenta o interesse em saber como se d a relao entre os agentes

    estatais e demais atores no estatais, seja do mercado, seja da sociedade civil,

    na produo dessas polticas. Assistimos, nas ltimas dcadas, em praticamentetodas as democracias contemporneas, a um processo relativamente rpi