Download - d Fundamentos Tributaria 1978312040
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE PS-GRADUAO
Lus Fernando Belm Peres
FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO
DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE
INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA
TRIBUTRIA
BELO HORIZONTE - MG
2010
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Lus Fernando Belm Peres
FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO
DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE
INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA
TRIBUTRIA
Dissertao apresentada ao Curso de Ps-
Graduao em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial para a
obteno do grau de Mestre em Direito,
sob a orientao do Professor Doutor
Werther Botelho Spagnol.
BELO HORIZONTE - MG
2010
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Lus Fernando Belm Peres
FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO
DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE
INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA
TRIBUTRIA
Dissertao apresentada e aprovada junto ao Curso de Ps-Graduao em Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, visando obteno do grau de Mestre em
Direito.
Belo Horizonte, ____ de _____________ de 2010.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Professor Doutor Werther Botelho Spagnol (Orientador)
_______________________________________________
Professor (a) Doutor (a)
_______________________________________________
Professor (a) Doutor (a)
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RESUMO
Na tradio do Direito Constitucional brasileiro, o reconhecimento judicial da
inconstitucionalidade de um determinado diploma normativo implicava, necessria e
inexoravelmente, na sua excluso do ordenamento jurdico com efeitos ex tunc.
Mais recentemente, contudo, incorporando tendncias verificadas na maioria
absoluta dos Estados constitucionais contemporneos, passou-se a admitir, tambm no
direito brasileiro, como exceo, a mitigao dos efeitos temporais das declaraes de
inconstitucionalidade. Com efeito, o art. 27 da Lei n. 9.868/99, entre ataques e ovaes
por parte da literatura especializada, veio a efetivamente estabelecer que, ao (...)
declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de
segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal
Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela
declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou
de outro momento que venha a ser fixado.
A modulao temporal dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade vem,
de fato, sendo aplicada pelo Supremo Tribunal Federal. A dogmtica jurdica, no
entanto, pouco tratou da questo at agora. Neste contexto, busca o presente trabalho
tecer parmetros conceituas que sirvam de trilho para a aplicao do instituto em
questo, especialmente no que se refere s declaraes de inconstitucionalidade de
normas tributrias. Com este intento, as anlises retornaro s bases tericas que
fundamentam a jurisdio constitucional, apreciando criticamente as relaes que a sua
atividade estabelece com a interpretao jurdica, o princpio da diviso dos poderes do
Estado, a democracia e a proteo dos direitos fundamentais. Investigar-se-, ainda, se a
modulao temporal dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade se
compatibiliza com o postulado da supremacia da Constituio.
Ao final, em abordagem desenvolvida sob a tica do Direito Tributrio
brasileiro, e de suas peculiaridades, o problema ser apreciado luz dos direitos
fundamentais do contribuinte e das limitaes constitucionais ao poder de tributar.
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ABSTRACT
In the history of Brazilian Constitutional Law, the judicial recognition of the
unconstitutionality of a particular legislative act meant, necessarily and inevitably, in its
exclusion from the legal system with effect ex tunc.
More recently, however by incorporating trends in the absolute majority of
contemporary constitutional states, began to be admitted, also in Brazilian law as an
exception, mitigating the effects of temporal declarations of unconstitutionality. Indeed,
art. 27 of Law No 9.868/99, between attacks and standing ovations from the literature,
came to actually establish that, "(...) declare the unconstitutionality of a law or
normative act, and in view of legal reasons or exceptional social interest, can the
Supreme Court, by a majority of two thirds of its members, restricting the effects of that
statement or that it will only be effective from their res judicata or other time as may be
prescribed. "
The temporal modulation of the effects of the declarations of unconstitutionality
is, in fact, being applied by the Supreme Court. The legal science, however, little has
dealt with so far. In this context, this paper seeks to weave conceptual parameters that
serve as a trail for the implementation of the rule in question, especially with regard to
declarations of unconstitutionality of the tax law. With this intent, the analysis will
return to the theoretical foundations that underlie constitutional jurisdiction, critically
approaching the relationships that their activity shares with legal interpretation, the
principle of division of state powers, democracy and protection of moral rights. Will be
investigate, even if the temporal modulation of the effects of the declaration of
unconstitutionality to reconcile with the postulate of supremacy of the Constitution.
Finally, the approach developed in the perspective of the Brazilian Tax Law, and
its peculiarities, the issue will be assessed in light of the fundamental rights of the
taxpayer and the constitutional rules on taxing power.
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SUMRIO
1) INTRODUO 13
1.1. O contencioso constitucional tributrio 13
1.2. A modulao dos efeitos das decises declaratrias de
inconstitucionalidade
15
1.3. A possibilidade da modulao de efeitos das decises
proferidas em aes diretas de inconstitucionalidade e seu
impacto nas relaes tributrias
24
2. REVELANDO O SENTIDO DA CONSTITUIO: A
INTERPRETAO JURDICA NO ESTADO DEMOCRTICO DE
DIREITO
33
2.1. O texto constitucional e a concretizao da Constituio.
Entre fatos e normas
33
2.2. Concluses parciais sobre a concretizao da Constituio 79
3. JURISDIO CONSTITUCIONAL, SEPARAO DE PODERES
E MODULAO DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECISES
DECLARATRIAS DE INCONSTITUCIONALIDADE
85
3.1. Consideraes gerais 85
3.2. Jurisdio constitucional. Julgar ou legislar? 88
3.2.1. Sistema poltico, sistema jurdico e jurisdio 95
3.2.2. A Jurisdio constitucional no Estado Democrtico
de Direito
114
3.3. Supremacia constitucional e modulao temporal dos
efeitos das declaraes de inconstitucionalidade.
132
4 FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO DOS
EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE
INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA TRIBUTRIA.
151
4.1 - Sistema constitucional tributrio: panorama geral 151
4.2 Os princpios tributrios potencialmente relacionados
com a modulao dos efeitos temporais das declaraes de
inconstitucionalidade proferidas em sede de ao direta.
166
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4.2.1. Consideraes iniciais 166
4.2.2. A proteo da confiana como princpio que
embasa a modulao a favor dos contribuintes.
168
4.2.3. Modulao temporal das declaraes de
inconstitucionalidade em favor da Fazenda Pblica.
Possibilidade?
178
5 CONCLUSES 189
6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 198
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS
ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade
CF Constituio Federal
CTN Cdigo Tributrio Nacional
ICMS Imposto sobre a circulao de mercadorias e sobre prestaes de
servios de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicao
STF Supremo Tribunal Federal
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(...) Fala claro, interrompeu Jesus, No possvel, disse
Deus, as palavras dos homens so como sombras, e as
sombras nunca saberiam explicar a luz, entre elas e a luz
est e interpe-se o corpo opaco que as faz nascer (...).
(Jos Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo)
(...) as pessoas que tm excessiva certeza de que h um s
caminho e uma s verdade, verdade que lhes inteiramente
conhecida, so perigosas e propensas e todo tipo de crime.
Saber da verdade e querer imp-la aos outros, num mundo
onde tudo muda e tudo se encobre por toda sorte de
aparncias, uma grave espcie de loucura. (Joo Ubaldo
Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro)
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Aos meus pais, Valdir e Ceclia, com quem aprendi a
valorizar, como virtude maior, o esforo contnuo da
depurao espiritual, dinamizada atravs do dilogo, da
leitura e da reflexo incansveis.
s minhas irms, Flvia e Cristiane, pelo carinho com que
me presentearam desde sempre.
Ao pequeno Heitor, menino hoje, homem amanh, que,
espero, conhecer um Brasil mais justo e solidrio que o do
presente.
Fabola, amor da minha vida, sempre...
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AGRADECIMENTOS
praxe afirmar que um trabalho acadmico no fruto de um esforo
individual.
Nada mais verdadeiro. H, de fato, pessoas sem as quais o presente trabalho
jamais seria produzido.
Agradeo, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Werther Botelho Spagnol,
que, com maestria, orientou a conduo da presente pesquisa. A ele cabem os mritos
que porventura sejam vislumbrados no trabalho; no lhe podem ser imputados, contudo,
os defeitos que, certamente existem, e que devem ser creditados apenas ao autor.
Sinto-me no dever de enaltecer a importncia da posio que o Professor
Werther desempenhou na minha vida acadmica e profissional, representando, para
mim, um modelo de professor e de advogado a ser sempre perseguido. Tive o privilgio
de com ele conviver desde os tempos do bacharelado, no Grupo de Estudos Tributrios,
onde adquiri o especial interesse pelo Direito Tributrio que, depois, jamais me viria a
abandonar.
Agradeo, ainda, aos meus colegas do escritrio e da Procuradoria-Geral do
Distrito Federal. Especialmente, destaco o apoio indispensvel que me foi concedido
pelo amigo Andr vila, que, ao concordar prontamente com o meu afastamento
temporrio das atividades na Banca, tornou possvel que, na reta final dos trabalhos, eu
me dedicasse com maior concentrao presente pesquisa. Agradeo, ainda, amiga
rsula Figueiredo, que me convidou a integrar o prestigiado Ncleo Consultivo
Tributrio da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, tornando vivel, assim, que o
presente trabalho se visse enriquecido com conhecimentos que somente podem ser
hauridos na vivncia imediata da atividade fiscal do Estado.
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Agradeo, ainda, ao meu pai, Valdir Peres, e ao meu amigo, irmo, Otto
Carvalho, meus procuradores em Belo Horizonte, que muito gentilmente contriburam
na conduo de providncias instrumentais, indispensveis freqncia do Curso de
Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como a efetivao
de matrculas, o preenchimento e a entrega de formulrios, etc.
Por fim, agradeo, em especial, Fabola, que, alm de me confortar ao longo de
toda essa caminhada com o seu amor e o seu carinho, contribuiu tecnicamente com a
produo das reflexes aqui transcritas. Com ela pude debater os resultados que foram
sendo obtidos, passo a passo, nessa caminhada. A ela devo, ainda, a reviso de todo o
texto.
Muito obrigado a todos!
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I - INTRODUO
1.1. O contencioso constitucional tributrio
O Direito Tributrio brasileiro se caracteriza, particularmente, pelo detalhamento
com que o texto constitucional forja os contornos normativos que embasam o exerccio
vlido e legtimo do poder de tributar.
Controvrsias acerca do significado das normas constitucionais que estruturam o
sistema tributrio nacional, em tal contexto, so sobremaneira comuns. A litigiosidade
entre a Fazenda Pblica e os contribuintes, engendrada a partir de divergncias em torno
do real alcance das limitaes constitucionais ao poder de tributar, notria e dispensa
comprovao atravs de dados estatsticos.
Especificamente no mbito do controle concentrado de constitucionalidade,
consulta breve e informal base de dados do Supremo Tribunal Federal mostra-se
suficiente para a imediata deteco da enorme quantidade de atos normativos tributrios
cuja validade foi impugnada, perante aquele Corte, pelos legitimados arrolados nos
incisos do art.103 da Constituio (que sistematicamente lanam mo de instrumentos
processuais em defesa de suas concepes acerca do real alcance das normas
constitucionais tributrias).
Com efeito, a cada diploma normativo que editado, positivando novas regras
instituidoras de tributos, ou modificadoras dos j existentes - ou mesmo cuidando
apenas de regimes de arrecadao e procedimentos de fiscalizao - arrojam-se as
autoridades e rgos, legitimados a impulsionar o monitoramento concentrado de
constitucionalidade das leis, a questionar a validade da recm-editada medida,
deduzindo, perante o Supremo Tribunal Federal, argumentos, em geral, diretamente
ligados a supostas violaes aos direitos fundamentais dos contribuintes e ao
desrespeito s limitaes constitucionais ao poder de tributar. Confederaes
representantes de categorias econmicas, o Procurador-Geral da Repblica,
Governadores de Estado, enfim, toda uma gama de autorizados propositura de aes
diretas de inconstitucionalidade no se acovardam em questionar a validade de
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inovaes introduzidas no sistema tributrio nacional, fazendo uso intenso dos
mecanismos de controle que a Constituio, democraticamente, ps ao alcance de
inmeras autoridades e entidades, amplamente representativas dos segmentos que
formam a matizada sociedade brasileira.
A agenda da jurisdio constitucional, no Brasil, assim, repleta de litgios
acerca da validade de normas tributrias. Os direitos e garantias fundamentais
outorgados aos contribuintes, bem como a exaustiva discriminao de competncias e a
aposio de rgidos requisitos formais e materiais para o exerccio do poder impositivo,
presentes no prprio texto constitucional, perfazem a munio argumentativa da qual a
sociedade faz legitimamente uso para, no mbito dos processos predispostos a tanto,
suscitar a invalidade de regras tributrias.
No raramente, os argumentos apresentados pelos contribuintes, ou por outro
dos legitimados propositura da ao direta, so acolhidos em juzo, sendo os atos
normativos impugnados expurgados do ordenamento jurdico.
* * *
As decises proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, acolhendo argies
diretas de inconstitucionalidade propostas em face de normas tributrias, representam
verdadeiras inovaes no ordenamento jurdico, que passa a no mais contar, no seu
repertrio de fontes, com o texto expurgado. O sistema jurdico-tributrio, assim, sofre
modificao em sua composio estrutural, passando a reger a vida social de maneira
distinta daquela que, at ento, vinculava a conduta dos destinatrios da norma, que
passam a contar com horizonte distinto acerca das conseqncias jurdicas dos seus
atos.
O Direito se insere no cotidiano dos cidados, das empresas e dos rgos
estatais; vivaz, e define previamente as opes de conduta possveis de todos os
membros da sociedade. Sua desobedincia acarreta sanes. Sua modificao resulta na
alterao das prprias perspectivas de aes juridicamente viveis por parte das pessoas.
As estruturas sociais so pontualmente alteradas quando uma deciso proferida em
controle concentrado reconhece a invalidade de um dado texto normativo tributrio.
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Enfim, o Direito vige aqui e agora, no uma entidade transcendental presente apenas
nos cdigos adquiridos nas livrarias; no puramente abstrato, nem pode sofrer
modificaes sem que isso desge em resultados prticos diretos e imediatos.
No que se refere, especificamente, s relaes jurdico-tributrias, as alteraes
normativas provocadas pelas decises proferidas em aes diretas resultam em aguda e
incomum alterao do cotidiano dos destinatrios das normas. Empresas planejam suas
estratgias de atuao no mercado a partir da existncia de uma determinada carga de
impostos, taxas e contribuies. O Estado, igualmente, erige o oramento vislumbrando
uma determinada arrecadao. Tais previses so bsicas na racionalizao da vida
econmica de tais agentes. A modificao do panorama normativo, digamos, no meio
do caminho, pode acarretar graves conseqncias para ambos.
Neste contexto, a possibilidade de modulao temporal dos efeitos das decises
que reconhecem a invalidade de normas, a partir de um juzo fundamentado do Supremo
Tribunal Federal, passou a ser sria e amplamente considerada na literatura e na
jurisprudncia, em ntido distanciamento da clssica frmula adotada no
constitucionalismo brasileiro, que sempre apregoou a nulidade ex tunc de qualquer
princpio ou regra que viessem a ser editados em contrariedade Constituio. A
supervenincia de uma soluo legislativa para a questo no tardou.
1.2. A modulao dos efeitos das decises declaratrias de inconstitucionalidade
O art. 27 da Lei n. 9.868/99 veio consagrar expressamente, no Direito brasileiro,
tcnica de deciso, aplicvel ao controle concentrado de constitucionalidade1, cuja
1 O Supremo Tribunal Federal vem aceitando, tambm, analogamente tcnica instituda no mbito do
controle abstrato, a modulao de efeitos das declaraes de inconstitucionalidade proferidas no mbito
do controle difuso de constitucionalidade (cf., por todos, o RE n. 197.917-8, Rel. Ministro Maurcio
Corra, DJ 07.05.2004, no qual se afastou, por inconstitucional, a aplicao da Lei Orgnica do
Municpio de Mira Estrela SP, que fixava, para a composio de seu Poder Legislativo, nmero de vereadores incompatvel com os parmetros estabelecidos na CF). Tal questo, a par de sua inegvel
relevncia, no ser aqui abordada, contudo, para no se induzir a necessidade de discusses processuais
polmicas em torno da adequao da modulao de efeitos ao controle difuso de constitucionalidade, vez
que o objeto do trabalho, como mais adiante se ver, outro, e se situa mais no plano do direito material,
especificamente na necessria relao de adequao que deve haver entre a modulao de efeitos no
tempo, os direitos fundamentais do cidado contribuinte e as limitaes constitucionais ao poder de
tributar. E o paradigma processual que permite a modulao de efeitos o controle concentrado, na
medida em que h soluo legislada ainda que polmica que assim dispe. Enfim, levar a discusso
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utilizao j era observada em inmeros pases, e que permite ao rgo julgador
modular, no tempo, os efeitos das declaraes de inconstitucionalidade das leis. Nestes
casos, o Supremo Tribunal Federal poderia, mesmo ao reconhecer a
inconstitucionalidade, por exemplo, de uma dada lei, determinar que os efeitos de sua
deciso nulificante de regra provida de eficcia ex tunc sobreviessem somente a
partir de um determinado instante no passado (eficcia ex tunc mitigada), do trnsito em
julgado do acrdo (eficcia ex nunc), ou em outro momento ulterior fixado pela Corte
(eficcia pro futuro).
A par da clssica discusso em torno da nulidade ou da anulabilidade dos atos
normativos inconstitucionais, fato que se evidenciou o nascimento, na jurisprudncia
dos Tribunais Constitucionais, a partir da avaliao prudente da prpria complexidade
das situaes concretas enfrentadas, de argumentos acerca da necessidade de serem
criadas frmulas decisrias que adequassem, no tempo, os efeitos do reconhecimento da
invalidade de diplomas editados em contrariedade Constituio. Mais singelamente,
imps-se a assertiva de que o reconhecimento inflexvel da nulidade das leis
inconstitucionais, com efeitos ex tunc, longe de ser providncia neutra, poderia servir de
mote a reviravoltas de situaes consolidadas em sintonia com as normas nulificadas, de
tal magnitude, que no poderiam ser consideradas de acordo com o texto constitucional.
Tratar-se-ia, assim, do reconhecimento, j retratado acima, da vivacidade do fenmeno
jurdico, e de sua inexorvel insero no tempo social, o que reclamaria alternativas
decisrias, disposio da jurisdio constitucional, que melhor se adequassem
incomensurvel complexidade dos fatos.
Daniel SARMENTO, em artigo acadmico no qual abordara o tema, procedeu a
uma precisa exposio acerca da adoo, no direito comparado, da possibilidade de
modulao temporal dos efeitos das decises que reconhecem a inconstitucionalidade de
atos normativos. Ressaltou o autor, em seu estudo, que a regra geral, na maioria dos
pases, a eficcia ex tunc das decises declaratrias da inconstitucionalidade das leis
(A grande maioria dos pases que adotou o controle jurisdicional de
constitucionalidade optou, no que tange aos efeitos temporais da deciso, pelo modelo
norte-americano, onde a decretao da inconstitucionalidade produz efeitos
para o mbito para o controle difuso terminaria por desviar as atenes do cerne do problema aqui
tratado, que basicamente de direito material, para intrincados problemas processuais.
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retroativos. [2002: 14]), destacando, todavia, que em quase todos h vlvulas de
escape que permitem que, em casos excepcionais, a regra da nulidade dos atos
normativos inconstitucionais, e a sua congruente projeo no tempo, sejam amenizadas
em prol de outros princpios constitucionais, derivados diretamente, em geral, da idia
de segurana jurdica. Compem este grupo, segundo o professor citado, dentre outros,
Portugal2, Espanha
3 e Alemanha
4.
A positivao de tal possibilidade, no Direito brasileiro, teve em Gilmar Ferreira
MENDES um de seus mais notrios estimuladores. Em obra paradigmtica sobre o
assunto, resultante do curso de doutoramento que o autor conclura, na Alemanha, no
final da dcada de oitenta (intitulada Jurisdio Constitucional), MENDES
demonstrara com flego exaustivo - sobretudo a partir da casustica do Tribunal
Constitucional Federal Alemo - como a frmula tradicional, que oscila radicalmente
entre a rejeio da argio de inconstitucionalidade ou a declarao da invalidade da
lei atacada com efeitos retroativos, seria insuficiente para se atingir uma soluo justa
para inmeras controvrsias constitucionais.
O autor, em tal contexto, apesar de reconhecer que a tradio do
constitucionalismo brasileiro apontaria no sentido da nulidade ex tunc das leis
declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal5, pontuou que razes
2 Em Portugal, por exemplo, estabelece o texto constitucional:
Artigo 282 - (Efeitos da declarao de inconstitucionalidade ou de ilegalidade). 1. A declarao de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com fora obrigatria geral produz efeitos
desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinao das
normas que ela, eventualmente, haja revogado.
2. Tratando-se, porm, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infrao de norma constitucional
ou legal posterior, a declarao s produz efeitos desde a entrada em vigor desta ltima.
3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo deciso em contrrio do Tribunal Constitucional quando a
norma respeitar a matria penal, disciplinar ou de ilcito de mera ordenao social e for de contedo
menos favorvel ao argido.
4. Quando a segurana jurdica, razes de equidade ou interesse pblico de excepcional relevo, que
dever ser fundamentado, o exigirem, poder o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2. 3 (...) houve caso em que a jurisprudncia constitucional espanhola declarou a inconstitucionalidade de
uma lei que dispunha sobre o imposto de renda, atribuindo deciso apenas efeitos prospectivos, sob o
duvidoso argumento de os recursos pblico obtidos j teriam sido gastos pelo Estado. (SARMENTO, 2002: 16) 4 Idem, 2008: 16-17.
5 O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence tradio do direito brasileiro. A teoria da
nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas. (...)
Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional
importaria na suspenso provisria ou parcial da Constituio. (MENDES, 2005: 317-318)
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derivadas do princpio da segurana jurdica, com sede no prprio texto constitucional,
poderiam, tambm no Brasil, servir de esteio para a modulao temporal dos efeitos das
decises que acolhem argies de inconstitucionalidade. Todavia, isto somente poderia
se dar a partir de um juzo severo e fundamentado por parte do STF, que, sopesando o
princpio da nulidade da lei inconstitucional com outros princpios presentes na
Constituio, tendo por pano de fundo a idia de proporcionalidade, conclusse pela
necessidade de, em determinado caso, conferir efeitos ex nunc sua deciso, ou at
mesmo protrair a sua eficcia para algum outro ponto no tempo (efeitos pro futuro).
Afirmou MENDES:
Tal como observado, o princpio da nulidade continua a ser a regra tambm no direito brasileiro. O afastamento de sua incidncia
depender de um severo juzo de ponderao que, tendo em vista anlise
fundada no princpio da proporcionalidade, faa prevalecer a idia de
segurana jurdica ou outro princpio constitucionalmente relevante
manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como
no direito portugus, a no-aplicao do princpio da nulidade no se
h de basear em considerao de poltica judiciria, mas em fundamento
constitucional prprio. (MENDES, 2005: 394-395)
Tal soluo, conforme assinalado no incio deste tpico, veio a ser objeto de
disciplina explcita na Lei n. 9.868/99, que, em seu art. 27, assim disps:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse
social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros
de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que
ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro
momento que venha a ser fixado.
Comentando tal disposio, ainda Gilmar Ferreira MENDES (2005: 317)
ressaltou ser notrio que o legislador optou conscientemente pela adoo de uma
frmula alternativa pura e simples declarao de nulidade.
Ou seja, consagrou-se, no direito positivo infraconstitucional, norma processual,
disciplinadora das decises proferidas nos processos objetivos de monitoramento da
constitucionalidade das leis, que faculta ao Supremo Tribunal Federal, em determinados
casos e sob quorum qualificado, restringir temporalmente a eficcia de seus acrdos
declaratrios da inconstitucionalidade de atos normativos; possibilidade esta que
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derivaria da existncia de princpios constitucionais que, contrapostos ao princpio da
nulidade das leis inconstitucionais, sobressairiam, ao menos parcialmente, na resoluo
de determinados litgios.
A recepo da tcnica, no mbito do STF, pode ser ilustrada a partir da seguinte
passagem de voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski, nos autos do Recurso
Extraordinrio n. 370682/SC:
Como a inconstitucionalidade pode ser argida a qualquer tempo, no difcil imaginar que a adoo sistemtica da sano de nulidade
acarretaria graves transtornos s relaes sociais, visto que a prpria
certeza do direito poderia ser colocada em xeque. A anulao da norma
inconstitucional, com a modulao dos efeitos temporais da deciso,
surge assim como precioso instrumento que permite temperar o
princpio da supremacia constitucional com outros valores socialmente
relevantes, em especial o da segurana jurdica.
A necessidade de preservar-se a estabilidade de relaes jurdicas pr-
existentes, levou o legislador ptrio, inspirado nos modelos alemo e
portugus, a permitir, nas Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e
9.882, de 3 de dezembro de 1999, que o Supremo Tribunal Federal
regule, ao seu prudente arbtrio, os efeitos das decises proferidas nas
aes declaratrias de constitucionalidade, nas aes diretas de
inconstitucionalidade e nas argies de descumprimento de preceito
fundamental.
(...)
Recorde-se, ademais, que o STF ao proceder, em casos excepcionais,
modulao dos efeitos de suas decises, por motivos de segurana
jurdica ou de relevante interesse social, estar realizando a ponderao
de valores e princpios abrigados na prpria Constituio.
* * *
A soluo legislativa (conforme assinalado, defendida na literatura
constitucional por vrios autores, e j amplamente adotada no direito comparado),
entretanto, no isenta de incisivas objees. Numeroso grupo de constitucionalistas,
com efeito, deduz crticas consistentes adoo da frmula que permite a modulao
temporal dos efeitos das decises declaratrias de inconstitucionalidade.
Segundo tais estudiosos, a possibilidade de se modular no tempo os efeitos das
declaraes de inconstitucionalidade das leis equivaleria ao reconhecimento da
suspenso temporria da vigncia da Constituio, no tocante ao perodo com referncia
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ao qual se conferiu legitimidade aos efeitos produzidos por normas que viriam a ter sua
invalidade reconhecida. Com o reconhecimento da aplicao da lei inconstitucional ao
longo de um dado intervalo, ter-se-ia a inverso temporria da hierarquia das fontes
integrantes do ordenamento jurdico, sobressaindo, num tal contexto, a eficcia de uma
norma invlida sobre a fora normativa da prpria Constituio. Situaes ilegtimas se
consolidariam, suportadas por foras apcrifas emanadas do domnio ftico, que
sustentariam a aplicao intermitente de normas inconstitucionais e submergiriam a
prpria noo de supremacia da Constituio, sustentculo do Estado de Direito.
Ainda segundo os crticos da frmula, a possibilidade da modulao dos efeitos
das declaraes de inconstitucionalidade que, ao cabo, equivaleria a uma faculdade de
se condicionar a vigncia da prpria Constituio no se inseriria dentre os feixes de
atribuies que poderiam ser legitimamente conferidos aos rgos encarregados da
Jurisdio Constitucional. A estes, como rgos judiciais que inquestionavelmente so,
responsveis pela aplicao do direito positivo a partir do cdigo sistmico lcito-ilcito,
no seria dada a prerrogativa essencialmente poltica de, a partir de frmulas genricas
como segurana jurdica ou relevante interesse social, deliberar sobre a
convenincia e a oportunidade de se deixar de aplicar, com referncia a dado intervalo
de tempo, o texto constitucional. Junte-se a isso o fato de que poucos so os membros
das Cortes Constitucionais, sendo, no caso do Brasil, o Supremo Tribunal Federal
integrado por onze Ministros, que, por mais cultos e justos que fossem mesmo, alis,
se idealmente perfeitos ainda assim no deteriam a prerrogativa de deixar de aplicar a
Constituio, norma bsica que se sustenta sobre a mais ampla base de legitimidade
poltica e pertence a todo o povo, no sendo a sua fora normativa, assim, sujeita a
disponibilidade por parte da jurisdio constitucional.
Integra o grupo de estudiosos que sustenta a inconstitucionalidade da norma que
conferiu ao STF a possibilidade de modular os efeitos temporais das declaraes de
inconstitucionalidade, o professor Marcelo Andrade Cattoni de OLIVEIRA, que, em
artigo publicado em 20026, externou as seguintes observaes:
6 Reflexo profunda do autor sobre o tema, no mesmo sentido aqui referido, consta, ainda, da obra Devido
Processo Legislativo, na qual, sob a tica da teoria do discurso, so tecidas cidas crticas s disposies
da Lei n. 9.868/99).
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Por fim, e nesse sentido, tambm preciso reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 9.868/99, que pretende descaracterizar o
controle difuso, ao buscar alterar o artigo 482 do Cdigo de Processo
Civil, e por intentar transformar as decises em ao direta de
inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal federal num meio
esprio de suspenso da ordem constitucional, ao pretender atribuir a
esse Tribunal o poder de restringir o contedo e de fixar os efeitos
temporais de suas decises, flagrantemente invertendo a hierarquia das
fontes ao poder determinar, cidadania, Administrao Pblica e aos
demais juzes e tribunais, a obedincia a leis e atos normativos
declarados inconstitucionais pelo prprio Tribunal, com base em razes (?) de segurana jurdica ou de excepcional interesse social (art. 27, da Lei n. 9.868/99). (OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Jurisdio constitucional: poder constituinte permanente? in SAMPAIO, Jos
Adrcio Leite Sampaio e CRUZ, lvaro Ricardo de Souza (org.).
Hermenutica e jurisdio constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
2002. p. 77)
lvaro Ricardo de Souza CRUZ, por sua vez apesar de, ao final, concluir pela
convenincia da adoo da tese da anulabilidade das normas inconstitucionais, nos
moldes propostos por KELSEN (1998) e em dissonncia com a tradio constitucional
brasileira , na obra intitulada Jurisdio Constitucional Democrtica, expe relevantes
observaes, que denotariam, sob a tica da Teoria Discursiva do Direito, o carter
poltico, e no jurdico, da modulao de efeitos temporais das decises que acolhem
argies de inconstitucionalidade. Segundo o autor, se a supremacia da Constituio
deixa de ser admitida em favor da teoria da aparncia, para fins de proteo de
terceiros de boa-f, da coisa julgada ou do princpio do equilbrio econmico
financeiro, na verdade, o Judicirio estaria abandonando o Direito e passando a
operar exclusivamente por meio de argumentos pragmticos, ou seja, politicamente
(CRUZ, 2004: 254-255). Logo a seguir, o estudioso conclui o seu raciocnio:
Em decorrncia, inadmissvel que razes de convenincia ou oportunidade possam determinar que uma norma declarada
inconstitucional continue gerando efeitos durante algum tempo, ou seja,
prospectivamente. Isso seria admitir a validade de um ato ilcito, o que certamente uma contradio em si mesma. (2004: 255)
Mesmo no mbito do Supremo Tribunal Federal, a tcnica no foi acolhida com
simpatia por todos os Ministros, e, em alguns casos, a sua aplicao vem ocasionando
acalorados debates no Plenrio da Corte. Por exemplo, durante o julgamento do RE n.
370.682/SC, em que se discutia a possibilidade de aproveitamento, na sistemtica do
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Imposto sobre Produtos Industrializados, de crditos decorrentes da aquisio de
insumos no-tributados, isentos, ou sujeito a alquota zero, quando levantada questo de
ordem acerca da possibilidade de ser conferido efeito meramente prospectivo deciso
que ali era proferida, por razes de segurana jurdica, posicionou-se o Ministro Marco
Aurlio, ao negar a viabilidade de tal providncia, no sentido de que a modulao de
efeitos levaria a uma situao em que sobrelevariam duas Constituies Federais, uma
anterior ao julgamento e uma posterior; como se houvesse disciplinas distintas, a
anterior, contemplando o crdito, e a posterior, afastando-o. Mais adiante, prosseguiu
Sua Excelncia em seu substancioso voto:
A segurana jurdica est, na verdade, na proclamao do resultado dos julgamentos tal como formalizada, dando-se primazia Constituio
Federal e exercendo o Supremo o papel que lhe reservado o de preservar a prpria Carta da Repblica e os princpios que a ela so
nsitos, como o da razoabilidade e o do terceiro excludo.
(...)
De minha parte, pouco importando os interesses individuais e
momentneos em jogo, sufrago o entendimento, sempre e sempre, da
preponderncia da ordem jurdica. o preo a ser pago em um Estado
Democrtico de Direito, e mdico. Concluo pela eficcia das decises
tal como proferidas.
No mbito do direito comparado, sintoma primeiro da complexidade ou,
poder-se-ia mesmo afirmar, do carter polmico do problema da modulao temporal
dos efeitos do acolhimento das argies de inconstitucionalidade so as prprias
oscilaes da tcnica no mbito da jurisprudncia da Suprema Corte Norte-Americana,
que, ao contrrio do que se verifica nos Tribunais Constitucionais Europeus, no a
incorporou, em definitivo, ao seu rol de tcnicas decisrias potencialmente utilizveis.
Nos Estados Unidos, conforme exps Daniel SARMENTO, a Suprema Corte, a
partir da dcada de sessenta, passou a admitir a modulao temporal dos efeitos do
reconhecimento da inconstitucionalidade das leis no no que tange ao caso concreto
no qual a deciso foi proferida, mas sim perante os terceiros que sofreriam os efeitos
retroativos do precedente vinculante (stare decisis). Contudo, mais recentemente,
aponta o autor um retorno da Suprema Corte americana aplicao irrestrita da regra da
nulidade ex tunc dos atos inconstitucionais, o que, diz, liga-se composio mais
conservadora que a Corte veio a possuir j na dcada de oitenta (Com efeito, em
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Griffith v. Kentucky, a Suprema Corte, sob a presidncia do Juiz Rehnquist, j afastara
a doutrina da no retroatividade, afirmando que, ao resolver controvrsias
constitucionais, os juzes declaram o direito pr-existente e no legislam. [2002: 20]).
Conclui o autor, referindo-se questo nos EUA:
Portanto, aps a admisso, durante certo perodo, do seu poder de mitigar os efeitos retroativos das decises no controle de
constitucionalidade, a Suprema Corte voltou atrs, insistindo na tese
ortodoxa da retroatividade plena dos seus julgados. (2002: 21)
* * *
Deixando o aprofundamento nas duas posies logo acima expostas a favor e
contra a possibilidade de modulao de efeitos nas declaraes de inconstitucionalidade
para mais adiante, oportunidade em que sero os argumentos deduzidos por ambas,
difusamente ao longo de toda a exposio, analisados com mais vagar, fato que,
conforme assinalado, a frmula recebeu consagrao legislativa expressa no direito
brasileiro e vem sendo utilizada pelo Supremo Tribunal Federal.
Trata-se, portanto, de uma tcnica que efetivamente compe, hoje, o repertrio
de possibilidades decisrias do qual o Supremo Tribunal Federal pode, amparado em
lei, lanar mo, realidade esta que no pode ser estoicamente ignorada, mxime num
trabalho que, como o presente, ambiciona ser essencialmente dogmtico.
De toda sorte, isso no impede que os impactos e a convenincia da adoo da
frmula sejam analisados criticamente, especificamente com relao ao Direito
Tributrio, na busca reflexiva de parmetros normativos que se mostrem mais
consistentes, e que at mesmo equacionem as divergncias acima expostas. H, com
efeito, variveis que, nas relaes jurdico-tributrias, podem induzir construo de
balizas adicionais a serem argumentativamente enfrentadas, pelo Supremo Tribunal
Federal, sempre que formulada proposta de restrio temporal da nulificao de normas
impositivas invlidas.
Eis o ponto de partida do presente trabalho: a presena efetiva, na legislao e na
jurisprudncia enfim, no ordenamento jurdico-positivo brasileiro da tcnica
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decisria que permite a modulao temporal dos efeitos das decises que declaram a
inconstitucionalidade de diplomas normativos, frmula esta que ser criticamente
apreciada, inclusive no que toca sua adequao constitucional, tendo por pano de
fundo as peculiaridades que marcam as relaes jurdico-tributrias, os direitos
fundamentais do contribuinte e as limitaes constitucionais ao poder de tributar.
1.3. A possibilidade da modulao de efeitos das decises proferidas em aes
diretas de inconstitucionalidade e seu impacto nas relaes tributrias
Os diversos ramos especializados do ordenamento jurdico apresentam
singularidades que induzem existncia de diferenciaes no que se refere aplicao
da tcnica da modulao temporal de efeitos, a depender da configurao normativa das
relaes que so afetadas pela deciso proferida no controle concentrado de
constitucionalidade.
A possibilidade de se reconhecer a produo de efeitos, ainda que restrita no
tempo, por uma lei declarada inconstitucional, pode se contrapor no apenas ao
princpio da nulidade dos atos normativos assim qualificados, mas tambm a direitos
fundamentais dos cidados e a princpios especficos, nucleares num dado subsistema
normativo. A chancela da eficcia de um diploma tido por contrrio Constituio
pode, com efeito, ter por resultado situaes inusitadas, que merecem ser estudadas em
separado, com o fim de se aperfeioar os parmetros normativos que devem reger a
modulao temporal dos efeitos das decises que acolhem argies de
inconstitucionalidade.
No Direito Administrativo, por exemplo, desapropriaes - que representam uma
forma de interveno pblica na propriedade privada - podem ter se aperfeioado com
base em atos normativos invlidos; multas podem ter sido aplicadas com esteio em leis
editadas contrariamente Constituio. No Direito Processual Civil, um rgo
jurisdicional pode haver tido a sua composio definida por uma lei ofensiva, v.g., ao
princpio do juiz natural, cuja inconstitucionalidade veio a ser declarada muito aps
diversas decises terem sido proferidas pelo referido, e hipottico, rgo judicante. A
manuteno de tais situaes pode, ou no, dar-se a partir de um juzo discricionrio do
Supremo Tribunal Federal, que modularia, eventualmente, com efeitos ex nunc ou pro
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futuro, as leis exemplificadas, cuja invalidade teria sido reconhecida pela Corte? O
manejo no tempo dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade, nas hipteses
tecidas, se ajustaria ao texto constitucional?
Os exemplos que melhor traduzem, prima facie, o que aqui se pretende ilustrar,
situam-se no mbito do Direito Penal. Suponhamos que cidados tenham sido
condenados, atravs de sentenas transitadas em julgado, pela prtica de um crime cuja
tipificao legal veio a ser supervenientemente declarada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal. Poderia a Corte, numa tal circunstncia, ressalvar os efeitos da
declarao de inconstitucionalidade apenas para o futuro, no abrindo chance a que os
condenados proponham revises criminais em face dos provimentos jurisdicionais
atravs dos quais se viram apenados? Daniel SARMENTO (2002: 34) chegou a tratar
do tema, e assim exps seu pensamento:
Cabe ainda indagar se a faculdade de modular os efeitos das decises no controle de constitucionalidade das leis estende-se a todos os
domnios normativos. Em que pese o silncio da lei, entendemos que, no
mnimo, as normas incriminadoras do Direito Penal esto excludas
deste campo. O princpio da legalidade, no Direito Criminal, assume um
rigor absoluto, tornando absolutamente inaceitvel admitir-se a punio
de algum pela prtica de suposto ilcito tipificado em legislao
inconstitucional, e portanto desprovida de valor jurdico. O relevo
superior atribudo pela Constituio liberdade, e a filosofia penal
garantista, que se deixam entrever na obra do constituinte, permitem que
se conclua, sem sombra de dvida, que as decises no controle de
constitucionalidade que beneficiarem acusados ou condenados tero
forosamente que retroagir.
A utilidade de se recorrer ao direito comparado, na tentativa de se responder s
perguntas acima externadas, limitada, pois so as ordens jurdicas especficas de cada
pas, mxime suas Constituies, que serviro de base resoluo das questes
propostas. Entretanto, no deixa de ser curioso, diante das colocaes de Daniel
SARMENTO, o fato de que a Suprema Corte Americana, em oportunidade marcante, ao
atribuir efeitos apenas prospectivos s suas decises, o fez justamente em um caso
penal, negando o pedido de reviso criminal de um cidado que havia sido condenado
definitivamente a partir de provas produzidas em moldes que ulteriormente viriam a ser
considerados inconstitucionais pelo Tribunal (caso Linkletter vs. Walker, 1965). Em
outras palavras, a Suprema Corte Americana quando veio a aplicar inicialmente a
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modulao de efeitos, tcnica da qual, como visto acima, no mais lana mo conferiu
efeitos prospectivos justamente inconstitucionalidade de disposies processuais
penais, e negou pedidos rescisrios de condenaes que teriam se perpetrado a partir de
procedimentos de instruo considerados invlidos pelo Tribunal em casos idnticos.
O Direito Tributrio igualmente oferece inmeras peculiaridades que podem se
contrapor possibilidade irrestrita de serem conferidos efeitos meramente prospectivos
s declaraes de inconstitucionalidade de normas tributrias. A primeira indagao que
se faz deriva do princpio da legalidade estrita em matria tributria, o qual tem por
contedo bsico a diretriz de que o contribuinte somente poderia ter o seu direito
fundamental propriedade privada restringido, pelo exerccio do poder tributrio, nos
casos da existncia de uma lei vlida que embasasse a atuao da Fazenda Pblica. A
Constituio, de fato, no permite que os cidados sejam forados a canalizar parte de
seus recursos privados para os cofres pblicos, a ttulo de tributo, seno quando uma lei
legitimamente assim dispuser (simetricamente ao que se d no campo penal, em que
ningum pode se sujeitar a uma sano privativa da liberdade, a no ser pela prtica de
um ilcito criminal legalmente definido). Neste contexto, se a lei que embasou a
arrecadao de um imposto, por exemplo, durante um dado perodo, vem a ter a sua
constitucionalidade negada pelo Supremo Tribunal Federal, poderia a Corte modular os
efeitos de sua deciso, consolidando os recolhimentos que se procederam sob o plio da
legislao invlida?
E se uma lei tributria for declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal por violao ao princpio da igualdade, ou ao princpio da capacidade
contributiva, que nada mais so que o desdobramento de direitos fundamentais gerais no
mbito do sistema tributrio? Pode a arrecadao, procedida mediante a aplicao de
uma norma tal, ser mantida inclume, a partir de um juzo de ponderao efetuado pelo
Supremo Tribunal Federal, atravs do qual a Corte optasse por conferir efeitos ex nunc
sua deciso?
Ainda no mbito tributrio, e vista a questo de outro ngulo, o Supremo
Tribunal Federal poderia arrimar-se, como fundamento para modular os efeitos de uma
declarao de inconstitucionalidade de uma determinada lei tributria, nas dificuldades
financeiras que seriam enfrentadas pelo Estado, caso fossem atribudos efeitos ex tunc
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ao acrdo? Ou tal argumento seria de ndole meramente econmica, de modo que o seu
emprego se traduziria, ao cabo, na dissoluo da normatividade do sistema jurdico no
seu ambiente, comprometendo a prpria funo que o Direito e, mais especificamente,
a Constituio desempenha na sociedade moderna?
Sobre a possibilidade especfica das dificuldades de caixa do Poder Pblico
servirem de esteio modulao de efeitos, Misabel Abreu Machado DERZI, por
exemplo, rechaa-a com veemncia:
Se as perdas do Estado com a compensao dos tributos pagos, com base em lei inconstitucional, se tornarem o parmetro para a modulao
de efeitos das decises, ento os direitos e garantias fundamentais dos
contribuintes sero letra morta. (DERZI, 2009: 520)
No obstante, o Supremo Tribunal Federal efetivamente modulou, em favor da
Unio, os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade das regras que instituam
prazos diferenciados de decadncia e de prescrio para a constituio e execuo de
crditos referentes s contribuies sociais incidentes sobre a folha de salrios (Recurso
Extraordinrio n. 559.882/RS7, no qual fora examinada a constitucionalidade das regras
constantes da Lei n. 8.212/91, que estabeleciam prazos de dez anos para a
Administrao lanar e cobrar os tributos disciplinados naquele diploma legal, em
contrariedade s disposies do CTN, que afirmam serem os referidos interregnos
qinqenais). Ao faz-lo, a Corte, ainda que no o haja declarado expressamente, teve
em mira, provavelmente, evitar que a Fazenda Pblica Federal se visse embaraada com
a necessidade proceder devoluo de ingente montante de contribuies que, segundo
os prazos fixados pelo Cdigo Tributrio Nacional, haviam sido pagas quando j
fulminadas pela prescrio.
* * *
Enfim, quais so os parmetros que devem ser observados pelo Supremo
Tribunal Federal, quando da modulao de efeitos no tempo das declaraes de
inconstitucionalidade de leis tributrias?
7 Apesar de se tratar de controle difuso de constitucionalidade, a fundamentao desenvolvida no acrdo,
bem como os debates travados em Plenrio, referente aos parmetros para se proceder modulao de
efeitos, so compatveis com o controle concentrado, sendo, assim, pertinente a sua anlise neste trabalho.
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A definio de tais balizas normativas de fundamental importncia para o
aperfeioamento e contnua democratizao da atividade exercida pela Jurisdio
Constitucional. O mero recurso s clusulas genricas da segurana jurdica e do
relevante interesse social, tal como dispostas no art. 27 da Lei n. 9.868/99, no se
mostra suficiente para sustentar medida to grave como a manuteno de atos de
aplicao de uma lei tributria declarada inconstitucional.
O estabelecimento de parmetros normativos mais precisos, que possam ser
utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, luz das peculiaridades do
domnio normativo em que se insere a lei cuja invalidade reconhecida, surge como
providncia de todo relevante, na medida em que intenta contribuir, com repercusses
prticas imediatas, para o incremento do conhecimento em torno das tcnicas decisrias
que podem ser empregadas pela Corte.
Note-se que a modulao de efeitos, desde o incio das discusses em torno da
possibilidade de sua adoo no direito brasileiro, sempre foi vislumbrada como uma
medida absolutamente excepcional, contraposta regra geral aplicvel s decises
declaratrias de inconstitucionalidade, que a da eficcia ex tunc. Esta posio foi
muito bem exposta pelo Ministro Seplveda Pertence no seguinte voto:
Sou em tese favorvel a que, com todos os temperamentos e contrafortes possveis e para situaes absolutamente excepcionais, se
permita a ruptura do dogma da nulidade ex radice da lei
inconstitucional, facultando-se ao Tribunal protrair o incio da eficcia
erga omnes da declarao. Mas, como aqui j se advertiu, essa soluo,
se generalizada, traz tambm o grande perigo de estimular a
inconstitucionalidade. (ADI 1.102, Rel. Maurcio Corra, DJ 17.11.1995)
No obstante isso, o Supremo Tribunal Federal, em alguns julgados, tem
modulado os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade de leis sem se
desincumbir de maiores nus argumentativos, reflexo, talvez, justamente da falta de
estabelecimento de parmetros mais efetivos, aptos a moldar o emprego de tal frmula
decisria.
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Voltemos, por exemplo, ao Recurso Extraordinrio n. 559.882/RS, que teve por
objeto a questo ligada constitucionalidade da fixao de prazos prescricionais e
decadenciais diferenciados para a constituio e cobrana de contribuies
previdencirias. Naquele processo, como visto acima, o STF reconheceu a
inconstitucionalidade dos prazos decenais previstos na Lei n. 8.212/91 (Plano de
Custeio da Seguridade Social). Ressalvou, todavia, com base no princpio da segurana
jurdica, todos os pagamentos j efetivados e ainda no questionados em juzo tendo
por base o diploma legal invlido, chancelando, assim, situao em que tributos que
teriam sido quitados quando j decados ou prescritos no mais poderiam ser reavidos.
E, ao faz-lo, o Tribunal praticamente no exps qual seria o contedo da segurana
jurdica que ali era protegida. Com efeito, aps tecer consideraes acerca da
aplicabilidade da modulao dos efeitos no controle difuso, o Ministro Gilmar Mendes,
Relator, no que toca especificamente ao contedo da segurana jurdica que, naquele
caso concreto, deveria ser protegida atravs da modulao de efeitos do reconhecimento
da nulidade da lei, asseverou apenas que:
Na espcie, a declarao de inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/91 pode acarretar grande insegurana jurdica quanto aos
valores pagos fora dos prazos qinqenais previstos no CTN e que no
foram contestados administrativa ou judicialmente.
A supremacia da Constituio, traduzida no princpio da nulidade das leis
inconstitucionais, no caso especfico, foi afastada sem que para tanto fossem
apresentados fundamentos suficientemente consistentes, o que destaca a relevncia da
busca de parmetros mais seguros que definam as potencialidades legtimas de
aplicao do art. 27 da Lei n. 9.868/99.
Como visto acima, cada domnio normativo do ordenamento jurdico oferecer
singularidades que recomendam a anlise, em separado, das possibilidades de aplicao
da modulao de efeitos com relao aos efeitos produzidos por leis inconstitucionais
em dado interregno. Os impactos da tcnica, conforme expusemos, se diferenciam
conforme se trate de leis penais ou administrativas, sendo, assim, mais conveniente, do
ponto de vista cientfico, que a avaliao da adequao, da legitimidade e dos limites do
emprego da modulao de efeitos se faa separadamente, tendo por paradigma
investigativo determinado ramo do ordenamento jurdico. O objetivo do presente
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trabalho, em tal contexto terico, colaborar para a fixao de parmetros dogmticos
concretos, que devam ser observados quando se cogite acerca da aplicao da
mencionada frmula decisria aos casos em que for declarada a inconstitucionalidade
de normas tributrias.
* * *
O estabelecimento dos nus argumentativos do qual o Poder Judicirio deve se
desincumbir, quando chancela os efeitos que uma lei inconstitucional produziu durante
certo intervalo de tempo, passa, necessariamente, pela avaliao crtica de elementos
tericos bsicos, conjugada com reflexes em torno do prprio texto constitucional
brasileiro.
O primeiro trecho do itinerrio investigativo, em busca de parmetros mais
efetivos para a aplicao da modulao de efeitos em casos tributrios, buscar
investigar os fundamentos hermenuticos que envolvem a construo do sentido das
normas constitucionais. Tal ponto de partida se justifica na circunstncia de que a
deciso judicial representa o momento aplicativo do direito por excelncia.
Compreender o seu funcionamento, nesse contexto, equivale a clarificar como os textos
normativos e os fatos que lhes so subjacentes se relacionam quando do julgamento
de uma ao direta de inconstitucionalidade, dando ensejo ao nascimento de pretenses
ligadas modulao temporal dos efeitos da deciso que reconhece a ilegitimidade da
norma impugnada.
A segunda etapa da pesquisa se consubstanciar em incurses no prprio papel
que cabe jurisdio constitucional concentrada exercer no Estado Democrtico de
Direito. Neste ponto, a discusso induz reflexes em torno da diferenciao funcional
entre o direito, a poltica e a economia, como subsistemas sociais diferenciados, e dos
prprios limites da legitimidade da atividade judicante, mais precisamente daquela que
se debrua sobre controvrsias acerca da adequao de diplomas normativos gerais ao
texto constitucional, e que, autorizada por lei, pretende modular no tempo os efeitos de
suas decises.
Enfim, h que se verificar qual seria a base de legitimidade constitucional
extrada paradigmaticamente da noo de Estado Democrtico de Direito detida pelo
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Supremo Tribunal Federal quando decide aes diretas de inconstitucionalidade. A
verificao do papel do juiz constitucional na sociedade brasileira contempornea,
bem como a pesquisa em torno de quais seriam os fundamentos constitucionais que
embasariam, em geral, as discusses em torno da validade e da aplicao, ou no, do art.
27 da Lei n. 9.868/99, ser capaz de situar adequadamente a posio que o STF ocupa
frente a essa temtica, o que, espera-se, contribuir para a fixao de parmetros
decisrios para a atuao da Corte.
De posse de elementos tericos pr-definidos acerca do papel que o Supremo
Tribunal Federal, no exerccio do controle concentrado, desempenha no
constitucionalismo brasileiro atual, assim como assumida uma posio no debate
existente, em torno da validade e da legitimidade da modulao de efeitos no tempo,
estaremos aptos a adentrar na ltima fase da investigao, na qual procederemos ao
cotejo do texto constitucional, mais especificamente das limitaes constitucionais ao
poder de tributar, com os dados anteriormente depurados.
Conforme j assinalado acima, a Constituio brasileira prdiga de
dispositivos que, atravs da positivao de princpios e regras de garantia, condicionam
o exerccio do poder estatal de tributar. Este amplo arcabouo normativo, dentre outras
diretrizes, consagra inmeras e preciosas aquisies jurdicas da sociedade brasileira,
expressas em princpios como o da legalidade, da igualdade, da capacidade contributiva,
do no-confisco, da anterioridade, enfim, todo um feixe de normas especificamente
referidas atividade impositiva do Estado, que no podem ser deixadas de lado nos
casos em que for considerada a modulao, no tempo, dos efeitos da declarao de
inconstitucionalidade de uma lei tributria.
Enfim, articularemos, a partir de agora, num dilogo terico recproco, as quatro
variveis acima expostas (teoria da interpretao constitucional - teoria da jurisdio
constitucional no Estado Democrtico de Direito - teoria da manipulao temporal da
eficcia das declaraes de inconstitucionalidade - teoria das limitaes constitucionais
ao poder de tributar), postura metodolgica que, pretendemos, revelar parmetros
dogmticos consistentes, aptos a balizar as potencialidades da modulao de efeitos, no
tempo, pelo Supremo Tribunal Federal, das decises que declaram a
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inconstitucionalidade de normas tributrias no mbito dos processos objetivos de
controle.
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2. REVELANDO O SENTIDO DA CONSTITUIO: A INTERPRETAO
JURDICA NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO
2.1. O texto constitucional e a concretizao da Constituio. Entre fatos e normas.
No se sustenta hoje em dia, como antanho, que os juzes, ao decidirem casos
concretos que lhes so submetidos, atuem de forma neutra, como a boca da lei, ou seja,
como agentes de uma operao de subsuno direta envolvendo fatos e normas8. J
Hans KELSEN (1998), no derradeiro captulo de sua Teoria Pura, externava lio que
tinha por substrato o reconhecimento do carter relativamente indeterminado da
linguagem atravs da qual o direito vertido, ao admitir a possibilidade de, pela via
interpretativa de um dado texto, erigir-se uma moldura de variados sentidos possveis da
norma; definida a moldura, restaria ao aplicador, no exerccio de uma vontade
inescrutvel, optar, dentre aqueles extraveis do texto, pelo sentido que lhe aprouvesse,
concretizando, assim, a norma do caso9.
Essa indeterminao parcial da linguagem10
natural (assim entendida aquela que
usamos para falar, ou seja, para nos fazermos entender uns perante os outros no dia-a-
dia), por meio da qual se externam as comunicaes jurdicas11
12
13
, intuitiva, e
8 Desde O. Blow, cedio afimar o rduo papel criador do juiz. O abandono de uma caduca
concepo de aplicao da lei, como um silogismo lgico dedutivo, em favor de uma compreenso
jurdica, parece ser uma aquisio definitiva. (DERZI, 2009: 49) 9 O Direito a aplicar forma, em todas estas hipteses, uma moldura dentro da qual existem vrias
possibilidades de aplicao, pelo que conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desse
quadro ou moldura, que preencha essa moldura em qualquer sentido possvel. (KELSEN, 1998: 390) 10
Segundo Arthur KAUFMANN, (...) a linguagem a auto-expresso da pessoa, ela a origem do esprito humano e da sua personalidade, s com a faculdade de falar comea o ser humano a ser humano
em sentido prprio e profundo: a tomar posse de si e do seu mundo (o que no significa, que o
merecimento de tutela jurdica s comece neste momento e no j a sua potencialidade para ser pessoa).
Por esta razo no adequado o cogito ergo sum de Descartes como ponto de partida para a descoberta do mundo exterior. O ponto de partida para o homem que se busca a si mesmo e ao mundo o seu mundo a linguagem. No princpio era o verbo. A linguagem pura e simplesmente o humanum.
(...)
Atravs da linguagem, diz Oksaar, constri o homem a sua concepo sobre a realidade envolvente, e
cita uma frase notvel de Karl Kraus: o mundo peneirado atravs da peneira das palavras. No mesmo sentido tambm se falou da verbalidade do mundo. (2004: 165 - 166) 11
Inegavelmente, a linguagem jurdica, enquanto um tipo de linguagem ordinria ou natural especializada e no uma linguagem artificial, ambgua e vaga, o que d ensejo a interpretaes
divergentes. (NEVES, 2006: 204) 12
A linguagem, portanto, um instrumento de compreenso, j que, como afirma Santaella, nosso acesso sensvel ao mundo sempre como que vedado por essa crosta sgnica, e tambm de comunicao, servindo para a sugesto de estmulos de significaes e sentidos de um ser humano para
o outro. O Direito, portanto, sendo interferncia intersubjetiva de comportamentos, sendo a imposio de
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aprendemos a reconhec-la desde a infncia. H uma antiga brincadeira, popular entre
as crianas, chamada telefone sem fio, cujo fito justamente a diverso de se detectar
como uma mensagem simples pode ser desvirtuada, na exata medida em que na sua
transmisso vo se interpondo novos interlocutores. Nessa interao ldica, perfilam-se
diversas crianas; da primeira parte uma frase simples, que deve ser repetida ao longo
da cadeia de pequenos mensageiros; o resultado que, pela dcima criana, a frase
simples emitida no incio j se desvirtuara completamente (por exemplo, a expresso
na hora do recreio iremos ao parquinho se transfigura em na hora do passeio
comeremos um pouquinho). Num tal contexto, representativo da contingncia
lingstica que se nos impe cotidianamente, assoma como imperdovel ingenuidade
crer que uma mensagem escrita uma lei, v.g. emanada dos rgos soberanos do
Estado, ser apreendida com sentido uniforme pelos integrantes de toda a sociedade.
Lidar e aceitar essa indeterminao, inerente ao direito, tarefa difcil e
invocadora de pretenses ambguas, que dialeticamente disputam espao ao longo do
vivenciar do fenmeno jurdico. De um lado, busca-se segurana atravs da cunhagem o
mais precisa possvel dos textos normativos. De outro, intenta-se resguardar a
capacidade do ordenamento de dar respostas adequadas e adaptadas s circunstncias
das situaes concretas reguladas atravs de princpios e diretrizes gerais, cuja
densidade semntica somente se completa vista de um caso determinado. Isso
demonstra de plano a tenso interna que pulsa ininterruptamente no interior da ordem
jurdica, e que se apresenta como elemento propulsor de seu contnuo evolver: de um
lado a segurana; de outro, a justia.
Partindo-se de KELSEN (1998), no itinerrio em busca da compreenso dos
fundamentos da interpretao jurdica, capazes de explicar saciedade os seus
mecanismos e peculiaridades mais ntimas, no se pode contentar com as teses expostas
na Teoria Pura. Na verdade, o aperfeioamento contnuo da hemernutica jurdica se
modelos de expectativas de comportamento pelos agentes do poder a terceiros, inevitavelmente um
fenmeno de linguagem e de comunicao, ou, como afirma Arthur Kaufmann, el derecho se produce a travs del lenguage. (CAYMMI, 2007: 26) 13
Toda linguagem, e a jurdica no exceo, possui trs dimenses ou enfoques semiticos, que so a semntica, a sinttica e a pragmtica. A semntica estuda a relao do signo com o seu objeto ou
significado; a sinttica ou sintaxe estuda, a relao dos signos entre si; e a pragmtica, a relao dos
signos com a realidade social no processo de sua utilizao, levando em conta a relao emissor-
receptor dos sujeitos da relao comunicativa. (idem, 2007: 31)
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impe como necessidade emergente da prpria evoluo paradigmtica do direito, agora
revestida de um complexo horizonte chamado Estado Democrtico de Direito. A
superao das concluses de KELSEN, todavia, no tarefa fcil; nem por isso,
contudo, deve ser posta de lado.
KELSEN ofereceu duas noes bsicas para a compreenso da interpretao do
direito. A primeira delas, vista logo acima, consubstanciou-se no reconhecimento de que
um texto normativo pode oferecer possibilidades hermenuticas diversas, capazes de
formar um quadrante definido dos sentidos possveis que podero ser conferidos
norma do caso. A segunda, incidindo no momento que se segue imediatamente
definio da moldura de interpretaes potenciais do texto, representada pela renncia
da cincia do Direito pesquisa das razes que levam o aplicador a optar por um ou
outro dentre os sentidos possveis anteriormente apurados. Em outras palavras, o autor
preceitua a possibilidade do controle metdico do instante inicial do processo de
revelao do sentido da ordem jurdica, quando a razo permitiria delimitar
precisamente as possibilidades semnticas que um dado texto oferece, mas no do
segundo, quando o juiz ou administrador, por exemplo, optariam livremente por um
daqueles sentidos num primeiro momento detectados. Ou seja, a revelao do sentido da
ordem jurdica, procedida inicialmente com controle, exatido e rigor cientfico na
definio das interpretaes possveis que um dado texto permitiria, desaguaria, ao
final, num timo, em descontrole e decisionismo, ainda que restritos aos lindes da
moldura semntica previamente definida. Isso tudo, claro, da perspectiva da cincia
do Direito, que o objeto das atenes daquele consagrado autor.
A prtica judiciria parece confirmar, num primeiro momento, as bases lanadas
por KELSEN. O contato diuturno com a resoluo de conflitos de interesses pelo Poder
Judicirio deixa entrever, com efeito, certo descontrole metdico na realizao das
opes hermenuticas por parte dos julgadores. Suas convices ntimas e histrias de
vida parecem, de fato, se sobrepor a qualquer possibilidade racional de se definir a
priori parmetros de controle para esse momento ntimo, representado pelo derradeiro
instante, pela opo final, que redunda na norma individual que reger enfim o caso.
Contribuies crticas obra de KELSEN vm sendo copiosamente produzidas
h dcadas, e abarcar toda a literatura que hoje trata do assunto tarefa impossvel.
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Selecionar informaes imprescindvel. Como o nosso objeto de anlise aqui ,
primordialmente, a hermenutica constitucional, recuemos um pouco no tempo e
voltemos a um famoso texto de Ferdinand LASSALLE, antes de adentrarmos nas
crticas efetivamente oponveis, no particular, Teoria Pura do Direito.
* * *
At que ponto os fatos regulados pelo direito influenciam na sua prpria
interpretao? Interpretar a Constituio uma tarefa que envolve apenas, como se
poderia inferir das lies de KELSEN, um texto e o seu leitor? no itinerrio da busca
de respostas a tais indagaes que se faz necessrio o recuo a LASSALE, e sua
famosa, e polmica, assertiva, no sentido de que a constituio seria uma mera folha
de papel, destituda de potencial normativo suficiente para regular as foras polticas
efetivamente vigentes na sociedade.
Para LASSALE, a verdadeira Constituio seria formada no por um texto
normativo, mas sim pelas relaes de poder existentes, de fato, na sociedade. O texto
constitucional somente adquiriria normatividade, isto , capacidade de incidir sobre
situaes reais, disciplinando-as juridicamente, se e na medida em que correspondesse
s relaes de poder regentes, hic et nunc, das interaes entre os atores polticos. Ao
contrrio, se o texto constitucional deixasse de simplesmente projetar essas mesmas
relaes de poder, seria por elas simplesmente sobrepujado. O poder regulador, enfim,
seria dos fatores polticos estruturantes da sociedade, e no do texto constitucional. Eles,
e somente eles, ao cabo, estabilizariam as expectativas dos integrantes de determinado
corpo social, no que se refere s relaes de poder nele existentes. O texto
constitucional seria redundantemente nada mais que um texto. No por outra razo,
o autor em questo assevera que onde (...) a constituio escrita no corresponder
real, irrompe inevitavelmente um conflito que impossvel evitar e no qual, mais dia
menos dia, a constituio escrita, a folha de papel, sucumbir necessariamente, perante
a constituio real, a das verdadeiras foras vitais do pas. (LASSALE, 2001: 33)
Mais adiante, na Essncia da Constituio, apresenta-se a concluso radical
de que os problemas constitucionais no so problemas de direito, mas do poder; a
verdadeira Constituio de um pas somente tem por base os fatores reais e efetivos do
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poder que naquele pas vigem e as constituies escritas no tm valor nem so
durveis a no ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na
realidade social: eis a os critrios fundamentais que devemos sempre lembrar.
(LASSALE, 2001: 40)
A base do raciocnio do autor reproduz, em parte, ainda que implicitamente, uma
famosa diferenciao que veio por dcadas a ser objeto de anlise por parte da literatura
jurdica, entre Constituio formal e Constituio material14
. A primeira seria, grosso
modo, representada pelo texto normativo, abordado e reificado friamente como coisa
isolada dos fatos sociais por ele regulados; a segunda, por sua vez, na viso da
LASSALE15
16
, equivaleria efetiva relao existente entre as foras reais de poder num
14
LASSALE no usa a expresso constituio material para identificar as estruturas de poder vigentes,
qualificando-as como constituio real, contraposta constituio escrita, sistematizao que em tudo remete classificao existente entre constituio material (em sentido amplo) e constituio formal,
assim sinttica e didaticamente exposta por Jos Afonso da SILVA (1998: 42-43): A constituio material concebida em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, identifica-se com a
organizao total do Estado, com regime poltico. No segundo, designa as normas constitucionais
escritas ou costumeiras, inseridas ou no num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a
organizao de seus rgos e os direitos fundamentais. Neste caso, constituio s se refere matria
essencialmente constitucional; as demais, mesmo que integrem uma constituio escrita, no seriam
constitucionais.
A constituio formal o peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um
documento solenemente estabelecido pelo poder constituinte e somente modificvel por processos e
formalidades especiais nela prpria estabelecidos. 15
Que no se identifica, como se ver abaixo, com a noo de Constituio Material de outros autores,
como, por exemplo, Jorge MIRANDA (2005: 321-322), para quem tal conceito exprime no o sentido de
relaes de poder existentes na prtica, mas sim aqueles contedos que so considerados como
tipicamente objeto de disciplina constitucional. Vejamos:
I H duas perspectivas por que pode ser considerada a Constituio: uma perspectiva material e que se atende ao seu objeto, ao seu contedo ou sua funo; e uma perspectiva formal em que se atende posio das normas constitucionais em face das demais normas jurdicas e ao modo como se
articulam e se recortam no plano sistemtico do ordenamento jurdico.
A estas perspectivas vo corresponder diferentes sentidos, no isolados, mas interdependentes.
II De uma perspectiva material, a Constituio consiste no estatuto jurdico do Estado ou, doutro prisma, no estatuto jurdico do poltico, estrutura o Estado e o Direito do Estado.
(...)
Tendo em ateno, contudo, as variaes histricas registradas, justifica-se enumerar sucessivamente
uma acepo ampla, uma acepo restrita e uma mdia.
A acepo ampla encontra-se presente em qualquer Estado; a restrita liga-se Constituio definida em
termos liberais, tal como surge na poca moderna; o sentido mdio o resultante da evoluo ocorrida
no sculo XX, separando-se o conceito de qualquer direo normativa pr-sugerida.
Para salientar mais claramente as diferenas entre a situao antes e aps o advento do
constitucionalismo, pode reservar-se o termo Constituio institucional para a Constituio no primeiro
perodo e o termo Constituio material para a Constituio no segundo perodo; Constituio
institucional ali, porque identificada com a necessria institucionalizao jurdica do poder;
Constituio material aqui, porque de contedo desenvolvido e reforado e suscetvel de ser trabalhado e
aplicado pela jurisprudncia.
Como hoje a Constituio material comporta (ou dir-se-ia comportar) qualquer contedo, torna-se
possvel tom-la como o cerne dos princpios materiais adotados por cada Estado em cada fase de sua
histria, luz da idia de Direito, dos valores e das grandes opes polticas que nele dominem. Ou seja:
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dado corpo social. Ou seja, contrapostos ao texto constitucional haveria os fatos
constitucionais bsicos, a Constituio real, a servir de fundamento estrutural central
das relaes de poder existentes na sociedade, e a reger, empiricamente, as condutas dos
polticos profissionais e o exerccio da cidadania. A fonte bsica de apreenso do
Direito Constitucional, assim, no seria o texto constitucional, os princpios e as
declaraes de direito atravs dele positivados, objetivados como simples formalizaes
de boas intenes expresses, digamos, de certo romantismo poltico-social mas sim
as relaes sociais de poder empiricamente constatveis na sociedade. Estas sim seriam
responsveis pela estabilizao de expectativas acerca das estruturas direcionadoras dos
processos decisrios ou seja, da configurao das relaes polticas num dado
Estado.
primeira vista, os regimes totalitrios da primeira metade do sculo XX
parecem ter dado razo s assertivas de LASSALE. O fracasso, especialmente, da
Constituio de Weimar, com a instalao do regime nacional socialista e o predomnio
dos fatores reais de poder vigentes sobre o texto constitucional, assomam, num primeiro
lanar de olhos, como uma comprovao emprica irrefutvel das afirmaes daquele
autor17
. No Brasil, outrossim, pode-se vislumbrar exemplos neste sentido no to
a Constituio em sentido material concretiza-se em tantas Constituies materiais quanto os regimes
vigentes no mesmo pas ao longo dos tempos ou em diversos pases ao mesmo tempo. E so
importantssimas, em mltiplos aspectos, as implicaes desta noo de Constituio material conexa
com a de forma poltica.
III A perspectiva formal vem a ser a de disposio das normas constitucionais ou do seu sistema diante das demais normas ou do ordenamento jurdico em geral. Atravs dela, chega-se Constituio em
sentido formal como complexo de normas formalmente qualificadas de constitucionais e revestidas de
fora jurdica superior de quaisquer outras normas. (MIRANDA, 2005: 321-322) 16
J BONAVIDES parece identificar as noes de constituio sociolgica ( similitude da concepo de LASSALE de constituio real) e de constituio material como expresso que remete ao contedo normativo tipicamente constitucional: Do ponto de vista material, a Constituio o conjunto de normas pertinentes organizao do poder, distribuio da competncia, ao exerccio da autoridade, forma de governo, aos direitos da pessoa
humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, contedo bsico referente composio
e ao funcionamento da ordem poltica exprime o aspecto material da Constituio.
Debaixo desse aspecto, no h Estado sem Constituio, Estado que no seja constitucional, visto que
toda sociedade politicamente organizada contm uma estrutura mnima, por rudimentar que seja. (BONAVIDES, p. 80-81) 17
Diz Konrad HESSE (1991: 10): A concepo sustentada inicialmente por Lassale parece ainda mais fascinante se se considera a sua aparente simplicidade e evidncia, a sua base calcada na realidade o que torna imperioso o abandono de qualquer iluso bem como a sua aparente confirmao pela experincia histrica. que a histria constitucional parece, efetivamente, ensinar que, tanto na prxis
poltica cotidiana quanto nas questes fundamentais do Estado, o poder da fora afigura-se sempre
superior fora das normas jurdicas, que a normatividade submete-se realidade ftica. Pode-se
recordar, a propsito, tanto o conflito relativo ao oramento da Prssia (Budgetkonflikt), referido por
Lassale, como a mudana do papel poltico do Parlamento, subjacente resignada afirmao de Georg
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evidentes, claro ao longo de sua histria constitucional. O texto de 1891, por
exemplo, mergulhado em relaes de poder refratrias aos ideais subjacentes ao regime
republicano, foi absorvido pelo coronelismo e por outras prticas sociais absolutamente
excludentes18
. O texto de 1946, por sua vez, parece jamais ter conseguido se estabilizar
minimamente; vigeu ameaado por quase vinte anos, num vaivm institucional marcado
historicamente por diversas tentativas de golpe de estado e por um presidente da
Repblica que veio a se suicidar; naufragou definitivamente em 1964, a partir de
quando passou, irrefutavelmente, humilhante condio de mera folha de papel19.
A tese de LASSALE, contudo, peca pela simplificao, ao pretender se amparar
em suposta realidade que se auto-evidencia, destacada a partir de um corte
metodolgico que pe margem importantes fatores nsitos no s idia de
constitucionalismo, mas tambm ao prprio fenmeno jurdico.
Direito antes de tudo norma; dever-ser, e no ser, como j defendia
KELSEN em sua Teoria Pura. Ou seja, sistema regido pela noo de imputao, e no
de causalidade. O argumento jurdico traz nsito em si, nesse contexto, a possibilidade
do comando normativo no ser cumprido. A lei jurdica, ao contrrio da lei da natureza,
no perde automtica validade quanto negada pelos fatos. Se as afirmaes acerca da
gravidade no se confirmassem na prtica, a lei da gravidade jamais teria entrado em
vigor; se tais afirmaes, noutro giro, aps j haverem sido confirmadas, fossem em
seguida confrontadas pela realidade cientificamente apurada, em revelao tida
Jellineck, ou ainda o exemplo da dbcle da Constituio de Weimar, em, em virtude de sua evidncia,
revela-se insuscetvel de qualquer contestao. 18
Paulo BONAVIDES e Paes de ANDRADE enfatizam:
Entre a Constituio jurdica e a Constituio sociolgica havia enorme distncia; nesse espao se cavara tambm o fosso social das oligarquias e se descera ao precipcio poltico do sufrgio manipulado,
o que fazia a inautenticidade da participao do cidado no ato soberano de eleio dos corpos
representativos. (2006: 260) 19
Em outras palavras, a Constituio de 46 no logrou se fazer presente no dia-a-dia do povo, nem mesmo demonstrar que era instrumento de participao e mudana. A ditadura do Estado Novo criou o
mito de que as conquistas, como a legislao, por exemplo, no significavam conquistas, mas ddivas do
poder e do seu chefe. A maioria das lideranas polticas, ao invs de trilharem o duro caminho do
esclarecimento e da penetrao dos mecanismos de deciso democrtica pelo tecido social, preferiram o
caminho fcil do populismo, no estilo inaugurado por Vargas. As excees, as honrosas excees,
sempre existiram e sempre existiro, mas a verdade que a grande maioria no optou por realizar,
tornar efetivo os princpios consagrados pela Constituio, e que deveriam ser as aspiraes mximas de
nosso povo.
O fato ento que a conscincia autoritria no se viu atacada em sua raiz, e o populismo se fez uma
alternativa trilhada de maneira irresponsvel. Ningum percebeu que a Constituio por si s no
poderia garantir os princpios expressos em seu texto. No se percebeu sobretudo que essa ambigidade
se tornaria insustentvel por muito tempo. (idem, 2006: 416)
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intersubjetivamente como mais prxima da verdade, a lei da gravidade seria
instantaneamente ab-rogada. No direito, contudo, o problema mais complexo, na
medida em que a prpria noo de norma se erige a partir da possibilidade de o
comando nela contido se manter hgido, mesmo quando descumprido. Ao contrrio do
que LASSALE diz, portanto, o descumprimento da Constituio, apurado na realidade
dos fatos, no pode, por si s, levar concluso de que inexista uma norma
constitucional posta e vinculante, que se sustenta em vigor mesmo quando descumprida.
Afirmar que so as relaes de poder empiricamente existentes que determinam, ao
cabo, os rumos da sociedade, no significa, nesse contexto, defender uma concepo
real de Constituio, mas sim negar a juridicidade ou seja, a noo da Constituio
como um documento que veicula tpicas normas jurdicas que o constitucionalismo
inaugurado no sculo XVIII veio atribuir s pretenses de controle do poder. A noo
de LASSALE, portanto, simplesmente no se coaduna com o que viemos a entender
como sendo uma Constituio, aps as revolues americana e francesa. Sua
Constituio real, enfim, simplesmente no Constituio, ao menos do ponto de
vista jurdico. O referido autor, assim, arrojou teoria demasiado ambiciosa, que
pretendeu ser mais realista do que a prpria realidade que pretendia retratar, qual seja, a
realidade jurdica, que normativa, e, portanto, no se rege por nenhuma espcie de
causalidade sociolgica, cujos mecanismos sejam definveis a priori.
O constitucionalismo, como aquisio evolutiva20
, unge as constituies a um
patamar normativo diferenciado. Norma das normas, regramento e principiologia do
exerccio do poder, acoplamento estrutural entre direito e poltica, a Constituio o
repositrio das pretenses de liberdade e de igualdade da sociedade. o texto
constitucional, ou melhor, a normatividade conferida quele documento, que suporta
que, ao longo do tempo, pessoas e grupos possam traduzir, sob diferentes paradigmas, a
sua vontade de liberdade e igualdade em lutas por direitos de liberdade e de igualdade,
ou seja, pela efetivao prtica de uma justia que j lhes , supe-se, assegurada
juridicamente ainda que atravs de normas providas de contedo fluido. Nesse passo,
o discurso constitucional, porquanto normativo, potencial e instrumentalmente
assestado transformao das relaes de poder excludentes, que porventura se
encontrem diludas em formas de vida ou ancoradas no ethos dominante. Destituir a
20
Cf. LUHMANN, 1996.
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juridicidade da Constituio, adstringindo o seu conceito s relaes de poder por ela
disciplinadas ( realidade poltica pura, pois), assim, significa desarmar a cidadania da
chancela jurdica que conferida s suas pretenses de emancipao, lanando-a na
sorte certa das disputas de poder travadas margem de qualquer disciplina normativa: a
vitria do mais forte.
Por outro lado, as discusses em torno das assertivas de LASSALE acerca da
Constituio real, apesar de no confirmarem a exatido de tal conceito, denotam uma
realidade irrefutvel, que se auto-evidencia a partir dos referidos debates, qual seja, a de
que h, com efeito, relaes de implicao recproca entre o texto constitucional e a
realidade poltica por ele regulada. Mesmo para KELSEN, uma constituio formal
que nada regulasse, ou seja, que