Download - Crucifixo - Cópia
O Crucifixo
que São Francisco
e Santa Clara
encontraram na igreja De São Damião
iluminou as suas vidas.
Traz até hoje
a luz de Deus
para tantas pessoas!
Este pequeno livro
quer apresentá-lo e
ajudar a descobrir
alguns de seus interessantes segredos.
Quer ajudar a receber
a sua luz e a sua benção.
Para passar adiante.
O CRUCIFIXO
DE
SÃO DAMIÃO
Fr. José Carlos Corrêa Pedroso, OFMCap
Centro Franciscano de Espiritualidade
Vamos ver de perto
o Crucifixo
de São Damião.
É aquele
que falou com
São Francisco
no começo de sua
vida de conversão,
e com Santa Clara
durante seus
quarenta e dois
anos de mosteiro.
Vamos saber porque
Francisco e Clara
conseguiram ouvi-
lo.
Estamos diante de um ícone,
uma figura com especial
valor simbólico e religioso.
Os ícones expressam a
teologia da luz, a teologia da
beleza. Nosso crucifixo é um
hino à santidade de Deus,
expressa na luz e na beleza.
Nós vamos explicar um
crucifixo feito há novecentos
anos. Mas não vamos nos
limitar a descrever a figura e
os seus símbolos,
riquíssimos. Vamos mostrar
como esse ícone transformou
a vida de São Francisco e de
Santa Clara — e como ainda
é uma fonte de oração,
santificação e transformação
para nós, hoje.
Um ícone não é uma figura qualquer: é uma figura santa.
Quem o faz não é um pintor qualquer:
É uma pessoa consagrada à santidade
Esse pintor é chamado iconógrafo: o pintor de ícones.
Ele é um eremita: que vive na solidão da contemplação
Um mestre o ensina a contemplar:
1). Deixando-se envolver pela luz de Deus que passou para um santo;
2). Passando essa luz para uma tábua;
3) Sabendo que daí essa luz vai santificar as pessoas,
envolvendo-as na santidade de Deus
O iconógrafo
Um iconógrafo não é um pintor qualquer, é uma pessoa consagrada, que
dedica toda a sua vida a fazer ícones. Trata-se de um contemplativo que,
descoberta sua vocação, coloca-se sob a direção de um mestre.
Com ele, vai aprendendo a se deixar iluminar pela Luz da santidade de Deus.
Contempla-a no que é santo: pessoas ou mistérios.
É na medida em que se sente iluminado que vai aprendendo a escolher e
preparar a tábua, a colher o material para preparar as tintas. Todo o material
usado é natural, tirado das plantas, da terra, de ovos.
A tábua é alisada e fica com a superfície levemente côncava. Sobre ela é
colado um pano fino, sobre o qual é passada uma base. Cada fase do
processo que vamos apresentar é feita muito lentamente, só depois de muita
contemplação.
Quando o
icónógrafo sente
que já foi envolvido
por bastante de Luz
que veio de Deus
e que passou para o
santo,
dle prepara o
quadro e as tintas
De acordo com o
ensino do seu
mestre.
Ele corta a tábua,
Ele a lixa,
Ele cola um pano sobre ela,
Ele a cobre
com um fundo branco.
Depois,
sempre continuando
a sua contemplação,
ele risca o contorno
do santo
que pretende desenhar.
Depois, o iconógrafo
preenche tudo
que está fora do contorno
Com uma cor dourada
ou azul,
porque ele está
representando
O santo
como ele já está vivendo
na glória de Deus
Depois ele localiza
Tudo que vai ser carne
Do santo
E pinta rosto,
Mãos, pés...
Da cor da terra,
Porque nós somos barro
Na medida em que ele
For crescendo na contemplação
Vai voltar para pintar essa carne
Com cores cada vez mais claras,
Representando a luz de Deus
Que vai crescendo
Na santidade.
Representando a luz de Deus
Que vai crescendo
Na santidade.
Esse trabalho pode levar meses ou anos....
É pouco a pouco...
Que o iconógrafo
Vai pintando os outros detalhes.
Ele sempre usa formas e cores simbólicas
Que vão falar de uma beleza que não é a nossa:
É a de Deus.
Quando o ícone fica pronto
é levado para a Igreja
ou para uma casa.
Diante dele,
as pessoas não vão falar...
vão tomar um banho de luz
e de santidade.
É Deus
quem estará
olhando para elas
e as santificando.
Um ícone muito
conhecido em quase
todos os países
é o quadro de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro,
hoje guardado em uma igreja
de Roma.
Sua devoção é muito
difundida.
Esse é um ícone muito rico
em detalhes.
É provável que este ícone
A Santíssima Trindade
Feito por Roublov
No século XVII
Seja o mais famoso.
É tido como uma
obra prima.
O estudo
de seus detalhes
Pode dar um livro.
O Crucifixo
de São Francisco
foi colocado
há mais de
novecentos anos
na capela de São Damião.
Hoje, nessa capela,
está apenas uma cópia.
O original que
São Francisco conheceu
está na basílica
de Santa Clara,
em Assis.
O ícone de São Damião
é uma figura colorida,
pintada
em uma tábua de nogueira
com 2,10 m de altura
e 1,30 m de largura.
e 2 cm de espessura.
Vemos Jesus Cristo duas vezes:
Primeiro na cruz,
onde, com 1,80 m,
sua presença
domina todo o quadro.
Depois,
vemos Jesus
subindo aos céus.
Ele está saindo de um círculo
que representa a terra:
tem os pés como os
de quem sobe um degrau,
sua cabeça e mão direita
já estão no reino
dos habitantes do céu.
E carrega uma cruz de ouro
com cabo de madeira:
É o sinal da sua vitória.
Chegando ao céu, Jesus encontra os Santos,
aqui representados por dez figuras com auréolas.
Mas ele está sendo recebido pelo Pai e o Espírito Santo.
O Pai é representado pela mão que abençoa.
O Espírito Santo está no dedo:
No cântico Veni Creator ele é chamado “dedo da direita do Pai”.
Reparem que o quadrado grande,
abaixo dos braços de Jesus
representa o Livro da Vida na Terra.
O meio-quadro, no alto, representa o Livro da Vida no Céu.
É um meio quadrado, porque nós só sabemos muito pouco
do Livro da Vida depois da morte.
Da mesma forma,
a cabeça de Jesus está cercada por um círculo bem grande;
sua chegada ao céu está cercada por um círculo menor;
O Pai e o Espírito Santo estão em meio círculo,
porque já tivemos a sua revelação
mas não os vemos diretamente.
A Trindade no céu
Jesus chegando ao céu
Jesus na Terra
Livro da vida na Terra
Livro da Vida no Céu
Esta figura
representa
as
pessoas
que estiveram
ao lado
da cruz
de Jesus.
Estão dentro
de um
quadro
que simboliza
um livro
aberto,
porque nós
pudemos
conhecê-las
Aqui estão Nossa Senhora
e São João Evangelista.
Os dois apontam com a mão direita
para o Deus crucificado.
Nossa Senhora tem a mão esquerda
apoiando o rosto:
é um símbolo da contemplação.
São João simplesmente
segura o manto com a esquerda.
Sobre os dois cai o sangue
precioso de Jesus,
que sai da chaga do peito e
que também sai da chaga
da mão direita.
São João olha para Maria,
que ele acolheu como sua Mãe.
Do outro lado estão
Maria Madalena,
Maria, a mulher de Jacó,
e o centurião.
A Madalena também tem uma
atitude contemplativa.
A outra Maria faz um gesto
de admiração.
O centurião segura o decreto
da condenação de Jesus
na mão esquerda mas,
com a mão direita, testemunha
sua fé na Trindade de Deus.
Ele reconheceu que Jesus
era o Filho de Deus.
A outra figura pequena,
com diversas voltas acima da
cabeça, costuma ser apresentada
como filho do centurião,
que Jesus curou,
ou como o povo ali presente.
Aqui podemos ver o centurião
com maiores detalhes.
À direita está
um soldado romano:
Longino, aquele que
deu uma lançada
em Jesus.
À esquerda está um
sacerdote que,
petulante,
com a mão na cintura,
diz a Jesus que,
se for Deus,
que desça da cruz.
Embaixo da mão direita de Jesus, dois anjos comentam a grandeza
do amor de Jesus, que deu sua Vida pela Humanidade.
Eles também são banhados pelo sangue que sai da chaga de Jesus.
Embaixo da mão esquerda de Jesus, outros dois anjos comentam
a grandeza do amor de Jesus, que deu sua Vida pela Humanidade.
Eles também são banhados pelo sangue que sai da chaga de Jesus.
Nas duas extremidades da cruz, há duas figurinhas
que se dirigem para o centro: para Jesus.
Alguns estudiosos dizem que elas estão representando
As santas mulheres que foram cuidar do corpo de Jesus
no sepulcro. E vieram a ser as primeiras testemunhas da Ressurreição.
Alguns outros dizem que devem ser dois anjos, argumentando que
as duas figuras estão descalças.
Mas é difícil até perceber se elas estão mesmo sem calçados.
Das chagas
dos pés de Jesus,
como também das chagas
das mãos e do peito,
o sangue brota
como uma flor
e cai sobre personagens que,
por ele,
são lavados dos pecados.
Abaixo dos pés de Jesus,
recebendo também
o seu sangue salvador,
há vestígios de seis figuras:
poderiam de São Damião,
de São Rufino, padroeiro
da cidade...
Temos segurança
da penúltima,
que é São Pedro
Não é tão fácil perceber, nesta nossa reprodução
um tanto defeituosa, mas abaixo do galinho
está uma fogueirinha
Essas duas figurinhas identificam São Pedro,
que estava aquecendo as mãos
junto a uma fogueira quando negou Jesus.
Então, como Jesus tinha avisado,
o galo cantou!
Você consegue ver um galinho
aqui no alto?
Acima da cabeça de Jesus, está escrito, em latim: “Jesus Nazareno,
Rei dos Judeus”.
Essa inscrição é própria do Evangelho de São João.
Nesse Evangelho se diz que Jesus é a luz que brilhou nas trevas. E
se vai mostrando que essa luz brilhou cada vez mais.
Para expressar e destacar a luz, além da claridade do Cristo, muitos
detalhes do crucifixo são reforçados em preto e vermelho. Um
exemplo é dos olhos de Jesus.
Diante deste Cristo
de São Damião, nós sabemos
que São Francisco
fez esta oração:
“Sumo e soberano Deus,
iluminai as trevas
do meu coração.
Dai-me uma fé reta,
esperança certa,
caridade perfeita,
bom senso e conhecimento,
Senhor,
para que eu cumpra
o vosso santo e
verdadeiro mandamento”.
1. Sumo e soberano Deus
A leitura das biografias medievais pode dar a
impressão de que Francisco chegou, viu o
Crucificado, ouviu-o e respondeu imediatamente com
a sua oração.
Na realidade, ele deve ter ficado muito tempo, dias,
contemplando e orando, antes de formular a oração
que chegou até nós. E já devia fazer algum tempo
que estava nessa oração de busca quando o ícone o
iluminou.
Em Espoleto, quando teve o sonho do castelo de armas, ele já percebera que
era o Senhor quem lhe falava, e já exclamara: “Senhor, que queres que eu
faça”.
Orando na solidão, ele já sentira “dentro dele mesmo um espírito novo, que o
levava a orar ao Pai”. Em São Damião, a luz detonou sua visão interior.
2 Iluminai, Senhor!
O jovem Francisco deve ter ficado extasiado com tanta luz deste Cristo. É
Jesus na Cruz, é Jesus na Ressurreição e é Jesus na Ascensão. Sempre
luminoso.
Porque ele é “a luz que brilhou nas trevas” (Jo, 1,9-10).
Trevas são a escuridão em que o ser humano fica quando rompe com Deus.
No meio delas, resplandece a Palavra de Amor de Deus.
Como São João vai demonstrando em seu
Evangelho, Jesus vai ficando cada vez mais
luminoso, na medida em que as pessoas o aceitam.
E quanto mais luminoso fica, parece que muitos
encontram razões ainda maiores para não aceitá-lo.
A luz do Crucificado fez Francisco olhar para si
mesmo e perceber que, lá dentro, tudo era escuridão.
Sem que se desse conta, a luz de Deus já fizera com
que aprendesse a olhar para dentro.
2. Iluminai as trevas
Outro passo deve ter sido dado quando, atraído por
aqueles enormes olhos abertos e tranqüilos, o centro da
luz, ele foi levado a olhar para onde Jesus olhava: para
o mundo imenso lá fora e para dentro de si mesmo.
Enxergando o mundo lá fora com o olhar do Filho de
Deus, ele ouviu que estava sendo chamado para uma
reconstrução.
Olhando com o olhar de Jesus para a sua própria interioridade, percebeu
que o seu coração, a sua interioridade, estava em trevas. É importante que
não tenha falado em “iluminai as trevas da minha mente”, como nós,
provavelmente, diríamos.
Estamos acostumados, principalmente em nossa civilização ocidental, com
idéias e palavras que falam à mente, mesmo quando são figuras gráficas,
como os sinais do trânsito.
3. Fé, Esperança e Caridade
Fé é a total confiança em Jesus
Cristo:
Ele nem se engana nem me
engana.
É o caminho iluminado que
descobrimos em um mundo
confuso.
São Francisco tinha muitas
razões para pedir uma “fé
direita”. Tinha plena
consciência das heresias que
pululavam em seu tempo,
principalmente a dos cátaros.
Não queria nele mesmo e, mais
tarde, não quis em seus
seguidores, nenhuma “fé
torta”. Apesar do amor fraterno
que sempre teve para com os
hereges.
Esperança
é a virtude que nos anima a
nos movermos na direção de
Deus.
Tem que ser a nossa força
na escuridão.
Costumamos colocar
nossas esperanças em
ideais, de curto ou longo
alcance, mas sem firmeza.
A esperança boa tem que ser
certa, firme, inabalável.
Mas uma esperança dessas
é só a que Deus dá.
Caridade é o amor.
Só será total quando
conseguirmos dar-nos
inteiramente a quem amamos:
como as Pessoas da Trindade
se amam. Então, vai ser
perfeito. É a nossa entrega na
escuridão.
Nossas limitações não
permitem que nosso amor seja
perfeito, embora possa ser
aperfeiçoado.
Mas, nós vivemos numa
confusão de amores
desnorteados porque quisemos
“ser como Deus” e o
rejeitamos.
Ora, só Ele é o Amor.
Nós estamos nos julgando deuses, e não somos. Então,
a nossa visão do próprio eu não é apenas insegura:
é falsa.
O bom senso de Francisco levou-o a escrever, com os
seus companheiros, uma “Regra de Vida” segura, firme,
mas profundamente livre. Ele sempre foi imensamente
compreensivo com seus frades
e com todas as pessoas.
Certamente porque se tratou de um bom senso pedido a
um Jesus ressuscitado e triunfante mas que ainda
ostentava a cruz da sua obediência ao Pai.
De acordo com o ensinamento evangélico, a Igreja
sempre proclamou que Jesus, por nós, “se fez
obediente, obediente até a morte, e morte de cruz”.
Podemos acreditar que foi o bom senso concedido
por Deus que levou São Francisco ao conhecimento
de um sentido de obediência muito mais profundo do
que costuma ser apresentado por nós.
Alguns acreditam que São Francisco fez a oração
diante do Crucifixo como uma resposta a Jesus que
mandara reconstruir a sua casa. Isso daria a toda a
oração um sentido de pronta obediência ao mandato
claro de restaurar a capelinha.
Um conhecimento um pouco mais amplo de tudo que
São Francisco escreveu e viveu mostra que se
tratava, sim de obediência, mas de uma obediência
muito maior. Através da entrega total de sua vida a
Deus, ele (e mais tarde seus seguidores) trariam uma
restauração profunda à Santa Igreja Universal.
Era seu carisma, que estava desabrochando com a
luz do Crucificado.
Em primeiro lugar, ele viu em Cristo crucificado o
maior exemplo da verdadeira obediência: corresponder
ao amor de Deus, que é todo o Bem.
Deus quis transmitir todo o Bem, isto é, Ele inteiro, ao
homem com o seu mundo. Jesus é a Palavra, que devia
fazer a transmissão, trazendo aos homens o seu
convite. Ainda que a missão fosse difícil (Pai, se for
possível, afasta de mim este cálice, mas não se faça a
minha vontade e sim a tua!), Jesus obedeceu.
Em segundo lugar, mesmo na escuridão interior, ele
deve ter sentido que o Bem de Deus vinha a ele através
desse Cristo luminoso: pediu tudo que achou
necessário para cumprir o “mandamento”: luz, fé,
esperança e amor, bom senso e conhecimento.
Obedecer, para ele, era acolher todos os bens que o
Deus Bom nos manda, usá-los e retribuir — ou mesmo
devolver — com gratidão.
Santa Clara refere, em seu Testamento, que
Francisco teve, em São Damião, uma profunda
experiência de Deus:
“Pois, quando o Santo, logo depois de sua
conversão, sem ter ainda irmãos ou
companheiros, estava construindo a igreja de
São Damião, em que foi visitado plenamente
pela graça divina e foi impelido a abandonar
totalmente o mundo, numa grande alegria e
iluminação do Espírito Santo, profetizou a
nosso respeito aquilo que o Senhor veio a
cumprir mais tarde.
Pois, nessa ocasião, ele disse em voz alta e em francês para uns
pobres que moravam ali perto:
Venham me ajudar na obra do mosteiro de São Damião, porque nele
ainda haverão de morar umas senhoras cuja vida famosa e santo
comportamento vão glorificar nosso Pai celestial em toda a sua santa
Igreja (TestCl 9-14)”.
Entendemos que a santa quer falar de uma
experiência muito mais longa, muito mais profunda
do que a de simplesmente ter escutado um pedido
de Jesus e ter respondido com a oração “Iluminai”.
O texto confirma que a proposta de Deus, feita
através do ícone de luz, era restaurar a Igreja, toda
a sua Santa Igreja, através de muitos homens e
mulheres que, em tantos séculos, pediram e
continuam a pedir para terem sua interioridade
iluminada, para viverem a fé, a esperança e a
caridade, para terem bom senso e conhecimento
das coisas de Deus.
É assim que a vontade de Deus, que é Amor e Salvação,
vai sendo cumprida através da história.
O encontro com o
Crucifixo de São Damião
marcou o íntimo
de São Francisco.
durante a sua vida,
ele cresceu no amor
do Crucificado.
No fim da vida,
recebeu a visita
de Jesus
como um
serafim de fogo
que marcou nele
as suas chagas.
Nosso encontro
com o Cristo
de S.Damião
deve nos levar
a uma conversão.
Nós vamos nos aprofundar
um pouco mais
na espiritualidade da luz
para que ela nos ajude
a caminhar na direção
dessa nossa transformação
em Jesus,
a imagem da divindade.
A Igreja Oriental ensina:
A única santidade é a de Deus.
A santidade de Deus se revela nessa Luz
que nos transforma para sermos e para
vermos a Beleza.
Quando ainda não o conhecemos bem,
pode até ser que, formados em outras
culturas, tenhamos dificuldade para
perceber a beleza expressa num ícone.
Mas nós vamos aproveitar, olhando
detidamente o Cristo de São Damião, para
enxergar — como Francisco e Clara
enxergaram — que essa é a beleza que
teríamos se não tivéssemos cedido à
tentação de “ser como Deus”.
Seremos outros cristos não se acontecerem em nossa vida situações
semelhantes às dele, mas na medida em que refletirmos a beleza que
Deus continua a ver em tudo, porque continua a ser Criador.
Nosso Crucifixo é um livro de Teologia e um livro de Oração. Mas
entendendo teologia como no Oriente: não o estudo sobre Deus, mas a
vida em Deus.
2 Teologia da Luz
Um ícone, como é o Crucifixo de São Damião, só pode ser entendido e
apreciado na visão da “Teologia da Luz”, da Igreja Oriental.
Em primeiro lugar, “teologia”, aqui, não fala de um estudo de Deus. É
uma experiência, uma vivência de Deus.
Para essa teologia, tanto quanto podemos dizer que “Deus é Amor” e que
“Deus é Santo”, podemos dizer que “Deus é Luz”.
A sua santidade, então, comunica-se como a Luz. Santa é uma pessoa
que se tornou iluminada pela Luz-Santidade de Deus.
Quando contou a história da criação, a Bíblia foi dizendo que “Deus viu que
era bom”. O texto grego da Bíblia diz que tudo era “kalón”: não só bom,
mas também bonito. Deus estava mostrando que tudo é como Ele: cheio de
bondade e resplandecente de beleza.
Um santo escreveu que o Reino de Deus é quando todas as belezas
chegam à Beleza perfeita. Um escritor famoso também disse que o Espírito
Santo é a captação direta da beleza.
Por isso o Espírito Santo, que é a alegria eterna, em quem o Pai e o Filho
se comprazem, incendeia os nossos corações para dizermos com Jesus:
“Venha a nós o vosso reino”.
É assim que se abrem os nossos “olhos do Espírito”, como dizia São
Francisco, para contemplarmos toda a Beleza à luz da eternidade. Essa é a
verdade de Jesus transfigurado.
Observe-se que o fundo do Cristo da
Ascensão é vermelho, o fundo do
quadro dos santos é dourado, e o
fundo do Crucificado é negro.
Podemos falar em Teologia da Luz ou em Teologia da Beleza. Mas, como
se trata da Beleza de Deus, pode ser que não a entendamos bem.
Estamos acostumados a olhar outras coisas e outras belezas, sem ver
Deus.
O grande destaque do Crucificado de São Damião são os seus enormes
olhos. São grandes, brancos, e têm linhas pretas e vermelhas acima e
abaixo para se destacarem mais.
São olhos de amor, de paz, que se dirigem para todos, mesmo os que es-
tão longe, oferecendo a luz de Deus.
1). Deus Santo, Deus Luz
A palavra ícone vem do grego êikon, que quer dizer imagem. Como tal, é uma
representação. Mas não é como as nossas estátuas ou quadros, porque o
ícone já é feito como uma experiência da Luz da santidade, que, depois, é
transmitida.
Na visão da Igreja Oriental, teologia é viver Deus. E viver Deus é partilhar da
santidade da Trindade. Para poder falar dessa santidade, que é in-exprimível,
usam o símbolo da Luz.
Todo ícone apresenta um santo ou outro mistério sagrado. Um santo é uma
pessoa iluminada por Deus e, por isso mesmo, luminosa: transmite luz. Para
que haja um ícone, é necessária a intervenção de um iconógrafo (um pintor de
ícones) que, na contemplação, acolhe a Luz de Deus que passou pouco a
pouco para o santo. Como conseqüência, o iconógrafo também se torna
luminoso. Então, passa para uma tábua a Luz de Deus, que recebeu do santo.
E a tábua, o ícone, vai ser uma lâmpada, um sol, capaz de transmitir santidade
de Deus para quem se expõe à sua luz.
Por tudo isso, o santo não é representado como se estivesse vivendo na terra
e no seu tempo, como nós costumamos fazer. Ele é representado na glória de
Deus, onde já recebeu toda a sua Luz.
O ícone não é uma comunicação dirigida à mente: é uma palavra de vida que
passa de coração para coração. Do coração de Deus até o nosso.
Outro detalhe importante: além de não ter sombras, o ícone não tem
sinais de movimento, porque todo o seu movimento é interior: a
santificação progressiva. Isso é expresso pela luz interior e por figuras
geométricas muito equilibradas, que só poderemos observar se nos
detivermos com atenção.
Mas não são feitas para observar: só para transmitirem um sentimento.
Isto é muito importante: diferentemente dos nossos quadros e imagens,
os ícones não são feitos para ficarmos olhando: são eles que olham para
nós e nos iluminam.
Por isso mesmo, ainda que os detalhes de cores e símbolos sejam bem
caprichados, não têm nenhuma intenção de serem “perfeitos” ou
realistas como detalhes.
Para dar exemplo de alguns detalhes estabelecidos: a figura de Jesus
costuma ter uma auréola dividida por uma cruz. Um dos quatro braços
nunca é visto, porque fica por trás da cabeça; nos outros três
costumam ser postas três letras gregas: um ómicron, um omega e um
ny: hó On, Aquele que é.
As Nossas Senhoras costumam ser distinguidas por três estrelas:
uma da cabeça e duas nos ombros. Essas últimas duas nem sempre
ficam visíveis.
Também pode haver inscrições. A maioria em grego, muitas em russo.
O Crucifixo de São Damião tem inscrições em latim.
Quando o iconógrafo acha que sua parte está terminada, avisa os
sacerdotes. Eles virão, muitas vezes acompanhados pelo povo, para
benzer o ícone e para transportá-lo para a igreja ou para uma casa. A
liturgia da Igreja Oriental não pode ser celebrada sem ícones.
3. Ícones
Além dos aspectos que já expusemos acima, há outros importantes que
devem ser considerados.
Com a visão que demos do iconógrafo, de sua contemplação e de seu
trabalho, é claro que não teria cabimento alguém comprar um ícone numa
loja de objetos religiosos.
Um fiel não vai orar diante do ícone como nós oramos. Ele nem tenta “falar”
com o ícone ou pedir uma intercessão. É o ícone que olha para ele e que
“fala” com ele. Como? Dando-lhe um banho de luz. Transformado, ele vai
crescer no bem.
Não é pelo toque que o ícone transmite sua força; é pela luz.
É provável que nossos olhos ocidentais se voltem para os ícones mais
estudando-os do que sentindo-os. Damos, então, mais algumas explicações
“ocidentais” que nos ajudem a apreciar o ícone de São Damião.
1. Embora tenha muitas coisas em comum com os ícones bizantinos (de Bizâncio,
a antiga Constantinopla, hoje Istambul) o ícone de São Damião tem claras
conotações de uma origem siríaca. Monges sírios devem ter vivido na região, por
onde sempre passaram muitos estrangeiros. Mas também é românico, porque dá
para ver que o iconógrafo tinha assimilado características da pintura local, se não
foi mesmo um italiano.
2. É evidente que estamos diante de um Crucificado siríaco; Ele não está morto
na cruz. Ressuscitou, venceu a morte. Tem os olhos abertos, não tem coroa de
espinhos e sua posição é serena, mas, triunfante. Na mentalidade siríaca isso é
bem expresso pelo fato de Jesus estar, ao mesmo tempo, numa cruz e em um
caixão de defuntos (fundo preto), mas sem tampa.
3. É fundamental a inscrição “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”, porque todos os
detalhes são pintados na perspectiva do Evangelho de São João, que apresenta
Jesus como a Luz.
4. A inscrição em latim e diversos outros pontos demonstram que o Crucifixo foi
feito na Itália, e na cidade de Assis.
Isto é por enquanto. Vamos fazer muitas outras observações quando estivermos
conhecendo o Cristo de São Damião por partes.
3. Olhos que iluminam
Outra perspectiva. É o ícone que olha para nós. É Deus quem nos santifica. De
fato, Jesus é “o vidente, o único que vê o Pai” (Jo 6,46), porque está “voltado
para Ele” (Jo, 1,18).
Ao mesmo tempo em que nos enxerga com amor refletidos no Pai, ele quer
compartilhar conosco a sua visão divina. Ou quer abrir nossos olhos para que
enxerguem o mundo, as pessoas, tudo como Deus vê, porque, quando
“quisemos ser como Deus”, perdemos essa capacidade.
São Francisco, em sua Primeira Admoestação, fala-nos de enxergar com os
“olhos do espírito” a presença de Jesus na Eucaristia. Foi com os olhos do
espírito, certamente iluminados pelo seu Crucifixo, que Francisco e Clara
sempre viram Deus. É impressionante que usem só imagens visuais sempre
que falam em Deus.
A linguagem luminosa dos ícones não sugere idéias. Detona a transformação.
Podíamos aprender a viver como um iconógrafo. Contemplando toda presença
de luz de Deus que já chegou não só aos santos e santas, como aos mistérios
celestes, mas também todo sinal de luz que descobrimos nas pessoas, nos
acontecimentos e nas coisas deste mundo.
Podíamos lembrar também que toda luz que entra está desencadeando um
processo. Se resistirmos, vamos nos embotar. Se nos abrirmos, virão novas
luzes. Nós precisamos da Luz e temos que passá-la adiante.
Um primeiro passo é esquecer o próprio eu, percebendo que o verdadeiro
centro de tudo é Deus. Para nós, já é demais sermos filhos queridos do
Senhor Altíssimo, que se fez pequeno.
Depois, uma das primeiras iluminações do coração de Francisco deve ter
sido a capacidade de ver, lá dentro, que Deus é o sumo Bem, todo o Bem,
que só Ele é bom e que não existe nada de bom fora dele. Esse veio a ser
um ponto básico da espiritualidade de São Francisco e de seus seguidores.
Quando, no fim de sua vida, chegou à maior união com o Crucificado
recebendo suas chagas, Francisco expressou-o ardorosamente na oração
que escreveu para Frei Leão:
Vós sois santo, Senhor Deus único,
que fazeis maravilhas.
Vós sois forte, vós sois grande,
vós sois altíssimo,
vós sois rei onipotente,
vós Pai Santo, rei do céu e da terra.
Vós sois trino e uno,
Senhor Deus dos deuses,
vós sois o bem, todo bem, o sumo bem,
Senhor Deus vivo e verdadeiro.
Vós sois amor, caridade;
vós sois sabedoria, vós sois humildade,
vós sois paciência,
vós sois beleza, vós sois mansidão,
vós sois segurança, vós sois descanso,
vós sois gozo,
vós sois nossa esperança e alegria,
vós sois justiça, vós sois temperança,
vós sois toda nossa riqueza e satisfação.
Os ícones falam ao coração. A grande diferença é que as palavras à
mente definem. E as palavras ao coração, não definindo, abrem os
horizontes.
As palavras à mente convencem. As palavras ao coração, movem.
Essa é uma tremenda experiência de Deus, que o levaria a exclamar:
“Quem sois Vós, Senhor? e quem sou eu?”.
A Oração diante do Crucifixo de São Damião é a primeira que
conhecemos do nosso santo. A última deve ser o Cântico de Frei Sol.
Na primeira, ele era jovem e se sentiu escuro no interior. Na última,
cego, doente, em fim de vida e em tempo de inverno, sua oração já era
toda luz, luz interior. Em suas outras orações é possível notar como a
sua Luz foi crescendo.
Vós sois beleza, vós sois mansidão,
vós sois protetor,
vós sois guarda e defensor nosso;
vós sois fortaleza, vós sois refrigério.
Vós sois nossa esperança,
vós sois nossa fé,
vós sois nossa caridade,
vós sois toda doçura nossa,
vós sois nossa vida eterna:
Grande e admirável Senhor,
Deus onipotente,
misericordioso Salvador.
4 Sangue Redentor
Nós continuamos a celebrar, todos os dias e em todos os lugares, a Morte de
Jesus como porta da nossa Vida. Foi o seu sangue redentor que nos mereceu a
salvação.
Nossos Crucifixos comuns costumam apresentar Jesus Cristo morto depois de
intensos sofrimentos, com o corpo coberto de sangue.
No Crucifixo de Francisco e Clara há o mínimo de Sangue: é o que brota das
chagas e nos liberta da opção de querermos ser deuses. É um sangue que se
derrama sobre todos, até sobre Nossa Senhora e os Anjos, porque todos
precisamos dele, nós que temos uma vida alimentada por seu Corpo e seu
Sangue.
O Evangelho recorda que, ao pé da Cruz, os sacerdotes clamavam: “Que o teu
sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos!”. Estavam proferindo uma maldição,
mas Jesus transformou-a numa bênção.
Forma de vida, o sangue redentor pagou pelos nossos pecados e abriu as portas
de um Reino novo: um convite a todos os povos e o prelúdio da eternidade.
Dos pés feridos de Jesus escorre o sangue sobre diversos santos, não
identificáveis porque esmaecidos pelo tempo. Do peito, parece cair só sobre São
João.
Chamamos a atenção para o fato de que, no ícone de São Damião, o sangue
brota sempre como uma flor, que traz vida para o mundo. É um sangue que já não
martiriza o Crucificado; enaltece o Ressuscitado.
1. Sangue da Vida
Na linguagem hebraica da Bíblia, o sangue é a sede da vida. Um corpo sem sangue
é um corpo morto. Porque o sangue é a vida, e esta pertence a Deus, Ele vinga o
sangue inocente.
Beber o sangue seria destruir a vida. Os prodígios com intervenção de sangue
anunciavam a vingança divina. Se os próprios judeus derramavam sangue de
vítimas junto ao altar é porque queriam significar que toda vida volta a Deus.
Por isso, foi um escândalo para os contemporâneos ouvirem Jesus dizer:
“Eu garanto a vocês: se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não
bebem o seu sangue não terão a vida em vocês. Quem come a minha carne e bebe
o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha
carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a
minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele (Jo 6,53-56)
A custo os cristãos conseguiram libertar-se do modo antigo de conceber o sangue.
Por que o sangue de Cristo transmitiria vida?
Mas o fundamento do que Jesus estava dizendo era sólido. Só a novidade era tão
grande que custou a ser assimilada. E ainda custa.
Se o sangue humano transmite vida humana, o sangue de Deus feito homem
transmite vida divina.
Vamos refletir melhor. Todas as culturas e todas as religiões sempre expressaram a
necessidade que temos de expiação e reparação. E, por isso, também falaram em
redenção.
Nós vivemos cometendo enganos, leves ou mesmo graves. Muitas vezes,
desobedecemos às mesmas leis que criamos. Se nos sentimos na
obrigação de pedir desculpas às outras pessoas quando as desrespeitamos
ou ofendemos, mesmo que tenha sido “sem querer”, sabemos que algumas
falhas são muito maiores e, então, temos que pedir perdão a Deus.
Todos os povos sempre tiveram noção de culpa e de pecado, muitas vezes
de modo até exagerado.
De maneira geral, culpa é o sentimento de responsabilidade pelo erro.
Pecado é quando o erro foi contra Deus. Expiação é a nossa disposição de
voltar às boas. Reparação é o que fazemos para compensar pelo que foi
mal feito.
Redenção é uma palavra interessante. Vem do latim re+emere. Ao pé da
letra quer dizer “comprar de novo”, isto é, pagar para voltar a ser livre.
Esses conceitos sempre foram correntes em todas as culturas. A novidade
da Boa Nova de Jesus é que, para fazer tudo isso, ele nos ofereceu a
participação na vida divina, aquela grande finalidade para a qual fomos
criados e que seria nossa se não tivéssemos querido “ser como deuses”.
Os crucifixos comuns derramam sangue para nos comover mostrando
como Jesus sofreu por nós. No crucifixo de São Damião, o sangue é
derramado por um Cristo glorioso só para demonstrar que, graças a esse
sangue, nós ganhamos a vida divina.
2. Cruz da Salvação
A própria cruz — duas retas que se atravessam — é símbolo de contradição, de
oposição, sinal de morte e sinal de salvação.
Comecemos com a contradição. A cruz é símbolo de que Deus veio para subverter
todo o mundo que nós tínhamos edificado. É bastante conhecido o texto de 1Cor
1,22-23:
Os judeus pedem sinais e os gregos procuram a sabedoria; nós, porém,
anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos.
Um pouco antes, lemos também o seguinte:
A linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem. Mas, para aqueles que
se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois a Escritura diz: “Destruirei a sabedoria
dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes” (1Cor 1,18-19).
Jesus se coloca em total oposição à nossa sabedoria, a dos que “quiseram ser
como Deus”. É bom lembrar que, quando ele foi apresentado no templo, Simeão
disse a Maria:
Eis que este menino vai ser causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele
será um sinal de contradição (Lc 2, 34).
A cruz também é um símbolo muito anterior e muito mais amplo do que o
cristianismo: as duas linhas que se cortam podem ser um dos sinais mais claros da
“lei dos opostos”, que rege tantas manifestações da natureza. Essa situação indica
que sempre há tensão no que vivemos e que sempre há o risco de reduzirmos a
tensão fugindo ou nos omitindo. Mas a nossa vida cresce quando sabemos usar os
pólos opostos para construir o equilíbrio. Tanto o equilíbrio interior quanto o exterior,
de que necessitamos.
De certa forma, a cruz é o contrário da Trindade, porque a Trindade une
num ciclo sem fim, enquanto a cruz corta e separa porque considera as
forças opostas. Mas a cruz também equilibra as forças opostas e nos
permite entrar no ciclo da Trindade.
A cruz sempre foi um sinal fácil de fazer, porque basta traçar duas retas em
sentido oposto. Talvez seja por isso que a usaram para pregar um
condenado de braços abertos, inventando um instrumento de suplício e de
morte.
Mas foi aí que Jesus, que veio para nos arrancar da morte, transformou a
cruz em sinal da vida.
São Francisco, que teve uma profunda consciência disso, ensinou desde o
começo os seus seguidores a rezarem uma oração que ele mesmo
apresenta no seu Testamento, e que também é relatada por seus biógrafos:
“Quando encontravam alguma igreja ou cruz, ajoelhavam-se para rezar e
devotamente diziam: “Nós te adoramos, ó Cristo, e te bendizemos, em
todas as tuas igrejas que estão no mundo inteiro, porque pela tua santa
cruz remiste o mundo” (LTC 37).
O que ele queria era identificar-se com o Jesus que morreu na cruz
obedecendo à vontade do Pai. Queria “seguir os vestígios de Jesus pobre e
crucificado”. Entre outras coisas, compôs o Ofício da Paixão, que rezava
todos os dias.
1). A luz que vem de dentro
O Livro do Apocalipse, a revelação, descreve, no cap. 21, como vão ser o
novo céu e a nova terra. Fala de uma cidade toda construída de símbolos.
Entre outras coisas, afirma:
“Templo não vi nenhum na cidade, pois, o Senhor Deus, o Todo Poderoso e o
Cordeiro são o seu templo. E a cidade tão pouco necessita de sol nem de lua
para a iluminar, pois a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o
Cordeiro” (Ap 21,22-23).
Uma característica dos ícones é que não fazem nenhum jogo de luz e
sombras, porque a luz não tem uma fonte exterior, como o sol, o fogo ou uma
lâmpada, mas sai da interioridade da pessoa, onde Deus habita. Nesse
ponto, o crucifixo de São Damião é um exemplar excelente, porque toda a luz
sai do Cristo ressuscitado que está na cruz.
Diante dele, São Francisco ficou tão tocado pela percepção dessa realidade,
que respondeu com a oração em que pede a luz para o seu coração. Depois
disso, toda a sua vida foi o crescimento da iluminação, ele teve uma
veneração especial pelo sol e pelo fogo, como símbolos de Deus-Luz e,
sempre falou de Deus através de símbolos visuais e, no fim, teve a
inspiração do Cântico de Frei Sol, em que, embora estivesse no fim da vida e
cego, deu uma amostra de toda a luz que brilhava em seu coração.
Para expressar melhor essa Luz de Deus que vem de dentro dos santos,
juntamos alguns textos significativos de São Gregório Palamas, muito
venerado no Oriente, quando fala da Transfiguração:
“Deus é chamado de Luz não segundo a sua Essência mas, segundo a sua
Energia. A luz que iluminou os apóstolos não era algo sensível mas, por outro
lado, é igualmente errado ver nela uma realidade inteligível, que só seria
chamada de “luz” metaforicamente.
A Luz divina não é nem material nem espiritual, porque transcende a ordem
da criação e é “o esplendor inefável de uma natureza em três hipóstases”.
A Luz da Transfiguração do Senhor não teve nem começo nem fim;
permaneceu incircunscrita (no tempo e no espaço) e imperceptível para os
sentidos, ainda que tenha sido contemplada por olhos humanos... mas, por
uma transmutação de seus sentidos, os discípulos do Senhor passaram da
carne para o Espírito”.
É uma esclarecedora explicação para entender um dos trechos mais
inspirados de São Francisco, aquele em que fala da Eucaristia na sua
Admoestação 1.
É evidente que o que estamos dizendo enche-nos de admiração. Mas, o mais
importante é termos uma consciência cada vez mais nítida da luz que nos
está tornando luminosos.
2. O que é o céu?
São Francisco, no seu Comentário ao Pai-nosso, explica as palavras: “que
estais no céu”:
“... nos anjos e nos santos, iluminando-os para o conhecimento, porque Vós,
Senhor, sois Luz; inflamando-os para o amor, porque Vós, Senhor, sois Amor;
morando neles e plenificando-os para a bem-aventurança, porque Vós, Senhor,
sois o sumo Bem, eterno, do qual vem todo bem, sem o qual não há nenhum
bem”.
Nessa visão, não somos nós que estamos no céu, mas é o céu que mora em
nós.
No ícone de São Damião, o céu é meio livro, um quadrado cortado pela
metade: já ouvimos falar dele o que sabemos por Jesus, mas ainda falta muito
para descobrirmos. Não nos foi dado o livro inteiro.
Contrasta com o mundo dos santos conhecidos, que ocupa um livro completo,
em que os corpos estão inteiros. O importante é que Deus já está em nós, só
que ainda estamos procurando avaliar sua plenitude, abrindo-nos cada vez
mais para ela. Por isso, Francisco pediu para ser iluminado.
Na imaginação popular, o céu é um ambiente fechado, com altos muros e uma
porta vigiada por São Pedro. Só os bons entram lá. Pensa-se em um lugar de
recompensas, de pra-zer, de alegria de reencontros, da segurança de que o
bem nunca mais vai terminar. O importante é pensar que, depois da morte,
“Deus vai ser tudo em todos” e, por isso, estaremos na plenitude da Vida.
3). O que é um santo?
No Crucifixo de São Damião, são apresentados dez santos no céu: cinco de cada
lado de Jesus. Dez é um número simbólico representando a totalidade. Podemos
pensar tanto na totalidade de dedos nas mãos e nos pés como na soma dos
números mais importantes: 1+2+3+4=10. Jesus fala em dez virgens convidadas para
o casamento e em dez moedas que uma mulher festejou quando readquiriu a
totalidade. Os dez santos representam todas as pessoas que estão no céu. O fato
de serem todos parecidos também pode indicar que, na vida eterna, seremos todos
irmãos porque Deus será tudo em todos.
É bom recordar que nossas crenças religiosas são, freqüentemente, uma salada
cultural das religiões dos mais diversos povos que estão em nossas raízes. Ora,
todas as culturas sempre tiveram santos e pecadores, recompensas e castigos,
principalmente porque precisavam manter a ordem de seu povo. De alguma forma,
os que agiam corretamente eram os “santos” e os que não procediam bem eram os
“pecadores”. Para os primeiros, Deus era bondoso, para os segundos era
carrancudo e severo. A sociedade de hoje não fala mais em santos e pecadores,
mas também tem os seus tabus.
Temos bastante dificuldade para distinguir tudo isso da proposta evangélica segundo
a qual só Deus é Santo. Santas são as pessoas que se abrem para viver a sua
santidade. A santidade vai ser plenitude só quando estivermos na situação definitiva.
E não será preciso que nos classifiquem como santos.
Ser santo não é ser sobre-humano, sem defeitos, multiplicando
milagres, sendo um bom intercessor. É justamente realizar o que
somos. Ter um eu verdadeiro (aquele que Deus conhece), viver a
dimensão do corpo tanto quanto a da alma.
O fundamental é ir vivendo o processo de transformação. Nesta
terra, sempre teremos falhas, mas elas são um elemento muito
positivo para ajudarmos o processo vendo o que nos falta e
deixando a luz de Deus entrar. Entrar e passar: ela vem de Deus
através de todas as pessoas e de todas as criaturas e tem que ser
passada adiante por cada um de nós.
Quando a Igreja canoniza um santo, o que está fazendo é proclamar
que essa pessoa, apesar dos defeitos que possa ter tido e das
falhas que possa ter cometido, está agora na luz plena de Deus e
pode ser olhada com toda confiança como um exemplo, por nós,
que ainda estamos no processo de nos abrirmos para Deus que
quer trazer todo o Bem para nós.