UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE-UNIVALEFACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E ECONÕMICAS-FADE
CURSO DE DIREITO
Isaque Lopes de Lima Pacheco
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE SÚMULA VINCULANTE
Governador Valadares/MG2010
ISAQUE LOPES DE LIMA PACHECO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE SÚMULA VINCULANTE
Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, apresentada pela Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas – FADE da Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE.
Orientador(a): Profª. Rosimeire Pereira da Silva
Governador Valadares/MG2010
ISAQUE LOPES DE LIMA PACHECO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE SÚMULA VINCULANTE
Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, apresentada pela Faculdade de Direito, Ciências Administrativas e Econômicas – FADE da Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE
Governador Valadares, ____ de _________ de _____.
Banca Examinadora:
_____________________________________Profª. Rosimeire Pereira da Silva - Orientador
Universidade Vale do Rio Doce
_____________________________________Prof.
Universidade Vale do Rio Doce
_____________________________________Prof.
Universidade Vale do Rio Doce
AGRADECIMENTO(S)
Agradeço primeiramente à Deus, razão do meu existir, por mais esta vitória
concedida.
Aos meus pais, pelo que palavra nenhuma conseguiria expressar. Amo vocês.
Aos meus familiares, pela torcida.
À Márcia, pelo carinho e companheirismo.
Aos colegas de curso, por tornarem mais leve esta caminhada.
Aos professores, pelos ensinamentos transmitidos, especialmente à orientadora,
Profª. Rosimeire Pereira.
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo analisar o instituto da súmula vinculante no que concerne à possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade da súmula vinculante, em razão da sua natureza eminentemente normativa. A partir da análise dos dois grandes sistemas de direito da história, vale dizer, common law, de origem inglesa, e civil law, cuja raiz remonta ao direito romano, necessariamente, discorrer-se-á sobre a emenda constitucional nº 45 de 2004, bem como sobre a lei 11.417 de 2007, que regulamentou o instituto. Abordar-se-á também o controle de constitucionalidade no Brasil e no direito comparado, a fim de verificar a possibilidade aplicação do controle concentrado às súmulas vinculantes, a partir da concepção do seu caráter normativo. Além disso, será feita uma reflexão sobre o princípio da separação dos poderes e a teoria do checks and balances, a fim de se concluir sobre a eventual inviabilidade do controle concentrado tendo como objeto as súmulas vinculantes. Palavras-chaves: Súmula vinculante. Controle de constitucionalidade. Teoria da separação dos poderes. Civil law e common law.
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ABSTRACT
This study aims analyse the summary binding institute, concerning about the possibility of concentrated control of the binding sumary, because its normative nature. From analyzing the two greatest justice system in histoy, that is, common law from english origin, and civil law, whose root dates the roman period, necessarily, discoursing about constitutional amendment nº 45/04, as well about the Law 11.417/07, that regulates the institute. It´ll approach brasilian constitutionality control and comparative law, in order to check the possibility of the application of concentrated control on summary binding, from the concept of its normative character. Moreover, we will reflect abou the division of powers principle and abou the checks and balances theory, in order to conclude about eventual inviability of concentrated control of the summary binding.
Key-words: Sumary Binding. Constitutionality control. Division of powers theory. Civil law and common law.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 082 OS DOIS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO DA HISTÓRIA 103 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL E NO
DIREITO COMPARADO
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4 DIREITO SUMULAR 245 SÚMULAS VINCULANTES: EC 45/04 E LEI 11.417/07 265.1 SEPARAÇÃO DOS PODERES E A TEORIA DO CHECKS AND
BALANCES
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6 APLICAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ÀS
SÚMULAS VINCULANTES
35
7 CONCLUSÃO 44REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 45
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1. INTRODUÇÃO
Atualmente, discute-se com grande freqüência a respeito da súmula
vinculante, introduzida no ordenamento pátrio através da Emenda Constitucional n°
45, de 08 de dezembro de 2004. O seu principal escopo, segundo seus ardorosos
defensores, é desafogar o Judiciário, evitando a chegada de milhares de processos
aos Tribunais, os quais, em sua maioria, tratam de assuntos já julgados por estes.
De fato, é tendência marcante do meio jurídico brasileiro a busca por
mecanismos que tornem menos morosa a prestação jurisdicional. Além da súmula
vinculante, foi esse também o objetivo da criação da repercussão geral em Recurso
Extraordinário e a Lei dos Recursos Repetitivos.
Quanto ao controle de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal
entende que a súmula, por não apresentar as características de ato normativo, não
está sujeita ao controle de constitucionalidade. Nesse quadro, surge o problema da
eventual incompatibilidade, formal ou material, da súmula vinculante em face da Lei
Maior, situação que colocaria em risco a harmonização entre os poderes da
República. Quanto a isso, a própria Constituição Federal traça dois requisitos para a
aprovação das súmulas com caráter vinculante, quais sejam, o quórum de dois
terços dos Ministros e a existência de decisões reiteradas sobre matéria
constitucional.
Assim, verifica-se, a priori, a possibilidade da violação dos requisitos
previstos na Lei Maior para edição das súmulas. Além disso, é possível, em tese, a
edição de súmula que contrarie materialmente a Constituição, criando um embaraço
ao princípio constitucional checks and balances1, vez que o próprio órgão que
exarou o ato contrário à ordem constitucional é o competente para exercer o controle
de constitucionalidade.
A metodologia a ser utilizada será basicamente a coleta de dados e
informações acerca do assunto a ser analisado através de pesquisa bibliográfica,
permitindo que se tome conhecimento de material relevante, tomando por base o
que já foi publicado sobre o tema, de modo que se possa delinear uma nova
abordagem sobre o mesmo, chegando a conclusões que possam servir de
embasamento para pesquisas futuras.
1 Freios e Contrapesos
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O trabalho será dividido em cinco partes. O primeiro capítulo versará sobre
os dois grandes sistemas de direito da história, analisando seu desenvolvimento e
influência.
O segundo trata do controle de constitucionalidade no Brasil e no Direito
comparado, a partir do que foi abordado no capítulo precedente.
O terceiro capítulo, por sua vez, disporá sobre o direito sumular,
mencionando sua origem, evolução histórica e importância nos dois grandes
sistemas do direito.
O quarto capítulo cuidará especificamente da súmula vinculante, analisando-
se, necessariamente, a Emenda Constitucional 45 de 2004 e a Lei 11.417 de 2007.
Por derradeiro, o quinto capítulo enfrentará a problemática proposta por este
trabalho, sem, evidentemente, ter a pretensão de esgotar o assunto, ainda muito
controvertido, mas de indispensável reflexão para os operadores do direito.
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2. OS DOIS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO DA HISTÓRIA
O estudo do Direito Comparado é relevante para o próprio direito nacional,
pois confere visão panorâmica ao jurista, ao analisar em termos macro o seu próprio
sistema em comparação aos demais direitos. O estudo comparativo dá a
oportunidade do conhecimento de novos institutos jurídicos e de outros fundamentos
de resolução de conflitos em prol da própria sociedade e do pragmatismo funcional
do direito. Nesse contexto, vale dizer que há dois grandes sistemas de direito da
história, quais sejam, o da common law 2e o da civil law.
A common law é um sistema jurídico criado inicialmente nos costumes
vigentes na Inglaterra, e nos julgados dos Tribunais da Corte. Atualmente, a com-
mon law é essencialmente a síntese dos julgados dos tribunais, diante da aplicação
concreta e casuística de premissas fáticas para reger determinada situação objeto
de julgamento.
Trata-se de um direito essencialmente histórico, processual, formal e
jurisprudencial, imanentemente ligado aos fatos. Diferentemente dos direitos da
família romano-germânica, não sofreu influência do Direito romano, tampouco do
fenômeno da codificação. Diante da sua aplicação aos fatos em concreto, sua
concepção de sistema é tida como aberta e prospectiva, pois ao juiz incumbe
resolver a lide, frente aos fatos concretos do caso e da jurisprudência que reina
sobre o assunto.
Neste ponto, cabe dizer que, hodiernamente, em sintonia com as modernas
intervenções do Estado na economia, tem-se assistido a algumas mudanças da
órbita comum do direito pátrio, em prol da Administração Pública. A súmula
vinculante ora incorporada ao nosso Direito, por força da Emenda Constitucional nº
45, é instituto inspirado na common law, pois trabalha com raciocínio e estrutura de
julgamento desse sistema de direito. Representa eficiente comando de respeito e
hierarquia para a solução de polêmicas jurisprudenciais, instrumento que serve à
eficiência jurídica e à otimização dos julgados.
Côrtes, discorrendo sobre a jurisprudência e os precedentes no direito
inglês, assevera em seu trabalho sobre as súmulas vinculantes:
2 Direito Consuetudinário
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Todo o desenvolvimento da common law teve uma preocupação central – ajustar o processo para que as demandas pudessem ser resolvidas pelo juiz. Não se dava atenção tão grande a eventuais normas a serem produzidas pelo Parlamento e até à proteção material dos bens. E o respeito à jurisprudência pretérita, bem como aos precedentes, demonstra bem a maior preocupação com a resolução de casos concretos de forma efetiva a partir de uma base não-legislativa. Aliás, o sistema dos precedentes é uma forma de trazer segurança jurídica para uma organização que não tem uma base legislativa escrita forte. René David é preciso:” “A autoridade reconhecida aos precedentes é, por via de consequência, considerável, pois pode revelar-se como sendo a própria condição de existência de um direito inglês. No entanto, essa autoridade variou conforme a época. Tornou-se mais estrita no século XIX, época de expansão da indústria e do comércio, quando sentiu-se uma necessidade de segurança nas relações jurídicas (Côrtes, 2009, p.111).
Relevante notar o Direito romano pouco influenciou o Direito inglês, pois a
retirada romana foi substituída pela difusão dos costumes bárbaros e a organização
social, política e econômica peculiar que se instaurou na Inglaterra nos anos
seguintes. Essa interação é marcante e particularmente autônoma em comparação
ao Direito Europeu Continental, pois o jurista inglês orgulha-se de valorizar o caráter
tradicional de seu direito, que surge como produto de uma longa evolução que não
foi perturbada por nenhuma revolução – pois ausente o marco da codificação na
common law – orgulha-se desta circunstância e da capacidade de adaptação do seu
direito.
Vale transcrever texto de David, no qual discorre sobre o período anglo-
saxônico no direito inglês:
Uma data fundamental na história da Inglaterra e da Europa é o ano de 1066, em que a Inglaterra é conquistada pelos normandos. O período que precede esta data é chamado, na Inglaterra, o do direito anglo-saxônico. O domínio romano, embora tenha durado quatro séculos na Inglaterra – do imperador Cláudio até o começo do século V -, não deixou mais vestígios na Inglaterra do que o período celta na França ou o período ibérico na Espanha. A história do direito começa, para os historiadores do direito inglês, na época em que, tendo cessado este domínio, diversas tribos de origem germânica – saxões, anglos, dinamarqueses – partilharam entre si a Inglaterra. É somente nesta época que a Inglaterra, com a missão de Santo Agostinho de Cantobéry em 596, se converte ao cristianismo. O direito da época anglo-saxônica é mal conhecido. As leis são redigidas logo após a conversão ao cristianismo, como na Europa continental; a sua originalidade está em que, ao contrário das outras leis bárbaras que são redigidas em latim, estas são redigidas em língua anglo-saxônica. Contudo, tal como as outras leis bárbaras, as lei anglo-saxônicas apenas regulam
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aspectos muito limitados das relações sociais às quais se estende a nossa concepção atual do direito. As leis de Aethelbert, rei do Kent, redigidas em língua anglo-saxônica no ano de 600, apenas comportam 90 frases breves. As leis do rei dinamarquês Canuto (1017-1035), quatro séculos mais tarde, são mais elaboradas e anunciam já a passagem da era tribal para a feudal. O princípio de personalidade de personalidade das leis dá lugar, como na França, a uma lei territorial, mas, embora o país esteja submetido a um único soberano, o direito em vigor mantém-se um direito estritamente local; não há direito comum a toda Inglaterra antes da conquista da Normada (David, 2002, p. 356 e 357).
Noutro giro, conforme Côrtes:
na tradição inglesa, “a decisão judicial tem duas funções. A primeira consiste em dirimir a controvérsia imediata, e a segunda de estabelecer o precedente, que servirá de base para decisões futuras e trará, por conseguinte, segurança jurídica. (Côrtes, 2009, p.112 e 113).
Farnsworth (1963) apud Côrtes, assevera:
A segunda função da decisão judicial, característica do direito de tradição inglesa, é estabelecer um precedente, em face do qual um caso análogo a surgir no futuro será provavelmente decidido da mesma forma. Essa doutrina é frequentemente designada pelo seu nome latino, stare decisis, da frase stare decisis et non quieta movere, apoiar as decisões e não perturbar os pontos pacíficos (Côrtes, 2009, p.113).
A influência histórica marcou profundamente o Direito inglês, e ainda hoje
influencia sua aplicação. Contudo, há outros aspectos relevantes que marcaram
esse sistema de direito, consoante enfatiza David:
As circunstâncias nas quais se formou a common law não têm um interesse meramente histórico. Pelo menos em quatro aspectos elas marcaram, de modo duradouro, o direito inglês, no qual, ainda nos dias atuais, podemos notar a sua influência. Em primeiro lugar, levaram os juristas ingleses a concentrar o seu interesse sobre o processo. Em segundo lugar, elas fixaram numerosas categorias e serviram para elaborar numerosos conceitos do direito inglês. Em terceiro lugar, levaram à rejeição da distinção entre o direito público e privado. Finalmente, em quarto lugar, criaram obstáculos a uma recepção, na Inglaterra, das categorias e dos conceitos do direito romano (David, 2002, p. 364).
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De fato, a realeza influenciou e até restringiu o conhecimento e evolução de
muitas matérias do Direito inglês, de forma que René David é contundente na crítica
da common law do século XV, ao observar sua funcionalidade e não considerá-la
como um sistema que visa primária e diretamente realizar justiça, mas sim admitir a
contenciosidade entre as partes, como um duelo; é mais um conglomerado de
processos próprios para assegurar, em casos cada vez mais numerosos, a solução
dos litígios.
A principal distinção do Direito da família da common law perante a família
do Direito romano-germânico reside, em termos pragmáticos em três níveis: a) na
estrutura de concepção do direito; b) nas suas fontes; c) nos seus conceitos para-
digmáticos.
David, analisando formação histórica do sistema de direito romano-
germânico, aduz:
O sistema de direito romano germânico formou-se na Europa Continental e é aí que ainda hoje conserva o seu principal centro, ainda que, devido aos fenômenos de expansão ou de recepção, numerosos países extra-europeus tenham aderido a este sistema ou extraído dele alguns dos seus elementos. A época em que surge, do ponto de vista científico, o sistema de direito romano-germânico é o século XIII. Até esta época existem, sem dúvida alguma, elementos com a ajuda dos quais o sistema será constituído; mas parece prematuro falar de sistema, e talvez mesmo de direito. Um primeiro período começa, no século XIII, com o renascimento dos estudos de direito romano nas universidades: fenômeno essencial do qual mostraremos a significação e o alcance. Durante cinco séculos o sistema vai se dominado pela doutrina, sob a influência principal da qual a própria prática do direito evoluirá nos diferentes Estados. A doutrina preparará, com a Escola do Direito Natural, o despertar do período seguinte, aquele em que ainda atualmente nos encontramos – período no qual o sistema será dominado pela legislação (David, 2002, p. 35).
Nota-se daí a tamanha disparidade entre as duas famílias do direito, cuja
complexidade remonta à sua origem. Tamanha distinção implica num direito
expressivamente diferenciado e estranho aos juristas romano-germânicos, cuja
comunicação é desafiante, inclusive aos próprios dicionários jurídicos. Parte-se,
pois, para a análise dos conceitos.
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Entende-se por súmula a cristalização positiva de um posicionamento
consolidado na jurisprudência, de forma a ditar em categoria normativa o
posicionamento dos tribunais sobre o assunto. Estabelece-se, assim, uma
orientação jurídica de caráter precedente.
A respeito do tema, Leite afirma:
Pelo exposto, percebe-se que as súmulas da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal, da forma preconizada pelo Ministro Victor Nunes Leal, apresentavam as seguintes notas principais: a) dentre outras funções que desempenharam, a que se sobressaiu foi a de concebe-las como método de trabalho; b) nesse sentido, sua finalidade principal era racionalizar o julgamento de processos judiciais idênticos, diminuindo a carga de trabalho do Supremo Tribunal Federal; c) a estabilidade da jurisprudência, concretizada por elas, estava em sintonia com o princípio da igualdade, pois os casos idênticos deveriam ter soluções iguais; d) pela possibilidade de revisão da súmula, seria evitado o risco de petrificação da jurisprudência; e) exigia-se deliberação formal para a sua criação; e) possuíam apenas obrigatoriedade indireta, carecendo, portanto de força vinculante (Leite, 2007, p. 53 e 54).
Quanto a esse último aspecto, mister dizer que essa competência legislativa
extraordinária foi outorgada ao Supremo Tribunal Federal por força da Emenda
Constitucional n. 45, nos seguintes termos:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em rela-ção aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
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A Lei n. 11.417/2006 regulamentou o dispositivo supra e reitera em grande
medida os mesmos preceitos.
Verifica-se, pois, uma aproximação aos institutos próprios da common law,
em prol da otimização do direito nacional e, assim, restringir recursos de massa ao
Supremo Tribunal Federal. Sua plasticidade de revogação ou aprimoramento traz
válvula de equilíbrio ao desenvolvimento do direito em sintonia com a sociedade.
Em suma, os limites objetivos da súmula vinculante são dados pelo
enunciado que resulta de sua formulação, certamente baseado nos fatos base do
julgamento em questão. Assim, devem-se averiguar as situações fáticas de um e de
outro para sedimentar segurança na sua aplicação.
Tanto os precedentes da common law como a súmula vinculante do Direito
brasileiro são instrumentos que aprimoram a segurança jurídica do sistema. Esta
última tem eficácia imediata e definitiva para toda a Justiça e Administração Pública,
e sua imposição pode ser efetivada através da reclamação perante o Supremo
Tribunal Federal.
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3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL E NO DIREITO COMPARADO
O controle de constitucionalidade se baseia na idéia da superioridade de
uma norma, a Constituição, em face de outras de hierarquia inferior. É característica
das constituições rígidas o controle de constitucionalidade das leis, visto que esse
mecanismo assegura a supremacia do texto constitucional, retirando a validade das
normas inferiores que violem seus preceitos.
É de Kelsen a famosa teoria sobre a validade das normas, quando ilustra,
didaticamente, que a Constituição situa-se no topo de uma pirâmide, conferindo
validade às normas de inferior hierarquia.
Sobre o assunto, Kelsen diz:
Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa (Kelsen, 2006, p. 217).
No Brasil, a Constituição Imperial de 1824 não estabeleceu qualquer sistema
de controle, consagrando o dogma da soberania do Parlamento, já que, sob a
influência do direito francês (a lei como expressão da vontade geral) e do inglês
(supremacia do parlamento), somente o órgão legislativo poderia saber o verdadeiro
sentido da norma.
Em seguida, a Constituição Republicana de 1891, além de estabelecer a
nossa primeira República, introduziu o controle de constitucionalidade pela via
difusa, inspirando-se no sistema jurisprudencial americano.
Com a Constituição de 1934, manteve-se o controle de constitucionalidade
difuso e introduziu-se a representação interventiva, além de estabelecer-se a
denominada cláusula de reserva de plenário (a declaração de inconstitucionalidade
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só poderia se dar pela maioria absoluta dos membros do tribunal). Por fim, também
conferiu ao Senado Federal a atribuição de suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei ou ato declarado inconstitucional por decisão definitiva.
Logo após, a Constituição ditatorial de 1937 manteve o sistema difuso de
constitucionalidade, e estabeleceu a possibilidade do Presidente da República
influenciar as decisões do Poder Judiciário que declarassem inconstitucional
determinada lei, já que, de modo discricionário, poderia submetê-la ao Parlamento
para o seu reexame, podendo o Legislativo pela decisão de 2/3 de ambas as Casas,
tornar sem efeito a declaração de inconstitucionalidade, desde que confirmasse a
validade da lei, inspirando-se no sistema ditatorial vigente à época.
Após o golpe militar de 1964, na vigência da Constituição democrática de
1946, criou-se no Brasil, através da Emenda Constitucional nº16 de 26/11/1965, uma
nova modalidade de ação direta de inconstitucionalidade, de competência originária
do STF para processar e julgar originariamente a representação de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, a ser proposta,
exclusivamente pelo Procurador-Geral da República. Estabeleceu-se, ainda, a
possibilidade de controle concentrado em âmbito estadual.
A Constituição Federal de 1967 manteve o controle de constitucionalidade
pela via difusa, mas retirou o controle concentrado. Após, com a Emenda
Constitucional 1/69, que na verdade, para a maioria da doutrina, representou uma
nova Carta Política, previu-se o controle de constitucionalidade de lei municipal, em
face da Constituição Estadual, para fins de intervenção no Município.
Nossa atual Constituição ampliou, no controle concentrado federal, a
legitimidade para propositura da representação de inconstitucionalidade. Criou,
ainda, a possibilidade de controle de constitucionalidade das omissões legislativas, e
a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Em momento
posterior, com a Emenda Constitucional nº 03/93, estabeleceu-se a Ação
Declaratória de Constitucionalidade (ADC), cuja legitimação ativa foi ampliada com a
Emenda Constitucional nº 45/04, igualando aos legitimados da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI).
No Direito Comparado, dois sistemas se destacam quanto ao controle de
constitucionalidade, a saber, o austríaco e o norte-americano.
No sistema austríaco, concentrado, desenvolvido por Hans Kelsen, a
decisão tem eficácia constitutivo-negativa. Assim, por regra, o vício de
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inconstitucionalidade é aferido no plano da existência, produzindo efeitos
prospectivos. Logo, a lei é provisoriamente válida, produzindo efeitos até a sua
anulação. Além disso, a lei inconstitucional é ato anulável, podendo, portanto
aparecer em vários graus.
Já no sistema norte-americano, difuso, de formação pretoriana, mas que
teve como marco a célebre decisão do chief justice3 Marshal, a decisão tem eficácia
declaratória de situação pré-existente.
A origem histórica desse sistema remonta ao século XVIII. Jonh Adams era
o presidente dos Estados Unidos da América, quanto nomeou William Marbury juiz
de paz. Contudo, a “comissão” necessária para o cargo, embora assinada não lhe foi
entregue. Logo após, Thomas Jefferson sucedeu o antigo presidente, nomeando
James Madison Secretário de Estado, que não efetivou a “comissão” por ordem de
Jefferson.
Pela importância histórica, transcreve-se excerto do trabalho de Silveira (p.
85), que, com clareza, discorre sobre o marco da criação da judicial review:
As circunstâncias em que o caso ocorreu é deveras interessante por suas peculiaridades. Ao tempo da Administração de Adams (1797/801), que sucedeu à de Washington (1789/97), o Secretário de Tesouro no governo de Washington, ao lado de Jefferson, que era o Secretário de Estado (este veio a ser vice de Adams), estava dominando o poder e buscava, além de uma política centralizadora com o fortalecimento da União, também uma maior aproximação com os ingleses. Os republicanos, liderados por Jefferson, se opunham a isso, batendo pela autonomia dos Estados, o exercício restrito do poder pela União, e uma política de amizade com a França, que tinha, através de tropas francesas comandadas pelo Marquês de Lafayette, ajudado na revolução americana. Com a eleição de Jefferson (1801/9), os federalistas, perdendo o poder no congresso para os republicanos, se refugiaram no Judiciário. John Marshall, um federalista convicto, era Secretário de Estado de Adams e foi por ele nomeado Chief-Justice da U.S. Supre Court em 1801. A pedido de Jefferson, permaneceu, porém, como secretário de Estado por um mês após sua posse como Chief-Justice. Aproximadamente um mês antes dos vitoriosos assumirem seus cargos, Adams conseguiu passar uma lei, denominada Midnight Judges Act, pela qual, em 13/2/801, criou 16 cargos de juízes federais para Corte de Circuito, a fim de abrigar os federalistas. Em 8/3/802, a lei foi revogada pela intervenção de Jefferson. No entanto, outra lei permitiu a nomeação de juízes inferiores, que Adams estipulou em 42 para os distritos de Washington e Alexandria, cujas nomeações ocorriam apressadamente, inclusive noturnamente, e que deveriam assumir a posse imediatamente. Jefferson reduziu o número para 30. Willian Marbury foi um dos nomeados para Juiz de Paz para o Distrito de Columbia que não receberam sua comissão, embora assinada pelo Presidente e selada pelo Secretário, porém não entregue a tempo ao beneficiário pelo então Secretário Marshal, que atuou até 1 dia após a
3 Presidente da Suprema Corte Norte-Americana
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posse de Jefferson. Foi, por isso, em 16/12/1801, impetrado perante a Suprema Corte um writ of mandamus, a fim de compelir James Madison, atual Secretário de Estado de Jefferson, a promover a entrega da comisssão. A par da renhida luta política, Marshall, como Chief-Justice da Suprema Corte, encontrava-se em um dilema: se emitisse uma ordem judicial, ela não tinha meio de executá-la e poderia ser ignorada pelo Executivo. De outro lado, se rejeitasse a petição, o ato poderia ser considerado como uma vingança do executivo, para quem Marshall era implacavelmente hostil. Havia, ainda, a questão da competência: seria da Suprema Corte ou do juiz federal de 1° grau? Marshall sabia que a Suprema Corte era incompetente, portanto não poderia proferir julgamento, senão nesse sentido, sem entrar no mérito da causa. Afirmou ele que a lei que estabeleceu o sistema judicial autorizava a Suprema Corte a emitir o writ of mandamus, pois do contrário a lei seria inconstitucional. No seu entendimento, o Executivo não pode deixar de aderir às leis que o desagrade. Somente o Judiciário está encarregado em insistir que a lei seja aderida. Significa que ao Judiciário compete dizer o que a lei é. Este é poder da revisão judicial (judicial review). Após lembrar que a Constituição era muito importante para ser desvalorizada, afirmou que os três ramos do governo tinham poderes limitados. O poder legislativo é definido e limitado. Para que esses limites não possam ser ignorados ou esquecidos, a Constituição é escrita. E para que propósitos esses limites são escritos se puderem a qualquer tempo serem ultrapassados por aqueles aos quais se pretende prevenir? É uma proposição muito simples para ser contestada que a Constituição controla qualquer ato legislativo repugnante a ela. No parágrafo seguinte, com maestria, Marshall insere o judicial review tão profundamente na vida americana, que jamais pôde, posteriormente, ser removido. Disse ele: “Entre duas alternativas não há espaço no meio. A constituição ou é superior, suprema lei, imodificável pelos meios ordinários, ou está no mesmo nível dos atos legislativos ordinários e como outros atos, são alteráveis quando o poder legislativo tem o poder de modificá-los. Se a primeira parte da alternativa é verdadeira, então o ato legislativo contrário à Constituição não é lei. Se a última parte é verdadeira, a Constituição escrita é uma absurda tentativa, por parte do povo, de limitar o poder, em sua própria natureza ilimitável. Certamente, todos aqueles que elaboraram constituições escritas contemplaram-nas como formadoras da lei fundamental e suprema da nação e, consequentemente, a teoria de tal governo deve ser que um ato legislativo, repugnante à Constituição, é nulo. Se um ato legislativo, repugnante à Constituição, é nulo, pode, não obstante, sua invalidade, atar o Judiciário e obriga-lo a lhe dar efeito? Ou, em outras palavras, apesar de ele não ser lei, constitui ele uma regra tão operativa como se fosse lei? Isso seria a derrota de fato daquilo estabelecido na teoria. Pareceria, á primeira vista, uma absurdez muito vulgar para insistir nela. É enfaticamente área e dever do departamento judicial dizer o que a lei é. Aqueles que aplicam a norma aos casos particulares devem, por necessidade, explicar e interpretar a regra. Se duas leis conflitam entre si, a Corte deve decidir sobre a efetividade de cada uma. Assim, se a lei estiver em oposição com a Constituição, se ambas a lei e a Constituição se aplicarem a um caso particular, assim de um modo deve a Corte decidir, que o caso está conforme a lei desconsiderando a Constituição, ou conforme a Constituição, desprezando a lei. A corte deve determinar qual dessas normas conflitantes governa o caso. Isso é da própria essência do dever judicial. Se as Cortes devem respeitar a Constituição e a Constituição é superior a qualquer ato legislativo ordinário, a Constituição, e não essa lei ordinária, deve governar o caso ao qual ambas se aplicam”. Continuou ele:
19
“O poder judiciário dos Estados Unidos estende-se a todos os casos levantados sob a Constituição. Teria sido a intenção daqueles que deram o poder, dizerem que, em o usando, a Constituição não poderia ser investigada? Que um caso suscitado com base na Constituição deveria ser decidido sem serem examinados os instrumentos sob os quais é argüido? Isso é muito extravagante para ser mantido. Em alguns casos, a Constituição deve ser examinada pelos juízes. Se eles podem abri-la toda, qual parte a eles é proibida de ler ou obedecer?” Conclui: “Não é também inteiramente destituído de valor observatório que, ao declarar qual deverá ser a suprema lei da terra, a própria Constituição é a primeira a ser mencionada, e não genericamente as leis dos Estados Unidos, mas somente aquelas feitas de acordo com a Constituição têm aquele grau. Assim, a fraseologia particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e valoriza o princípio, que se pressupõe essencialmente a todas Constituições escritas, que a lei repugnante à Constituição é nula e que as Cortes, com os outros Departamentos do Governo, estão amarrados por esse instrumento. A lei deve ser desconsiderada”.
No Brasil, existe uma regra específica para aplicação do controle difuso nos
Tribunais. Trata-se do art. 97 da Constituição Federal de 1988, que diz que somente
pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo
órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo do Poder Público. É a chamada cláusula de reserva de plenário, que é
condição de eficácia jurídica da declaração de inconstitucionalidade dos atos do
Poder Público.
Por regra, o vício de inconstitucionalidade é aferido no plano da validade,
sendo que a decisão que declara a inconstitucionalidade produz efeitos retroativos.
Nesse sistema, a lei inconstitucional é ato nulo (null and void4), ineficaz (nulidade ab
origine), írrito e, portanto, desprovido de força vinculativa. A lei, por ter nascido morta
(natimorta), nunca chegou a produzir efeitos, vale dizer, apesar de existir, não entrou
no plano da eficácia.
Os efeitos, no controle difuso, serão inter partes, até resolução do Senado
Federal suspendendo o ato normativo, e ex tunc, portanto, retroativos.
Conforme Lenza, a inconstitucionalidade pode ser formal ou material,
subdividindo-se a primeira em inconstitucionalidade orgânica, inconstitucionalidade
formal propriamente dita e inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos
objetivos do ato.
A inconstitucionalidade formal orgânica decorre da inobservância da
competência legislativa para a elaboração do ato. Já a inconstitucionalidade formal
4 Nulo
20
propriamente dita é acarretada pela inobservância do devido processo legislativo.
Pode ocorrer tanto na fase de iniciativa quanto nas fases posteriores. Será vício
formal subjetivo se na fase de iniciativa, e vício formal objetivo se nas demais fases
do processo legislativo, posteriores à fase de iniciativa.
Ainda quanto às espécies de vícios formais, faz-se referência à
inconstitucionalidade formal por violação a pressupostos objetivos do ato normativo,
ou seja, a elementos externos ao procedimento de formação das leis, e.g., requisitos
de relevância e urgência para a edição da medida provisória (LENZA, 2008).
Noutro giro, a inconstitucionalidade pode também ser material, de conteúdo.
Também chamada de inconstitucionalidade nomoestática, o vício, nesse caso, diz
respeito à matéria, ao conteúdo do ato normativo.
Por derradeiro, Lenza defende ainda o vício de decoro parlamentar, que
ocorreria no caso de abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso
Nacional ou a percepção de vantagens indevidas, tendo como exemplo a “compra
de votos” (LENZA, 2008).
No que tange ao momento do controle, esse pode ser prévio, também
chamado de preventivo, ou posterior, também denominado repressivo.
O controle prévio ou preventivo no Brasil é realizado pelo Legislativo, pelo
Executivo, e também pelo Judiciário. O controle prévio efetuado pelo Legislativo fica
por conta das comissões de constituição e justiça de cada Casa do Congresso
Nacional. Já o executivo exerce o controle constitucionalidade através do veto
presidencial. Por último, o Judiciário, através da via de exceção, e cuja competência
está adstrita ao Supremo Tribunal Federal, realiza o controle prévio, em defesa de
direito-função do parlamentar de participar de um processo legislativo juridicamente
hígido. Cabe destacar que, nesse caso, a legitimidade ativa é somente dos membros
do Poder Legislativo.
O Controle posterior ou repressivo pode ser político, jurisdicional ou híbrido.
O controle político é exercido por um órgão distinto dos três Poderes. É comum em
países da Europa, como Portugal e Espanha, sendo normalmente realizado pelas
Cortes ou Tribunais Constitucionais.
O controle jurisdicional é realizado pelo Poder Judiciário, tanto através de
um único órgão (controle concentrado), como por qualquer juiz ou tribunal (controle
difuso). Já no controle híbrido, algumas normas são levadas a controle perante um
21
órgão distinto dos três Poderes, enquanto outras são apreciadas pelo Poder
Judiciário.
No Brasil, existe uma exceção à regra geral do controle posterior ou
repressivo ser exercido pelo Poder Judiciário. Trata-se da norma contida no art. 49,
inciso V, da Constituição Federal de 1988, que cuida da competência do Congresso
nacional para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. É exercido através de decreto
legislativo a ser expedido pelo Congresso Nacional.
Noutro giro, convém tecer breves comentário sobre a interpretação
constitucional, a começar pela diferenciação magistral feita por Maximiliano:
Do exposto ressalta o erro dos que pretendem substituir uma palavra pela outra; almejam, ao invés de Hermenêutica, - Interpretação. Esta é aplicação daquela; a primeira descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar (MAXIMILIANO, 2006, p.1).
A interpretação da Constituição é tida por uma espécie de interpretação
jurídica, apenas com algumas cautelas oriundas do fato de ser a Constituição a lei
suprema e do caráter genérico de normas de estrutura, no mais das vezes, das
disposições constitucionais.
Assim, todos aqueles métodos interpretativos tradicionais se aplicam, a
priori, à interpretação constitucional. Entrementes, em razão da superioridade da
Constituição, outros métodos específicos foram desenvolvidos, destacando-se o
método tópico-problemático, o hermenêutico-concretizador, o científico-espiritual, o
normativo estruturante, e o da comparação constitucional.
Além disso, alguns princípios auxiliam o intérprete na exegese
constitucional, quais sejam: princípio da unidade da constituição, princípio do efeito
integrador, princípio da máxima efetividade, princípio da justeza ou da conformidade
funcional, princípio da concordância prática ou harmonização, princípio da força
normativa, princípio da interpretação conforme a Constituição e princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade (LENZA, 2008).
Pela importância do tema, ainda sobre a interpretação constitucional, Lenza
afirma:
22
Ademais, como lembra Luís Roberto Barroso, a Constituição deve ser interpretada levando m conta o conjunto de peculiaridades que singularizam seus preceitos, destacando-se a supremacia de suas normas, a natureza da linguagem que adota, o seu conteúdo específico e o seu forte caráter político. Assim, tais peculiaridades das normas constitucionais ensejaram o desenvolvimento, por parte da doutrina, de um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. De fato, as normas constitucionais ocupam o vértice de todo o sistema jurídico, subordinando todas as normas legais e condicionando a própria interpretação do direito infraconstitucional (são, nesse sentido, normas-vértice). Além de superiores, as normas constitucionais normalmente veiculam conceitos abertos, vagos e indeterminados (como, por exemplo, dignidade da pessoa humana, moralidade, função social da propriedade, justiça social, relevância) que conferem ao intérprete um amplo “espaço de conformação” (liberdade de conformação, discricionariedade) não verificável entre as normas legais. As normas constitucionais, via de regra, são normas de organização e estrutura que traçam as competências orgânicas e os fins do Estado, e disciplinam inclusive, o processo legislativo de elaboração das normas legais (são, nesse particular, as normas das normas), distinguindo-se, mais uma vez, destas últimas, que são normas prescritivas de condutas humanas. Finalmente, as normas constitucionais, apesar de normas jurídicas, são dotadas de forte carga política em razão de sua indisfarçável pretensão de regular o fenômeno político e estabelecer as bases fundamentais de organização política do Estado (CUNHA JÚNIOR, 2009, p. 198 e 199).
23
4. DIREITO SUMULAR
O direito sumular traduz o resumo da jurisprudência sedimentada em
incontáveis e uniformes decisões das Cortes Superiores do país, que visam
prestigiar os princípios da uniformização das decisões e da segurança jurídica. Ao
dar seguimento ao inconformismo das partes, manifestado em peça recursal, em
total colidência com texto de Súmula do Tribunal, estar-se-ia a instaurar um regime
anárquico, que afronta o princípio de uniformização das decisões.
Súmula, consoante De Plácido e Silva:
no âmbito da uniformização da jurisprudência, indica a condensação de série de acórdãos, do mesmo tribunal, que adotem idêntica interpretação de preceito jurídico em tese, sem caráter obrigatório, mas persuasivo, e que, devidamente enumerados, se estampem em repertórios (DE PLÁCIDO E SILVA, 2005, p. 1346).
Sobre o que se deva entender pela expressão “jurisprudência dominante”, já
se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL - PROCESSO CIVIL - ARTIGO 557 DO CPC - JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO TRIBUNAL A QUO CONFLITANTE COM A DO STJ - IMPORTAÇÃO DE VEÍCULOS USADOS - POSSIBILIDADE - CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA N. 8/91CACEX.A expressão "jurisprudência dominante do respectivo tribunal" somente pode servir de base para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso às vias extraordinárias.Embora a questão da possibilidade da importação de veículos usados possa estar pacificada no âmbito do TRF da 5º Região, nesta Corte Superior ela é remansosa em sentido oposto ao entendimento do Tribunal a quo.Recurso especial provido. Decisão unânime.(REsp 193189/CE, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/06/2000, DJ 21/08/2000 p. 110)
A súmula é um instituto jurídico genuinamente brasileiro, não obstante tenha
buscado inspiração em experiências anteriores verificadas no Brasil e no exterior,
24
especialmente nos assentos do Reino de Portugal e nos precedentes norte-
americanos.
Acerca da evolução do direito sumular após a independência do Brasil,
Lenza dispõe em sua obra:
...a Lei n. 18, de 18.09.1828, criou o Supremo Tribunal de Justiça (09.01.1829 – 27.02.1891) e, em seu art. 19, estabeleceu interessante procedimento para a uniformização da legislação. O Decreto Legislativo n. 2684, de 23.10.1875, regulamentado pelo Decreto n. 6.142, de 10.03.1876, deu força de lei, no Império, aos assentos da Casa da Suplicação de Lisboa, bem como competência para o Supremo Tribunal de Justiça tomas outros, também com força de lei, até que fossem derrogados pelo Poder Legislativo. A Constituição da República (1891) extinguiu, definitivamente, a prática dos assentos, apesar da posterior previsão dos prejulgados no CPC/39 (art. 861) e no art. 902 da CLT/43 (cujo § 4° determinava que, uma vez estabelecido o prejulgado pela Câmara de Justiça do Trabalho, os Conselhos Regionais do Trabalho, as Juntas de Conciliação e Julgamento e os Juízes de Direito investidos da jurisdição da Justiça do Trabalho ficavam obrigados a respeitá-lo). Por influência do então ministro do STF, Victor Nunes Leal, instituiu-se a Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, por intermédio de Emenda Regimental de 28.03.1963, aprovando-se, em 13.12.1963, os primeiros 370 enunciados. Segundo relatou em palestra proferida em Belo Horizonte em 12.08.1964, a súmula atende a vários objetivos: “é um sistema oficial de referência dos precedentes judiciais, mediante a simples citação de um número convencional; distingue a jurisprudência firme da que se acha em vias de fixação; atribui à jurisprudência firme conseqüências processuais específicas para abreviar o julgamento dos casos que se repetem e exterminar as protelações deliberadas”. Ainda, como bem anota, “...razões pragmáticas, inspiradas no princípio da igualdade, aconselham que a jurisprudência tenha relativa estabilidade. Os pleitos iguais, dentro de um contexto social e histórico, não devem ter soluções diferentes. A opinião leiga não compreende a contrariedade dos julgados, nem o comércio jurídico a tolera, pelo natural anseio de segurança” (LENZA, 2008, p. 507 e 508).
A súmula, portanto, em seu sentido clássico, representa um ato de
sedimentação da jurisprudência uniforme verificada no Tribunal. É uma espécie de
jurisprudência (Côrtes, 2009).
25
5. SÚMULA VINCULANTE: EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04 E LEI 11.417/07
A Emenda Constitucional n° 45, de 08 de dezembro de 2004, denominada
de “Reforma do Judiciário”, introduziu algumas novidades no ordenamento
constitucional brasileiro, com o anseio de melhorar o acesso à Justiça e garantir o
direito a uma razoável duração do processo.
Dentre essas novidades, destaca-se a súmula vinculante, prevista no art.
103-A do Texto Maior. O referido dispositivo, em linhas gerais, estabelece a
competência exclusiva do Supremo Tribunal, bem como o quÓrum de dois terços
dos seus membros para a edição dos verbetes vinculantes. Além disso, prevê a
necessidade de reiteradas decisões sobre matéria constitucional para a edição da
súmula, que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas estadual, municipal. Por último, dispõe que a lei estabelecerá o
procedimento de aprovação, revisão e cancelamento da súmula.
O artigo em comento foi regulamentado pela Lei n° 11.417, de 19 de
dezembro de 2006, que teve prazo de vacatio de 3 (três) meses. Um dos
dispositivos em relevo é o § 1° do art. 2°, ao afirmar que o enunciado da súmula
vinculante terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas
determinadas, acerca das quais haja entre órgãos judiciários, ou entre esses e a
administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e
relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão.
No tocante à legitimidade para propor a edição, revisão e cancelamento dos
enunciados, o § 2° do art. 103-A da CF/88 assevera que a tem aqueles que podem
propor a ação direta de inconstitucionalidade, sem prejuízo do que vier a ser
estabelecido em lei. Aproveitando-se da liberdade conferida pelo legislador
constituinte derivado reformador, a Lei 11.417/06 estendeu a legitimidade ao
Defensor Público-Geral da União, e aos Tribunais Superiores, Tribunais de Justiça
dos Estados ou do Distrito Federal e Territórios, Tribunais Regionais Federais,
Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais Militares.
Além disso, previu o § 1° do art. 3° a possibilidade do Município propor,
26
incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o
cancelamento de enunciado de súmula vinculante, sem a suspensão do processo.
Convém salientar também a possibilidade de modulação de efeitos na
edição da súmula vinculante, nos moldes do já previsto para a ADI na Lei 9868/99,
vale dizer, através de decisão de 2/3 dos ministros do Supremo.
Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de
súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação
ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios
admissíveis de impugnação, sendo que, no caso de omissão ou ato administrativo, o
uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.
Inicialmente, insta delimitar qual a natureza jurídica do procedimento para
edição, revisão e cancelamento de súmula vinculante estabelecido na Lei n° 11.417,
de 2006.
Da análise dos diversos dispositivos da referida lei, depreende-se que se
trata de procedimento de natureza objetiva de competência originária e exclusiva do
Supremo Tribunal Federal, uma vez que versará, exclusivamente, sobre a validade,
interpretação e eficácia de normas jurídicas em face do texto constitucional.
Em que pese haver a possibilidade de manifestação de terceiros, não há
que se falar em discussão sobre interesses pessoais, uma vez que o Pretório
Excelso limitar-se-á, tão-somente, a objetivar a fundamentação de seus julgados
exercida em sede de controle difuso de constitucionalidade ou no exercício de sua
competência originária (quando se tratar de matéria constitucional), nos termos
estabelecidos no art. 102 da Constituição Federal de 1988, a ser compendiada nos
enunciados vinculantes que compõem sua súmula.
Conforme prescrito no art. 2° da Lei n° 11.417 de 2006, devem submissão
obrigatória aos enunciados vinculantes da súmula do Supremo Tribunal Federal
todos os órgãos do Poder Constituído Judiciário, bem como todos os órgãos e entes
da Administração Pública direta e indireta dos entes federativos municipal, estadual
e federal.
É de se ressaltar que não houve citação expressa da Administração Pública
distrital tanto por parte do legislador constituinte reformador quanto por parte do
legislador infraconstitucional. Todavia, não há como excluir do campo de incidência
de eficácia da súmula vinculante o Distrito Federal, devendo o referido art. 2º ser
interpretado extensiva e sistematicamente com os demais dispositivos da lei. Assim,
27
uma vez que o art. 3°, IX e X, estabelece legitimação ativa para a propositura de
súmula vinculante à Câmara Legislativa do Distrito Federal, bem como ao
Governador do Distrito Federal, a sua exegese sistêmica com o art. 2° nos indica
que a Administração Pública distrital, seja direta ou indireta, encontra-se sob a égide
da observância obrigatória dos enunciados vinculantes da súmula do Supremo
Tribunal Federal.
Não restam dúvidas de que as súmulas, mormente as dos Tribunais
Superiores, convertem-se em verdadeiras fontes formais de Direito. Por se tratar de
um enunciado que resume uma tendência de julgamento sobre determinada matéria,
decidida contínua e reiteradamente pelo tribunal, tem servido de referência para as
futuras decisões, contribuindo sobremaneira para a certeza e segurança a inúmeros
fatos e negócios jurídicos.
De outro lado, não se pode olvidar que a jurisprudência exerce enorme
influência sobre o legislador, eis que retrata as aspirações sociais do momento
histórico e, por isso, são captadas para a conversão em lei.
Tendo em vista que a legislação é incapaz de acompanhar as necessidades
da sociedade e, nesse prisma, a súmula constitui-se num mecanismo que busca a
eliminação das antinomias do sistema.
Com o advento do art. 103-A, instituído pela Emenda Constitucional n°
45/04, o quadro se altera significativamente. A jurisprudência contida em enunciado
de súmula vinculante passa a ser fonte primária de Direito, considerando o seu
assento constitucional e o efeito obrigatório para as demais instâncias do Poder
Judiciário e da Administração Pública direta e indireta dos três entes federativos.
Nessa linha, a jurisprudência pátria ganhou novos contornos.
Sem perder o seu status de fonte subsidiária de fundamental importância na
produção do Direito, pode alçar o patamar de fonte primária da ciência, uma vez
sedimentada em enunciado de efeito vinculante dentro da formatação que lhe
concedeu o Constituinte Reformador de 2004.
5.1. SEPARAÇÃO DOS PODERES E A TEORIA DO CHECKS AND BALANCES
28
Desde a antiguidade, com Aristóteles, já se sugeria a separação das
funções do Poder político. Em tempos mais recentes, parte da doutrina aponta John
Locke como criador da teoria original da separação das funções estatais, tendo em
vista sua célebre Two Treatises of Govermen5t, surgida em 1690, na qual se
sustentou os princípios de liberdade política e se impugnou o absolutismo real.
Contudo, foi Montesquieu, que, inspirado em Locke, sistematizou, em termos
definitivos, as diferentes funções estatais, agregando-as junto a organismos estatais
distintos (CUNHA JÚNIOR, 2009).
A teoria da Separação dos Poderes prevê a repartição igualitária dos
Poderes Políticos como um pressuposto de validade para o Estado Democrático. A
idéia de que o poder deve ser controlado pelo próprio poder pressupõe decisões
interligadas, com uma clara divisão nas competências de cada um deles, e uma
interdependência que garanta uma gestão compartilhada e homogênea.
Nesse ponto, é de se relembrar a idéia de que o poder político é indivisível e
deriva do Estado e do Povo. O que acontece, na realidade, consoante a doutrina, é
a especialização das funções entre entes diversos que, conjuntamente, exercem o
poder do Estado (LENZA, 2008).
A separação dos poderes foi elaborada como a forma de evitar a
concentração do poder nas mãos de uma só pessoa. Sua instituição é a transição do
Estado Absolutista (ou despótico) para um estado liberal, caracterizado
modernamente pelo Estado Democrático de Direito. Este apartamento das
atividades, entretanto, não é rígido, havendo interferências recíprocas em que cada
Poder, além de exercer suas competências, também influencia os demais.
Dessa forma, as ações do Executivo, Legislativo e do Judiciário devem ser,
em tese, autônomas e complementares, a fim de proporcionar a fiscalização e
controle de um Poder sobre os demais.
Sobre a separação dos poderes, Silveira discorre:
Esse ensinamento foi adotado pelas revoluções americanas e francesas na elaboração de suas respectivas cartas políticas. A doutrina da separação dos poderes completa a dispersão do poder decorrente do federalismo e constitui, ao abarcar, também, a doutrina dos freios e contrapesos, a mais refinada e última forma de contenção do poder e eliminação da tirania. Os artigos federalistas (uma série de artigos anônimos que antecederam a aprovação da Constituição americana, cuja autoria mais tarde foi
5 Dois Tratados sobre o Governo
29
reconhecida como de Hamilton, Madison e Jay) enfatizaram outra virtude na separação dos poderes, ou seja, o crescimento da eficiência e da efetividade governamental. Sendo limitadas as funções especializadas (legislativas, executivas e judiciárias), os diferentes ramos do governo desenvolvem a habilidade e o senso de orgulho em seus papéis, que não seriam alcançados ou superados de outra forma. Eles pensavam que o governo nacional seria mais eficiente se fossem separadas as funções executivas das legislativas. Uma segunda razão para dividir o poder – mencionado com ênfase por Madison – era a prevenção da tirania. Ou seja, acima de tudo, a distribuição do poder entre os três separados ramos serve como poderoso controle contra ações arbitrárias (SILVEIRA,1999, p. 76 e 77)
Neste contexto, salienta-se que desde a primeira Constituição republicana
de 1891 até a atual, adotou-se sempre o princípio da separação dos poderes. No
ensejo, vale transcrever o art. 2° da atual Constituição Federal: “São Poderes da
União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”.
Além disso, com o tento de preservar a democracia e evitar o golpe de
Estado e a Ditadura, o legislador constituinte consagrou o dispositivo como cláusula
pétrea, vale dizer, nos termos do art. 60, § 4°, inciso III, “não será objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos poderes”.
Entretanto, o quadro atual brasileiro destoa do previsto pela nossa
Constituição. A utilização exagerada das ferramentas intra potestas, como as
Medidas Provisórias inconstitucionais por ausência dos pressupostos de “relevância”
ou “urgência”, conforme melhor doutrina, é um típico exemplo da usurpação das
funções do Legislativo.
Bandeira de Mello, em crítica contumaz, assevera:
Do fato de “relevância” e “urgência” exprimirem noções vagas, de contornos indeterminados, resulta apenas que, efetivamente, muitas vezes pôr-se-ão situações duvidosas nas quais não se poderá dizer, com certeza, se retratam ou não hipóteses correspondentes à previsão abstrata do art. 62. De par com elas, entretanto, ocorrerão outras tantas em que será induvidoso inexistir relevância e urgência ou, pelo contrário, induvidoso que existem (sic). Logo, o Judiciário sempre poderá se pronunciar conclusivamente ante os casos de “certeza negativa” ou “positiva”, tanto como reconhecer que o Presidente não excedeu os limites possíveis dos aludidos conceitos naquelas situações de irremissível dúvida, em que mais de uma intelecção seria razoável, plausível. Assim, fulminará as medidas provisórias, por extravasamento dos pressupostos que as autorizam, nos casos de “certeza negativa” e reconhecer-lhes-á condições de válida irrupção quanto à
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constitucionalidade ou inconstitucionalidade do próprio conteúdo nelas vazado (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p.129).
Além disso, a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito pelo
Legislativo e a utilização de Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão,
entre outras, pelo Judiciário, aponta para uma interferência mútua nos círculos de
poder dos atores estatais.
Frisa-se que nenhuma das atividades acima é ilegal. Todas têm amparo
legal e são instrumentos previstos na atuação do Estado. O que desperta interesse
no momento é que a utilização das mesmas vem crescendo, às vezes como forma
de acelerar o processo de gestão, ou como maneira de obstacularização do
processo decisório.
Atualmente, contudo, percebe-se claramente a hipertrofia do Executivo, que
acaba por anular a atividade legislativa do Congresso, quase que limitando a
chancelar projetos de iniciativa do Poder Maior, quando não se abstendo perante
eles. Em assuntos decisivos, o Poder Executivo substituir-se-ia até mesmo ao
Judiciário no julgamento e punição de quem se insurgisse contra ele, recorrendo
para tanto a diplomas de execução.
No tocante a interferência do Legislativo nas esferas funcionais dos demais
poderes, a linha de atuação é menos clara. As comissões parlamentares de
inquérito têm efetiva responsabilidade para a apuração de desvios de conduta por
parte das autoridades federais. Por princípio, não se envolvem em questões
privadas e pessoais, e devem se relacionar com fatos determinados.
Entretanto, dada a possibilidade de caráter extensivo da interpretação
destas normas, além do cunho eminentemente político das casas legislativas, nem
sempre o que ocorre é o previsto. De fato, pode-se afirmar que casos pessoais são
averiguados nas referidas comissões, podendo, para tanto, valer-se da
argumentação de que tais assuntos podem desaguar em responsabilidades
públicas. Além disso, cada vez mais a atuação política tem se orientado para
tentativas de apuração de casos complexos, sem fatos claros ou denúncias
concretas.
Outro ponto importante a ser trabalhado é a influência do Judiciário em todo
o processo democrático. Apesar de tal instituição não possuir um caráter
eminentemente político, é de profunda importância para o funcionamento do
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sistema. Responsável por tratar da interpretação das leis e de seu cumprimento, é
também o interlocutor entre a origem (Legislativo) e o fim (Executivo).
Como já referido acima, são inúmeras as possibilidades de interferência da
Justiça nas atividades dos outros Poderes. Não só através as Ações Diretas de
Inconstitucionalidade, mas também a emissão de Enunciados e Jurisprudências
influencia diretamente no processo de produção legislativa. Além disso, ações de
Descumprimento de Preceito Fundamental, Mandados de Segurança e outras
atividades pautam, no dia a dia, a atuação do Executivo.
Há muito tempo vem se discutindo o papel do judiciário no palco político. Por
certo, a idéia de “judicialização da política” tem se afirmado. A possibilidade do
judiciário não apenas influir, mas muitas vezes dirigir certos momentos do processo
político-democrático deve ser discutido mais a fundo.
A atividade judicial, nesse âmbito, não se demonstra como uma usurpação
de funções, mas como uma realocação dos poderes com base na positivação dos
direitos fundamentais. Assim, seria na realidade uma formulação favorecida pelo
processo democrático e, além disso, uma resposta à impossibilidade de mobilização
social herdada do regime autoritário.
Neste ponto, cabe levantar a discussão sobre a legitimidade democrática da
criação judicial do Direito. De um lado, aponta-se no sentido de que, se ao juiz fosse
dado criar a norma, ainda que para o caso concreto, este estaria a suprimir a
dualidade entre sujeito e objeto de conhecimento, transformando-se em legislador.
Outra crítica veemente que se faz ao ativismo judicial diz respeito ao fato de
que os juízes não são legitimados pelo voto popular para criação de leis, o que
afrontaria a separação dos Poderes do Estado. Segundo essa concepção, no
Estado Democrático de Direito, a criação da lei, ou de normas com força de lei
-como expressões da vontade geral, é atividade própria dos órgãos de
representação política, a tanto legitimados em eleições livres e periódicas.
Entrementes, a ciência política moderna reconhece, de forma uníssona que
a vontade da maioria não é sinônimo de decisão democrática e que nem sempre o
voto garante, de per si, a realização dessa vontade da maioria. Nem os poderes
políticos estabelecidos são perfeitamente capazes de expressar um consenso
absoluto nas questões, positivando, no mais das vezes, a vontade de grupos de
interesses, cuja força de pressão se fez prevalecer no momento de votação da lei.
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Reconhece-se, ainda, que a abertura de significação dos textos legais é de
extrema importância para a aprovação dos mesmos no Parlamento. Quanto mais
elásticos e imprecisos os contornos do texto, mais fácil o consenso em sua
aprovação.
Noutra toada, releva destacar que o processo judicial garante às minorias,
alijadas do processo político, a ampla defesa de seus direitos, sendo assim, um
importante instrumento de representatividade geral.
Ainda no que concerne à legitimação das criações judiciais pela
representatividade de seus autores, especificamente no caso das Cortes
Constitucionais, verifica-se que sua composição atende também a critérios políticos,
sendo comandada pelo Presidente da República. Destarte, a relativa rapidez na
renovação da composição das mesmas garante aos demais Poderes certo controle
da filosofia política da Corte, de maneira que essa nunca permanece por muito
tempo em contraste com a filosofia prevalente nas maiorias políticas no poder dentro
do País.
Quanto à ausência de prestação de contas por partes dos juízes, que gozam
da prerrogativa constitucional de independência, como óbice ao exercício da criação
judicial do Direito, é de se registrar que o processo judicial é o mais participativo de
todos os tipos de processos ligados à atividade pública, pois se desenvolve em
direta conexão com as partes envolvidas, as quais têm o exclusivo poder de iniciar a
demanda, bem como possuem o inafastável direito de serem ouvidas. No Brasil, tais
prerrogativas encontram-se cristalizadas no princípio da inafastabilidade da
jurisdição, insculpido no art. 5°, inciso XXXV. da Constituição Federal.
Assim, é de se considerar que o legislador pode desconsiderar qualquer
interpretação advinda dos tribunais, mas o silêncio desse legislador ideal legitima as
mudanças à compreensão normativa ocasionadas.
Ademais, é importante mencionar que as decisões judiciais devem ser
motivadas e pautadas no princípio do devido processo legal e no controle das
garantias individuais. Aliás, uma democracia só se define como tal se forem
assegurados os direitos e garantias individuais, garantindo-se a legitimação da
criação judicial do Direito não só pelo procedimento, como também pelo dever de
dar explicação acerca dos motivos que determinaram a tomada de posição no caso
concreto.
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Assim, muito embora se reconheça certo grau de discricionariedade na
escolha pelo aplicador do Direito entre as várias possibilidades conferidas pela lei,
esta escolha não se dá de forma arbitrária, impondo-se ao mesmo o dever de
justificar logicamente suas decisões. O dever de motivar, é oportuno mencionar, tem
assento constitucional e sua ausência fulmina de nulidade a decisão e tem o condão
de impedir a realização de uma "justiça pessoal" do julgador.
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6. APLICAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ÀS SÚMULAS VINCULANTES
Ab initio, cumpre ressaltar que o presente trabalho parte da premissa de que
o instituto das súmulas vinculantes é, em tese, constitucional. Logo, não se trata da
discussão sobre a legitimidade política (constitucionalidade) do Supremo Tribunal
Federal para a edição de súmulas, que só podem ser revisadas ou canceladas por
ele próprio. Segue-se, portanto, a doutrina de Lenza (2008, p.516), para o qual “a
súmula vinculante introduzida pela Reforma do Judiciário mostra-se totalmente
constitucional”.
Superado este ponto, insta dizer que, ao Judiciário o efeito vinculante da
súmula impõe que todos os casos sejam julgados de acordo com o comando nela
insculpido, e, à Administração Pública, que sua conduta seja também pautada
conforme o comando da súmula, podendo, de acordo com o § 3.° do art. 103-A da
Constituição Federal, ser formulada reclamação para o Supremo Tribunal Federal
nas hipóteses de seu descumprimento. De tal sorte, observa-se que a obediência
devida à súmula vinculante é bastante semelhante à obediência devida às normas
emanadas do Poder Legislativo, podendo-se, desde logo, identificar a
particularidade de que o seu cumprimento poderá ser exigido diretamente no
Supremo Tribunal Federal, por meio de reclamação.
O Direito, como conjunto de normas que é, deve ter unidade, na medida em
que todas elas são endereçáveis a uma única norma, na qual encontram o seu
fundamento de validade. Nesse sentido, a ordem jurídica é coercitiva, de sorte que
para toda conduta humana contrária àquela prescrita em uma norma é ligada uma
sanção, aplicável independentemente da vontade do indivíduo, usualmente, através
da execução forçada de seus bens ou da privação de sua liberdade.
Assim, se a lei determina uma conduta no sentido de que não se possam
cometer estupro, esta conduta será obrigatória na medida em que à conduta oposta
− isto é, à conduta do estuprador − seja ligada uma sanção, na hipótese, a pena de
prisão.
Igualmente, os particulares, no exercício de seu poder negocial, podem
contratar, por exemplo, a compra e venda de um determinado bem. O contrato, em
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verdade, corporifica uma norma individual segundo a qual o comprador deve pagar o
preço e o vendedor entregar o bem.
Frustrada qualquer dessas condutas, o prejudicado poderá recorrer ao
Poder Judiciário, até mesmo para que se proceda à execução forçada dos bens da
outra parte.
A decisão judicial, igualmente, contém comando que deverá ser obedecido
pelas partes, razão pela qual costuma-se dizer que a sentença "é lei entre as
partes", sob pena de, tratando-se de, por exemplo, ação condenatória, execução
forçada dos bens do devedor.
Uma norma jurídica pode prescrever, proibir ou facultar uma conduta
humana, ligando ao seu descumprimento, para torná-la efetiva, uma sanção. Tanto a
lei, o contrato e a decisão judicial, fontes formais do Direito, têm por objeto condutas
humanas, contra as quais ligam-se sanções. Quer dizer, são comandos que
produzem um mal a quem os desobedece. Todos esses − lei, contrato e decisão
judicial − encontram seu fundamento de validade em normas superiores, podendo-
se remontar até a Constituição Federal. Por isso, são todos eles espécies de normas
jurídicas.
O dever de obediência à súmula vinculante não destoa dos esquemas
supramencionados. Ela contém um comando prescrevendo, proibindo ou facultando
uma determinada conduta humana, tornada efetiva enquanto exigível perante o
Poder Judiciário. Assim, a súmula vinculante é, formalmente, também uma norma
jurídica. Será, todavia, à semelhança das leis, uma norma jurídica geral, eis que
aplicável a todos indistintamente, e abstrata, enquanto endereçada a quaisquer
hipóteses presentes e futuras.
O ministro Eros Grau (1996) apud Leite formula interessante racionício:
Note-se bem que essas decisões do Supremo Tribunal Federal são resultado de uma produção normativa, atividade que envolve interpretação/aplicação e, pois, é desempenhada não apenas a partir dos elementos que se depreendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser).Essas decisões são normas. Mas essas normas são transformadas em textos no momento em que assumem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios.
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(...)Em outros termos: a atribuição de eficácia contra todos e efeitos vinculantes às decisões de que se trata importa em atribuir-se ao Supremo Tribunal Federal função legislativa (LEITE, 2007, p.99).
Desse modo, em vez de atuar apenas como legislador negativo, desfazendo
uma norma geral com as mesmas características dessas, o Supremo Tribunal
Federal estaria agindo como verdadeiro legislador positivo. A respeito da
possibilidade de atuação do tribunal constitucional como legislador negativo, Kelsen
(2003) apud Leite afirma:
(...) o órgão a que é confiada a anulação das leis inconstitucionais não exerce uma função verdadeiramente jurisdicional, mesmo se, com a independência de seus membros, é organizado em forma de tribunal. Tanto quanto se possa distingui-las, a diferença entre função jurisdicional e função legislativa consiste antes de mais nada em que esta cria normas gerais, enquanto aquela cria unicamente normas individuais. Ora, anular uma lei estabelecer uma norma geral, porque a anulação de uma lei tem o mesmo caráter de generalidade que sua elaboração, nada mais sendo, por assim dizer, que a elaboração com sinal negativo e portanto ela própria uma funão legislativa. E um tribunal que tenha o poder de anular as leis é, por conseguinte, um órgão do poder legislativo (LEITE, 2007, p. 109).
Noutro giro, alguns podem defender que a súmula vinculante não seria uma
norma jurídica, eis que seria mera interpretação daquilo que já estava antes
determinado pelo ordenamento jurídico, ou seja, a coercitividade do comando
insculpido na súmula não decorreria dela própria, mas da lei e da Constituição.
Esta é a posição de Leite, conforme excerto abaixo transcrito:
Do exposto, depreende-se que as súmulas vinculantes não são manifestações de atividade legislativa do Supremo Tribunal Federal, não se devendo falar em ofensa à separação dos poderes. Elas são resultantes de criação judicial do direito resultante de interpretação jurídica desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal no exercício da jurisdição constitucional. A vinculação dos demais juízes às súmulas vinculantes decorre da posição singular do Supremo Tribuanal Federal como intérprete último da Constituição e instância decisória final da jurisdição constitucional, pelo que, em caso de discrepância judicial, necessita ser fixada a interpretação jurídica a ser seguida pelas (sic) outros órgãos. Cuida-se, ademais, de uma exigência de aplicação isonômica do direito para situações semelhantes».«Além disso, não se deve confundir a (sic) caráter material e jurisprudencialmente constitucional das súmulas vinculantes com o caráter formal de normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte originário ou do poder de reforma, pois, como visto, há significativas diferenças entre a produção legislativa do direito
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e a produção judicial do direito, de que as súmulas são espécies (LEITE, 2007, p. 119).
Entretanto, por mais que se considere a súmula como produto da
interpretação de normas a ela preexistentes, não se pode perder de vista que a toda
interpretação é inerente algum grau de criatividade, de modo que, ainda que a
súmula contenha um enunciado que expresse a ratio decidenti comum a todas as
decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal sobre matéria constitucional, as
quais foram, elas próprias, na Constituição Federal fundamentadas, nem por isso a
súmula deixará de criar o Direito e ser norma, e tampouco por isso poderá ser
reduzida a mero esquema interpretativo.
Assim, refuta-se a idéia de que o juiz não teria liberdade para decidir a lide,
como se o conteúdo de suas decisões estivesse inteiramente predeterminado por
normas gerais e abstratas emanadas do Poder Legislativo, e a atividade jurisdicional
fosse restrita à mera interpretação do Direito.
A decisão do juiz deve ser fundamentada, e é certo dizer que este
fundamento será, em regra, encontrado nas leis e na Constituição. Ainda assim, na
transposição da norma geral e abstrata para o caso concreto, o juiz sempre deixará
as suas marcas, as suas convicções pessoais e ideológicas, o seu senso próprio de
justiça. Isto porque toda interpretação, que é condição para que seja proferida uma
decisão, inevitavelmente, traz consigo uma carga de criatividade. Diversos fatores
impõem que a aplicação da lei pelos juízes seja precedida da hermenêutica, de uma
interpretação e criação jurídicas.
Às vezes é a própria imperfeição do texto legislativo que impõe a
necessidade de buscar o seu verdadeiro sentido. Por outro lado, em vista de leis
claras e precisas, o passar dos anos e a mudança das realidades sociais e
econômicas fazem com que a lei mereça interpretação diversa, afastando-se daquilo
que o legislador havia concebido originariamente.
Em outras hipóteses, a lei se utiliza de conceitos juridicamente
indeterminados, devendo o juiz preencher essas lacunas para proferir a decisão no
caso concreto.
A impossibilidade de estrita vinculação do juiz à lei, e, assim, da sua
caracterização como mero aplicador do Direito, está ligada aos próprios limites da
racionalidade jurídica. Kelsen, em seu esforço de construir uma teoria pura do
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Direito, a qual não seria influenciada por ideologias, mas por razões estritamente
científicas, caracterizou a norma como uma moldura, a qual estaria sujeita a
diversas interpretações, todas elas cientificamente adequadas. Para Kelsen, não
seria possível, além dos limites da moldura, falar em decisão mais ou menos justa,
mais ou menos correta, uma vez que, para o seu preenchimento, o julgador fará,
não apenas juízos de fato, mas juízos de valor, tidos por arbitrários (KELSEN, 2006).
Com isso, Kelsen limitou barbaramente a possibilidade do desenvolvimento
de teorias da interpretação e aplicação do Direito, eis que limitava o papel da ciência
do Direito à descrição da moldura, pouco plausíveis e razoáveis, ainda que
completamente diferentes, senão contrapostas, ocorrendo a chamada divergência
jurisprudencial.
Uma vez que se admita que o juiz também cria o direito e que pode editar
normas jurídicas individuais e, outras vezes, normas jurídicas gerais e abstratas (tal
como nos processos objetivos de controle de constitucionalidade e, agora, com a
súmula vinculante), perde força a distinção tradicional entre as funções legislativa e
jurisdicional como sendo a primeira criadora de normas jurídicas e a segunda de
aplicação de normas jurídicas.
Para Kelsen, a função legislativa não é a única atividade criadora do Direito,
e todas as funções do Estado resolvem-se em atividades de aplicação e criação do
Direito. Isto é, se deixarmos de lado os casos-limite − a pressuposição da norma
fundamental e a execução do ato coercitivo − entre os quais se desenvolve o
processo jurídico, todo o ato jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma
superior (que confere competência para ou determina a produção do ato) e
produção, regulada pela norma superior, de uma norma jurídica inferior (KELSEN,
2006).
Disso resulta que, não apenas as leis como tradicionalmente se
compreende, mas também os contratos, as decisões judiciais, os atos
administrativos concretos (licenças, autorizações, etc.) e normativos (regulamentos,
portarias, etc.) são atos de criação jurídica, criação de normas, umas gerais e
abstratas, outras individuais e concretas.
Outra decorrência da teoria de Kelsen é a de que as funções legislativa,
administrativa e jurisdicional não seriam substancialmente diferenciáveis. Seguindo
os pressupostos kelsenianos, não se pode afirmar que somente a função legislativa
seja criadora do Direito, enquanto as outras encerrariam apenas a sua aplicação, na
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medida em que todas elas consistem na prática de atos que são, simultaneamente,
de criação e aplicação do Direito.
Se não é possível estabelecer uma distinção efetiva entre as duas
atividades, vale dizer, jurisdicional e legislativa, do seu ponto de vista substancial, a
distinção poderá ser feita do seu ponto de vista processual: ambas as atividades
possuem modos de exercício ou procedimentos nitidamente diversos e é através da
análise de suas particularidades que será possível estabelecer a diferença entre
elas.
De fato, a experiência mostra que juiz e legislador têm formas e modos de
atuação muito diversos. O juiz não se sente à vontade em criar o Direito, ele busca
sempre decidir de acordo com aqueles princípios estabelecidos em lei, maturados
pela jurisprudência e amplamente estudados pela doutrina. Não tem o juiz,
habitualmente, disposição para inovar completamente, fugir daquilo que se escreve
nos livros e daquilo que é decidido pelos Tribunais. Ao contrário, há sempre um
movimento natural de uniformização da jurisprudência, assim como tendem a se
aproximar os ensinamentos da doutrina das decisões judiciais.
Não se quer dizer com isso que o magistrado não seja dado à evoluções; ao
contrário, sustenta-se que a atividade jurisdicional é sempre uma atividade criativa e
tenho sempre ressaltado a importância do trabalho dos magistrados para o
desenvolvimento e para os avanços do Direito. Apenas registra-se que os juízes
costumam agir com cautela, sem antecipar seus movimentos aos fatos e aos
anseios sociais.
Com efeito, não há como negar o papel criativo da jurisdição e não há como
negar a sua responsabilidade efetiva pelo sucesso ou fracasso do ordenamento
jurídico, ao menos enquanto tivermos em mente ser o Poder Judiciário quem diz o
real significado da lei e da Constituição. Afinal, a Constituição é aquilo que a Corte
Suprema diz que ela é. Desse modo, o significado da norma ultrapassa aquele que o
legislador pretendia lhe dar. Esse significado é vivo, mutável no tempo e no espaço.
E essa vida é dada, sem ignorar a importância da doutrina, pela interpretação das
leis e pela atividade criativa dos juízes.
Como se percebe, o que caracteriza a atividade jurisdicional não é a sua
passividade no plano material, mas a sua passividade no plano processual. No
processo judicial, o Estado-juiz deve exercer sua função de modo a manter a
igualdade entre as partes, sua atividade deve estar conectada à demanda, deve
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assegurar às partes o direito de serem ouvidas (contraditório e ampla defesa) e deve
ter grau suficiente de independência em relação às pressões externas.
No processo legislativo não existem as citadas garantias; trata-se de um
jogo político de disputa de interesses da maioria e concessões mútuas. Não há
contraditório, ampla defesa, imparcialidade, necessidade de provocação, demanda
para circunscrever a atividade e necessidade de fundamentação; são, com efeito,
ambos os processos bastante diversos e facilmente diferenciáveis, sendo com eles
diferenciáveis as atividades jurisdicional e legislativa.
No entanto, basta obrigar as Administrações Públicas e, especialmente, o
Poder Judiciário a cumpri-las para que estejam obrigadas todas as pessoas sujeitas
ao ordenamento jurídico brasileiro e, em alguns casos, o próprio Poder Legislativo.
As normas jurídicas dependem de algum grau de coercibilidade para terem
significação jurídica. De alguma maneira, o descumprimento de uma norma jurídica
há de produzir um efeito negativo a quem a ela não se submeter, como forma de
compelir as pessoas em geral a obedecer aos comandos do ordenamento. O Poder
Judiciário funciona no vértice de toda aplicação do Direito, servindo de guardião
máximo, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão ou ameaça de direito,
conforme proclama o art. 5.°, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Ora, se o Poder Judiciário, e antes mesmo deste, as Administrações
Públicas, darão cumprimento ao Direito seguindo os ditames das súmulas
vinculantes futuramente editadas, logicamente todos acabam se submetendo a elas.
O cumprimento da súmula, inequivocamente, poderá ser exigido perante o
Judiciário, eis que a ela está vinculado, trata-se, portanto, de uma espada com corte.
É preciso, como se pode notar, compreender os dois níveis de vinculação da
súmula vinculante, que pode ser: direta, abrangendo apenas o Poder Judiciário e a
Administração Pública, sujeitando todos os atos administrativos e jurisdicionais
contrários ao julgamento direto pelo Supremo Tribunal Federal, pela via da
reclamação; ou, indireta, que se torna efetiva quando a Administração Pública ou o
Poder Judiciário aplicam as súmulas concretamente.
Quanto à vinculação indireta do Poder Legislativo, sustenta-se a súmula
vinculante é uma norma jurídica geral e abstrata, que, materialmente, tem um
esquema semelhante ao das leis em geral.
Sendo assim, uma vez assentada uma súmula vinculante, firma-se uma
interpretação do texto constitucional, a qual somente pode ser alterada em duas
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hipóteses: (i) ou o próprio Supremo Tribunal Federal revê o seu posicionamento, eis
que ele próprio não está vinculado; (ii) ou promove-se a alteração do texto
constitucional.
Eis aí uma aproximação hierárquica da súmula vinculante às emendas
constitucionais, uma vez que, em regra, as súmulas vinculantes, salvo alteração pelo
próprio Supremo Tribunal Federal, somente seriam alteradas por emenda
constitucional.
Seguindo este raciocínio, poderia-se afirmar que nas hipóteses em que a
súmula vinculante firmar interpretação fundada em cláusulas pétreas, nem mesmo
uma emenda constitucional seria capaz de alterá-las, uma vez que em tais assuntos,
não se admite modificações da Constituição, em face do que diz o § 4.° do art. 60 da
Carta Magna.
Por um lado, o art. 103-A da Constituição Federal fala apenas em efeito
vinculante ao Poder Judiciário é à Administração Pública, deixando de fora, portanto,
o Poder Legislativo. Daí afirmar-se que o Legislativo não está vinculado à súmula. A
sua não-vinculação implica na possibilidade de editar lei ou emenda constitucional
contrários à súmula vinculante.
Por outro lado, uma lei editada contra uma súmula do Supremo Tribunal
Federal seria tão (in)válida quanto uma lei editada contra a própria Constituição. O
exercício da função legislativa contra uma súmula, excetuada a modificação por
emenda constitucional, quando possível, ou a prevalência de tese jurídica
manifestamente superior seria antijurídico, na medida em que ofenderia a própria
Constituição e o seu significado normativo atribuído pelo Supremo Tribunal Federal.
Destarte, o que distingue a vinculação do Poder Legislativo da vinculação da
Administração Pública e do Poder Judiciário é exatamente o manejo do instrumento
da reclamação. No caso do Poder Legislativo, o descumprimento da súmula
vinculante não dá ensejo a reclamação perante do Supremo Tribunal Federal. Essa
é a solução que sobressai da conjugação do caput do art. 103-A, da Constituição
Federal, com seu § 3.°: note-se, a reclamação é cabível apenas contra o ato
administrativo ou decisão judicial contrários à súmula, não existindo reclamação
diretamente interponível contra ato legislativo.
Neste contexto, cabe frisar, quanto à aplicação do controle de
constitucionalidade das súmulas vinculantes, que o próprio processo de revisão e
cancelamento se mostra como mecanismo válido e apto para tal fito.
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Todavia, tormentosa é a questão quanto à possibilidade da utilização da
Ação Direta de Inconstitucionalidade para impugnar verbete vinculante, vez que,
conforme defendido alhures, a súmula vinculante é, materialmente, uma lei, em
razão da generalidade e abstração, ao lado da vinculação, encaixando-se no
conceito de ato normativo contido no Texto Maior.
Nesse quadro, surge o problema da eventual incompatibilidade, formal ou
material, da súmula vinculante em face da Lei Maior, situação que colocaria em
risco, a harmonização entre os poderes da República, admitindo-se, em princípio, a
utilização de Ação Direta de Inconstitucionalidade para sanar referido vício.
Destaca-se que, do ponto de vista prático, a revisão ou cancelamento, e a
decisão em Ação Direta de Inconstitucionalidade possuem efeitos distintos, razão
pela qual a reflexão ora proposta mostra-se útil.
A revisão ou cancelamento opera efeitos tão somente prospectivos,
enquanto, em regra, a decisão proferida em Ação Direta de Inconstitucionalidade
tem efeitos retroativos, vez que a norma é considerada nula.
Quanto à incompatibilidade formal, basta lembrar a edição da súmula
vinculante nº 11, que trata do uso de algemas, em que inexistiam os precedentes
nos moldes constitucionais a ensejar sua criação.
Por tudo o que foi exposto, e em desfecho, vale dizer que acertada é a
opinião de Cunha Júnior:
...em razão da vinculação e obrigatoriedade, ao lado da generalidade e abstração, a súmula vinculante pode ser objeto de controle abstrato de constitucionalidade, por equiparar-se a uma verdadeira lei em sentido material (Cunha Júnior, 2009, p. 359).
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7. CONCLUSÃO
Em conclusão, após tratará sobre os dois grandes sistemas de direito da
história, analisando seu desenvolvimento e influência, bem como sobre o controle de
constitucionalidade no Brasil e no Direito comparado, afere-se uma aproximação dos
dois sistemas através do instituto da súmula vinculante.
Noutro giro, muito embora, atualmente no Brasil a súmula tradicional de
jurisprudência dominantes dos Tribunais não tenha caráter vinculante, tal quadro foi
modificado, pelo menos no âmbito da Corte Maior, com a possibilidade da edição de
súmula vinculante, a partir da Emenda Constitucional nº 45 de 2004
Por derradeiro, cabe dizer que, embora trata-se de assunto polêmico e que
merece reflexão mais amadurecida, ante todos os fundamentos expostos alhures, há
que se defender, inicialmente, a possibilidade do controle de constitucionalidade da
súmula vinculante, quer por vício formal, quer por afronta material ao Texto Maior,
em razão de sua generalidade, abstração e vinculação, tudo em razão das lições
fundamentais do Direito, mas sem desconsiderar a sua dificuldade prática, que é da
própria essência do instituto, que, para muitos, reitera-se, afronta o princípio da
separação dos poderes.
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REFERÊNCIAS
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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.
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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. tradução João Baptista Machado. 7ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006 – (Justiça e Direito)
LEITE, Glauco Salomão. Súmula Vinculante e jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 12. ed. versão atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
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VADE MECUM: acadêmico de direito / Anne Joyce Angher, organização. 10. ed. São Paulo: Rideel, 2010.
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