Como a democraciaajustou contas com a ditaduraFilipa Raimundo Durante décadas, a transição paraa democracia em Espanha foi vista como modelar.Afinal foi a ruptura com o Estado Novo feita pelo 25 de Abrilque deu origem a uma reparação histórica pioneira
EntrevistaSão José AlmeidaEm Ditadura e Democracia: Legadosde Memória, Filipa Raimundo faz olevantamento do ajuste de contascom a ditadura do Estado Novofeita com a institucionalizaçãoda democracia após o 25 deAbril. No livro editado pelaFundação Francisco Manueldos Santos, a investigadora doInstituto de Estudos Sociais (ICS)da Universidade de Lisboa e
professora no Instituto Superiorde Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE) demonstra comoa democracia fez a reparaçãohistórica com o passado em termosaté pioneiros para a época, coma primeira Comissão de Verdade- Comissão do Livro Negro — e
a Ordem da Liberdade. Masconclui que este ajuste de contascom o passado ditatorial não
perdura na memória colectiva dos
portugueses. E explica porquê.O seu livro prova que houveajuste de contas após o 25 deAbril em relação à ditadura, aocontrário da percepção comum.A questão que levanto sobre o
ajuste de contas, que acredito
que vá surpreender uma partedos leitores, tem que ver coma dimensão mais punitiva de
como lidámos com este passadoautoritário no momento da
transição para a democracia.
Ela é de facto, do ponto devista comparativo, muito mais
significativa do que a percepçãodos cidadãos em Portugal e do
que ficou na nossa memóriacolectiva. Saliento que o livro nãofala propriamente em justiça e falanesta ideia de ajuste de contas. O
meu objectivo não é argumentarque foi feita justiça no sentido emque houve a punição equivalenteao crime cometido, mas que houveum conjunto de esforços paraajustar contas com esse passado. O
argumento do livro é mesmo quehouve uma série de medidas quetinham esses objectivos de nãodeixar o passado ficar impune.Divulga um facto relevante.Em tribunal militar foramjulgados 2667 agentes da PIDE/DGS, a polícia política. Porqueninguém fala disto?Há vários factores que ajudam a
explicar o quase desaparecimentodeste facto na nossa memóriacolectiva. Eu avanço alguns e
haverá outros possíveis. Um deleseventualmente será o facto deisto não ter sido um processo queseguiu os modelos e que encaixe
perfeitamente num Estado dedireito democrático. Há umperíodo de prisão preventivaextremamente alargado. Umdos aspectos mais importantes é
que a forma como se conseguiujulgar todos estes indivíduos foiatravés da aprovação de uma lei
retroactiva que vai criminalizaractos que na época eram legítimosà luz do regime em vigor.É isso que faz transitar, segundoexplica, os casos para tribunaismilitares, para poder serprolongado o prazo.Exactamente. Encontra-se essa
solução da justiça militar para quea prisão prpypntiva, qnp já ia longa,possa continuar. Mas inicialmentenem estava prevista a possibilidadede os indivíduos interporemrecurso, da liberdade provisória,que são princípios fundamentais.Esse eventualmente é um aspecto.Celebrarmos um processo que nãoestá de acordo com aquilo que é
o regime que estamos a instituir,um Estado de direito democrático,poderia eventualmente levantarquestões. Depois, outra questãoque levanto é que o balanço final,de facto, não satisfaz a quemprocurava a tal justiça.
Foram julgadas 2667 pessoas.Quando finalmente estes
julgamentos ocorrem, muitosdestes indivíduos saem emliberdade. Em muitos casos,
porque já tinham cumprido a penano período de prisão preventiva,que chegou nalguns casos a
quase dois anos. Depois havia uns
perdões, consoante os tribunais,mas alguns utilizaram todos os
perdões possíveis. Portanto,muitos destes julgamentos acabamna libertação. E o que fica namemória, por isso esta aparentecontradição, é que não se fez nada.Por que razão a percepçãocomum é a de que houvedesmandos e perseguiçõesde figuras de direita duranteo PREC e não há memória dareparação que foi feita?Tenho uma leitura política disso
e acho que é inevitável quetenhamos. É preciso compreenderque o processo de ajuste de contasfoi feito por actores políticos quese mantêm na actualidade e quetêm representação partidária. Nocaso da elite do Estado Novo, ela
desapareceu. Enquanto temosdemocracias em que há partidosconsiderados herdeiros do regimeanterior e continuam com actores
políticos com relevância até
eleitoral, quer na Europa do Leste,
quer se olharmos para Espanha -hoje em dia dificilmente o Partido
Popular pode ser considerado umpartido pós-franquista, mas é o queele é na sua origem. Nós não temosum partido pós-salazarista.Uma das razões que apontaé a de que o pedido dereconciliação nacional após o 25de Novembro apagou a ideia do
que tinha sido feito.Passado o período de
radicalização, é visto como
importante para a consolidaçãoda democracia terminar comeste ajuste de contas, com estasiniciativas de sanear, de punir,de estigmatizar, de afastar das
funções. É neste sentido que o
próprio PS - que é à partida umdos partidos que promovem este
tipo de medidas e está interessadoem apresentar-se ele próprio
como um partido antifascista
-, ao caminhar para o centro e
ao procurar a consolidação dademocracia e a sua consolidaçãocomo partido do centro, tambémse quer afastar destes temas.Refere que o PCP não faladeste ajuste de contas, porquequer diminuir o seu papel noprocesso. Não acha estranho o
PCP, que gosta tanto de falarno seu papel na revolução, serresponsável por essa mitigação?
O PCP, por exemplo, em relaçãoaos julgamentos [dos pides] emtribunal militar, não tem um papelaberto, visível. Tem através da
elaboração da lei, tem pelo período
em que o processo avança, masnão de uma forma muito clara
podemos associar o PCP a este
processo.Mas na V Divisão, campanhasde dinamização, saneamentos eocupações, há um papel que ocelebram ainda hoje.Em relação às campanhas de
dinamização cultural não é ditoabertamente que são levadas a
cabo por militares ligados ao PCP.Estas campanhas são promovidaspelos militares da V Divisão e
sabemos que ainda hoje não estámuito bem esclarecido a relaçãode muitos destes militares com oPCP. E, se falarmos com eles - eu
falei com alguns -, dirão que o
PCP era apenas um dos actoresenvolvidos nestas campanhas e
que elas tinham por objectivo ser
apartidárias. Esse é outro elementodeste processo, que é pouquíssimoconhecido, é interessantíssimo.Este papel que estes militares
desempenharam não tem paralelo,que eu saiba, noutras transiçõesdemocráticas e foi de umadimensão muitíssimo significativae é completamente ignorada. É
curioso como isto desapareceucompletamente da nossa memóriacolectiva. O argumento que é
dado é que o PCP não expressaabertamente.Até que ponto é que empobrecea vivência democrática hoje onão ser claro que esse ajuste decontas foi feito?A forma como nós lidámos como nosso passado autoritário nãotem uma implicação directa naqualidade da democracia do
ponto de vista objectivo; tem do
ponto de vista mais subjectivo,da celebração de determinadoselementos que compõem a
identidade, que ajudam a legitimara democracia, que lhe conferemcarácter identitário. Nesse sentidohá aqui uma ausência. 0 queestá presente de forma geral é
que houve uma ruptura com o
passado autoritário, a democracia
portuguesa fez uma ruptura comesse passado. E isso, se quiser, é o
grande chapéu deste processo. O
que nós não conhecemos é a formamais pormenorizada como essa
ruptura foi feita e este livro procuraum pouco concretizar alguns doselementos dessa ruptura, paraalém dos elementos que têm
que ver mais com as instituiçõespolíticas, com a mudança de elite,com toda a transformação de umregime autoritário num regimedemocrático. Mas este processoé distinto de muitos outros e é
também este elemento que voutrazendo aos bocadinhos ao
longo do livro, é esta dimensão
comparativa de percebermos quea forma como Portugal lidou como seu passado autoritário é distintada forma como outras democracias
lidaram com os seus passadosautoritários.Mas é uma forma positiva?Gosto mais de não entrar emdimensões valorativas e apenasdar este elemento. Se podemos
comparar com Espanha, que está
hoje a debater-se com os restos de
[Francisco] Franco e o Vale dos
Caídos, que é um monumento àvitória na guerra civil, com o factode não ter punido os responsáveispelos crimes cometidos durante o
franquismo, com a possibilidadede criar uma comissão de verdade,que não teve até hoje, foi umaforma muito distinta de lidar como passado autoritário. A Espanha,pela necessidade que tem de
negociar essa transição, por nãoter uma ruptura como nós tivemoscom o golpe, faz uma transiçãogradual que não abre esta janela de
oportunidade.Em que não há ajuste de contas.Em que não há qualquer ajustede contas com o passado até hoje.Passam mais de 40 anos e nãohá um ajuste de contas com o
passado. E não é único. No Brasil
hoje ouvimos um dos candidatos
presidenciais a falar abertamentede forma positiva sobre a ditaduramilitar, a fazer a apologia dos
torturadores, etc. Isso acontecenuma democracia que não ajustoucontas com o seu passado, quenão fez uma ruptura. Mais umavez é uma transição negociada,gradual, em que os militares, muitoà semelhança de Espanha, nestecaso militares, aprovam uma leide amnistia que bloqueia qualquertentativa de criminalizar e de
punir.Em que o processo foi maisdemocraticamente saudável?Curiosamente, nos anos 70,quando se dá a transição para ademocracia quer em Portugal,quer em Espanha, nos anos
que se seguem até aos anos
90, a transição espanhola porcomparação com a portuguesaé vista como exemplar, como
modelar, porque é uma transiçãopacífica. Esse é o elemento quefica, apesar de ter havido maismortos do que em Portugal. Maso que fica é que é uma transiçãonegociada, pacífica, tranquila,versus a transição portuguesa deenorme radicalização, de pré-guerra civil. Durante duas décadaso modelo espanhol é que é vistocomo o modelo bom. Tudo istoleva uma reviravolta quando surgeesta área de actuação que hoje emdia é comum a todas as transiçõesdemocráticas, a que se chama a
"justiça transicional", em que os
Estados são quase que forçados ousão muito incentivados a ajustarcontas com o seu passado.E nisso Portugal foi pioneiro,nessa forma de ajuste de contascom aspectos inovadores eporque fez o ajuste de contas deforma clara e radical?Sim. Portugal também é o
primeiro de uma vaga de
democratizações que se vaiiniciar nos anos 70 e, portanto,os exemplos que tem são os do
pós-guerra. A partir de 1974, comPortugal, a Grécia e os países daAmérica Latina e alguns casosem África, o que temos são
sociedades a lidar com o seu
próprio passado autoritário, compouca intervenção internacional,embora ao longo dos anos ela váaumentando. Mas são os própriosEstados a lidar com a sua história,com o seu passado, e a tomardecisões sobre o que fazer, comolidar com esse passado. E aí
Portugal, de facto, distingue-se demuitos outros. Vai-se distinguir da
Espanha, como se vai distinguir da
Polónia, da Hungria, da Argentina,do Chile, do [email protected]