O Dinheiro, Bonana, e o Intruso
Coelho Neto
www.LivrosGratis.net(THEATRO V)
PORTO
Livraria Chardron, de Llo & Irmo,
editores Rua das Carmelitas, 144
1917
DO MESMO AUTOR
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Xon\anc2ro, 1 YOI ...................................................................... $50
Theatro, YOI. 1., ........................................................................ $60
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No prelo, a seguir em novas edies:
O Rei Phantasma ....................................................................... 1 vol. .
O Paraiso ................................................................................... 1 vol
O turbilho................................................................................. 1 VOI.
A propriedade literaria e artistica est garantida em todo; os pases
que aderiram Conveno de Berne (Em Portugal, pela lei de 18
de maro de 1911. No Brasil pela lei:
n. 2577 de 17 de janeiro de 1912).
O DINHEIRO
PEA EM 3 ACTOS
representada pela primeira vez no Theatro Municipal do Rio de
Janeiro, pela Companhia Nacional subvencionada, a 12 de Novembro
de 1912
GREGORIO PORTO DA FONSECA
Meu caro amigo:
Foi com esta pedra arestosa que concorri para a
tentativa, que patrocinaste, da reconstrucao do nosso
Theatro. Querendo tornal-a valiosa alisei-lhe esta face, onde
gravo o teu nome como o de um bemfeitor das letras.
Teu, muito cordialmente,
COELHO NETTO.
Novembro-1912.
PESSOAS
MAMEDE .................................. Snr. Antnio Ramos.
HONORIO ............................. *Ferreira de Sousa
LUPERCIO.............................. * lvaro Costa
PAIVA................................... * Joo Barbosa
BROTAS .............................. * Carlos Abreu
RAMIRO.................................... * Castello Branco
O COPEIRO............................... *Antnio Sampaio
LVIA ................................... Snr.a Maria Falco
VENANCIA ........................ *Gabriella Montani
EVA ................................. ......... *Luiza de Oliveira
ELVIRA ................................. * Judith Saldanha
COTINHA................................... *Martha de Souza
Aco no Rio de Janeiro. Actualidade,.
PRIMEIRO ACTO
Scena dividida; direita, jardim; esquerda, salo
communicando, por duas portas, com o jardim. Porta
larga ao fundo dando para a sala de musica, onde ha um
piano Angelus e, sobre uma mesinha, um apparelho
telephonico. Porta direita, em diagonal. Ltuxo
exaggerado, sem gosto. tarde.
SCENA PRIMEIRA
O copeiro, PAIVA e BROTAS
Paiva e Brotas entram pelo jardim vagarosamente,
conversando. Detm-se porta do salo. Paiva toca a
campainha. O copeiro apparece ao fundo, atravessa a
scena dirigindo-se porta.
O copeiro
Quem devo annunciar?
Paiva, rebuscando na carteira:
Diabo! (A Brotas:) Tens ahi um carto?
Esqueo-me sempre estas coisas, Decididamente
10 O DINHEIRO
no nasci para diplomata. (Brotas d-lhe um
carto.) isto! Ponho aqui o meu nome e estamos
annunciados. D c o lpis. (Brotas d-lhe um lapis.
Escreve e entrega o carto ao copeiro, que os
convida a entrar, retirando-se pela sala do fundo.)
SCENA II
PAIVA e BROTAS
Os dois demoram-se no jardim observando. Brotas, de braos
cruzados, relanceia olhares, sacudindo a cabea em aceno
de admirao.
Brotas
Sim senhor... S em parasitas...
Paiva
Isto para quem pde, meu velho. E ainda no
viste o melhor. L na outra a coisa tem mais cachet
e grandeza. Aquillo que luxo! Mobiliario inglez,
Maple, reposteiros de seda, tapetes do Oriente...
Um serralho!
Brotas
Mas que outra?
Paiva
A francesa, pois entoi? a amante. Tem-na l em
baixo, mo: rua da Carioca, por cima dum
chapeleiro. Chie ali! Come-se maravilhosamenTHEATRO
11
te, joga-se tripa forra. Uma delicia! o melhor
club do Rio. Depois do theatro enche-se, e ento
que ! J l deixei uns contos de reis, mas ganhei
amizades, que me tm servido de muito. Foi l que
conheci o Datnaso do1 calombo e a Georgina, dois
extremos que agora se tocam. Mas o centro aqui.
O varejo l em baixo, a casa matriz esta.
Brotas
Mora aqui a familia?
Paiva
Sim, a famlia: a mulher e dois ces. J a viste ?
Brotas
Mostraram-me, uma vez, no corso. Pareceu-me
bonita...
Paiva
Mulher e tanto! Mas vamos entrar. Est
ventando muito aqui fora.
Brotas
No achas melhor esperarmos? No v o
homem...
Paiva
Ora qual! Isto uma casa de negocio: vai-se
entrando. (Entram.) Pois como te digo. Linda
estampa! Se tivesse mais linha outra no lhe
12 O DINHEIRO
punha o p adiante. um pouco agua-mrna,
desageitada, timida, ou finge-se... para fazer apetite. Ha
quem goste de violetas. C por mim prefiro o cravo, o
cravo vermelho, bem rubro. D c um cigarro.
Brotas
E est rico, hein?
Paiva
No vs? Tambm, meu velho, topa a tudo, no
perde vasa... e toma l, d c. Olha as obras do
Sergipe? Quem as apanhou? o Canto. Onde fez a
cavao? aqui.
Brotas
E passou-as logo adiante...
Paiva
Por causa das duvidas. Quinhentos maos. Ella comeu a
metade. Ella... elle, que o thesoureiro da firma.
Brotas
E aquillo das villas operarias...?
Paiva
Ainda no sahiu. Ha de vir, mais hoje, mais
amanhan. (Admirando um quadro.) Bem bom! Rio, aqui
todos os dias uma novidade. Acaba em museu.
THEATRO 13
Brotas
Fala-se agora em uma estrada de ferro para
Goyaz, traado magnfico, coisa grande!
Paiva
Sim, conheo. Quem anda a mexer o caso o
Mendona.
Brotas
O das ferragens...?
Paiva
No, homem. O que foi da Carris Urbanos, um
magro, bexigoso...
Brotas
Ah! sei...
Paiva
No sahe d'aqui, impondo importancia. Ainda
no mez passado deu-lhe um sautoir de no sei
quantos contos e, volta e meia, um presente.
Encontrei-o, ha dias, examinando um landaulet
Mercedes. Naturalmente...
Brotas
E ella...?
Paiva
Qual! No v que isto vai assim? Tem tarifa... e
alta!
14 O DINHEIRO
SCENA III
Os mesmos e o copeiro O copeiro, apparecendo ao fundo:
O senhor doutor manda pedir um instante... Paiva
Sim, no temos pressa. (O copeiro retira-se.)
SCENA IV
PAIVA e BROTAS
Brotas
Elle formado?
Paiva
Homem, parece que se arranjou por ahi. Hoje, tu
sabes, compram-se cartas como outr'ora compravam-se
commendas, at mais barato. Ha doutores de trinta e
cinco mil ris. Eu at j andei com a idia de um Club
scientifico, a prestaes semanaes de cinco mil ris, com
direito escolha do titulo. Dava dinheiro...!
Brotas
Isso dava.
Paiva
Elle tem um emprego publico.
THATRO 15
Brotas
E quanto ganha?
Paiva
Offinalmente: seiscentos e pico. Mas s a casa, como
vs, no lhe custa menos de setecentos. E a outra ento!
Brotas, mysteriosamente:
E a mulher?
Paiva
No sei: dizem...
Brotas
Deve ser mesmo uma maravilha...!
Paiva
bonita, . Mas isso de belleza no quer dizer nada.
A Ritca, com aquella vasta enxundia e aquelle buo
silvestre, d as cartas e est subindo como um aeroplano.
Mulheres, meu amigo, para onde as leva: a fortuna.
Brotas
Tens razo.
Paiva
Verdadeiras bellezas, como a Mimi Vargdo, andam
por ahi no varejo...
Brotas
Bella mulher...!
16 O DINHEIRO
Paiva
E uma escanifrada, como a Luzia Barana, o
que se v: automovel, sedas... Sorte.
Brotas
Depende de quem as lana.
Paiva
Talvez. Esta conheci-a eu em Catumby, no
armarinho do pai, o Seraphim dos tocos. Era
bonitinha, geitosa, mas namoradeira como nunca vi.
Aquillo, noite, porta do armarinho, era uma
multido que at parecia a gruta de Lourdes. Esteve
de casamento tratado com D. Filgueiras das
carroas, mas houve qualquer coisa, porque o
homemsinho, a paginas tantas, deu o fora. Foi ento
que appareceu o Mamede. Era amanuense, tocava
piano nos bailes e surrava um costume cr de
azeitona. Dizem uns que elle conquistou as boas
graas do Seraphim arranj ando-lhe um negocio que
estava encrencado no Foro; dizem outros que elle a
raptou. No sei. Andava, ento, pelo Sul. Quando
voltei, dois annos depois, j o achei segundo
escripturario. Agora o que vs.
Brotas
Entretanto ha quem a defenda: Que no o que
dizem, que seria...
Paiva
Seria!?
THEATRO 17
Brotas
Que o marido faz jogo com ella, mas que se lhe
no aponta um amante.
Paiva
E o Sarmento ? Eo Ribas ? E o Castro beiola, e
o Ataliba das cebolas...?
Brotas
Quem sabe l! Isto est hoje to apurado... Ha
quem rebuce a virtude em impudor para conseguir
os seus fins. Hypocrisa inversa. Quem vai ao matto,
meu velho, encontra, s vezes, uma aguasinha
toldada e coberta de folhas, voejada de insectos. A
principio repugna-lhe beber, mas a sede mais forte
do que o nojo. Ento afasta o rebalso, sopra na
superfcie e a agua que lhe apparece to fresca e
to pura como a que corre da mais lmpida fonte.
Quem sabe l! Quantas conheo eu treinadas neste
genero de sport. Em Paris so communs: so as
apaches do amor.
Paiva
. Pode ser uma ceva.
Brotas
Uma ceva, dizes bem.
Paiva
Quando estive em Minas conheci um caboclo,
18 O DINHEIRO
caador admiravel e ladino como elle s. Um dia
acompanhei-o ao matto, a ver a ceva onde elle apanhava as
antas. Era uma clareira com um ranchinho de palha.
Pendurada d'um ramo havia uma combuca cheia de
salmoura. Aquilo pingava, pingava tornando a terra em
barreiro, que as antas iam lamber. Emquanto saboreavam
cahiam-lhes em cima os pingos da combuca. Era a cilada.
De volta ao matto, as outras, dando pelo sal, punham-se a
lamber o lombo s companheiras e, quando as viam tomar
rumo, seguiam-nas pelo engodo. Era, ento, na ceva uma
mortandade! O caboclo, do rancho, com a ca-rabina
engatada numa forquilha, fazia fogo seguro, sem perder tiro,
e a combuca, l em cima, alta no ramo, pingando,
pingando...
Brotas
Pois isso...
Paiva
Por mim, como no venho c pela combuca, que pingue
vontade. Nem que fosse a Venus de Milo! Em
negocios s quero o positivo: o cobre.
Brotas
Como eu.
Paiva
Ahi vem o homem... (Attitudes.)
THSATRO 19
SCENA V
Os mesmos e MAMEDE
Mamede, entra pelo fundo, encaminhando-se apressadamente
para os dois de mos estendidas:
Fiz-me esperar muito, no? Estava a terminar
uma carta urgente para o Salles. Devem-se
ter aborrecido...
Paiva
Em tua casa ningum se aborrece, Mamede.
(Mostrando uma estatua.) Aquillo Venus?
Mamede, depois de uma hesitao:
Sim, ... (Um momento.)
Paiva
verdade... (Apresentando:) Meu amigo
Marcello Brotas, presidente da Industrial. (A
Brotas:) O Mamede, j conheces...
Brotas
Como no?
Mamede
O senhor chegou ha pouco da Europa?
Brotas
verdade. Fui a Vichy.
Paiva
Vichy pretexto. Quando lhe d saudade do
20 O DINHEIRO
boulevard queixa-se do figado e abala. Toma as
aguas commodamente na Abbaye, faz exercicios no
Moulin-Rouge, um pouco de regimen no Pr
Catelan, e volta lepido, trazendo sempre uma novidade.
A deste anno chama-se Rene, uma lourita
normanda, que abusa da cocana, joga como uma
fala em mar alto e dana o tango na perfeio.
Brotas
Historias.
Sentam-se, menos Paiva, que percorre a
sala admirando os quadros.
Paiva
Ests com uma colleco admiravel. Tens aqui
preciosidades.
Mamede
Sim, alguma coisa. Vai-se devagarinho...
Brotas
E s assim que se pde montar uma casa.
Paiva
Sem duvida. Olha o palacete do Bravo, em
estylo egypcio, de piles, como lhe chama o Decio,
com esphynges e ogivas gothicas. um bric--brac
infecto. No se d ali dentro um passo sem esbarrar
em quinquilharia. s vezes, no atabalho, descobrese,
com surpreza, um marTHATRO
21
more regular, um bronze de valor, uma porcellana
authentica, mas o que domina e atravanca o
rebutalho. (A Brotas:) Aquelle admirvel Antinoo,
no te lembras? est ao lado de um cemiterio feito
em cabellos. Tambm verdade que aquillo ficou
prompto em menos de quatro mezes, para as
recepes aos sabbados, com pianola e tango.
Mamede
Coitado! A fortuna surprehendeu-o quando
empilhava fardos de xarque e atirou-o no alto
mundo sem lhe dar tempo para lavar as mos.
Tresanda carne secca como um poro de
cargueiro. Deu-lhe agora para artista...
Brotas
Essas coisas s se fazem com vagar e paciencia.
Homens como o Bravo lembram-me chefes de
hordas que saqueiam cidades empilhando nos
carroes obras primas e fancarias. O verdadeiro
amador namora o objecto, corteja-o, persegue-o at
conseguil-o, como se vence um corao pela
insistncia do amor. As galerias das grandes casas
so feitas por geraes, acompanham a tradio das
familias, como parte heraldica da mesma nobreza.
Um quadro d nome a uma sala, um marmore
impe-se solitario em um vestibulo enchendo-o de
grandeza. A casa do Bravo d-me a impresso de
uma tenda de chefe barbaro...
22 O DINHEIRO
Paiva
Ou de um belchior.
Brotas
Aqui onde me v andei annos atraz de um
Corot. L o tenho em casa...
Paiva, a Mamede:
Has de ir l jantar um dia. Vale a pena.
um Louvre.
Brotas
Oh...!
Mamede
Sei que possue maravilhas...
Brotas
uma mania...
Paiva
Cara, carssima! Mas deixem l, um consolo.
A arte o encanto da vida. Eu tambm tenho um
fraco por essas ninharias. Na rua, os negocios; em
casa um pouco de ideal. A minha paixo a musica.
Tenho agora um piano electrico que a ultima
palavra. Hein, Brotas?
Brotas
.
Paiva
Beethoven, Chopin, Wagner, Grieg...
THEATRO 23
Uma vez por outra, quando estou de venta, offereo-me
um cake-walk, um maxixe. O maxixe bem bom,
deixem l.
Brotas
Em Paris fez epocha.
Paiva
Em Paris? em todo o mundo. Ns que o depreciamos.
Mamede
Porque nacional.
Paiva
Justamente... (Senta-se muito chegado a Mamede.) Pois
verdade. Tua senhora bem?
Mamede
Felizmente.
Paiva
Via-a hontem na Avenida. Achei-a muito bem disposta. E
c o amiguinho?
Mamede
Assim. Tu que ests um turuna! E sempre...?
Paiva
Cavando. A vida est difficil: atravessadores aos centos...
24 O DINHEIRO
Brotas
O Rio progride espantosamente.
Paiva
Mais uns cinco annos e pega New-York. (A
Mamede:) Aqui tens os papeis e o contracto. L.
Mamede, a Brotas:
Com licena. (Pe-se a ler attentamente.)
Est bem.
Paiva
No isso?
Mamede
Sim. Vamos vr.
Paiva
negocio certo. E est nas tuas mos.
Mamede
Quem me dera! Farei o possivel e se os amigos me
quizerem auxiliar... Bem sabes que essas coisas no
dependem apenas do ministro, transitam por varias
seces e cada chefe, meu velho...
Paiva
Ora! Era preciso que eu no te conhecesse.
(Outro tom:) Agora c o nosso amigo. J sabes do
que se trata: aquella conta de fornecimentos
Estrada...
THEATRO 25
Mamede
So...?
Brotas
Cento e oitenta e cinco contos.
Mamede
Tem os papeis?
Ramiro -atravessa o jardim e pra porta do
salo. Campainha no interior.
Paiva
Esto commigo.
Mamede
Pois sim...
Paiva
Ento estamos entendidos, no?
Mamede
Perfeitamente. (Levanta-se.) Tomam alguma
coisa? cerveja, um refresco...?
Paiva
Nada... nada...
26 O DINHEIRO
SCENA VI
Os mesmos, o copeiro e RAMIRO
O copeiro atravessa a scena attendendo campainha. Desce
com um carto, entrega-o a Mamede, que faz
aborrecidamente um gesto de assentimento. O copeiro
introduz Ramiro, que entra muito affectado, de luvas e de
monoculo. Adianta-se inclinando-se em zwmbaia servil.
Mamede corresponde com superioridade. O copeiro retirase.
SCENA VII
Os mesmos, menos o copetro
Ramiro
Sem incommodo, excellentissimo. Eu espero.
Mamede
Um momento. J o attendo. Queira sentar-se.
Ramiro
Muito agradecido, excellentissimo. (Senta-se
hieraticamente.)
Mamede, a Brotas:
Vai para Petropolis?
Brotas
No. Petropolis, com as chuvas, est um
tremedal. E o Rio, no inverno, uma delicia.
THEATRO 27
Paiva
Um encanto! Bem, vamos indo. (A Mamede)
Tens que fazer... e ns tambm.
Mamede
Appareoes noite?
Paiva
Hoje... no sei. Vou jantar com este cavalheiro.
(A Brotas, de repente:) E se fssemos at l?
Mamede
Conversa-se, carteasse um pouco, faz-se
musica. Roda excellente.
Brotas
Pois vamos.
Mamede
Ento at logo.
Paiva
Se no chover.
Mamede
Que tem que chova? Fica-se mais vontade.
(Discretamente) Hoje teremos l a condessa...
Paiva
Homem, queres saber ? acho-a insipida: s
estampa.
28 O DINHEIRO
Mamede
Ests enganado! Vai l. (A Brotas) Ento, at
logo. E aqui, sempre s suas ordens.
Brotas
E quando quizer...
Mamede
Sim, sim... Hei de l ir com o Paiva. (Condul-os
porta.) At logo.
SCENA VIII
MAMEDE e RAMIRO
Mamede, muito grave:
Estou s suas ordens.
Ramiro, de p:
Trago uma carta para V. Ex.a. (Entrega-lhe uma
carta.)
Mamede, sentando-se:
Sente-se. Com licena. (Depois de lr a carta:) Sim
senhor... Em que lhe posso servir?
Ramiro
A minha excellente amiga D. Arethusa foi
generosa, excessivamente generosa nas referencias que fez
minha pessoa humilde. Para dizer
verdade, excellentissimo, o que eu quero sahir
THSATRO 29
daqui, entrar na diplomacia. Mas sou razoavel, no
vou to longe com a minha ambio como foi D.
Arethusa com a sua bondade. Paris no para mim,
por emquanto. Contento-me com um lugarsinho
modesto: Londres, Berlim, Vien-na, Bruxellas... por
ahi. O que eu quero entrar na carreira, o resto farei
por mim.
Mamede, vagamente:
Sim.
Ramiro
A diplomacia foi sempre o meu sonho. Papai
fazia questo de que eu estudasse medicina
(caramunhando:) mas o cadaver... oh! Nunca pude
encarar com um defunto, demais a mais em postas.
Mami queria-me na marinha, para continuar a
tradio do meu tio Juc. Mas enjo muito, at na
barca... imagine em um couraado, em batalha. O
meu sonho foi sempre a diplomacia: a vida nas
cortes, as recepes... No tenho geito para outra
coisa. feitio, destino... Como contrarial-o?
Mamede
Sim.
Ramiro
No verdade? A minha aptido revelou-se
muito cedo, no collegio. Fui um precoce. Em
Petropolis, quando acompanhava mamai s em30
O DINHEIRO
baixadas, mettia-me nos cantos observando os
diplomatas: as suas attitudes, os seus gestos, os seus
ticos, tomava notas, bebia-lhes as palavras e, em
casa, no meu quarto, reproduzia tudo diante do
espelho. Pratiquei com um ministro que era o nec
plus ultra em assumptos diplomaticos: primeiro par
de valsa e, para um cotillon...!
Mamede
E... j fez concurso?
Ramiro
Concurso?! Sou bacharel: formei-me no anno
passado.
Mamede, depois de pensar:
Olhe, Dr., para ser franco devo dizer-lhe que no
estou em boas relaes com o ministro.
Ramiro, desapontado:
D. Arethusa disse-me justamente o contrario: que V.
Ex.a era intimo...
Mamede
Sim, fui; mas tivemos uma rusga por causa de certa
nomeao...
Ramiro, cabisbaixo, escahichando as unhas:
o diabo!
Mamede
Em todo caso, para cumprir a ordem de D.
Arethusa...
THEATRO 31
Ramiro
Grande amiga e admiradora de V. Ex.a;
Mamede, continuando:
...vou dar-lhe uma carta para um amigo, dos
mais intimos do ministro.
Ramiro, commovido:
No tenho palavras com que agradea a V. Ex.a.
Mamede
Um momento. (Entra direita.)
SCENA IX
RAMIRO, depois o copeiro; em seguida LVIA,
ELVIRA e COTNHA
Ramiro fica um momento imtnovel, como alheiado. Pouco a pouco,
porm, percebe-se que lhe entra nalma a esperana. Levanta-se
de golpe, transfigurado, entala o monoculo na orbita, compe a
sobrecasaca, saca dos punhos, rola o pescoo no collarinho alto, e
pe-se a passeiar, pimpo, ao longo da sala. Buzina de automovel.
Estaca attento, escuta. Risos no jardim. O copeiro atravessa a
scena em direco porta. Um momento.
Cotinha
Parecia uma bruxa com aquelle chapu.
Quanto mais se enfeita mais feia fica.
32 O DINHEIRO
Elvira
E o tal sujeito do cinema?
Cotinha
Fosse commigo!
Elvira
A senhora no imagina, D. Livia... (Apparecem no
jardim.) Ha cada typo...!
Cotinha
Aquelle conheo eu: no sahe da Avenida, sempre
porta dum charuteiro, com aqnella barriga de entanha.
Quando a gente passa vira uns olhos de peixe morto,
dizendo bobagens. No carnaval quiz metter-se commigo,
todo cheio de partes... mostrei-lhe umas trombas que elle
perdeu o geito. Commigo nove.
Livia
Juca est ahi?
O copeiro
Est sim, senhora.
Livia
A que horas chegou?
O copeiro
s tres. (O copeiro retira-se.)
THEATRO 33
SCENA X
Os mesmos, menos o copeiro
Cotinha
Ih! mami, a pluma do seu chapu est toda
esfrangalhada.
EIvira
do automovel.
Entram. Dando com Ramiro retrahem-se.
Cotinha contem o riso. Cumprimentos
cerimoniosos.
Livia
Agora descancem um bocado. Tomam ch?
EIvira
No. tarde. A senhora precisa descanar: tem
hoje espectaculo.
Livia
No, hoje no vamos. Traviata, uma opera do
tempo do Ona...
EIvira
Cotinha toca.
Cotinha, com um momo:
Muito cacete.
Livia, a Ramiro:
O senhor espera meu marido?
34 O DINHEIR0
Ramiro, sumbrido:
Sim, minha senhora.
Livia
J lhe falou?
Ramiro
J, minha senhora. Ex.ma esposa do Dr.
Mamede que tenho a honra de falar?
Livia
Sim, senhor.
Ramiro
Muita honra... Ramiro Verga, criado de
V. Ex.
Elvira
Vou deixal-a, D. Livia. Augusto j deve estar
minha espera.
Livia
Que pressa!
SCENA XI
RAMIRO, LVIA, ELVIRA, COTINHA e MAMEDE
Mamede, ao entrar, dando com as visitas, no dissimula o
contrariedade. Elvira perturba-se, Cotinha disfara.
Mamede
Ba tarde.
THEATRO 35
Elvira
Ba tarde, Dr. D. Livia quiz, por fora, trazernos
no automovel. Vamos, Cotinha?
Cotinha espaa o riso. Elvira faz-lhe um signal
reprehensivo.
Cotinha, baixo:
Estou-me lembrando do typo, com aquella cara
de bra.
Elvira
O Dr. sempre forte... (Sorriso condescendente
de Mamede. Um momento acanhado.) Entrego-lhe
sua senhora. Com licena... (A Livia:) Mais urna
vez: obrigada. (Beijam-se.)
Cotinha
Olhe, D. Livia, no se esquea da promessa.
Fao questo. Dr....
Cumprimentos. Cotinha sahe contendo o riso.
Livia acompanhadas porta.
Cotinha e Elvira, no jardim:
Adeusinho! (Desapparecem.)
Livia
At breve! (Entra esquerda.)
36 O DINHEIRO
SCENA XII
MAMEDE e RAMIRO
Mamede
Aqui tem a carta.
Rarairo
Muito e muito obrigado. No sei para onde me
mandaro, mas, onde quer que me installe, a servio
da Patria, pde V. Ex.a contar com um amigo,
venerador, criado e obrigado.
Mamede
Seja feliz.
Ramiro
Respeitosos cumprimentos sua Ex.ma Senhora.
(Lisonjeiro) maravilhosa a colleco artistica de
V. Ex.a Estive apreciando. Tambm pinto, fao
umas coisinhas. Agora estou praticando na
photographia. Na minha carreira uma necessidade:
viaja-se muito, vm-se tantos aspectos, costumes
to interessantes... s ordens...
Retira-se aos recuanos, cumprimentando.
SCENA XIII
MAMEDE e o copeiro
Mamede faz soar o tympano. O copeiro apparece ao fundo.
Mamede
No estou em casa...
THATRO 37
O copeiro
Mesmo para o senhor Frias... ?
Mamede
Seja quem fr.
O copeiro
que elle j esteve aqui e disse que voltava.
Mamede
No estou para ningum. (Sahida falsa do copeiro.)
Olhe, vem hoje jantar aqui um amigo meu. Veja-me a
sala...
O copeiro
O apparelho de Svres?
Mamede
Sim.
O copeiro
Baixella ?
Mamede
Sim. O centro de prata, o novo.
O copeiro
O senhor Dr. encommendou frutas ou devo pedir ?
Mamede
Pea. E veja isso, (O copeiro sahe. Aborre38
O DINHEIR0
cido, escarapellando-se, a medir o salo a largos
passos:) Esta minha mulher! Esta minha mulher!
Qual! Quem nasceu para dez ris nunca chega a
vintm.
SCENA XIV
MAMEDE e LVIA
Livia, sem o chapu, diz, ainda na saleta:
J sei que ests furioso commigo...
Mamede
Ah! no, no hei de estar. Que diabo! Livia, por
mais que eu te diga... No sei que apego esse teu
tal gentinha...
Livia
Tenho pena. Vejo-as to escorraadas. Aqui
ningum lhes fala...
Mamede
E porque?
Livia
Ora... porque...
Mamede
Achas decente que uma senhora casada, com
uma filha moa, viva de portas a dentro com o
amante ?
TMAMO 39
Livia
E tens certeza disso?
Mamede, surpreso:
Se tenho certeza... (Com ironia:) Francamente... no
me faltava mais nada.
Livia
Pois eu no acredito', no tenho provas...
Mamede
Queres mais provas do que as que ella ostenta? ella e a
sirigaita da filha? Ento o trangalhadanas do marido,
com o que ganha, pde manter esse luxo...!?
Livia
Luxo, coitadas! Fazendo doces para fora, sempre
reformando os chapus, os vestidos...
Mamede
... E automoveis, cinema, Friburgo no vero.
Quem paga?
Livia
No sei... nem quero saber.
Mamede
O emprego no d para tanto. Dinheiro no
borracha.
40 O DINHEIRO
Livia
Ora, Juc... por isso, no. Tu ganhas tanto como
elle e gastas como um lord.
Mamede
Perdo! eu sou um homem de negocios, tenho o
emprego apenas como profisso... official, o que
elle me rende nem chega para os charutos. Sou um
homem activo, tenho relaes, movo-me, sei cavar.
E querea comparar-me com um gbo.
Francamente... (Outro tom:) No serve. A gente
vale pelas relaes que tem. Dize-me com quem
andas... s pelos cinemas, com uns chapeus
estapafurdios. No quero! s to susceptivel, to
escrupulosa com pessoas de distinco e affrontas a
sociedade com esse rancho. No quero! Colloquese
no seu lugar.
Livia
Bom, estou canada. Chega de moral.
Mamede
, chega de moral, chega de moral...
Um momento.
Livia
Porque mandaste tirar a baixella? Esperas algum
para jantar?
Mamede
O Honorio.
THEATRO 41
Livia
Hoje?
Mamede
Sim. (Um momento.) E infelizmente um negocio
obriga-me a estar na cidade s 7 horas. Aquelle caso da
borracha. Tenho de jantar com o americano. Uma
estopada!
Livia
E o Honorio! ?
Mamede
Que tem?
Livia
Que tem!? Pois eu hei de jantar s com um homem
que no conheo...?
Mamede, depois de encaral-a, sorrindo:
Tu precisas perder esse caipirismo. Os timidos so
aleijados que no se movem sem muletas e, neste seculo
vertiginoso, os lerdos succumbem e servem de ponte aos
activos. E necessario correr na frente, avanando sempre,
sem preconceitos nem escrupulos sentimentaes. Temos
que viajar e a vida no estrangeiro no a pasmaceira em
que aqui nos atolamos. Olha as americanas: sahem ss,
viajam ss. Quem as affronta?
Livia
Mas tu sabes que esse Honorio...
42 O DINHEIR0
Mamede
um tutu, um bicho de sete-cabeas, no?
Livia
No sei se bicho de sete cabeas, mas o que
delle dizem no o recommenda. um homem que
no respeita as senhoras...
Mamede
No respeita as senhoras... No respeita as que
no se fazem respeitar. Se deres ouvidos a tudo que
dizem, minha amiga, ters de fechar a porta. Aqui
fala-se de toda pessoa em evidencia se homem
e fez fortuna, ladro; se mulher, e formosa,
isto e aquillo...
Livia
Pois sim, mas eu no estou disposta a ser
atassalhada pelo mundo. Basta de cartas anony-mas
e de insultos ao telephone. E queres que te diga? J
tenho vergonha de passar na Avenida pelos olhares
com que me seguem. O sangue sobe-me ao rosto...
Fico que s Deus sabe...
Mamede
Commetteste alguma falta? Tens amantes? deves?
furtas? Pois ento deixa olhar quem olha. Tudo
inveja.
Livia
Inveja de que?
THSATRO 43
Mamede, confidencialmente:
Os que encalham, minha velha, no perdoam
aos que vo por diante. A agua que pra em pantano
torna-se venenosa. Deixa-os l. Eu vivo no meu
tempo. Se, por melindre de virtude e medo da
maledicencia, queres cingir-te ao oramento do meu
ordenado, ento regressemos aos dias magros de
Catumby, rotula, cassa, ao brim pardo, carne
seeca e s relaes midas. Remergulhemos no
obscuro. Fao-te subir tona, dou-te conforto, luxo,
posio e falas, tens escrupulos. E eu?
Livia
Tu s homem.
Mamede
E tu s mulher. Afinal, em que differe a honra
do homem da honra da mulher? Em que? A honra
uma s e a mesma para o homem e para a mulher:
um instincto de defesa moral. Para vocs a honra
consiste no que ha de mais material na vida. Isso
no honra! Ser, quando muito, pudor. Honra
altivez, audcia, iniciativa, instincto heroico.
Honrada no a mulher que se mette em casa, a
esburgar os dedos barrella, a tisnar-se ao fogo, a
serzir trapos, a catar migalhas para comer. Isso ser
parvoice, covardia, inercia, honra, no! Ns
entramos na vida armados para a lucta: vence-se
como se pde, peito a peito ou de tocaia. A
questo vencer.
44 O DINHEIRO
Honra! Honra! Quem daria pela nossa virtude se
nos mettessemos em uma mansarda, a po e a agua,
amando-nos como: Romeu e Julieta? O amor
moderno um pacto entre duas almas, uma
combinao de duas foras: concertadas, vencem;
isoladas, perdem-se. Sabes o que eu valho, no
tenho segredos para ti. Que te peo? que me
auxilies. Custa? Preciso de ti, como precisas de
mim, eis o caso.
Livia
Queres, ento, jogar commigo?
Mamede
Jogar comtigo?! Se assim tu tambm jogas
commigo, quando precisas.
Livia
No, Juca... Eu no quero cahir como a Alice,
que no tem hoje uma amiga.
Mamede
O que ella no tem um vestido decente, sabes?
Viram-lhe as costas, no pelo que ella faz, seno
pelo que veste. Se a sociedade fosse generosa
amparava-a, agora que a v decahida; mas no,
despreza-a, evita-a. Achasse ella quem lhe
reformasse o guarda-vestidos e lhe resgatasse as
joias e verias a sociedade abrir-lhe os braos,
recebel-a, restituindo-lhe, com gio, a considerao
THEATRO 45
que lhe retirou. No conheces o mundo. Foste
criada no fundo de um armarinho.
Livia
Entre gente honrada.
Mamede
antiga. Vens ainda com a moral do tempo dos
Affonsinhos. D. Joo de Castro dava, por cauo de
divida, um fio de barba e os credores aceitavam o
pello com mais confiana do que um banco aceita
hoje uma letra com endosso de boas firmas. O
Braulio, por exemplo, tem barba para encher um
travesseiro; manda-o a um banco com aquillo e
duvido que elle arranje um nickel. Uma trana de
bom cabello pode ainda dar alguma coisa, mas
barba... nem a do mais pintado.
Livia
Ento se um homem atrever-se a propor-me
uma infamia, acenando-me com um lucro...
Mamede
Quando comes um fruto engoles o caroo? no.
Pois assim. (Abraando-a pela cintura
carinhosamente:) Todos ns temos na vida uma
hora de felicidade, se a deixamos fugir, adeus!
Aproveitemos a mono. (Livia sorri.) De que ris?
46 O DINHEIRO
Livia
De nada; ta.
Venancia apparece no jardim.
SCENA XV
Os mesmos e VENANCIA Venancia,
porta:
At que emfim!
Mamede, porta:
Ainda mais esta!
Venancia, entrando:
Olhem que para falar com vocs s mesmo
assim de surpreza. Bater tempo perdido. O
copeiro est de lngua passada e aquella certeza:
Sahiram... (Trocam-se beijos.)
Livia
No tem razo. Nunca nos negamos senhora.
Venancia
Pois sim. S na semana passada, duas vezes.
Numa dellas voc nem teve tempo de esconder-se:
Estava l em cima, de peignoir, e quando me viu
metteu-se p'ra dentro. A mim que vocs no
embaam.
Livia
E a senhora tem certeza de que era eu ?
THEATRO 47
Venancia
Ora essa! Ento eu no te conheo ? Emfim...
Como vo vocs? (Sentando-se:) Ui! Eu sei que sou
cacete, mas preciso. Mamede, porque que voc
no pede ao Prefeito para mandar asphaltar esta
rua?
Mamede
J pensei nisso...
Venancia
Voc, to cheio de luxos, morando numa rua
que s buracos... E como vamos?
Livia
Bem. E a senhora?
Venancia
Eu, rolando por aqui. uma falta de ar...
Mamede
D'isso queixam-se todos. Que quer? Todo o ar
da cidade pouco para os pneumaticos dos
automoveis.
Venancia
J vem voc com as graas. E que tempo! um
chover que no acaba mais. Nem parece que
estamos na primavera.
48 O DINHEIRO
Mamede
Pois estamos. A prova a senhora.
Venancia, a Livia:
Voc agora s Avenida, theatros, corso... Ba
vida! Aproveita. Faz voc muito bem. Eu que no
tenho tempo para essas coisas. Ando agora
empenhada numa obra de muita caridade: um asylo
para idiotas.
Mamede
Deve ser grande como uma cidade.
Venancia
Grande... S se voc entrar com o dinheiro.
Arranjei uma casinha, l para os lados da Tijuca e j
tenho quatro coitadinhos.
Mamede
Amostras...
Venancia
No caoe, homem. Tenho recebido um rr de
pedidos, mas onde vou eu metter esse mundo? Isso
vai devagar. Nunca pensei que houvesse tanto idiota
nesta cidade! Ando agora a passar uma conferencia.
Tenho promessa de uma partida de football e quero
vr se consigo realisar um five o clock na Quinta.
Mamede
Isso! E ponha-lhe uma danasinha por cima.
THEATRO 49
Venancia
Mas no imaginas como ando estrompada! E os
aborrecimentos: respostas atravessadas, carrancas...
S mesmo muita religio.
Livia
verdade.
Venancia
Fui hontem casa da Chiquinha Dores. Homem,
achei aquillo assim no sei como... Parece que as
coisas por l no esto correndo muito para que
digamos. Tambm, com a vida que aquella gente
leva: o marido por um lado, a mulher por outro e a
pequena com aquelle casamento, que no ata nem
desata... Emfim, cada um sabe de si...
Mamede
E a Policia de todos.
Venancia
Deus, homem.. Deixe-se de heresias. Isto est
uma vergonha, s mesmo um novo diluvio.
Livia
Deus nos livre!
Mamede
Para lavar a terra s mesmo um diluvio, e desta
vez com sabo.
50 O DINHEIRO
Venancia
Isto est muito sujo!
Mamede, ironico:
Um nojo!
Livia
Nem tanto...
Venancia
Eu, que ando por ahi, que sei. Quem viu o Rio
e o v hoje pasma. Nem sei. Emfim... ha de ser o
que Deus quizer.
Mamede vai e vem do salo ao jardim,
visivelmente contrariado. Livia boceja.
Livia
Que calor!
Venancia
Um forno! chuva que vem por ahi. (Outro
tom:) Olha, deixo-te vinte bilhetes da conferencia.
Se levar a effeito o ch has de ter uma mesa. Tem
pacincia, No s o pagode, preciso pensar
tambm um pouco nos infelizes. Agora uma coisa:
Onde , por aqui, a casa da Elvira Macedo?
verdade o que dizem delia?
Livia
No sei.
Venancia
Pois falam delia com um sujeito... e que o
THEATRO 51
marido finge que no sabe, at sahe com os dois em
automovel. No nesta rua que ella mora?
Livia
Sim, no 27.
Venancia
Estar em casa?
Livia
Naturalmente.
Venancia
Pois olhe, ser um milagre; agora nao sahe da
rua, mais a filha. Que pequena enjoada, com
aquelles dentes de peixe, as mos sempre suadas,
gingando que nem surro de tropeiro. Nunca vi! Ha
estomagos para tudo. Uma mulher quasi av, sem
dentes, toda pintada. Emfim... Estou nesta lida
desde as oito da manhan. Almocei em casa do
conselheiro. (Com um momo:) Que almoo! (Outro
tom) Voc j soube do caso da Quinota ?
Livia
verdade.
Venancia
para voc vr. Castigo! A peior lingua do Rio
de Janeiro. Honesta era ella s. Est ahi. Emfim...
Deus que me assista com sua graa e me
mantenha sempre assim,
52 O DINHElRO
Mamede
Trabalhando para os idiotas. Ha de ter o
premio.
Venancia
Pois sim! Conheo o mundo. Dia do beneficio,
vespera da ingratido. No de hoje que ando
mettida nisso, no tempo do Imprio ajudei muito a
princesa. Era moa...
Mamede
Teve fama!
Venancia
No diga brincando, que tive mesmo. Ento
ningum me virava a cara. Eesta em que eu me
mettia era aquella certeza. Hoje! (outro tom) Voc,
Mamede, que me podia arranjar um auxilio do
governo...
Mamede
Eu? Coitado de mim!
Venancia
Coitado!... E comprando terrenos numa toada.
Pensa que no leio? (Levanta-se.) Tenho ainda de ir
Copacabana. (A Livia) Estamos ento
combinadas, no ? Se eu arranjar o ch...
Livia
Pois sim.
THEATRO 53
Venancia
27, no? a casa da Elvira...
Livia
Sim, 27.
Venancia
No v o sujeito estar l. No gosto de
encontrar essa gente. (Beija Livia.) Adeusinho.
Adeus, Mamede. Voc est hoje muito enjoado...
Que isto?
Mamede
Politica.
Venancia
Pois sim. Olha l o meu pedido. ( porta.) A
chuva no tarda. Adeusinho.
Livia
Adeus, D. Venancia.
Venancia desapparece no jardim. Mamede faz um gesto de
allivio. Livia contem o riso. Venancia reapparece.
Venancia
Livia, minha filha, v -se eu no deixei por ahi
um pacotinho...
Livia
Um pacotinho...?
Mamede e Livia procuram pelos moveis.
Mamede, achando um pacotinho em uma cadeira:
Ser isto?
54 O DINHEIRO
Venancia
. Obrigada. So os bilhetes da conferencia. Adeus,
Mamede. J est chuviscando... 27, no?
Lvia
Sim.
Venancia
Adeusinho. (Desapparece.)
SCENA XVI
MAMEDE e LVIA
Mamede, ironico:
Isso que gente, hein!?
Livia
Que havia eu de fazer? No viste como ella foi
entrando?
Mamede, entre dentes:
Uma sarna! (Furioso:) E que intimidade: Mamede
p'ra c, Mamede p'ra l.
Livia
uma pobre velha, coitada!
Mamede
Ah! At compromette. Asylo de idiotas... Idiotas so
os que cahem com o cobre. Tola no ella.
THEATRO 55
Livia
Ah! tambm, Juca... isso impertinencia de mais.
Mamede
No quero!
Livia
P'ra voc quem no tem dinheiro cachorro.
Mamede, depois duma pausa:
Vamos ao que serve. Desfranze a cara e ouve.
Livia
Fala.
Mamede
Que dizia eu quando chegou essa andadora?
Livia
J me no lembra.
Mamede
Falavamos do jantar.
SCENA XVII
Os mesmos e o copeiro
O copeiro entra e pe-se a preparar a mesinha para o ch.
Mamede passeia preoccupado. Livia ouve-o com surpresa.
Mamede
Esse negocio... Tambm o Honorio sempre
56 O DINHEIRO
o homem da ultima hora. Devia ter-me prevenido
mais cedo. O resultado que sou obrigado a faltar
aqui para no deixar o outro l em baixo minha
espera. Tu lhe dirs que eu j estava compromettido
quando recebi o seu telegramma. (Outro tom:) um
homem interessante, has de gostar delle. Fino, ba
prosa. Farei o possvel para estar aqui antes das dez.
(O copeiro sahe.)
SCENA XVIII
MAMEDE e LVIA
Livia
Mas que lenga lenga esta?
Mamede
Pois no combinamos? Assim o copeiro fica
sabendo que no janto em casa porque tenho
negocio importante na cidade.
Livia
Olha l, Mamede. Pensa bem...
Mamede
Deixa-te de historias. A nossa fortuna depende da
noite de hoje, se a deixamos escapar...
(Amotinando-a:) Olhas-me com uns olhos...
Livia, timidamente:
Tenho medo...
THEATRO 57
Mamede
Medo? Medo de que?
Livia
Da boca do mundo.
Mamede
Ora! A boca do mundo como a de certos ces: ladra, mas
no morde e, atirando-se-lhe um osso, lambe-nos os ps:
Livia
E o meu nome?
Mamede
Respondo por elle. (Sorrindo:) Que mais? (Insinuante:)
Sabes quando ganhamos, nesse negocio? nunca menos de
quinhentos contas.
Livia encara-o maravilhada, como sob o
dominio de uma suggesto.
Livia
E depende delle?
Mamede
Exclusivamente.
Livia
Mas eu no entendo dessas coisas. Nunca me metti nisso,
sou at capaz de atrapalhar tudo.
58 O DINHEIRO
Mamede
No te preoccupes: est tudo feito.
(Acariciando-a:) A questo agora pr-lhe o freio,
entendes ? (Livia faz um gesto de vexame. Um
momento.) No queres, melhor. Fico. O americano
que se arranje.
Livia
Eu disse alguma coisa? Tenho vergonha,
natural. Um homem que nunca vi.
Mamede
um gentleman! Sabes como sou exigente, no
me abro assim com qualquer. Se no o conhecesse,
como conheo, est visto que no o convidava para a
minha casa. Homem srio, casado, grande prestigio
na finana. Has de vr. Se no fosse o compromisso
com o americano... Tudo foi o telegramma ter-me
chegado tarde. Dei a minha palavra, o homem
espera-me. No nada, no nada, so uns trezentos
contos que nos entram em casa.
Passeia ao longo da sala cabisbaixo, de mos
nos bolsos. Livia acompanha-o com um
olhar ingenuo.
Livia
Pois vai. (Mamede estaca e encara-a.)
Mamede
E tu?
THEATRO 59
Livia, com um sorriso de resignao:
Que hei de fazer ?
SCENA XIX
Os mesmos e o copeiro
O copeiro entra trazendo a bandeja com o servio de ch, uma
garrafa de whisky, copo. Deixa sobre a mesa e retira-se.
Mamede serve-se de whisky. Livia serve-se de ch, toma
um biscouto e detem-se como abstrahida.
SCENA XX
MAMEDE e LVIA
Mamede, vendo Livia absorta:
Ests sonhando?
Livia
Sonhando, hein!? Olha, no venhas depois com
as tuas scenas de cime. Eu no quero
aborrecimentos.
Mamede, acariciando-a:,
Tola...
Bebe, levanta-se, consulta o relogio e faz um
gesto de contrariedade.
60 O DINHEIRO
SCENA XXI
Os mesmos e o copeiro
O copeiro entra e mantem-se distancia, espera.
Mamede
Seis horas. Vou pedir um auto. E tu? No te vais
vestir? Pe o vestido de rendas, fica-te muito bem.
Livia conserva-se immovel, o olhar perdido. Mamede vai
saleta. O copeiro desce e pe-se a arrumar a bandeja.
O copeiro, a Livia, a meia vos, com um sorriso servil:
Patroa, no se esquea do meu pedido...
Livia, levanta a cabea e encara o copeiro:
Hein ?
Mamede, ao telephone:
Al!
O copeiro
Aquelle lugarsinho para meu pai...
Livia
Ah! sim... No esqueo.
Mamede
8576, central.
Livia levanta-se, vai e-ncostar-se porta, olhando o jardim j
em sombra. a garage Paris ? Quem fala o Dr.
Mamede... Mande-me um auto...
PANNO
SEGUNDO ACTO
O mesmo scenario do primeiro acto, noite, com as
lmpadas accesas.
SCENA PRIMEIRA
LVIA e EVA
Livia, trajando rico vestido branco, de rendas, sentada no sof,
em attitude de abandono, folheia distrahidamente uma
revista. A physionomia demuda-se-lhe de instante a
instante, ora carregando-se de colera, ora abrindo-se em
sorriso triste. Arfa-lhe o collo angustiado. Um momento.
Eva entra pela esquerda, alviareira.
Eva
Eu no disse que a pulseira estava l em cima?
Livia
Onde?
Eva
No cofre... e bem vista, na caixa do soutoir.
Nem sei como no se quebrou.
62 O DINHEIRO
Livia
E o leque?
Eva
Tambm l est, na gavetinha das luvas. A
senhora estava nervosa. Tudo ali assim, mo,
debaixo dos olhos, e a gente a mexer, a virar. Eu
tambm no sei que tinha... assim. Quando uma
pessoa v outra atordoada perde logo a cabea.
Pois olhe, eu no me atrapalho com duas razoes.
Livia
... No sei que tenho hoje...
Eva
Ora... que tem... aborreceu-se. (Ajustando-lhe a
pulseira:) Olhe, minha senhora, isso de homens o
melhor deixal-os em liberdade. A gente que se
amotina: enfesa-se, emmagrece, perde as suas noites
de somno. A mim tanto se me d como se me deu.
Encanzinar-me, eu? no v! Deixar de comer, de
dormir, gastar lagrimas com quem as no merece...
Pois sim! C por mim, se fosse casada, meu marido
podia fazer l fora o que bem quizesse, comtanto que
no me faltasse com o necessrio em casa. No falo do
patro. O patro tem l os seus interesses, homem de
negcios, precisa estar testa. Que essas coisas, minha
senhora, se as no vigia de perto o olho do dono vose
que nem fumo.
THEATRO 63
Livia
Que saia! no o prendo. Sahe todas as noites,
entra s tantas, nunca o recriminei. (Revoltada:)
Mas hoje! Pois eu hei de jantar a ss com um
homem que no conheo?! Se tinha de sahir porque
o convidou?
Eva
Mas a senhora no disse que elle tem negocios
l era baixo?
Livia
Todas as noites...?
Eva
Pois ento? Quanto mais se a senhora fosse
casada com um medico. L o Dr. Pedroso e eu
entrei poucos dias depois do casamento...
(Risonha:) a casa ainda cheirava a flores de
laranjeiraaquillo era todo o santo dia na rua. Mal
jantava, tornava para os doentes. s vezes passava
as noites fora. E a pobre menina sositiha. To linda!
Chorava de cortar o corao. Eu, de pena, deitavame
no tapete, aos ps da cama, para fazer-lhe
companhia. Quando os deixei porque partiram
para a Europa a menina era outra. Se o marido
sahia noite, a chamado, ora! ia para a sala tocar
piano, recebia visitas e, mal punha a cabea no
travesseiro, ferrava que era um gosto. Pois assim:
corao larga! E as que se casam com officiaes de
marinha?
64 O DINHEIRO
essas, coitadas! ficam que nem viuvas... E no vivem?
Deixe l o patro. Olhe, bom elle, isso .
Livia
Ah! sim...
Eva
o que a senhora imagina. Ainda bem no pensou j
aqui est o que quer, e do melhor! Fossem todos assim...
Que elle ha cada um...! Deixe-o, est a fazer medrar a
casa. Ns, mulheres, porque no entendemos; a nossa
vida outra. Esto dois homens numa conversa toa.
Oua: dinheiro que farte! negociatas ou ento
reviravoltas no paiz. Num baile, como j vi, mette-se um
grupo delles cochichando a um canto. Vo-se muito
risonhos e, no dia seguinte, est a cidade em alvoroo,
tropa na rua, gente a fugir, um horror! Elles l se
entendem. Deixal-os: (Outro tom:) Quer mais alguma
coisa? Porque no pe a charpa? Olhe que est frio e a
senhora, com este vestido leve... Quer?
No. Livia
Ento s? Eva
S. Livia
THEATRO 65
Eva
Ento vou vr aquillo l em cima, que ficou
tudo aberto.
Lvia
Vai.
Levantasse arrebatadamente, atravessa o
salo e entra direita.
SCENA II
EVA e o copeiro
0 copeiro apparece ao fundo e, descobrindo Eva, faz-lhe
mysteriosamente um aceno interrogativo. Eva responde
com um gesto dando a entender que Livia est esquerda.
Olham-se demoradamente. O copeiro d de hombros com
um sorriso velhaco. Em conciliabulo:
Eva, com um momo:
Hum! E tem chorado, rapaz...!
O copeiro
Chorado ?!
Eva
Desde que subiu para vestir-se. E enfesada,
atirando tudo, maldizendo da sorte: Que isto no
vida. Que melhor lanal-a, duma vez, rua. Sei
l. E quem o cujo?
O copeiro
No sei.
66 O DINHEIRO
Eva
a primeira vez que vem c jantar?
O copeiro
Parece.
Eva
E o outro... (Gesto de quem se pe a andar.
Riem.)
O copeiro
Tem l a outra.
Eva
A madama?
O copeiro
Ento...!
Eva
E que tal? (O copeiro arregala os olhos e
chuchurreia um beijo nos dedos apinhados.)
ento l que elle passa as noites? E a pobre de
Christo aqui a lastimal-o: (Imitando:) Coitado do
Juc! at esta hora... Quando chove, isso ento
um desespero, fica sem socego, a cirandar pelo
quarto escutando1 o vento. Uma mulher moa,
bonita... Olha que um corpo, rapaz! Parece uma
estatua. Por estas e outras que ha por ahi tanto
drama. Eu sempre quero vr o typo. Isso, com
certeza, algum figuro da alta.
THEATRO 67
O copeiro
Nunca menos de banqueiro.
Eva
Podem, fazem muito bem. Olha,
Vou l para cima pr ordem naquillo que
est numa bara funda dos meus peccados. Elles
fazem-nas e somos ns que as pagamos. Quando
forem para a mesa chama-me. Quero s vr-lhe as
fuas. At loguinho! (Sahida falsa:) Olha, lembra-te
de mim com algum bocado. O cosinheiro
deu para fazer-me pirraas, o parvo.
O copeiro, lamcha:
No te importes: tens-me a mim.
Eva, pasmada:
Olhem o mono... Ests a pegar o mal da casa ?
Lava-te em ouro e apparece, ouviste ? (Entra
esquerda, a rir.)
SCENA III
O copeiro e LVIA
O copeiro pe em ordem as revistas espalhadas na mesa. Lvia
apparece porta da esquerda, alta. Um momento.
Livia
Accendeste o jardim?
O copeiro
Sim, senhora. A patroa no quer vr a sala?
avisa-me.
68 O DINHEIRO
Livia
Vou j. Olha aquellas flores.
Entra esquerda, baixa. O copeiro d a ultima de mo sala.
Um momento. Buzina de automvel. Som de campainha
electrica no interior. O copeiro sahe apressado para o
jardim. Um momento.
SCENA IV
HONORIO, LUPERCIO e o copeiro
Honorio e Lupercio, rigorosamente trajados, atravessam o
jardim precedidos do copeiro, que os faz entrar na saleta,
retirando-se em seguida. Depois de um instante Honorio e
Lupercio sahem da saleta, onde deixaram os chapus e os
pardessus e entram no salo examinando-o attentamente.
SCENA V
HONORIO e LUPERCIO
Lupercio, esfregando as mos:
Est frio, hein?
Honorio
Humido. O nosso frio d-me sempre a sensao
aborrecida de roupa molhada. Sinto-me mal.
(Sentando-se:) Mas que te parece esta historia ?
Lupercio
Que historia?
Honorio
Isso do marido. (Lupercio d de hombros)
THEATRO 69
Consultando o relogio:) Sete horas. (Sorrindo:)
st-me cheirando a romance.
Lupercio
Ou a fita de cinema. Quem sabe l... Talvez
jogo, algum pato que lhe cahiu nas unhas e que est
sendo depennado devagar. D'ahi... (Encaram-se
com um olhar de intelligencia, e sorriem.) Ficas?
Honorio
Depende. E tu?
Lupercio
Eu ? piro-me. No estou no programrna e no
quero ser importuno aos... tres.
Honorio
Nada de juizos temerrios. O homem pde ter l
as suas razes, talvez at virtuosas. Tudo possivel.
Lupercio
Sim, isso .
Honorio
J agora... J'y suis, j'y reste. (Relanceando um
olhar pelo salo.) Tem ar...
Lupercio
Sim, mas frio. Pede sobretudo o cognac.
70 O DINHEIRO
Honorio, com um gesto allusivo a Livia:
Conheces ?
Lupercio
De vista. (Offerece cigarros.)
Honorio
No. Ests fumando demais.
Lupercio
Que hei de fazer? (Accende um cigarro.) Encho
assim o vasio das horas. O fumo, como a poesia,
occupa sem tomar espao. Demais, meu amigo, sou,
tanto quanto possivel, fiel aos vcios que me tm
acompanhado na vida. De muitos j me apartei, com
saudade de uns, por compostura; de outros, por
hygiene. Restam-me apenas dois e peo a Deus que
m'os conserve at a minha ultima hora: o amor e o
cigarro.
Honorio
Ambos ephemeros.
Lupercio
E venenosos, como todos os parasos artificiaes.
(Consultando o relgio:) Oh! diabo... Vou deixarte.
Ests em casa e eu tenho ainda uns kilometros de
charneca.
Honorio
Onde vais?
THEATRO 71
Lupercio
minha aventura: jantar com o Maia.
Honorio
De casaca?!
Lupercio
Hoje festa. Madame faz annos. Mais um
recuo. No armo passado bebemos aos seus 36,
natural que, este anno, bebamos aos seus trinta e
cinco. A Chronologia, com relao s mulheres,
imita a do paganismo, com1 relao a Christo
que diminua medida que avanava. (Outro tom:)
Vou encontrar a Eugenia, que est um esplendor.
Reviou com o casamento. Mas (caso curioso!)
transformou-se...! Est uma matrona, vivendo
exclusivamente para o marido, que um insipido
guarda-livros, e para o filho, que um cretino de
oito kilos balordos.
Honorio
Esqueceu-te...?
Lupercio
Evita-me, o que mais. Uma vez, s porque me
sentei perto delia e, pelo habito, meus ps
procuraram os seus, levantou-se de repello,
lanando-me uns olhos ferozes. Aquelles olhos que
eu tanta vez abotoei com beijos.
72 O DINHEIRO
Honorio
Ests lyrico.
Lupercio
Mulheres... o diabo que as entenda. Quem diria
que uma creatura como aquella, que promettia
tanto, havia de degenerar em virtude domestica.
Honorio
Mysterio. (Movimento de atteno. Baixo:)
Ser ella?!
Eva apparece ao fundo, lana um rapido olhar scena e
disfara procurando alguma coisa sobre a mesa. Retira-se com
uma revista.
Lupercio, baixo :
Patrulha em reconhecimento. No tarda ahi a
fora.
Honorio
Para taes ataques estou sempre prompto.
Lupercio, com malcia:
Acredito.
SCENA VI
Os mesmos e LVIA
Livia apparece na sala, timida. Os dois homens
inclinam-se respeitosamente.
Livia, em duvida:
O snr. Dr. Honorio...?
THBATRO 73
Honorio, adiantando-se:
Criado de V. Ex.a (Livia estende-lhe a mo, que
elle beija. Apresentando:) Meu amigo Lupercio
Stenio. (Mesmo jogo. Livia convida-os a sentaremse.
Um momento:) Mamede no est?
Livia
Sahiu ha pouco. O seu telegramma s lhe foi
entregue s cinco-horas.
Honorio
Mandei-o passar s duas.
Livia
Pois estvamos tomando ch quando o
recebemos. Mamede ficou contrariadissimo, no
imagina! Mas compromettera-se a jantar na cidade
com um americano e, sem tempo de prevenil-o,
pediu-me que o desculpasse.
Honorio
A culpa minha, minha senhora, que me fiei no
telegrapho. At com V. Ex.a fui de uma incorreco
imperdoavel... No se invade assim uma casa...
Lupercio
E pela sala de jantar. de barbaro. (Sorriem.)
74 O DINHEIRO
Livia
Oh! no... Os amigos so sempre bemvindos.
Meu marido, ultimamente, pouco pra em casa:
tanta coisa negocios, politica... para um lado,
para outroconferncias, reunies, assemblas,
que sei eu!
Honorio
Os negocios tomam-nos a vida. As senhoras
que no comprehendem essas coisas, nem as
perdoam.
Livia
Eu, no. J estou habituada. (Um momento.)
Honorio
V. Ex.a no se lembra de mim...
Livia
Tenho uma idia vaga de o ter visto...
Honorio
No Club dos Diarios, em uma matine infantil.
Livia
verdade! O senhor levava uma linda criana
loura...
Honorio
O meu caula. (Um momento.)
THEATRO 75
Livia, a Lupercio:
O senhor que, se no me engano, j esteve
aqui...
Lupercio
No, minha senhora. a primeira vez que tenho
o prazer e a honra de falar a V. Ex.a que, alis,
conhecia muito de nome, pelas justas referencias
que lhe so feitas na sociedade elegante.
Livia, insistindo:
O senhor no esteve aqui no anniversario de
Mamede ?
Lupercio
No, minha senhora.
Livia
Pois eu seria capaz de jurar...
Honorio, consultando o relgio, a Lupercio:
Vamos ?
Livia
Como?! Retirarem-se? Porque?
Honorio
V. Ex...
Livia
No... Esperava-os e, j agora, no os deixarei
sahir...
76 O DINHEIRO
Honorio, inclinando-se:
Bondade, minha senhora...
Lupercio
Eu, infelizmente, no me posso submetter
doce imposio. Tenho de retirar-me. Vim apenas
acompanhar Honorio, dizer um adeus a Mamede...
Esperam-me.
SCENA VII
Os mesmos e o copelro
O copeiro entra com um servio de aperitivos
O copeiro, a Honorio:
Frances ou italiano?
Livia, a Lupercio:
Ento no janta comnosco?
Honorio, offerecendo vermouth a Lvia:
Minha senhora...
Livia
Obrigada. No bebo.
Honorio, ao copeiro:
Frances.
Lupercio
No posso, minha senhora. (Ao copeiro:)
Uma gotta apenas. Italiano.
THEATRO 77
Li vi a
Quem sabe se prefere cognao?
Lupercio
No, senhora. (Prova o vermouth:) Tenho vim jantar
d'anniversario. A senhora do Emygdio Maia. V. Ex.a
deve conhecel-o. muito do Mamede.
Livia
No um que mora no Leme?
Lupercio
No, senhora: Humayt.
Honorio
V. Ex.a refere-se ao Maia Cerejo, casado com uma
senhora loura...
Lupercio, surprehendido:
Loura!
Honorio
Sim, voltou loura da Europa.
Lupercio
Ah! bem...
Livia
Muito interessante...
0 copeiro retira-se.
78 O DINHEIRO
SCENA VIII
Os mesmos, menos o eopelro
Lupercio
Se me d licena.,.
Livia
Emfim... se est compromettido...
Lupercio
At a fazer um brinde, minha senhora.
(Sorrisos. Vai saleta.)
Honorio
Sempre estroina.
Livia
Parece muito alegre.
Honorio
Faz da vida uma fara.
Livia
Casado ?
Honorio, com affectada gravidade:
No, senhora. (Sorri maliciosamente.) Tem
habeas-corpus, diz elle.
Livia
Ah!
Lupercio desce de pardessus, com a cartola e a bengala.
THEATRO 79
Lupercio, a Livia:
Retiro-me desolado.
Livia
Pois quando quizer...
Lupercio
Uma visita a Mamede. (Beija-lhe a mo. A
Honorio:) Queres alguma coisa?
Honorio
Manda-me o automovel cedo.
Lupercio
Ah! sim... logo. (Cumprimentos. Os dois
acompanham-no at a porta:) Sem mais
incommodo...
SCENA IX
HONORIO e LVIA
Honorio
V. Ex.a toca?
Livia
Pouco. (Referindo-se ao piano:) um Angelus.
Hoje em dia no vale a pena aprender... (Buzina de
automovel distanciando-se:) Com os pianos
mechanicos, que nos do um repertorio de escolha,
com a interpretao dos mais notaveis
80 O DINHEIRO
virtuosos, fazemos tristissima figura com os nossos
pois-pourris...
Honorio
Perdoe-me V. Ex.a, mas discordo. Prefiro um
artista mediocre mais apurada machina de musica.
S o diamante pule o diamante. Para interpretar e
transmittir o sentimento de uma alma, s outra
alma. Nunca um piano mechanico nos dar a suave
melancolia de Chopin. O phonographo, por
exemplo, detm a palavra, mas no lhe conserva a
expresso: a espiritualidade evola-se. Musica
poesia em sons, pede interprete e no manivella.
Detesto taes reservatorios. Lembram-me
sarcophagos, encerrando despojos, nada mais: sons
mortos, sem alma.
Livia
Mas no isolamento distrabem. Quando estou s,
o que me acontece quasi todas as noites...
Honorio
Como?
Livia
Mamede sahe sempre depois do jantar... quando
vem jantar... (Um momento.)
Honorio
Que quer, minha senhora? os homens de neTHEATRO
8l
gocio devem estar sempre attentos. A Fortuna
amante voluvel e, se a perdemos de vista...
Livia
Amante, diz bem...
Honorio
A unica da qual no tm ciume as senhoras.
Livia
Della propriamente, no. (Sorrindo:) Mas a
Fortuna tem sequito e, no raro, os homens deixamse
seduzir por alguma das suas damas...
Honorio
Trahindo duas vezes a Fortuna...
Livia
No, essa indifferente, at protege, facilita o
amor; mas a esposa...
Honorio
Como nos julga com injustia! As senhoras
vem-nos sempre atravez do cime, lente que
augmenta e desfigura. Um simples olhar, sem
inteno, rapido e vago, basta para provocar
suspeitas.
Livia, sorrindo:
Os senhores defendem-se...
82 O DINHEIRO
Honorio, mesmo jogo:
Quando nos accusam.
Livia
Aposto que a sua senhora...?
Honorio
No. A prova que vivemos longe um do
outro.
Livia, surprehendida:
No est aqui?!
Honorio
Est na Suissa, acompanhando os filhos.
Livia
Quantos ?
Honorio
Quatro: tres rapazes e uma menina.
Livia
Com o lourinho?
Honorio
Sim, senhora.
Livia
Desse que o senhor deve ter mais saudade.
Honorio
De todos, igualmente. Esse, emfim, por ser o
THEATRO 83
menorsinho, parece estar mais agarrado ao corao.
Livia
E o senhor aqui...
Honorio
Sempre s, ou... na companhia de um sonho...
Livia
E no vai vl-os?
Honorio
Todos os annos. Passo com elles um mez ou
dois e torno para os negocios. Sou o dinheiro,
minha senhora; preciso circular, agitar-me. Capital
parado, capital morto.
Livia, num suspiro:
O dinheiro! (Um momento.)
Honorio
No tem filhos? (Aceno negativo de Livia.) Um
filho necessario. a demonstrao viva da
perfeita alliana conjugai. O amor pde traduzir-se
em palavras, em actos fugitivos, mas s se
manifesta realmente quando uma vida o reflecte. O
filho como o ponto de intercesso de duas almas.
Garanto a V. Ex.a que se aqui houvesse um
pequerrucho, Mamede...
84
O DINHEIRO
Livia
Qual! Meu marido um indifferente.
Honorio
Como indifferente?! Adora V. Ex.!
Livia
Acha?
Honorio
Affirmo!
Livia
Os senhores defendem-se uns aos outros. a
tactica da reciprocidade. Fazem bem.
Honorio, sorrindo:
o nosso dever. O contrario seria traio.
Livia
Confessa...?
Honorio
Como confesso? O que? (Sorrindo:) V. Ex.a armame
ciladas... Mamede um santo!
Livia
Que nunca est no seu altar.
Honorio
que anda a fazer milagres l fora, para
THKATKO 85
gloria da sua igreja. (Um momento.) No seja
injusta. Olhos lindos, como os de V. Ex.a, devem
vr tudo claro e suave. Receia adversarias?
Livia
Porque no?
Honorio
Joven, formosa, com todos os encantos de um
espirito brilhante... Oh! minha senhora, por quem ,
faa justia a si e a seu marido...
Livia
muito amavel.
Honorio
Prezo-me de ser homem de gosto e sincero.
(Outro tom:) O mal da mulher o idealismo: quer o
amor sonho, no como elle e deve ser na vida.
Espera-o noite, na luz do luar, ao som do canto do
rouxinol e das endechas da serenata. Quer o amor
aventuroso, escalando muralhas, subindo por
escadas de seda, affrontando perigos mortaes, com
o punhal cinta e o bandolim ilharga.
Romantismo. Passou. O amor, hoje em dia...
Livia
O amor invariavel: e ha de ser sempre o
mesmo amor. Que importa o combustivel ? o lume
o mesmo: brilha e queima.
86 O DINHEIRO
Honorio
Sim, de accordo. Mas cada combustivel tem o
seu tempo. Hoje o fio... de platina. At das igrejas
vo desapparecendo a cera e o oleo substitudos
pela electricidade. Julieta hoje seria ridicula...
Livia
Ridicula!
Honorio
Sim, minha senhora. E Romeu muito mais.
Livia
cruel com o amor. Deve ter tido muitas
desilluses...
Honorio
Muitas! (Encarando-a com inteno) Hoje
mesmo... quem sabe?! E a vida isto: um debater
na illuso aferrado Esperana. A mulher... tudo
nella sonho, puro sonho. Se eu falasse a linguagem
lmpida e franca da verdade, sem atavios lyricos,
seria tomado por atrevido. Entretanto, se me
aproximasse mui de passo, como Zanetto,
acompanhando guitarra um canto mavioso... quem
sabe?! A poesia um philtro magico; a musica
magnetisa e o amor deriva arrastado no som como a
flor no fio da corrente.
THEATRO 87
Livia, depois dum momento:
Nem sempre...
Honorio
Oh! sempre! E porque o que se rebua na
estrophe, que o mesmo que se murmura em
palavras communs, no melindra e a clara verdade
offende? Porque?
Livia
Faz a pergunta a mim?
Honorio
Se permitte...
Livia
Porque... (Um momento. Sorrindo:) No sei.
Honorio
Porque a alma da mulher feita de sonho, e
quer sonho. A Poesia que a domina.
Livia
Poesia... Diga antes: ternura. A mulher... vencese
com o carinho.
Honorio
De accordo. (Outro tom:) Comprehendo que
uma mulher isolada, preterida por um interesse
qualquer, revolte-se: primeiro contra o abandono,
depois, por despeito, contra a preterio...
88 O DINHEIRO
Livia
E no natural e justo?
Honorio
Sim, .
Livia
Dizem que a mulher um enygma.
Honorio
Que Edipo no teria resolvido se a Esphynge
lh'o houvesse proposto.
Livia
Pois engana-se. A alma da mulher reflecte-selhe
nos olhos. Tudo est em saber vl-a.
Honorio
Entretanto ningum se gaba de a ter visto.
Livia
Falou em abandono, em preterio por interesse...
E quando esse interesse outra mulher?
Honorio
Ahi vem o ciume...
Livia
a claridade do amor...
THEATRO 89
Honorio
Claridade? diga antes: fumo. E a senhora
ciumenta ?
Livia
Sou mulher.
Honorio
No basta. Para ter ciume necessario que tenha
motivos.
Livia
E tenho-os.
Honorio
Na imaginao.
Livia
Em factos. (Encaram-se.) O senhor tambm
homem de negocios.
Honorio
Infelizmente! Quizera ser poeta.
Livia
Tm-nos e mais importantes do que os do meu
marido. (Movimento modesto de Honorio.)
Entretanto, noite... verdade que est s...
Honorio
Por isso mesmo encerro-me: a casa recorda-me
a familia, refugio-me na saudade. Concentrar-me-ia
no amor, se o tivesse. Sorri? No
90
O DINHEIKO
cr? (Um momento.) A primeira vez que vi V. Ex...
Livia
Nos Diarios.
Honorio
No: antes d'isso. Foi... Veja se se lembra...
Livia
No, no me lembra...
Honorio
natural. Eu era um homem que passava.
Livia, curiosa:
Onde foi?
Honorio
A bordo do Asturias. V. Ex.a fora acompanhar uma
amiga.
Livia
Ah! sim... a Clotilde Regoa. Foi em Maio,
no?
Honorio
Justamente. (Um momento.) Quando eu digo que no
vivo s... A companhia, na minha solido, desde aquella
manhan feliz... (Outro tom:) Li algures que um gal
tomou-se de amores por um raio de sol que lhe entrava no
carcere. Vivia com elle, falava-lhe, beijava-o na terra e,
quando
THEATRO 91
as horas o levavam, o misero estendia-se para dormir,
abreviando no somno o tempo que o separava da
manhan. Desde que acordava iam-se-lhe os olhos para a
fresta onde devia brilhar o seu amor. (Um momento:) Eu
tenho tambm o meu raio de sol...
Livia, com inteno:
No seu palacete... Um momento. Livia perturba-se e evita o
olhar de Honorio.
Honorio
Sei que vo viajar.
Livia
Quem lhe disse?
Honorio
Mamede. Querem partir em Abril. Iremos juntos.
Livia
Tambm vai?
Honorio
Sim, senhora.
Livia
Saudades...
Honorio
Saudades!
Livia
... mas no sei se partiremos. Essa viagem
92 O DINHEIRO
tem sido marcada tantas vezes, vem sempre uma coisa,
outra... Sei l...!
Honorio
que a senhora ainda no se resolveu.
Livia
Se dependesse de mim...
Honorio
E de quem depende ?
Livia
D'elle, naturalmente.
Honorio
D'elle...! E elle que no tem querido?
Livia
No tem podido.
Honorio
Ha de poder agora.
Livia
Porque ?
Honorio
Porque V. Ex.a quer.
Eu?
Livia
THEATRO 93
Honorio
Sim.
Livia
Engana-se. O mundo no me interessa. Tendo
paz vivo bem em qualquer parte. Sou indifferente a
tudo.
Honorio
Menos a seu marido.
Livia
Porque diz isto?
Honorio
Porque sei que pensa em afastal-o d'aqui.
Livia
Afastal-o daqui...! Porque? Estar elle
compromettido? Se est, juro-lhe que ignoro.
Honorio
Compromettido... no digo...
Livia
Ento?
Honorio
Ento...
Livia, suspeitosa:
O senhor occulta-me alguma coisa...
94 O DINHEIRO
Honorio
No, no occulto nem. poderia occultar o que todos
sabem...
Lvia
Menos eu.
Honorio
Oh!
Livia
Affirmo-lhe!
Honorio
Mamede no tem, nem deve ter segredos para V.
Ex...
Livia
Quem sabe...!
Honorio
No tem. To certo estou do que digo que vou falar
desassombradamente, como falaria, se elle aqui
estivesse. O que vou dizer a V. Ex.a diariamente lh'o
repito, a elle. (Outro tom:) Mas vamos ao que interessa.
O seu negocio ser resolvido no sabbado.
Livia
Depois d'amanhan?
Honorio
Ou antes, se V. Ex.a ordenar.
THEATRO 95
Livia
Eu?
Honorio
Sim.
Livia
Negocios, quem os resolve meu marido.
Honorio, com uma ponta de ironia:
Seu marido... (Outro tom:) Vou, eu prprio,
remover todas as difficuldades para que no mais se
adie essa viagem necessaria...
Livia, visivelmente preoccupada:
Mas o senhor disse que no se cana de lhe repetir...
o que? isto?
Honorio
O que sempre lhe repito, minha senhora: que
deve ser mais cauteloso, menos perdulario. Nem
todos os negocios, ainda que bem encaminhados,
alcanam exito facil como este alcanou: uns
abortam, outros so atravessados por interesses
contrarios... Este, no. Lanado opportunamente
seguiu seu caminho sem difficuldade. O resultado
certo nunca menos de trezentos contos. Ora,
Mamede vive no torvelinho das grandezas, delira;
ainda no comprehendeu o valor do dinheiro. A
relativa facilidade com que o adquire fal-o prodigo.
Dissipa a mos largas, com todos, com tudo sem
lembrar-se de que a
96 O DINHEIRO
Fortuna, sendo feminina, voluvel. Trezentos
contos em suas mos sero palha para uma
esplendida fogueira de momentos; nas mos de
quem os saiba applicar sero lume para toda a vida
e augmentaro com: o tempo. Mamede esbanja...
Lvia
verdade.
Honorio
O jogo, como distraco...
Livia, num espanto:
Jogo! E meu marido joga!?
Honorio
Mas...
Livia, insistindo:
Mamede joga?!
Honorio, conciliatrio:
Mas o jogo no crime, nem vergonha. Eu jogo,
minha senhora. (Com arrependimento:) Se eu
pudesse imaginar que incommodava V. Ex.a...
Livia
Foi uma pergunta apenas. Mas fale...
Honorio
No, j me excedi, fui indiscreto. (Calmo,
pausando as palavras:) Erros d'homem, minha
senhora, castigam-se com o perdo. Quem os no
THEATRO 97
tem ? A sociedade, que nos accusa e condemna, e a
principal culpada das nossas faltas. O convivio
mundano, as relaes que se estreitam a uma mesa
de ch e que se esquecem horas depois...
Livia
O senhor quer dizer...!
Honorio
O que?
Livia
Que meu marido tem uma amante.
Honorio
Mas eu no disse tal...
Livia
Sim, no disse... nem coisas taes se dizem:
insinuam-se.
Honorio
Mas que insinuei eu ? Perde-me V. Ex.a, mas
est a vr fantasmas luz do sol.
Livia
Fantasmas, diz o senhor... Para aclarar a sombra
em que tenho vivido nem era preciso a luz do sol a
que allude. Para que se veja o abysmo basta o
fulgor de um relampago, e o senhor, fixando o
claro, alumiou demoradamente e largo. (Em
agitao crescente:) Eis ahi! So os seus negocios
nocturnos, so as suas preoccupaes,
98 O DINHEIRO
so os seus maus humores, so as suas palavras
perdidas, que eu bem as ouo, noite, ainda que as
no oomprehenda. Bem me parecia! (Acabrunhada;
em soliloquio:) , ento, para a amante que elle
trabalha. por ella que se lana allucinadamente no
turbilho dos negcios. para sustental-a, pagar-lhe
o luxo, attender-lhe aos caprichos que...
Honorio
Mas pelo amor de Deus, minha senhora... Onde
descobriu V. Ex.a nas minhas palavras vestigio de
mulher...?
Livia
Onde?
Honorio
Sempre e sempre a suspeita... Repito: a unica
falta de Mamede, e essa gravssima, a dissipao.
No gasta com amantes, como V. Ex.a imagina:
atira o dinheiro rebatinha, num alardo de
grandezas, o que faz com que ande sempre rodeado
de exploradores, que o seguem vidos, como os
tubares vorazes acompanham os navios, espera
do que cahe no mar. No digo que no cardume no
entrem mulheres; mulheres, minha senhora,
amantes, no.
Livia
Ah! no.
THEATRO 99
Honorio
Garanto.
Livia
O senhor no pde garantir. (O copeiro apparece
ao fundo. Nervosa:) Que ?
SCENA X
Os mesmos e o copeiro
O copeiro
Vinha saber...
Livia
Pde servir; pde! (O copeiro retira-se.)
SCENA XI
HONORIO e LIVIA
Honorio
Quer um trao do seu marido? Ha dias entroume
no escriptorio alegre com o resultado de um
desses imprevistos golpes de Bolsa, era que destro
e feliz, que lhe deixara alguns contos de ris.
Justamente eu ultimava um negocio, que reputo o
melhor e de mais futuro dos que tenho actualmente
em mos. Propuz associal-o nelle demonstrando-lhe
as vantagens, os grandes lucros certois da empresa
que ser, em breve tempo, uma das mais ricas
exploraes ferroviarias da America do Sul.
Recusou, j com a allucinao do
100 O DINHEIRO
esbanjamento. Sahimos juntos e, como eu tinha de
ir ao Rezende, onde dera encontro a um amigo, elle
acompanhou-me at l. Falava com volubilidade
febril e, mal entrou na loja, foi logo-para as vitrinas
e o seu pensamento que, at certo ponto, torna o seu
estroinismo sympathico, no teve outro fito seno
justamente aquella que o julga com tanta injustia,
Emquanto conversei esteve elle a examinar joias:
pulseiras, anneis, adereos, decidindo-se,
finalmente, por um collar de prolas, que reconheo
no que V. Ex.a traz...
Livia, segurando nervosamente o collar:
Este!
Honorio
Sim, senhora...
Livia, de olhos lampejantes:
Quando foi isso?
Honorio, procurando lembrar-se:
Foi... na quinta-feira passada.
Livia
Na quinta-feira passada... (Encarada em
Honorio :) E quanto custou ?
Honorio
Dezoito contos.
fHEATRO 101
Lvia, repetindo como um echo:
Dezoito contos... (Vivamente:) E tem certeza de
que foi este ?
Honorio
Se o vi comprar... A prova que...
Livia, dum jacto, em voe silvante:
A prova que elle tem uma amante!
Honorio, com simulado espanto:
Uma amante...!
Livia
Sim! (Agarrando o collar, encarada em
Honorio:) Este, este aqui tenho-o desde solteira,
trouxe-o commigo, comprei-o eu mesma. falso !
Honorio
Falso...! No possivel...
Livia
Sim, falso! No tenho outro, nunca tive!
(Abatida:) Ahi tem o senhor. (Como apiedada de
si:) Dezoito contos! ou no para a amante? E para
ella tudo: O tempo, o dinheiro, os carinhos, a vida
toda, tudo! Eu sirvo apenas para... (Desata em
pranto com a cabea nas mos.) Dezoito contos!
(Seccam-se-lhe repentinamente as lagrimas. De
cabea erguida, olhos em fogo:) S de pensar nisso
toda eu vibro, saltam-me as
102 O DINHEIRO
lagrimas dos olhos... E elle? (Rictus sarcastico.) nem se
importa oommigo. Sabe que o senhor est aqui e...
(Encolhe os hombros com desprezo.)
Honorio
Mas, minha senhora...
Livia
O que elle quer dinheiro, venha como vier, para
gastar com a outra. Que lhe importa o mais ? Tenha a
carteira cheia...
Honorio
Mas oua. Deve haver em tudo isto um equivoco.
Quem sabe!?
Livia
Equivoco ?!
Honorio
As apparencias illudem. No o accuse sem provas,
Livia
Sem provas? (Riso nervoso.) E quer mais? Pois no
bastam?
Honorio
Mas pelo amor de Deus... no me tome V. Ex.a por
intrigante.
Livia
No, o senhor no sabia, no podia saber o
THEATRO I03
que se passa em minha casa. Conhece o homem,
no conhece o esposo. Acredito at que ignore que
elle tem uma amante.
Honorio
Juro-lhe, minha senhora...
Livia
No precisa jurar, acredito. A amante, essa sim,
essa ella esconde dos amigos, agora a mulher...
(Gesto de quem lana de si uma coisa desprezivel.)
Acredito. (Nervosa, agarrando o collar:) Este do
meu tempo de solteira, trouxe-o commigo. (Num
movimento mais vivo rebenta o collar; as prolas
espalham-se, ficam-lhe algumas nas mos.
Contemplando-as enternecida, com lagrimas:)
Dezoito contos!
Desata em pranto. Honorio senta-se-lhe ao
lado, toma-lhe uma das mos e afaga-a
carinhosamente.
Honorio, com meiguice voluptuosa:
No chore...
Livia
Afinal que sou eu para meu marido?
Honorio, carinhosamente:
Acalme-se. Quem sabe?! O que me incommoda
haver sido o causador involuntario.....
104 O DINHEIRO
Livia
O senhor no tem culpa. Eu j desconfiava e
havia de saber, mais hoje, mais amanhan. Foi
melhor assim... Foi melhor... (As lagrimas
rebentam-lhe em jorro.)
Honorio
Mas oua... A senhora no est s... Ento?
Hesita um momento. Sbito, d'arranque, toma-a nos braos
imprimindo-lhe um beijo na boca. Colhida de surpresa,
Livia debate-se, repulsa-o e, de p, olhos em fogo, encarao
a fito, tremula. Inicia um gesto de expulso, mas retrahese;
o brao cahe-lhe abandonado, inclina a cabea e
queda succumbida. Honorio adianta um passo receioso.
Livia, levantando a cabea, com um sorriso triste,
que irradia dio, diz dolorosamente:
Est no seu direito...
O copeiro apparece ao fundo. Livia encara-o desvairada,
tremula um riso nervoso, num atordoamento em que se
sente latejar a ira. Serena aos poucos e, esboando um
sorriso, com um gesto convida Honorio a passar sala de
jantar. Honorio adianta-se, offeree-lhe o brao e condula.
PANNO
TERCEIRO ACTO
O mesmo scenario.
SCENA PRIMEIRA
EVA e o copeiro
Ao descerrar-se o velario ouve-se reunir a campainha do
telephone. Eva apparece esquerda com uma charpa de
seda no brao. O copeiro entra na saleta a correr.
Eva
Anda dahi, creatura, a vr se fazes calar esta
maldita campainha. J estou zonza! At parece a
Assistncia. Isto, com certeza, a tal viuvinha a
perguntar se a patroa est em casa para vir para c
chorar o marido e falar nos escndalos que por ahi
vo, com a graa de Deus. O que Ha quer sei eu,
mas esto verdes.
O copeiro, ao telephone:
Cala-te. Assim no posso ouvir o apparelho.
106 O DINHEIRO
Eva
E que me importa a mim o apparelho? Quem
sabe se melhor do que eu? Fala prahi.
O copeiro
Al!
Eva
Al! A!! At no sei que parece... (O copeiro
bate o p, frenetico.)
O copeiro
Al! Quem fala? Quem?!
Eva
Ora! Quem ha de ser... V se conheces pelo
cheiro.
O copeiro
Sim, senhor.
Eva
Quem ? (O copeiro acena-lhe para que se cale,
Amuada:) Pois sim...
O copeiro
Sim, senhor. Quer que a chame?
Eva
o patro... ?
O copeiro
Sim, senhor. Vou chamal-a. (Deixa o phone
THEATRO 107
sobre a mesa. A Eva:) Olha que tu... V l se
boles ahi. Deixa como est. Vou chamar a patroa.
Eva
Mas quem ? (O copeiro faz-lhe uma careta e
entra esquerda, rindo. Desapontada:) Diabo do
alcoviteiro... Eu porque sinto ccegas no ouvido
com essa trombeta, seno havia de apanhar boas.
(Fica a olhar o telephone como quem procura
decifrar um mysterio. D d'hombros.) Pouca
vergonha!
Um momento.
SCENA II
LVIA e EVA
Livia, sahe da esquerda, apressada: tonta o phone e fala:
Mamede? Eu mesma. Onde ests? Hotel dos
Estrangeiros? Acabamos ha pouco. Vai j. Ba.
Sim. Porque no vens? Queres que o previna?
Sim... sim... Acho bom. Toma um auto e vem. At
j. Hein? Sim. At j.
Desliga e queda abstrahida, o olhar fito, os
braos abandonados.
Eva
Olhe a charpa.
Livia
Para que? No est frio.
108 O DINHEIRO
Eva
, mas depois a senhora comea a queixar-se da
garganta. (Passa-lhe a charpa em volta do
pescoo.) Assim est agasalhada.
Livia
Bem, deixa-me ir. O homem ficou l ssinho.
Eva, olhando para o jardim, meia vos:
No elle que ali est ?
Livia
Onde?
Eva
No jardim.
Livia
No v ter-se aborrecido.
Honorio apparece no jardim, accende um charuto e fica a
olhar vagamente. Livia vai ao seu encontro. Eva fica um
momento a espreital-os, por fim entra direita.
SCENA III
HONORIO e LVIA
Livia
Porque no entra?
Honorio
Est muito agradavel aqui fora.
THE ATRO 109
Livia
Se porque est fumando, no faa cerimonia.
No me incommoda.
Honorio
Tambm so duas baforadas apenas. Gosto, mas
faz-me mal. Depois do caf sabe-me o charuto, mas
no abuso; o meu vicio razoavel. (Atira fora o
charuto.) Estou satisfeito. (Descem. Um momento.)
Est com frio?
Livia
No, senhor. Teima da criada. (Um momento.)
Mamede acaba de falar-me ao telephone. Vem j.
. Honorio
Ah!
Livia
Est no Hotel dos Estrangeiros. De l aqui um
instante, cinco minutos em automovel.
Honorio
... mas a senhora est fatigada... e eu no sou
companhia agradavel: velho, sem espirito...
Livia
No diga isso...
Honorio
As senhoras apreciam a palestra scintillante
110 O DINHEIRO
dos rapazes, que lhes falam da alegria da vida, no a dos
velhos, que s lhes podem dar noticias do passado.. Os
homens da minha idade, quando conversam, recordam, o
que o mesmo que passeiar em cemiterios. Os rapazes
levam-nas aos jardins do sonho... Demais, so quasi onze
horas...
Livia
Dez e meia. O seu relogio est muito adiantado.
Honorio
possivel. (Com inteno:) Adiantou-se querendo,
talvez, apressar a minha felicidade e lanou-me nas
malhas do engano. (Livia carrega o sobrecenho.)
Costuma deitar-se tarde?
Livia
Nunca antes da meia noite. Leio sempre um pouco...
(Um momento.)
Honorio
E sobre Guaruj? Que resolve?
Livia
No sei.
Honorio
Garanto que no se