UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
LUDMILA JONES ARRUDA
CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:
“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”
São Paulo
2016
LUDMILA JONES ARRUDA
CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:
“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor
em Letras.
Orientadora: Prof. Dra. Regina Helena Pires de Brito (UPM)
Co-orientador: Prof. Dr. José Eduardo Franco (Universidade de Lisboa)
São Paulo
2016
A778c Arruda, Ludmila Jones.
Canto de intervenção em Portugal: "o povo é quem mais ordena” /
Ludmila Jones Arruda – São Paulo, 2016.
204 f. : il. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie,
2016.
Orientador: Profª. Drª. Regina Helena Pires de Brito
Referência bibliográfica: p. 185-190
1. Lusofonia. 2. Canto de intervenção. 3. Revolução dos Cravos. I. Título.
CDD 869.93
LUDMILA JONES ARRUDA
CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL:
“O POVO É QUEM MAIS ORDENA”
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor
em Letras.
Aprovada em 12 de agosto de 2016
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. Regina Helena Pires de Brito
Universidade Presbiteriana Mackenzie
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Eduardo Franco
Universidade Aberta e Universidade de Lisboa
Prof. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dra. Marlise Vaz Bridi
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dra. Vima Lia de Rossi Martin
Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Alexandre Marcelo Bueno
Pontifícia Universidade Católica
Para os meus pais,
que tanto me incentivaram.
Para os que viveram as ditaduras e
que foram silenciados.
Para os cantores que, com suas vozes,
nos libertam.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, pela oportunidade concedida e por ter dirigido os meus
passos até aqui; a Ele toda a honra e a glória!
Aos meus pais, Arody e Zoraide, pelo apoio incondicional e por todo o suporte prestado
durante a minha caminhada; aos meus irmãos, cunhada e família pelo constante incentivo;
À minha querida orientadora, Prof. Dra. Regina Pires de Brito, por me inspirar, me
corrigir e me orientar em todos os momentos desde o mestrado até a conclusão do
doutorado;
Ao meu co-orientador, Prof. Dr. José Eduardo Franco, por todo o apoio e pelas sugestões
ao longo dos meus estudos e ainda, pela indicação de materiais e professores que
certamente trouxeram valiosas contribuições para a presente pesquisa;
A todos os membros da minha banca, Prof. Dra. Vima Lia de Rossi Martin; Prof. Dra.
Neusa Maria Barbosa Bastos; Prof. Dra. Marlise Vaz Bridi e Prof. Dr. Alexandre Marcelo
Bueno, por todas as propostas, comentários e correções acerca da minha pesquisa, que
foram e serão indispensáveis para o meu crescimento acadêmico, e ainda, à Prof. Dra.
Vera Lúcia Harabagi Hanna também pelas sugestões dadas durante a qualificação;
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, por toda a competência, pelo profissionalismo e pela motivação;
À Universidade de Lisboa, especialmente a equipe do Centro de Literaturas e Culturas
Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL), por ter me acolhido, me
auxiliado e por toda a orientação prestada no decurso dos meus estudos em Lisboa;
A todos os entrevistados desta pesquisa, o jornalista e escritor José Jorge Letria; aos
cantores Sérgio Godinho e Francisco Fanhais e ao Prof. Dr. António Borges Coelho, Prof.
Dr. Fernando Rosas e Prof. Dr. Pedro Calafate: a todos o meu profundo agradecimento
pela disposição, atenção e cuidado ao me conceder as entrevistas e as devidas correções;
e também ao Prof. Dr. António Nóvoa pela indicação de nomes que foram fundamentais
para a entrevista;
À Associação José Afonso (AJA) e à Torre do Tombo, pela atenção, pela recepção e pela
disponibilização de materiais e documentos que foram indispensáveis para a realização
da minha pesquisa;
À Biblioteca Casa de Portugal, que mais uma vez contribuiu com empréstimos de
materiais, documentos e obras que foram importantes para a realização do meu trabalho;
Aos meus amigos que me acompanharam e me deram apoio em algumas questões acerca
da tese, em especial Priscilla Barbosa Ribeiro, Vanessa Maria da Silva, Jade, Márcio e
Sabrina Bettini; e aos que me auxiliaram durante a estadia em Lisboa;
Aos colegas do curso de Pós-Graduação em Letras pelo incentivo e companheirismo;
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo apoio e recursos para o desenvolvimento
da pesquisa;
À Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Nível Superior (CAPES), agência
financiadora deste projeto, pelo incentivo e financiamento dos estudos no Brasil e no
exterior;
Finalmente, a todos aqueles que me acompanharam nesses quatro anos e me motivaram
a concluir mais uma etapa em minha vida. Todos os conselhos, orações e palavras de
apoio foram fundamentais ao longo desses anos.
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente.
E ainda aguardo, renitente
Um velho cravo para mim.
Já murcharam a tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente em algum
Canto de jardim.
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.
Canta a primavera pá
Cá estou carente
Manda novamente algum cheirinho
De alecrim!
(Chico Buarque, 1978)
ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais
Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM)
RESUMO
Entre 1933 e 1974, o Estado Novo, regime opressor e autoritário iniciado com António
de Oliveira Salazar, trouxe consequências desastrosas para Portugal, agravadas com o
início da Guerra Colonial em 1961. Essa situação acarretou inúmeros protestos, desde
reuniões, encontros acadêmicos, grupos ativistas, produções literárias até canções de
intervenção que denunciavam a política e revelavam a luta, a insatisfação e o
descontentamento popular – aspectos de destaque na presente pesquisa. Inserido no
âmbito dos Estudos Lusófonos, o presente estudo propõe investigar elementos linguístico
e poéticos presentes em canções de intervenção portuguesa compostas no período pré e
pós Revolução dos Cravos. Recorre-se, para tratar dos aspectos históricos do Estado
Novo, em especial sobre a atuação do governo e as ações da polícia que reprimiram a
circulação de obras e a difusão de canções contrárias ao ideário salazarista, aos estudos
de Meneses (2011), Rosas (2013) e Pimentel (2007, 2011). Para a seleção das canções
que compõem o corpus analisado, procedeu-se a uma série de entrevistas com ativistas
que reagiram às imposições da censura naquela época: os cantores José Letria – hoje
escritor e jornalista – Sérgio Godinho e Francisco Fanhais e os acadêmicos Fernando
Rosas, António Borges Coelho e Pedro Calafate, que contribuíram com informações e
indicações de canções que significativas no período final do Estado Novo. Neste aspecto,
lidando com a questão da memória, foi importante o aporte teórico de Halbwachs (2013),
Le Goff (1996), Traverso (2009). Para a escolha das sete canções - Grândola Vila
Morena, Menina dos Olhos Tristes, Vampiros, O Menino do Bairro Negro, de Zeca
Afonso, e Cantar da Emigração e Trova do Vento que Passa, de Adriano Correia de
Oliveira, e por fim, Liberdade, de Sérgio Godinho - considerou-se, também, o sucesso da
canção, mensurado pela ação da censura e pela popularidade alcançada por cantores como
Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. No esteio de alguns pesquisadores como
Raposo (2000) e Letria (1999, 2013) para a parte analítica, foi possível traçar elementos
reveladores da importância das canções resgatadas para a (re)construção identitária dos
portugueses. Além disso, possibilitou perceber como as mensagens permanecem latentes
na sociedade portuguesa nos dias atuais – como se pôde verificar com as manifestações
da recente crise econômica europeia, quando algumas dessas canções voltaram a ser
entoadas, revestidas de novo valor simbólico, mas resgatando o tom de denúncia e
protesto, tendo seu conteúdo ressemantizado e atualizado.
Palavras-chave: Lusofonia, Canto de Intervenção, Revolução dos Cravos.
ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais
Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM)
ABSTRACT
Between 1933-1974, Estado Novo (New Estate), na authoritarian and opressive regime
ocurred in Portugal under the government of António de Oliveira Salazar, brought huge
impacts in Portugal, worsened by the beginning of the Colonial War in 1961. This
situation led to a number of protests, gatherings, academic groups, ativists, literary
productions and revolutionary songs which denounced the politics and revealed the fight,
the dissatisfaction and the popular discontentment – being the core of this research. Inside
Lusophone studies, the present paper aims to investigate the poetic and linguistic
discursive elements present in Portuguese intervention songs composed before and after
the Carnation Revolution (1974). The historic aspects of the Estado Novo is – mainly –
based on the studies of Meneses (2011), Rosas (2013) and Pimentel (2007, 2011)
specially on how the government used to act through censorship, which stopped the
spread of protest songs and the diffusion of ideas which were against Salazar’s ideology.
In order to select the songs for the analysis, six people were interviewed, amongst ativists
and singers who imposed against the censorship: the singers are José Jorge Letria,
Francisco Fanhais and Sérgio Godinho; along with academics Fernando Rosas, Pedro
Calafate and António Borges Coelho – who contributed by giving important information
and pointing songs which were significant in that period. In this aspect, in order to deal
with memory, the theories of Halbwachs (2013), Le Goff (1996) and Traverso (2009)
were relevant. The seven songs, Grândola Vila Morena, Menina dos Olhos Tristes,
Vampiros, O Menino do Bairro Negro, sung by Zeca Afonso, Cantar da Emigração and
Trova do Vento que Passa, by Adriano Correia de Oliveira, and finally Liberdade, by
Sérgio Godinho - were also chosen considering the popularity the songs gained during
the period, due to the action of the censorship. Based on Raposo (2000) and Letria (1999,
2013) to help the analysis, it was possible to outline elements which proved that those
songs were important for the identity re(construction). Also, it is important to mention
that such songs remain latent in the present, specially after the last European crisis when
several of those songs were chanted again, covered by a new symbolic value, but
rescueing the revolutionary characteristics present in their contents.
Keywords: Lusophone, Protest Songs, Carnation Revolution.
ARRUDA, Ludmila Jones. Canto de Intervenção em Portugal: “O Povo é Quem Mais
Ordena”. São Paulo, 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM)
RESUMEN
Entre 1933-1974, en Portugal rigió el Estado Novo (Nuevo Estado), un régimen
autoritario y represivo bajo el gobierno de António de Oliveira Salazar, el cual trajo
grandes consecuencias en dicho país, aseverado por el comienzo de la Guerra Colonial
en 1961. Esta situación propició la formación de protestas, reuniones, grupos académicos,
grupos activistas, producciones literarias y canciones revolucionarias que denunciaban la
política y revelaban la lucha, la insatisfacción y el descontento popular – lo cual es el
objetivo central de esta investigación. Dentro de los estudios Lusofonia, el presente paper
apunta a investigar los elementos poéticos y lingüístico-discursivos presentes en estas
canciones de protesta compuestas antes y después de la Revolución de los Claveles en
1974. Los aspectos históricos del Estado Novo están, principalmente, basados en los
estudios de Meneses (2011), Rosas (2013) y Pimentel (2007, 2011), específicamente en
cómo el gobierno actuaba mediante la censura para frenar la difusión de las canciones de
protesta y así como de las ideas que estuviesen en contra de ideología de Salazar. Para el
criterio de selección del corpus de canciones que se analizaron, se entrevistaron seis
personas, entre los que se encontraban activistas y cantantes que se impusieron a la
censura: los cantantes son: José Jorge Letria, Francisco Fanhais y Sérgio Godinho, junto
con los académicos Fernando Rosas, Pedro Calafate y Antonio Borges Coelho, quienes
contribuyeron dando importante información así como también indicando qué canciones
fueron significativas en ese período. En ese aspecto, para trabajar con el concepto de
memoria, las teorías de Halbwachs (2013), Le Goff (1996) y Traverso (2009) fueron
relevantes en este estudio. Las siete canciones elegidas son Grândola Vila Morena,
Menina dos Olhos Tristes, Vampiros, O Menino do Bairro Negro, cantadas por Zeca
Afonso, Cantar da Emigração y Trova do Vento que Passa, por Adriano Correia de
Oliveira, y por último Liberdade, de Sérgio Godinho. Fueron también seleccionadas
considerando la popularidad que las canciones adquirieron durante ese período dada la
censura. Basado en conceptos de Raposo (2000) y Letria (1999; 2013) en el análisis, fue
posible evidenciar elementos que dan prueba de la importancia de esas canciones para la
(re)construcción identitaria. Es también importante mencionar que estas canciones
permanecen de manera latente en el presente, en especial luego de la crisis europea,
momento en el que muchas de estas canciones fueron entonadas nuevamente, rescatando
las características revolucionarias presentes en su contenido pero con un nuevo valor
simbólico.
Palabras clave: Lusofonia, Canciones de Protesta, Revolución de los Claveles
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 – Mapa Portugal Primeira Classe........................................................................................... 30
FIGURA 2 – Mapa: Portugal não é um País Pequeno - SPN................................................................... 40
FIGURA 3 – A Lição de Salazar.............................................................................................................. 47
FIGURA 4 – Contracapas dos Livros.......................................................................................................47
FIGURA 5 – A Dona de Casa................................................................................................................... 48
FIGURA 6 – Alfabetizando ............................................................................................... ...................... 49
FIGURA 7 – Respeitai as Autoridades .................................................................................................... 49
FIGURA 8 – Texto: Portugal é Grande.....................................................................................................50
FIGURA 9 – Boletim de Existência de Presos (1936) ............................................................................ 57
FIGURA 10 – Boletim de Existência de Presos e Deportados (1945) .....................................................58
FIGURA 11 – Vote com Salazar por Portugal..........................................................................................67
FIGURA 12 – Comemoração do Aeroporto de Lisboa............................................................................ 77
FIGURA 13 – José Jorge Letria................................................................................................................ 88
FIGURA 14 – Disco: Até ao Pescoço....................................................................................................... 92
FIGURA 15 – Capa do Livro: A Arte de Armar...................................................................................... 93
FIGURA 16 – Francisco Fanhais.............................................................................................................. 98
FIGURA 17 – Sérgio Godinho............................................................................................................... 104
FIGURA 18 – António Borges Coelho................................................................................................... 107
FIGURA 19 – Biografia Prisional de António Borges Coelho.............................................................. 110
FIGURA 20 – Pedro Calafate................................................................................................................. 114
FIGURA 21 – Fernando Rosas.............................................................................................................. 117
FIGURA 22 – Fachada da Associação José Afonso .............................................................................. 120
FIGURA 23 – CD Cantigas do Maio..................................................................................................... 123
FIGURA 24 – Mandado de Captura de Zeca Afonso............................................................................ 125
FIGURA 25 – Apresentação no Coliseu de Lisboa................................................................................ 130
FIGURA 26 – Coliseu: 40 anos depois.................................................................................................... 131
FIGURA 27 – Folheto: Cantar Grândola................................................................................................ 131
FIGURA 28 – Capas dos Álbuns de Zeca Afonso................................................................................. 133
FIGURA 29 – Manuscrito de ‘Os Vampiros’......................................................................................... 142
FIGURA 30 – Muros.............................................................................................................................. 143
FIGURA 31 – Muros.............................................................................................................................. 143
FIGURA 32 – Muro Liberdade............................................................................................................... 174
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 – Taxa de Analfabetismo em Portugal...................................................... 52
TABELA 2 – Emigração para a França........................................................................ 66
TABELA 3 – Governos Provisórios PREC.................................................................. 75
LISTA DE ABREVIATURAS
AJA – Associação José Afonso
ARMCPF – Associação dos Reformados e dos Ex-Militares/ Ex-Combatentes
Portugueses de França
CEE – Comunidade Econômica Europeia
CLSTP – Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe
DGS – Direção Geral de Segurança
FNAT – Federação Nacional para a Alegria no Trabalho
FNLA – Frente Nacional de Libertação de Angola
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique
GNR – Guarda Nacional Republicana
INE – Instituto Nacional de Estatística
INTP – Instituto Nacional do Trabalho e Previdência
MC – Movimento dos Capitães
MEN – Ministério da Educação Nacional
MP – Mocidade Portuguesa
MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola
MUD – Movimento da Unidade Democrática
MVSN – Milizia Volontaria per La Sicurezza Nationale (Itália)
NATO (Sigla utilizada em Portugal para OTAN) – Organização do Tratado do Atlântico
Norte
OMEN – Organização das Mães pela Educação Nacional
ONU – Organização das Nações Unidas
OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte
PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
PALOP – Países Africanos de Língua Portuguesa
PCP – Partido Comunista Português
PCTP/MRPP – Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses / Movimento
Reorganizativo do Partido do Proletariado
PI – Polícia de Informações
PIB – Produto Interno Bruto
PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado
PIMI – Polícia de Informações do Ministério Interior
PIP – Polícia Internacional Portuguesa
PREC – Processo Revolucionário em Curso
PVDE – Política de Vigilância e Defesa do Estado
RFA – República Federal da Alemanha
RTP – Rádio de Televisão Portuguesa
SEIT – Secretaria de Estado da Informação e Turismo
SMFOG – Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense
SNI – Secretariado Nacional de Informação
SPN – Secretariado de Propaganda Nacional
UDP – União Democrática Popular
UNITA – União Nacional para a Independência Total de Angola
UPA – União das Populações de Angola
URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................... 17
1. ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL NO SÉCULO XX:
NOTÍCIAS DO MEU PAÍS...................................................................... 30
1.1 I REPÚBLICA (1910-1926) ....................................................................... 32
1.2 DITADURA NACIONAL (1926-1932) ..................................................... 33
1.3 O ESTADO NOVO (1932-1974) ................................................................ 38
1.3.1 O Ensino na Ditadura e a Mocidade Portuguesa .............................. 44
1.3.2 A Censura ............................................................................................. 53
1.3.3 Desdobramentos das Guerras ............................................................. 62
1.3.4 Anos Cruciais para Salazar (1958-1962) ............................................ 66
1.3.4.1 A Abrilada e a Guerra Colonial ............................................................. 68
1.3.5 Primavera Marcelista e a Revolução dos Cravos .............................. 70
1.4 PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO ....................................... 74
2. PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:
A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU.......................................... 77
2.1 MEMÓRIA................................................................................................... 78
2.1.1 Memória Individual e memória coletiva............................................. 79
2.1.2 História versus Memória...................................................................... 83
2.2 PERSONALIDADES ENTREVISTADAS ................................................ 85
2.2.1 José Jorge Letria .................................................................................. 88
2.2.2 Francisco Fanhais ................................................................................ 98
2.2.3 Sérgio Godinho ................................................................................... 104
2.2.4 António Borges Coelho .......................................................................107
2.2.5 Pedro Calafate .................................................................................... 114
2.2.6 Fernando Rosas .................................................................................. 117
2.3 SOBRE JOSÉ “ZECA” AFONSO............................................................. 120
2.4 REUNIÃO DOS CANTORES: 29 DE MARÇO DE 1974 ...................... 129
3. ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:
HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO .............................................. 133
3.1 TROVA DO VENTO QUE PASSA ......................................................... 137
3.2 OS VAMPIROS ........................................................................................ 140
3.3 MENINO DO BAIRRO NEGRO ............................................................. 148
3.4 GRÂNDOLA VILA MORENA ................................................................ 153
3.5 MENINA DOS OLHOS TRISTES............................................................ 161
3.6 CANTAR DA EMIGRAÇÃO ................................................................... 165
3.7 LIBERDADE ............................................................................................. 169
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................. 175
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 185
ANEXOS ................................................................................................... 191
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
19
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O término da dissertação de mestrado, defendida sob orientação da Professora
Dra. Regina Pires de Brito, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2012, sob o título Aspectos da Questão
Identitária em Músicas de Intervenção Cabo-Verdiana, motivou-me a prosseguir os
estudos na área de Lusofonia, centrando-me na história e análise das composições
artístico-musicais, que procuram revelar como questões sócio-político-econômicas se
misturam e interferem no cotidiano dos indivíduos.
Verificando a importância que o estudo dessa temática desempenha no mundo
acadêmico, devido não somente ao papel significativo que as canções têm na vida do ser
humano, mas também por incluírem letras que dialogam com o momento em que está se
vivendo, decidiu-se esta pesquisadora a dedicar-se, nesta tese, às composições surgidas
com o Estado Novo em Portugal.
O gênero musical, pelo seu caráter interdisciplinar, consegue abarcar questões que
vão além da canção (letra) e dos elementos formais da música (ritmo, melodia, harmonia)
– sendo também possível, a partir da letra, trabalhar questões linguísticas e históricas,
mostrando como a escolha da palavra pode ser eficaz nas várias maneiras de interpretação
existentes em uma composição – nosso foco nesse estudo. Por isso, optou-se por utilizar
o termo “Canção” ou “Canto”, ambos também utilizados por estudiosos da área
(RAPOSO, 2014; LETRIA, 1999) e tais termos dão ênfase à composição da letra e não à
questão musical em si. Sabendo que os elementos formais da música também conferem
sentido às interpretações das canções aqui utilizadas, estas também serão referidas como
auxiliares à interpretação. O Canto de Intervenção foi utilizado como um meio de
informação e de conscientização dos problemas políticos advindos de governos
anteriores, tendo o poder de informar, por meio da letra, os prejuízos causados, apelando,
principalmente para o lado emocional do ouvinte.
Canções desse gênero são vistas por toda a parte e em épocas distintas –
acentuando o interesse interdisciplinar desta pesquisa para o leitor que esteja envolvido
em áreas diversas, como música, história, política, linguística. O sucesso dessas canções
não se limita a um período curto de tempo ou a um espaço restrito. Podemos citar como
exemplo as canções de protesto brasileiras surgidas na Ditadura Militar, entre 1964 e
20
1985, com as canções de Chico Buarque, Caetano Veloso ou Geraldo Vandré, que
continuam atualizáveis e motivando diversos estudos acadêmicos.
Deslocando-nos de Cabo Verde, a fim de expandir os estudos para outro espaço
lusófono, Portugal foi escolhido por apresentar uma vasta discografia nessa temática,
iniciada com as canções de Adriano Correria de Oliveira em torno de 1960 e imortalizada
com as canções de Zeca Afonso durante a ditadura militar salazarista, entre 1933 e 1974.
As canções desempenharam grande função no contexto português, não somente pela
conscientização que ela trouxe ao povo, mas também pelo fato de uma das canções mais
populares – Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso – ter sido utilizada como a senha
para o Golpe Militar, ao ser tocada na Rádio Renascença na noite do dia 24 de abril de
1974, confirmando o início da Revolução.
Dessa forma, a pesquisa tem como objetivo geral analisar, em composições
portuguesas, vinculadas à categoria “canto de protesto ou de intervenção”, elementos
linguísticos e poéticos que mostrem a contribuição dessas para uma conscientização
política durante o regime salazarista, e que permanece latente e se constitui como
elemento significativo no construto identitário dos portugueses. Para tanto, dentre os
objetivos específicos estão:
apontar eventuais impactos que a fase ditatorial teve sobre a construção da
identidade do povo português e seus reflexos no Portugal contemporâneo;
levantar as principais canções de intervenção compostas nos períodos pré
e pós Revolução dos Cravos, dentre as quais foram selecionadas para
comporem o corpus para análise;
entrevistar intelectuais, jornalistas e artistas que vivenciaram o período em
estudo, num resgate pela memória, focalizando a importância da denúncia
e do protesto por via artística;
analisar, nas canções selecionadas, elementos linguístico-discursivos e
poéticos reveladores de marcas da opressão do regime ditatorial,
observando como contribuem para a formação identitária e,
verificar e destacar a importância da música como forma de protesto e o
impacto que ela teve na história de Portugal e a sua repercussão nos dias
atuais recorrendo a pesquisas e entrevistas feitas com jornalistas,
intelectuais professores que viveram na época.
21
Para que pudessem ser cumpridos os objetivos da pesquisa, a pesquisadora fez
parte de um programa de doutorado-sanduíche da CAPES junto à Universidade de
Lisboa, sob a co-orientação do professor doutor José Eduardo Franco, então diretor do
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa
(CLEPUL). A oportunidade permitiu a realização das entrevistas com as personalidades
que integram esta pesquisa: o jornalista e escritor José Jorge Letria, os cantores Francisco
Fanhais e Sérgio Godinho, e os professores Pedro Calafate, Fernando Rosas e António
Borges Coelho.
Inserido no escopo dos Estudos Lusófonos, o presente trabalho adota a concepção
de lusofonia proposta por Brito (2010):
A lusofonia deve, na nossa perspectiva, ser compreendida como um
espaço simbólico linguístico e, sobretudo, cultural no âmbito da língua
portuguesa e das suas variedades lingüísticas, que, no plano
geosociopolítico, abarca os países que adotam o português como língua
materna e oficial (Portugal e Brasil) e língua oficial (Angola, Cabo
Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau – que
constituem os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)
– e Timor-Leste. Entretanto, não se pode restringir a lusofonia ao que
as fronteiras nacionais delimitam. Nesse modo de conceber a lusofonia,
há que se considerar as muitas comunidades espalhadas pelo mundo e
que constituem a chamada “diáspora lusa” e as localidades em que, se
bem que nomeiem o português como língua de “uso”, na verdade, ela
seja minimamente (se tanto) utilizada: Macau, Goa, Ceilão, Cochim,
Diu, Damão e Málaca. Além disso, a lusofonia é inconcebível sem a
inclusão da Galiza (LOURENÇO, 2001). Somam-se a isso outras
regiões de presença portuguesa no passado e/ou onde, relativamente, se
fala português ainda hoje: na África – Annobón (Guiné Equatorial),
Ziguinchor, Mombaça, Zamzibar; na Europa – Almedilha, Cedilho, A
Codosera, Ferreira de Alcântara, Galiza, Olivença, Vale de Xalma
(Espanha). (p. 177)
O termo “Lusofonia” é, assim, utilizado neste estudo para designar os espaços que
têm a língua Portuguesa como língua oficial de comunicação, mas ressalta-se, que dentre
os espaços citados, mesmo onde a língua portuguesa é a oficial, nem sempre é a principal
língua de comunicação entre a população, que se utiliza de outras línguas nacionais –
ainda nas palavras de Brito (2013a):
Uma síntese do universo lusófono – que se procura reunir numa noção
(ainda que mítica) de lusofonia – pretende conciliar diversidades
linguísticas e culturais com a unidade que estrutura o sistema linguístico
do português. Deste modo, como referimos, uma descrição possível
apresenta uma dimensão geográfica da língua portuguesa distribuída
por espaços múltiplos, numa área extensa e descontínua e, que, como
qualquer língua viva, se apresenta internamente caracterizada pela
coexistência de várias normas e subnormas. Estas, naturalmente,
22
divergem de maneira mais ou menos acentuada num aspecto ou noutro,
numa diferenciação que, embora não comprometa a unidade do sistema,
possibilita-nos reconhecer diferentes usos dentro de cada comunidade.
(2013a, p. 12)
O fato de a língua portuguesa não ser a língua materna de países como Angola,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe - países multilíngues - e
o histórico de independência ainda recente nesses países causam divergências quanto ao
uso do termo, pois, como explica Namburete (2006):
Grande parte dos escritos sobre a lusofonia coloca maior ênfase na
língua portuguesa, englobando apenas os que falam português e
excluindo, naturalmente, aqueles que, mesmo vivendo em países ou
comunidades que decretaram o português como a sua língua oficial, não
falam, não lêem e muito menos escrevem na língua de Camões. (p.63)
Assim, o termo não se limita a uma “exclusão”; pelo contrário, a língua, como
parte de uma identidade, precisa estar composta por diferentes características formadoras
dessa identidade múltipla, como defende Fiorin (2010):
Essa identidade está apoiada na diversidade, que agrega, e no fundo
comum da cultura e da língua. Essa identidade não é a assimilação de
umas identidades a outras, não é a exclusão de identidades, não é a
segregação de patrimônios identitários. (p. 27).
Ainda como o linguista propõe, “para que a lusofonia seja um espaço simbólico
significativo para seus habitantes, é preciso que seja um espaço em que todas as variantes
linguísticas sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade” (2006, p. 46), sem a
atribuição de uma “autoridade paterna”, visto que não há um proprietário da língua
(LOURENÇO, 2001). Brito (2013b) assevera que as línguas não são utilizadas de maneira
homogênea pelos seus falantes, podendo variar não somente em termos de espaços, mas
também entre tempo, faixa etária e classe social.
Neste estudo o termo “lusofonia” baseia-se em definições que vão além da
acepção etimológica. Levando em consideração que a língua é uma importante
manifestação cultural, vem carregada de valores culturais e históricos, fazendo com que
cada nação a utilize de forma diferente uma da outra, pois nela estão inseridos seus
valores, características culturais e históricas, destacando as diferenças existentes na
utilização da língua portuguesa. A ideia é simplesmente ressaltar e valorizar as diferenças
linguísticas e culturais existentes em cada espaço lusófono, e não “apagar” os valores
neles contidos, já que a “ideia de lusofonia só faz sentido se a concebermos acima das
nacionalidades, muito além de qualquer percepção mítica de uma nação, ou de
23
responsabilidade de preservação por parte de outra. ” (BRITO e BASTOS, 2006, p. 74).
No mesmo sentido, o imaginário lusófono, como já apontava Lourenço (2001), é o
Da pluralidade e da diferença e é através dessa evidência que nos cabe,
ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a
um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido da
partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento cada vez mais
sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e da diferença.
(p. 111)
A partir dessa diferença existente nesses espaços é que nos cabe afirmar que a
Lusofonia só faz sentido se destacarmos as variedades existentes dentro de cada local e
se separarmos como o português europeu, o português angolano, o português
moçambicano, o brasileiro, etc (conforme Brito, 2013b). Cada espaço, convivendo com
diferentes línguas faz com que a língua portuguesa também se transforme e agregue
características pertencentes a tal espaço, diferenciando-se de outras variedades do
português no mundo, já que cada país tem a sua realidade histórica e valores diferentes
um do outro. Assim como também ressalta Franco (2015) uma vez que não existe
nenhuma língua pura em razão de influências históricas anteriores, a Língua Portuguesa
foi construída por todos os que dela se apropriam, pois, mesmo tendo sido afirmada como
“língua de império, língua de dominação ou língua colonial”, ela não apenas colonizou,
mas também “foi colonizada”.
Importante lembrar que a língua é um importante fator identitário de um país, pois
é nela que carrega as características e pela qual se podem traçar as maneiras de pensar e
de agir de um determinado povo. Equivale à afirmação de Lourenço (2001) quanto à não
existência de um “dono” da língua:
Com efeito, uma nação não é dona de sua língua, pois é nela que
encontra as suas imateriais mas não menos resistentes fronteiras, mas
tudo se passa como se fosse. Dizemos que levamos nossa língua ao
Oriente, ao Brasil, às antigas colônias, como se levássemos não só uma
espécie particular de mercadoria, mas a mais preciosa de todas. (p. 189).
Assim, pode-se afirmar que a língua pertence àquele que dela de apropria, pois
não há um “proprietário” da língua (LOURENÇO, 2001). Aquele que utiliza uma
determinada língua, carrega-a de marcas culturais, históricas e valores nacionais, de
afetividade, emoção, intencionalidade, vontade (MARTINS, 2002, apud BRITO, 2013b),
pois “a língua que é a expressão mais visível de uma cultura, resulta da interação dos
membros de uma comunidade, povo ou nação” (MARTINS, 2002, apud BRITO, 2013b,
p. 21). Cabe lembrar, ainda, que a língua, segundo Hull (2001) é o mais importante
24
símbolo nacional, e a escolha de uma língua oficial faz parte da identidade nacional.
Quando falamos de identidade nacional, ela pode ser “definida por memórias e mitos
compartilhados, e símbolos e valores em comum” (SMITH, 1991, p. 21 – tradução nossa),
e um desses valores em comum, que é uma das marcas identitárias de uma nação, é a
língua falada e utilizada pela população, pois faz parte de uma característica pela qual um
povo se identifica, se assemelha, visto que faz parte de toda uma história nacional vivida
e compartilhada e uma pessoa se sente pertencente a um determinado grupo, assim como
destaca Brito (2013b):
A identidade de um grupo – qualquer que seja sua amplitude – é uma
realidade que se destaca na sua representação das demais percepções
de mundo, porque se distingue e assim se reconhece pelos outros. O
sentimento de pertença parece resultar de um movimento de mão dupla:
da exclusão, de diferença diante de uns; de inclusão, de afinidade junto
a outros, considerados pares. (BRITO, 2013b, p. 22)
Quando um país atravessa momentos históricos conturbados que exigem a
participação e a mobilização popular para enfrentar as dificuldades em conjunto,
compartilham memórias que permanecem parte de todo o grupo e o ajudam na construção
da história e da identidade de uma nação, como é o caso dos problemas a serem destacados
no presente trabalho, decorridos em Portugal durante a fase da ditadura salazarista.
Após a instabilidade política e econômica vivida nas duas primeiras décadas do
século XX, e ainda após a Primeira Guerra Mundial, o início de uma nova era política foi
recebida com otimismo pelo povo português. Foi a partir de 1926 que Portugal começou
a viver uma das mais duradouras ditaduras da história, finalizada somente em 1974 –
tendo como governos Ditadura Nacional (1926 – 1933) e Estado Novo (1933-1974). A
convite, o professor universitário António Salazar entrou na carreira política como
Ministro das Finanças. Com sua postura arrojada e autoritária, as alterações que fez no
governo trouxeram melhorias para a população, e aos poucos, com a confiança
conquistada, chegou a Primeiro Ministro, tendo o apoio e o controle sobre toda a equipe.
A postura adotada como Primeiro Ministro era descrita como “anticomunista, antiliberal
e antidemocrática” (AUGUSTO, 2011, p. 21) e assim se manteve durante todo o tempo
em que ficou no poder, até 1968, quando, por motivos de saúde, foi sucedido por Marcello
Caetano. No início, com a entrada de um novo regime, houve uma aceitação por parte dos
portugueses, acreditando que isso poderia ser benéfico para o país, mas juntamente com
a melhoria econômica, vieram também a perda da liberdade de expressão, a censura nos
meios de comunicação, a unificação dos partidos políticos, o nacionalismo exacerbado, a
25
reformulação do ensino de acordo com os interesses de Salazar e a queda da figura
“Presidente”, cabendo ao Primeiro Ministro o poder de todas as decisões. Com essa
atitude dominante, e com o desejo grandioso de “controle extremo na vida dos cidadãos
portugueses” (AUGUSTO, 2011, p. 24), a insatisfação aumentou nos vários estratos da
sociedade e os jovens passaram a demonstrar o descontentamento de múltiplas formas:
música, jornalismo, literatura... veiculadas de maneira camuflada, a fim de escapar da
censura.
Durante esse período do Estado Novo (1933-1974), a população presenciava
mudanças drásticas na política, na educação, na economia, e sofria com a censura imposta
pelo Salazarismo1, sentindo-se aprisionada e impotente para lutar contra as medidas
determinadas pelo regime ditatorial. Essa opressão causou, posteriormente, inúmeros
protestos pelo país e pelas províncias de ultramar, tendo sido uma das formas de protesto
o recurso às canções de protesto, normalmente censuradas pela PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado). Para burlar a censura, os compositores, muitas
vezes, procuravam camuflar o conteúdo das suas produções para que pudessem cantá-las
e divulgar seus ideais, sem a interferência da polícia, ou, ainda, cantavam-nas às
escondidas para que não fossem presos. A análise das letras de composições desse período
possibilita não só relacionar pontos impostos por um governo opressor, mas também
demarcar aspectos da construção identitária do povo português.
Com a repressão exagerada, e a indignação da população ao viver sob tais
circunstâncias, a canção foi uma das saídas para expor os pensamentos, utilizada com a
finalidade de mostrar sua posição, como afirma José Barata Moura, conhecido intérprete
de músicas de intervenção, também perseguido pela censura da época:
uma canção é eficaz desde que, colocando-nos face à realidade, nos leve a
assumir uma posição pessoal perante ela (realidade)[...] a canção deve
acordar-nos para a urgência de darmos respostas verdadeiramente nossas. E
este caminho é sempre o mais custoso: as tentações de demissão são
constantes e, infelizmente, muitas vezes convidativas e/ou opressivas. (apud
MOUTINHO, 1999, p. 28).
José Letria, outro importante cantor de intervenção português, e um dos
entrevistados para a presente pesquisa, afirma que a “canção pode ser um complemento
activo da luta de massas, devido à sua mobilidade e à sua capacidade de denúncia das
contradições sociais” (1981, p. 19)
1 Convém assinalar que, dos 41 anos do regime do Estado Novo em Portugal, 35 anos estiveram sob a
liderança de António Salazar, fazendo com que, muitas vezes, Estado Novo seja chamado de Salazarismo.
26
A canção “símbolo” da Revolução dos Cravos, que marca o início de uma nova
era para o país, foi “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, e o fato de ter sido “a senha
final do golpe militar libertador constitui a confirmação dessa importância cultural e
política” (LETRIA, 1999, p. 5). Mais uma vez, neste caso, o canto de intervenção, como
lembra Letria, se torna “instrumento de mobilização e de consciencialização de largas
camadas da população no combate à ditadura” (LETRIA, 1999, p. 5).
Com o término do Estado Novo, Portugal passa por nova fase de reconstituição e
reformulação governamental para se adaptar às exigências do momento para que o país
não ficasse muito ultrapassado em relação aos demais países da Europa. A partir de 25 de
Abril de 1974, com a Revolução dos Cravos e o início de outro governo, realizaram-se
eleições, fazendo surgir no país a esperança de um futuro promissor, com a adoção de
novas medidas governamentais e uma fase democrática. No entanto, o que se viu a partir
de 1974 foram períodos de grande instabilidade política no país, dificuldades financeiras,
com a permanência dos militares no governo até 1986. A partir de então, a entrada de
Portugal na Comunidade Econômica Europeia (CEE) trouxe novas perspectivas ao país.
Essa integração foi de extrema importância para a economia portuguesa, dando aos
portugueses melhoria de suas condições de vida, diante de um quadro (ilusório) de baixa
dívida pública, com elevado crescimento econômico e queda dos juros (ABREU et al,
2013). Porém, a partir de 1999, após a adesão de Portugal à moeda única, o Euro, o país
é obrigado a viver “acima de suas possibilidades” para poder acompanhar a economia
europeia. As causas apontadas para a crise que se instalou definitivamente no país após
2005 são inúmeras, dentre elas: a elevada dívida externa, as privatizações e as
desregulamentações do setor financeiro, a liberalização dos movimentos de capitais e a
forte instabilidade financeira (ABREU et al, 2013). Além disso, o governo culpabilizou
a população e a má gestão do governo anterior:
segundo o novo discurso oficial, a profunda crise em que Portugal se
encontrava devia-se não apenas aos erros das governações anteriores,
mas também ao comportamento irresponsável dos portugueses, que
andaram – garantem-nos – a viver acima de suas possibilidades (p. 9)
Como veremos adiante, se é verdade que não faltam exemplos de má
governação no passado recente, as condições que conduziram a crise
começaram a avolumar-se há duas décadas, fruto da conjugação de uma
integração europeia disfuncional, de alterações significativas no
contexto global e de fragilidades estruturais da economia e da sociedade
portuguesa. Tais condições foram agudizadas pela crise financeira
internacional de 2008-2009, cujos efeitos se fizeram sentir em
27
diferentes países do mundo, mas que afetaram de modo mais acentuado
economias que apresentavam à partida maiores fragilidades. Assim
sendo, é difícil sustentar que foram essencialmente os erros das
governações anteriores – que existiram e não devem deixar de ser
apontados – que nos conduziram à crise e ao recurso à assistência
financeira externa. (ABREU et al, 2013, p.10)
Com a implantação do Euro, Portugal vê o início de uma década com grandes
mudanças para a economia portuguesa. As condições que geraram a crise começaram a
ampliar, na verdade, há duas décadas, devido às alterações significativas no contexto
global e à vulnerabilidade da estrutura da economia portuguesa (ABREU et al, 2013). Foi
após a virada do século que as taxas da dívida pública portuguesa começaram a disparar,
piorando a partir de 2008, por conta da crise econômica internacional e suas implicações,
como a forte quebra do PIB, os seus efeitos sobre as finanças públicas (como a diminuição
das receitas fiscais) e a adoção de medidas pontuais de estímulo à atividade econômica.
Com o desemprego, a elevada dívida externa, as taxas de emigração e a crescente
desigualdade social, os portugueses manifestam-se contra as medidas adotadas pelo
governo, relembrando situações semelhantes vivenciadas durante a ditadura, voltando às
ruas a fim de mostrar a indignação e de criticar a postura dos governantes. O espaço
público foi tomado por vozes que relembram, em certa medida, o período marcado pela
repressão, repetindo o tom de insatisfação em relação à situação do país, e esperando que,
com as manifestações, novas medidas sejam tomadas na expectativa de melhores dias.
Os problemas já apontados, somados à necessidade de ajuda externa e à solicitação
de intervenção da Tróika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e a
Comissão Europeia), geraram manifestações por todo o país, como a “Que se lixe a
Tróika” (CAMARGO, 2013). Assim, Portugal, com cortes na despesa pública, atravessou
uma crise com inúmeras consequências desastrosas para o país, dentre as quais:
desemprego, instabilidade profissional e pessoal, o alastramento da privação material, a
emigração forçada, o aumento das desigualdades, as falências no setor empresarial,
configurando uma das piores crises da história portuguesa.
Entre 2012 e 2013, com a insatisfação diante da crise aumentando, os portugueses
vão às ruas e recuperam canções de intervenção marcantes nos anos 70, como a
composição de Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena”. Essa canção fez novamente
presença em algumas das manifestações decorridas atualmente, não somente em Portugal,
como também na Espanha e na Bélgica.
28
Tendo esse cenário como pano de fundo, levantou-se o conjunto de canções de
protesto memoráveis naquele contexto, a partir de depoimentos (colhidos especificamente
para este trabalho) de jornalistas, intelectuais e compositores dos quais foram retirados
elementos para a seleção das composições que fazem parte do corpus de análise.
Diante do exposto, a tese está estruturada em três grandes capítulos, com subitens
que auxiliam na divisão e organização da pesquisa. No primeiro capítulo, intitulado
“Aspectos Históricos de Portugal do Século XX: Notícias do Meu País”, faz-se breve
exposição sobre a história de Portugal, mostrando a trajetória de Salazar no governo, na
implementação da Ditadura Nacional e do Estado Novo e algumas das mudanças
significativas que fez ao assumir o poder, dentre os quais a reforma do ensino escolar e a
criação e reorganização da polícia política. Nesse capítulo, também se apresentam
eventos que contribuíram para a permanência de Salazar no poder e outros que
prejudicaram o seu governo, fazendo com que a população começasse a desconfiar da sua
política, como as eleições de 1958, o ‘terremoto delgadista’, a abrilada e a Guerra
Colonial. Também será abordada a Primavera Marcelista, de Marcello Caetano, governo
que deu continuidade ao Salazarismo, abrindo, a partir de então, as portas para a
Revolução dos Cravos, em 1974. O capítulo finaliza com o período revolucionário e as
mudanças ocorridas com a queda do Estado Novo.
O capítulo seguinte, denominado “Perspectivas da Memória do 25 de Abril: a
História na Voz de quem a Viveu”, traz trechos selecionados e comentados das entrevistas
realizadas com as personalidades citadas. Desse modo, uma vez que os depoimentos
contemplam aspectos da memória individual e coletiva, visto que muitas das declarações
não estão documentadas pela História ou registradas em documentos, recorreu-se ao
aporte teórico dos conceitos de memória e história, fundamentados principalmente em
Halbwachs (2006, 2013), Le Goff (1996) e Traverso (2009). Estando a memória em
processo de constante construção (TRAVERSO, 2009), ela é filtrada por conhecimentos
adquiridos posteriormente podendo modificar as recordações. Por ser uma pesquisa que
recorre a informações relatadas a partir de lembranças de um regime finalizado há mais
de quarenta anos, muitos pormenores podem ter sido omitidos ou distorcidos pela própria
memória do depoente, como levantado numa autobiografia de José Letria (1999),
utilizada para elucidar alguns detalhes das entrevistas realizadas.
Ainda neste segundo capítulo, apontam-se detalhes da história dos entrevistados,
especialmente no que diz respeito à luta durante o regime salazarista. Com o suporte das
29
literaturas disponíveis (LETRIA, 1999, 2013; RAPOSO, 2014; GUERREIRO e
LAMAÎTRE, 2014), e a transcrição de alguns trechos, procurou-se resgatar a imagem que
tinham do Estado Novo. Foram entrevistados:
a) o escritor e jornalista José Jorge Letria – que à época do regime ditatorial
também integrava o grupo dos “cantores de intervenção”;
b) o cantor Francisco Fanhais – também padre e professor;
c) o cantor Sérgio Godinho - exilado no exterior, regressando após o 25 de Abril;
d) o professor catedrático da Universidade de Lisboa, António Borges Coelho -
historiador e ativista durante o regime;
e) o professor da Universidade de Lisboa, Pedro Calafate que, ainda muito jovem
durante a ditadura, viu na música uma forma eficaz de mostrar o seu
descontentamento;
f) o professor da Universidade Nova de Lisboa, Fernando Rosas - historiador
durante o regime e ativista político.
Nas entrevistas, os depoentes mencionaram a importância da música,
especialmente as de Zeca Afonso, considerado o precursor das canções como forma de
protesto, e como a música atua como elemento de conscientização. Também foi dedicado
um item para falar da importância da carreira de Zeca Afonso e seu impacto nas
entrevistas e na vida das pessoas até hoje, e suas canções de grande importância fazem
parte da análise que compõe o último capítulo do presente trabalho.
No capítulo 3, “Escutando as Vozes de quem Resiste: Há sempre alguém que Diz
Não”, dedicado inteiramente à análise das canções selecionadas principalmente a partir
das entrevistas, a saber: Os Vampiros, Menina dos Olhos Tristes, Grândola Vila Morena,
Menino do Bairro Negro (todos de Zeca Afonso), Cantar da Emigração, Trova do Vento
que Passa (de Adriano Correia de Oliveira) e Liberdade (de Sérgio Godinho), esta última,
sendo lançada logo após o 25 de Abril. Para a análise, foram levados em consideração os
aspectos: estrutura da composição, seleção lexical e aspectos simbólicos de alguns
termos. Além disso, procurou-se, na medida do possível, descortinar a pluralidade de
sentidos das canções. Convém assinalar que, embora não seja objeto deste estudo tratar
dos ritmos, melodia e instrumentos musicais utilizados nas diversas canções, algumas
30
considerações foram feitas na medida em que colaboraram para melhor compreensão das
composições.
Em todos os capítulos, além de referências incluem-se documentos de difícil
acesso, alguns reproduzidos diretamente de arquivos históricos e outros recuperados de
websites oficiais destes órgãos – mediante autorização para publicação (ver ANEXO A)
– contribuindo para confirmar algumas das informações tratadas no estudo. Outros
métodos utilizados para enriquecer este trabalho foram os registros por meio de imagens
e fotografias que reforçam a recuperação das canções analisadas, assim como a
importância que os cantores ainda têm na sociedade atual.
Seguindo-se às Considerações Finais e às Referências, incluem-se os Anexos,
contendo fotos de autoria da pesquisadora e documentos históricos, a fim de comprovar
a relevância dos eventos ocorridos durante o regime do Estado Novo mencionados no
decorrer da tese. A última página contém um DVD com a gravação das entrevistas feitas
em Portugal e um CD com a reprodução das canções analisadas.
31
Figura 1 - Fonte: Livro da Primeira Classe, p. 39
A ignorância é que nos pacifica, a paz está metida na ignorância,
pronta para levar as pessoas à felicidade.
e isto era a receita do regime.
(Valter Hugo Mãe, em A Máquina de fazer Espanhóis)
CAPÍTULO 1
ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL DO SÉCULO XX:
“NOTÍCIAS DO MEU PAÍS”
32
1. ASPECTOS HISTÓRICOS DE PORTUGAL DO SÉCULO XX:
“NOTÍCIAS DO MEU PAÍS”2
O Estado Novo, instituído por António de Oliveira Salazar, pretendia resgatar os
valores portugueses do período dos grandes descobrimentos, quando Portugal desfrutava
de um enorme prestígio entre as nações europeias. Na visão de Salazar, a recuperação
desse “orgulho” poderia ser obtida, dentre outras formas, por meio de propagandas,
panfletos e discursos, nos quais Salazar detinha o controle necessário para propagar essa
ideologia. Nesse governo, surge o lema “Deus, Pátria e Família”, introduzido pelo regime
para colaborar com a mudança de postura que se esperava da população, enfatizando a
importância de se respeitar, incontestavelmente, e a amar, incondicionalmente, a Deus e
à Pátria acima de tudo. Convém destacar que, no período, a Igreja também passou para o
controle total do Estado, sendo mais um fator favorável para a disseminação do ideário
salazarista.
Com essa tentativa de reconstrução de valores, uma imagem nova e, de certa
forma, esperançosa, foi-se criando no país, procurando fazer com que cada indivíduo se
sentisse parte essencial da “grande” nação portuguesa. Assim, as pessoas foram,
paulatinamente, absorvendo os novos ideais que culminariam numa estabilidade
socioeconômica do país e passaram a demonstrar confiança no regime, que tudo sabia e
a quem se devia obediência e respeito. Com isso, o salazarismo recupera a imagem de
um “Portugal Heróico”, por meio, por exemplo, das propagandas noticiadas pelo
Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), mostrando o desenvolvimento de Portugal
e o crescimento econômico das colônias. A exposição do Mundo Português, ocorrida em
Lisboa, em 1940 foi outro evento de importância para a afirmação dos ideais do Estado
Novo, que procurava mostrar os benefícios e a grandiosidade da nação ao se expandir
para os espaços colonizados da África e Ásia.
Não seria tarefa fácil para Salazar incutir nos cidadãos esse novo ideário e fazer
com que acreditassem no sucesso do seu governo. António Salazar assumiu como
ministro para exercer o papel de “Salvador da Pátria”, de “herói”, e com essa imagem e
com seus feitos, ganharia a população e se tornaria indispensável para o país, porém, para
alcançar esse objetivo, seria necessário que Salazar, antes, destituísse as pessoas de seus
2 Um dos versos da Canção “Trova do Vento que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira, analisada no
terceiro capítulo.
33
valores para que fosse possível assimilar novas ideias. A ideia do “Homem Novo”
(ROSAS, 2001) estaria assim formada, auxiliando a prolongar o regime totalitário,
“atingindo através da intervenção de órgãos do Estado ou do partido especializados nessa
‘moldagem’, intervenção autoritária, unívoca e inculcatória a todos os níveis de
sociabilidade – desde a família à escola. Passando pelos lazeres e o trabalho” (ROSAS,
2013, p. 318)
A escola foi fator importante para a proliferação do pensamento salazarista, pois
por meio dela se ensinava o amor inconteste à pátria [e ao seu líder] desde o primeiro
ciclo obrigatório, além da reestruturação para se adequarem ao novo método. As crianças
tinham uma rígida disciplina e aprendiam por meio de uma apostila que ressaltava esses
ensinamentos nacionalistas e os professores – e também regentes escolares – também
eram escolhidos e treinados por ministros de Salazar, para saber se eles lecionavam
conforme o que pregava o Estado, e se iriam incutir na mente das crianças os reais valores
preconizados pelo regime.
Ressalta-se, ainda, a criação de um grupo juvenil, denominado “Mocidade
Portuguesa”, que abrangia crianças e jovens dos sete aos catorze anos, a fim de estimular
o desenvolvimento integral da sua capacidade física, a formação do caráter e a devoção à
Pátria – modelo que Salazar buscou na “Juventude Hitlerista” alemã. Enquanto os
meninos aprendiam a importância da observância dos deveres morais, cívicos e militares,
as meninas deviam compreender o valor dos afazeres domésticos e o papel da mulher na
família.
Nos tópicos a seguir, detalha-se sobre a entrada de Salazar no governo e
perpetuação do regime, conseguindo encobrir e reprimir inúmeras manifestações
contrárias, não somente as que ocorreram internamente no seu governo, mas também as
que vieram de fora, especialmente de grupos de jovens com o início da Guerra Colonial.
1.1 I REPÚBLICA (1910-1926)
Entre 1910 e 1926 Portugal viveu sob o regime republicano, conquistado após
uma revolução que destronou a monarquia constitucional. Este período foi marcado por
inúmeras mudanças e eventos conturbados, como a I Guerra Mundial, que trouxe
instabilidades políticas e econômicas que culminaram no atraso do país em relação a
outros países da Europa, gerando insatisfação popular. As eleições presidenciais ocorridas
34
frequentemente (1919, 1921, 1922 e 1925) mostram a grande fragilidade do governo e a
necessidade de uma mudança que pudesse fortalecer o país e restabelecer a confiança da
população. Com a desvalorização da moeda, o aumento da inflação, da dívida externa, e
a perda dos lucros, o Estado foi incapaz de converter essa situação, gerando confrontos e
descontentamento popular, e, após algumas tentativas de golpe falhadas, o Exército
finalmente tomou o poder em 28 de maio de 1926, dando início a uma das mais
duradouras ditaduras do século XX.
1.2 DITADURA NACIONAL (1926-1932)
Com o fim da I República, após o golpe militar do dia 28 de maio de 1926, inicia-
se em Portugal um período inicialmente conturbado denominado por Ditadura Militar, o
qual o general Óscar Carmona, um dos militares que apoiou o golpe, tornou-se o primeiro
ministro do país, e fez parte do governo até 19513, ano de sua morte.
Uma das maiores dificuldades de início do governo, assim como ocorre em todas
as transições, foi unir as forças dos participantes do golpe para um mesmo ideal. Com
ideias, projetos e pensamentos diferentes após a queda da República, os anos iniciais da
ditadura foram conturbados, trazendo dificuldades ao país, não somente de controlar a
situação, mas de gerar uma política estável e de engrenar um novo projeto duradouro que
fosse bem-sucedido ao governo (GÓMEZ, 2011).
Foi ainda nesse ano que o presidente convidou o renomado professor da
Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar para integrar o ministério das
Finanças, por ser bem-conceituado e ser um dos principais nomes da área para voltar a
fazer o país prosperar. Como foi algo feito de uma maneira sigilosa, poucos sabem o que
sucedeu no pouco tempo em que Salazar ocupou tal cargo, parecendo querer esquivar-se
da política: “ao contrário de seus colegas que rapidamente tomaram posse, Salazar não
gostou do que viu e regressou prontamente a Coimbra, escudando-se atrás de alegados
problemas de saúde” (MENESES, 2011, p. 67). Outras fontes dizem que ele teria
problemas ao trabalhar com uma equipe, pois ele
não era um homem para estar à volta de uma mesa a suportar o convívio
da governação, ouvindo opiniões de uns e de outros, aquiescendo
numas, repudiando outras, discutindo até ao ponto de se alcançar um
3 O general Óscar Carmona foi o primeiro-ministro de Portugal de 1926 até 1932, quando Salazar assumiu
o seu lugar. A partir daí ele cumpriu a função de presidente, cargo que ocupou até a data de sua morte, em
18 de abril de 1951.
35
consenso geral. Era homem para mandar e ser obedecido, sem
condescendências, nem hesitações. (CARVALHO, 2001, p. 721)
Mas, dias depois, voltou forçado à Lisboa para tomar posse. Salazar era alguém que podia
transformar Portugal ao ajudar a equilibrar as finanças, e isso era visto pelas pessoas que
ocupavam o governo como uma das únicas saídas, pois ele tinha o poder de provocar
profundas mudanças no ramo político, econômico e social e trabalharia com um “duplo
objetivo: desenvolver o país e modernizá-lo” (idem, p. 68). Como um católico praticante
que era, Salazar também queria recuperar os valores que foram perdidos nos governos
anteriores, entre eles a religião, além de patriotismo e família (os três pilares do ensino
que implantou anos mais tarde). Após alguns problemas no governo, Salazar se afastou
temporariamente da política e alguns percalços na sua vida pessoal – sua mãe faleceu
após uma longa enfermidade – Salazar voltou informalmente para ajudar Óscar Carmona,
e trabalhou mostrando suas alternativas para solucionar a crise financeira, mas sem título
de Ministro das Finanças, ocupado por outra pessoa.
Ganhando espaço na política e a confiança de todos, ele se mostrava uma pessoa
sábia, eficiente e sabia criticar quando algumas medidas errôneas eram tomadas por parte
do governo. Era normal naquela época que algum professor de nome enveredasse na
política, pois numa sociedade predominantemente rural, não havia muitos homens com
uma ótima educação capazes de controlar um país, e o fim que poderia ser reservado a
ele, e que ele bem sabia era a permanência na política e sua ascensão como o primeiro-
ministro.
Com uma nova eleição presidencial em 1928, em que Óscar Carmona era o único
candidato, venceu as eleições e seu primeiro-ministro, mandou novamente recrutar
Salazar como ministro das Finanças, pois considerava que ele era “alguém da mais alta
competência e que o país inteiro considera como um dos seus maiores valores intelectuais
e técnicos em assuntos financeiros” (FREITAS apud MENESES, 2011 p. 81). Assim,
com a insistência do governo, e pouco tempo para pensar na proposta, Salazar aceita um
novo convite, mas não sem algumas condições: todos os ministérios deveriam ser
subordinados a ele e todas as suas ordens no âmbito econômico e financeiro deveriam ser
obedecidas. Salazar pensou muito na proposta pelo fato de ter de abandonar o seu cargo
de professor na Universidade, função que o fazia com o maior prazer. Além disso,
pensava que poderia ser vergonhoso para ele perante os seus alunos caso não conseguisse
controlar as finanças do estado (MENESES, 2011), visto que toda a carga e a esperança
36
de dias melhores caíam sobre ele. A partir das exigências propostas – prontamente aceitas
– foi empossado em 27 de abril de 1928, um dia antes de completar 39 anos, começando
a partir daí a sua longa trajetória no comando do país.
Ressalta-se que, diferentemente dos demais ditadores da época, como Franco, na
Espanha; Hitler, na Alemanha e Mussolini, na Itália, Salazar não alcançou o poder à força
– pois o seu cargo foi praticamente “insistido” para que o ocupasse, e, após uma rejeição,
só o aceitou mediante tais exigências – podendo o governo acatá-las ou não.
O seu conhecimento sobre muitos assuntos, não somente na área das finanças, em
conjunto com a sua personalidade, fez dele praticamente um chefe da nação, ganhando
espaço na política e mostrando serviço que deram rápidos resultados. Em pouco tempo,
mostrou sua postura e competência e, ao lidar com as Forças Armadas, já o fazia com sua
postura altamente autoritária e controladora:
O homem que falava às Forças Armadas nos termos referidos, doze dias
apenas após a sua entrada no governo, não era, evidentemente o
ministro das Finanças, de uma pasta entre outras. Era já o chefe, o
portador de uma mensagem, o executor de uma doutrina, cujo dedo
indicador da mão direita, tenso e convincente com o cano de uma arma,
apontava o caminho a seguir, inexoravelmente. (CARVALHO, 2001,
p. 723)
Os cortes no orçamento e o seu plano de governo conseguiram superar os grandes
desafios iniciais, que era equilibrar as finanças e terminar o ano com superávit. Todo esse
controle seria feito a partir de uma “política de sacrifícios”, à qual as pessoas e o governo
teriam de se adequar para equilibrar as finanças do estado e acabar com a dívida externa.
Em discurso proferido em 1929, Salazar explica as suas medidas, adotando sua política
de verdade, política de sacrifícios e política nacional:
Num sistema de administração, em que predominava a falta de
sinceridade e de luz, afirmei, desde a primeira hora, que se impunha
uma política de verdade. Num sistema de vida social em que só direitos
competiam, sem contrapartida de deveres, em que comodismos e
facilidades se apresentavam como a melhor regra de vida, anunciei
como condição necessária de salvamento, uma política de sacrifício.
(SALAZAR, 1935, p. 23)4
Salazar, em alguns de seus discursos, insiste que muitos dos problemas nacionais
deviam-se à má administração dos governos anteriores. Ele pedia calma e paciência à
população para que tais erros pudessem ser corrigidos passo a passo e para que Portugal
4 Discurso proferido na Sala do Conselho de Estado, em 21 de outubro de 1929.
37
voltasse a ter o controle financeiro necessário para o desenvolvimento do país. Adiante,
na continuação do discurso anterior, ele exemplifica alguns desses erros:
Quando se observa a sucessão dos acontecimentos, sobretudo nos
últimos dez anos, verifica-se que o Estado teve a política, consciente ou
não, de poupar ao imposto o produtor português; mas como
simultaneamente não houve a preocupação de reduzir as despesas, e
estas mesmo não poderiam baixar além de certos limites, arranjou-se
maneira de confiscar os capitais para substituir o que não vinha nem do
imposto nem do empréstimo. São dezenas de milhões de libras os
capitais que em títulos da dívida pública, em créditos particulares, em
acções e obrigações de empresas, em prestações de dinheiro, em
remunerações de serviços, em mobilizações afectas a serviços
particulares e públicos se sumiram pela desvalorização da moeda,
foram transferidos de uns possuidores a outros e gastos em desperdícios
de vida larga, com a ilusão de serem rendimentos o que de facto era
uma fracção importante do capital nacional. (SALAZAR, 1935, p. 31-
32)
Um dos deveres que Salazar impunha focalizava a política nacional, e a
importância de valorizar e de dar preferência ao que era português, além de resgatar os
valores do nacionalismo e patriotismo, mostrando, também, a extensão do país e suas
colônias, um dos pilares de seu governo:
A primeira exigência da política nacional, como o primeiro dever dos
governantes, é o reconhecimento, é o sentimento profundo da realidade
objectiva na Nação Portuguesa em toda a extensão territorial de sua
Metrópole, das suas ilhas e das suas Colónias, em todo o conjunto da
sua população – uma realidade histórica e uma realidade social. [...]
Nada contra a Nação, tudo pela Nação. [...] Impõe-se aos governos
uma política nacional; e em face dela aos governados impõe-se também
uma atitude, um sentimento nacional – com a disposição de trabalhar
pela Nação, o apreço, o amor do que é português. Às inteligências, ao
trabalho, à economia, à finança impõe-se, com os olhos abertos sobre o
mundo, ter o coração voltado para Portugal, e assim se evitará o
desconhecimento das nossas coisas e o menosprêzo dos nossos maiores
interesses. (SALAZAR, 1935, p. 34-35, grifo do autor)
Já em outro discurso, um ano depois, Salazar, insatisfeito com algumas
considerações da população em relação aos problemas acarretados com a ditadura
nacional, (fazendo já quatro anos do golpe de 1926), o então ministro afirma:
Dizem que os reis não têm memória; parece que os povos têm muito
menos ainda. A dar crédito a coisas que por aí se escrevem, e a muitas
mais que por aí se dizem, quatro anos decorridos de Ditadura seriam
como se não existissem na história de Portugal: na ânsia de melhorias e
de maiores progressos esqueceram-se já os males de que vínhamos
38
sofrendo, e não se aprecia devidamente o bem que temos agora.
Avivemos nós o passado, para fazermos justiça ao presente. Antes de
haver entrado no trabalho de reorganização, uma palavra só – desordem
– definia em todos os domínios a situação portuguesa. (SALAZAR,
1935, p. 46, 47 – grifo do autor) 5
Sua trajetória como ministro das finanças não foi de tranquilidade para com a
equipe do governo, pois o seu temperamento e suas ações podem ter causado desafios
para aqueles que trabalhavam com ele. Especialmente em 1928, duas pessoas se
rebelaram e deixaram o cargo, sendo uma delas o primeiro-ministro coronel Vicente de
Freitas, e outro colaborador, Mário de Figueiredo, que também deixou o governo por
desavenças com Salazar. Encontrar uma pessoa para trabalhar diretamente com ele não
era tarefa fácil para o presidente Óscar Carmona.
Salazar criou em 1930 a União Nacional, movimento que visava integrar todos
aqueles que apoiavam seu governo e a ditadura militar - o que foi benéfico para o seu
governo e também daria um rumo ao seu poder que se iniciaria dois anos depois.
Sendo suas medidas bem-sucedidas, o povo pôde perceber alguns benefícios de
seu governo, visto que Portugal conseguiu passar sem grandes problemas pela Grande
Depressão. Após a Crise Econômica de 1929, Salazar ganhou espaço na política e, em
1932, tornou-se o primeiro-ministro do país, começando, a partir daí, a “sua verdadeira
obra”6. Além de salvar o país economicamente, ele mudou a forma como o restante da
Europa via Portugal, pois o país era visto como inferior em relação aos demais, mas que
com o tempo e com as mudanças de Salazar, o país começou a ser mais respeitado
(MENESES, 2011).
Rosas (2013) ressalta que há mitos que rodeiam a fase inicial da Ditadura
Nacional, pois a ideia gerada é a de que a população aceitou passivamente toda a mudança
da I República para a Ditadura. O Golpe Militar de 1926 também não foi facilmente
reconhecido e muitos grupos desde então tentavam se rebelar contra a política instaurada,
mas todas elas foram frustradas. Novos problemas foram gerados e até 1930 o governo
precisou acalmar as forças contrárias para conseguir seguir adiante. Ainda segundo Rosas
(2013, p.70), “a transição da Ditadura Militar para o Estado Novo, para além do combate
5 Discurso proferido na Sala do Risco, em 28 de maio de 1930, onde oficiais do Exército e da Armada se
reuniram com o governo para comemorar o quarto aniversário da Ditadura Nacional. 6 Frase bastante utilizada por Henrique Galvão (1895-1970), um dos ministros do governo que se revoltou
contra os atos praticados por Salazar e lançou a Carta Aberta a Salazar (2010), para mostrar a todos a
“verdadeira obra” do primeiro ministro, visto que mascarava os problemas e divulgava apenas as boas ações
que sua gestão desenvolvia.
39
[...] externo dos ditadores contra o ‘reviralhismo’7 foi um período de dura luta interna
pela hegemonia entre as várias direitas que nela se reuniam.”. Ainda assim, após a entrada
de um novo regime chefiado por Salazar, ele só conseguiu ter o controle geral por causa
dos acordos estabelecidos com o Exército – com os seus comandos liberais
conservadores.
1.3 O ESTADO NOVO (1932 – 1974)
Salazar tomou posse como primeiro ministro no dia 5 de julho de 1932, e fundou
o “Estado Novo”, praticamente uma continuação da “Ditadura Nacional”, mas com
“outros homens”: “A razão é que os homens que constituem o Ministério são outros, mas
o governo é o mesmo – o Govêrno da Ditadura Nacional, que tem as suas ideias assentes
e as principais directrizes traçadas” (SALAZAR, 1935, p. 153)8.
Uma de suas primeiras medidas para “unificar” o país foi a dissolução de partidos
políticos, ficando apenas um partido único, a União Nacional. Nela só estariam aqueles
que concordassem com todos os princípios da ditadura, para que a integração das ideias
e das medidas fosse feita de maneira mais fácil. Para Salazar, a Nação correria perigo
caso não houvesse essa medida:
Chegou, entretanto o momento de se preparar a promulgação do novo
estatuto constitucional e de se dar à União Nacional o seu corpo
superior de direcção. [...] [Sobre a união dos portugueses:] a sua
necessidade baseia-se sempre nas dificuldades internas ou externas, nos
perigos que corre a Nação, na transcendente delicadeza do momento
histórico que se atravessa e não permite alterações,nem mudanças, nem
reformas. Assim costumam os governos aquietar aos seus inimigos,
reforçar transitòriamente as suas posições e alongar um pouco a sua
vida. Esta consideração faz-me algum tanto receoso da interpretação
que se dê ao que intento dizer; anima-me o facto de serem bem visíveis
os males e perigos presentes e de apelo ser feito não para salvar homens,
grupos ou partidos, mas a Nação e os seus interesses vitais, na ordem
material, na ordem política e na ordem moral. (SALAZAR, 1935, p.
161-2)
7 Reviralhismo, provavelmente derivado do verbo “Revirar” foi o termo utilizado pelo governo para
designar qualquer movimento revolucionário que ia contra a ditadura. Esses movimentos eram no geral
encabeçados por republicanos que planejavam revoltas para enfraquecer o regime ditatorial. 8 Ato de posse de Salazar no dia 5 de julho de 1932, na sala do conselho do Estado.
40
Salazar afirmava que a “Ditadura Nacional [...] declarou dissolvidos os partidos”,
mas os partidos também foram perdendo força e muitos se dissiparam por si só. Algumas
pessoas perceberam o poder do Estado Novo e outras se rebelaram contra o regime e a
dissolução de partidos, com pensamentos que iam contra os de Salazar. Desse modo,
Salazar apela aos monárquicos e aos católicos para que desistam das
suas pretensões políticas particulares e das suas organizações políticas
próprias, quando existissem, e se juntem na plataforma de todas as
direitas apoiantes do regime que se pretendia que fosse a União
Nacional. (ROSAS, 2013, p. 30)
Antes de tudo, o primeiro-ministro pregava também que não era de política que o país ia
sobreviver, mas de “trabalho árduo e de uma vida regrada e equilibrada” (MENESES,
2011, p. 122), portanto não adiantava toda mobilização da população, pois a política
precisava assumir o seu lugar próprio. A proibição de se ter outros partidos também era
uma questão de ir contra ao que era pregado pelo regime, pois se ele queria uma
unificação nacional, os partidos não teriam vez na ditadura:
No regime de verdade salazarista os partidos políticos são recusados
por não reproduzirem a ação na sua verdadeira natureza. São
importações do liberalismo e, por isso, fazem-na entrar em decadência,
provocando a sua degenerescência. Mas este discurso sobre a memória
histórica não é tudo. Os partidos políticos são recusados, também,
porque fragmentam o espaço nacional, que se quer uno. São a figura de
um país não conforme ao bom senso de uma reta razão, ou seja, são
uma irracionalidade. (MARTINS, 2014, p. 189 – grifo do autor)
Pensando apenas na sobrevivência do seu governo, mais medidas foram criadas
para fortalecer o Estado Novo, e uma nova Constituição foi promulgada em 1933.
Também nesse ano a censura foi finalmente regulamentada, e a Política de Vigilância e
Defesa do Estado (PVDE) passou a funcionar como forma de repressão contra tudo o que
fosse oposição ao regime (mais detalhes no subitem 1.3.2). Foi criado também em 1933,
por António Ferro9, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) – mudando de nome
em mais duas ocasiões durante o Estado Novo: Secretariado Nacional de Informação
(SNI) em 1945, e Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT) de 1968 a 1974.
Esse órgão era responsável pelas propagandas e meios de comunicação que visava
promover as obras e os benefícios que estariam sendo feitos no governo. Tais divulgações,
na verdade, apresentavam um país não como ele realmente era, mas como ele deveria ser.
9 António Ferro foi o grande idealizador do SPN, ao sugerir a Salazar a importância de uma secretaria que
fosse responsável por promover eventos a favor do regime, e divulgar, por meio de propagandas panfletárias
as obras de Portugal. António Ferro permaneceu como o diretor desse órgão por 17 anos, desde a sua criação
em 1933 até 1950 (já sob o novo nome – SNI)
41
No entanto, o mito que Salazar passou a incutir na mente da população era o de que
Portugal estaria se desenvolvendo graças a sua nova política e de que seu governo seria o
único capaz de proporcionar tais mudanças positivas para o país. O SPN começou a ser
veiculado em 1934 na Exposição Colonial realizada no Porto, idealizada por Henrique
Galvão10, na época um dos ministros do Ultramar, e tanto o SPN como a Exposição
enfocavam as ações praticadas nas terras ultramarinas, tratadas pelo governo como terras
portuguesas localizadas além mar. Com essa abordagem sobre as colônias, a imagem de
um Portugal gigante era veiculada não somente nessas amostras, como também passou a
integrar livros de história que estampavam essa ilustração como uma verdade a ser
exposta para que todos pudessem ter a noção do real tamanho do país situado na periferia
da Europa.
Figura 2 – SPN “Portugal Não é um País Pequeno”11
As figuras acima procuram ilustrar o tamanho dos países colonizados por Portugal
em dois diferentes mapas. A primeira, com a inscrição em português “Portugal não é um
país pequeno” e com os mapas das províncias ultramarinas colocadas sobre alguns países
da Europa, mostrando assim, a grandiosidade do Império Português. A segunda figura
traz a mesma inscrição, escrita em inglês, para atingir os estrangeiros – especialmente
americanos – colocando a imagem do império português preenchendo o mapa dos Estados
Unidos da América, também com o intuito de revelar a dimensão de Portugal e de seus
domínios. Essas imagens serviam para expressar o orgulho de pertencer a uma pátria
10 Henrique Galvão foi um fervoroso salazarista, capitão do Exército, que trabalhou nas Exposições do
Mundo Português e foi Inspetor da Administração Colonial até meados de 1950, quando começou a se
desiludir com Salazar. Ao tentar levar outros militares a seu favor, foi expulso e preso, e, ao fugir, refugiou-
se na Argentina e Venezuela. Tornou-se famoso ao organizar um assalto, desviando o paquete português
Santa Maria, conseguindo, com a façanha, chamar a atenção do mundo para o que ocorria em Portugal.
Depois da operação, vendo o resultado desfavorável, pediu asilo político às autoridades brasileiras, onde
permaneceu até a sua morte, em 1970. 11 Retirado do website: http://durrutilog.blogspot.com.br/2010/08/nostalgia.html
42
poderosa e composta por uma diversidade de etnias e culturas. Vale assinalar que a
primeira dessas figuras foi amplamente veiculada em livros de História durante todo o
regime, mostrando-se uma das mais emblemáticas e memoráveis formas de representação
da nação durante o Estado Novo.
O modelo de regime idealizado por Salazar em muito tem a ver com os regimes
totalitários que ocorreram na Alemanha, chefiada por Hitler e na Itália, por Mussolini.
Tais modelos pregavam uma total autoridade por parte dos governos, uma ditadura que
contava com um partido único e com uma censura que dava conta de proibir tudo o que
pudesse prejudicar o regime. Muitos futuramente delatavam o seu modelo totalmente
reproduzido do nazismo e fascismo, embora Salazar nunca o tivesse realmente confessado
de que suas ideias de fato vinham dessas políticas – até porque após a queda delas, o
modelo dele, enfraquecido, teve de tomar outros rumos. Um dos delatores mais danosos
para o governo foi o general Henrique Galvão, um antigo ministro das Colônias, que
percebeu as atrocidades e se desvencilhou do governo, tentando divulgar ao mundo as
“verdadeiras obras” de Salazar. Em sua Carta Aberta a Salazar (2010)12, ele anuncia:
Seria então muito grato aos teus desígnios e espírito (como se verificaria
durante a guerra), alinhar o país com a Alemanha de Hitler e a Itália de
Mussolini – as tuas escolas e os teus mestres – contra o comunismo.
Mas faltavam-te forças, povo e situação geográfica para te levantares
abertamente contra as democracias ocidentais que detestavas e das
quais te sentias espiritualmente muito mais distante do que do
comunismo. (GALVÃO, 2010, p. 44)
Galvão (2010) compara o modelo escolhido por Salazar com os modelos de outros
ditadores do mundo, como a existência da União Nacional, também existente na
Alemanha e na Rússia; a Mocidade Portuguesa, cópia da “Juventude Hitleriana”
(Alemanha) e dos “Balilas” (Itália); e também quanto à questão da existência da polícia
política, modelo da Gestapo (Alemanha) e da Milizia Volontaria per la Sicurezza
Nationale (MVSN), da Itália (PIMENTEL, 2007; GALVÃO, 2010).
Com um partido único, a censura, a SPN, e o controle do exército a seu favor,
Salazar tinha em mãos tudo o que era necessário para mascarar os problemas e fazer a
população acreditar em si e o seu governo “prosperar”. As estratégias utilizadas por ele
12 Obra escrita por Henrique Galvão e lançada em Lisboa pela primeira vez em 1960. Entretanto, devido à
censura, foi apreendida, assim como a segunda e a terceira edições. Henrique Galvão faleceu antes do
término da ditadura, tendo sido sua obra finalmente lançada, sem apreensões, em 2010.
43
no seu governo eram justamente as propagandas, as exposições, tanto a Exposição
Colonial do Porto de 1934 como a exposição do Mundo Português em 1940, e esses
eventos serviram para apresentar uma mensagem fictícia de um Portugal idealizado por
Salazar, e não o país que realmente era, formando um dos vários mitos do Salazarismo
(MARTINS, 2014; ROSAS, 2013).
As exposições foram forma de divulgação do Estado Novo para o mundo, e
também para a população nacional voltar a sentir o patriotismo há muito tempo
enfraquecido no país.
A Exposição “O Mundo Português” ocorreu em Lisboa, na Praça do Império,
próximo ao Mosteiro dos Jerônimos e à Torre de Belém, no ano de 1940, ano também de
comemoração dos 800 anos de independência do país (1140) e 300 anos de independência
reconquistada (1640). Essa exposição tinha um caráter histórico, e as apresentações
perpassavam as conquistas desde a época medieval até aquela presente data, mostrando
as realizações e os valores marcantes do Estado Novo, e por meios de fotos e postais
retratavam “uma nação grande, diversa, imperial e imponente” (MARTINS; OLIVEIRA;
BANDEIRA, 2012, p. 266). Sendo uma grande oportunidade para exibir um Portugal
além das fronteiras conhecidas, criou-se uma identidade de um “país uno, multi-racial e
pluri-continental”, características pregadas pelo salazarismo para se criar uma nova
identidade nacional.
Da mesma forma como ocorria com as colônias, todas as precariedades existentes
não chegavam às notícias em Portugal, e assim as pessoas não tinham o menor
conhecimento do que realmente acontecia em cada um dos espaços. As terras ultramarinas
ganharam maior destaque no governo do Estado Novo, pois elas eram “vistas como uma
parte essencial da criação de um novo espírito português” (MENESES, 2011, p. 139),
podendo, assim, recuperar a imagem de um Portugal grandioso e heroico, corroborando
a ideia de um Império iniciado com as Grandes Navegações. Mas esse destaque era apenas
uma ficção quando se tratava dos verdadeiros benefícios, e os problemas que ocorriam
nas terras muitas vezes não conseguiam ser solucionados, sendo então arquivados pelo
governo. O primeiro chefe de Estado Português a pisar em uma das colônias foi o
presidente Óscar Carmona, em julho de 1938, quando visitou Angola e São Tomé (sendo
inclusive muito bem recepcionado na sua volta ao país, mais de um mês depois), e após
um ano partiu novamente, dessa vez com destino a Moçambique. Vale a pena ressaltar
que Salazar jamais visitou uma colônia portuguesa. Mesmo com alguns rumores que
44
surgiram quanto ao interesse de outros colonizadores pelas terras de portuguesas, Salazar
sempre se mostrou irredutível quanto à venda ou aluguel delas – e assim se manteve até
o fim do seu poder: “[...] não vendemos, não cedemos, não arrendamos, não partilhamos
nossas colónias.” (MENESES, 2011, p. 140).
As colônias portuguesas assim se chamaram até 1951, quando, por pressão externa
da ONU, passaram a ser chamadas de “Províncias Ultramarinas”. Com a mudança, tal
nome evitaria a relação opressor versus oprimido, colonizador versus colonizado; e com
a nova nomenclatura, daria a ideia de que as terras eram realmente partes de terras
portuguesas sendo apenas extensões de Portugal. Entretanto, Galvão (2010) delata a
rejeição que o primeiro-ministro teve com essa mudança que na verdade já tinha sido
proposta inicialmente no Ato Colonial, em 1930: “quando os territórios ultramarinos se
constituíam de fato, estruturalmente, como províncias ultramarinas, tu, autor do Acto
Colonial, quiseste contra tudo e contra todos, como bom racista, que se chamassem
colônias.” (GALVÃO, 2010, p. 81). Esse trecho pode ser visto a seguir, no Ato Colonial:
“[Artigo 3º]: Os domínios ultramarinos de Portugal denominam-se colónias e constituem
o Império Colonial Português [...]”13
E mesmo com a mudança forçada de nome, a ideia e a relação entre Portugal e as
colônias não tiveram nenhuma diferença significativa. As obras realizadas nas colônias
mostram o grande retrocesso que essas terras viveram, pois não havia fiscalização, e o
dinheiro era mal-empregado, assim como ocorria também na própria Metrópole: “[...]
enriqueceste mais uma minoria de muitos ricos e deste que fazer a muitos empreiteiros.
Mas como na metrópole, e ao mesmo ritmo das obras públicas, deixaste agravar ainda
mais os problemas humanos da população e por vezes catastroficamente, os dos
indígenas” (GALVÃO, 2010, p. 82).
O Ato Colonial previa que as colônias fossem totalmente administradas por
Portugal, e que a nação tinha total influência para exercer as funções que lhe eram
devidas, como a de civilizar e proteger as colônias e os ‘indígenas’ – as pessoas que nelas
viviam:
Título I – Das Garantias gerais:
Artigo 2º: E da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a
função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de
civilizar as populações indígenas que neles se compreendem, exercendo
também a influência total que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente.
13 Decreto-Lei, de 8 de julho de 1930, grifo nosso.
45
[...]
Título II – Dos Indígenas:
Artigo 15º: O Estado garante protecção e defesa dos indígenas das
colónias conforme os princípios de humanidade e soberania, as
disposições deste título e as convenções internacionais que actualmente
vigoram ou venham a vigorar. [...] (ATO COLONIAL, 1930)
De acordo com o Ato Colonial, o Estado também tinha obrigação de zelar pelo
tipo de trabalho a que os indígenas estavam sujeitos, sendo proibido aqueles que o
explorassem economicamente, devendo sempre receber salário justo e toda assistência.
Artigo 19º: São proibidos: Todos os regimes pelos quais o Estado se
obrigue a fornecer trabalhadores indígenas a quaisquer empresas de
exploração económica [...] Art. 21º: O regime do contrato de trabalho
dos indígenas assenta na liberdade individual e no direito à justo salário
e assistência, intervindo a autoridade pública somente para fiscalização.
(ATO COLONIAL, 1930)
1.3.1 O Ensino na Ditadura e a Mocidade Portuguesa
O conhecimento de Salazar, como dito anteriormente, ia além da área das
finanças. Logo ao assumir a posição de ministro das Finanças, ele já se dedicou a pensar
numa reforma no ensino primário e secundário, com o intuito de agilizar a disseminação
do pensamento “salazarista”, especialmente entre as crianças. Com a ideia do comunismo
que se difundia no mundo todo, ele não gostaria de ser confrontado em relação à sua
prática governista e de sofrer possíveis ataques e questionamento por parte dos jovens, de
modo que uma mudança no ensino se fazia uma urgência para tentar evitar tais problemas
no futuro. Já em 1927, houve uma reforma que consistia no ensino obrigatório elementar
dos 7-11 anos (e não mais dos 7 aos 12 como na I República), e no ensino superior
complementar de 11 aos 13 (também reduzindo um ano em relação à política anterior).
Já nessa programação, deram importância ao ensino da política nacionalista, mostrando
a história de Portugal e das suas províncias ultramarinas, para apresentar aos alunos desde
cedo a noção do valor do império português. (CARVALHO, 2001). No entanto, em 1929
a reforma sofre outra mudança com a redução de mais um ano em relação ao ano primário
obrigatório. Em vez de quatro anos no ensino elementar, seriam agora três anos,
considerando o quarto apenas uma complementaridade.
46
Sendo assim, em seu discurso proferido em 1934, após sua entrada como primeiro
ministro, explica o motivo de sua decisão:
Nós não compreenderíamos – nós não poderíamos consentir – que a
escola portuguesa fosse neutra neste pleito e ultrapassaria todos os
limites que velada ou claramente, por actos positivos ou por omissão
dos seus deveres, ela trabalhasse contra Portugal e ajudasse os inimigos
da nossa civilização. Por mais longe que vá a nossa tolerância perante
as divergências doutrinais que em muitos pontos dividem os homens,
nós somos obrigados a dizer que não reconhecemos liberdade contra a
Nação, contra o bem comum, contra a família, contra a moral.
Queremos, pelo contrário, que a família e a escola imprimam nas almas
em formação, de modo que não mais se apaguem, aqueles altos e nobres
sentimentos que distinguem a nossa civilização e profundo amor à sua
Pátria, como o dos que a fizeram e pelos séculos fora a engrandeceram.
(SALAZAR, 1935, p. 309)14
Neste discurso, Salazar impõe a necessidade de a escola mostrar uma posição
política e ideológica que fosse condizente com as praticadas pela nação, para que
futuramente não aparecessem “inimigos”, que trairiam a pátria com a deturpação dos
valores morais, familiares e religiosos e de alguma forma acarretariam em problemas para
o regime. Ele rejeitava qualquer tipo de ensino que fosse liberal, democrático e positivista,
preferindo métodos tradicionais – sem inovação pedagógica – e que fossem contrárias às
práticas de discussões em que os alunos pudessem de alguma forma manifestar sua
opinião. Com o ensino voltado para a prática dos valores centrais do Estado Novo – Deus,
Pátria e Família – as crianças aprenderiam tais padrões sem jamais esquecê-los, e com
profundo amor à pátria, mostrariam orgulho por pertencer a essa nação sem a necessidade
de se expressar contrariamente ao que aprendia.
Salazar tinha um plano de impor na escola portuguesa as regras de pensamento e
de comportamento da sua “doutrina” e a principal exigência era a de que as crianças
aprendessem a ler, a escrever e a contar, de forma que houve até uma aprovação de lei
que diminuísse o tempo obrigatório de estudo de cinco para três anos. Para eles, três anos
era o tempo suficiente para uma criança rural aprender e com isso não seria necessário o
professor ter grande preparação científica e pedagógica para transmitir conhecimentos tão
limitados. Seria uma forma de eles economizarem dinheiro com os professores, com o
treinamento deles e com a diminuição do tempo obrigatório de estudo – e diminuiria a
taxa de analfabetismo nacional, que era alta – em torno de 70% em 1930. Ao mesmo
14 Discurso proferido no teatro S. Carlos, em 28 de janeiro de 1933, à academia nacionalista do país, que
acabara de lançar a organização da Associação Escolar Vanguarda.
47
tempo em que se discutia para diminuir essa taxa, muitas pessoas que defendiam o estado
autoritário não viam a necessidade dessa medida, pois a ignorância trazia submissão,
modéstia, paciência e conformismo. Sem essa medida, o Estado teria mais facilidade em
dialogar e impor suas vontades. O governo sabia dos problemas que teria com um povo
mais alfabetizado, consciente e mais crítico: “o inconveniente de o povo saber ler não
estava propriamente no facto em si mesmo de ler, mas no uso perigoso que dele poderia
resultar” (CARVALHO, 2001, p. 728). Enquanto o governo discutia questões sobre a
ameaça que um povo consciente poderia trazer ao país, outros mais tradicionais, como
relatou Mónica (1977) em seu ensaio, não viam necessidade de se ensinar a ler e escrever
por não serem tarefas mais importantes que o trabalho no campo, e seria algo “inútil” para
a vida deles no país.
De qualquer forma, o ensino obrigatório reformulado por Salazar envolvia livros
apenas aceitos pelo governo, para não dar margem a leituras de diferentes obras que
poderiam “mudar” a cabeça do aluno e incutir ideias ameaçadoras para o regime. A
melhor maneira de evitar problemas para o país seria deixar as crianças e adolescentes
lerem apenas o que o Estado propusesse, e que houvesse também estrita vigilância em
todas as obras que circulassem pelo país, para que nem mesmo os adultos tivessem acesso
a elas. Essa vigilância teve êxito durante o regime, pois Salazar conseguiu mobilizar toda
a polícia exatamente como ele queria a seu favor, além de proibir o funcionamento de
bibliotecas e associações culturais. A ideia do regime era a obediência, a sujeição e
submissão, para então incutir o conformismo da população (MARTINS, 1992).
Com toda essa forma, eles passavam uma ideia de que apenas eles sabiam o que
era realmente bom e importante para o povo: “a ideologia neles contida e transmitida
partiu de pessoas concretas, na maioria das vezes, privilegiados, que determinavam o que
era bom e o que era mau. Para os outros.”15 Desse modo, não haveria tanto perigo com
relação a ideias contrárias aparecerem a ponto de desestruturar o regime e os grupos que
porventura fossem criados na contramão do que era imposto, poderiam ser (seriam)
facilmente reprimidos com a ação da polícia e da censura.
A imagem seguinte, presente em muitas escolas salazaristas – era um dos cartazes
que estampavam a ‘Lição de Salazar’ – ilustra a concepção salazarista da família,
mostrando o lugar e o papel de cada um: o homem trabalhador rural, a mulher cuidando
das lides domésticas e dos filhos, num cenário simples, que destaca a família cristã
15 Retirado do Jornal Letras, Educação – Ensaio. Ed. 8 de setembro de 1999, p. 6.
48
(representada pelo altar onde se vê o crucifixo e uma vela, mostrando a devoção e a
religiosidade católica, e a mesa posta esperando pelo pai, figura central dessa família
ideal.
Figura 3 – “A Lição de Salazar”16
Conforme aparece no quadro à esquerda, essa era a trilogia pregada pelo regime:
“Deus, Pátria e Família” e a educação se desenrolava em torno desse pensamento,
mostrando que o importante para cada aluno era saber “ler, escrever e contar”, e os valores
pregados pelo regime.
A escola funcionava era um espaço propício para o regime ‘moldar’ as crianças
de acordo com os valores desejados – e por isso, as cartilhas escolares eram repletas de
frases que engrandeciam o país, a religião católica, o papel da família e o trabalho no
campo, veiculando a ideologia do Estado. Também as gravuras que ilustravam os livros
mostravam às crianças, por exemplo, como devia ser a vida em família, como nas imagens
a seguir, na contracapa dos livros da primeira e segunda-classes:
Figura 4 – “Contracapas dos Livros Escolares”
Fonte: Contracapas dos livros de Primeira e Segunda Classes, respectivamente
16 Fonte: Disponível online em: https://noseahistoria.wordpress.com/2011/12/12/a-licao-de-salazar/
49
Elas traziam a imagem de tarefas destinadas aos meninos, que deveriam ser
executadas para ajudar a família, numa preparação para o trabalho na vida adulta.
Enquanto isso, às meninas eram ensinadas tarefas como cuidar da casa, ajudar a mãe com
os afazeres domésticos ou até mesmo cuidar do irmão menor. Como esperavam que as
meninas se casassem e cuidassem das lides do lar, o ideal seria que fossem esposas e mães
dedicadas e que educassem os seus filhos para seguirem o mesmo caminho.
Em algumas páginas, o texto também já incutia exatamente como as meninas
deveriam ser e os benefícios de se aprender desde pequena a realizar as tarefas a elas
destinadas: “hás de ser uma boa dona de casa”:
Figura 5 – “A Dona de Casa”
Fonte: O Livro da Segunda Classe – Ministério da Educação Nacional (p. 55)
Para o ensino da leitura e da escrita, os livros já estampavam algumas palavras e
frases que fariam parte do cotidiano deles, como “Lusitos17”, “Salazar”, “lusa”, “heroína”,
“Portugal”, para introduzir algumas letras e sílabas que estariam aprendendo – como
veremos nos exemplos a seguir:
17 Referência às crianças de 7 a 9 anos que faziam parte da Mocidade Portuguesa.
50
Figura 6 – “Viva Salazar”
Fonte: O Livro da Primeira Classe – Ministério da Educação Nacional
(p. 48, 34, respectivamente)
Observe-se que o uniforme usado pelas meninas na primeira gravura representa
os utilizados pela Mocidade Portuguesa Feminina, de uso obrigatório até os 17 anos. A
ideia da grandiosidade do país também aparecia em todos os livros escolares, assim como
a importância do respeito às autoridades, seja ela na família (o pai), na escola (o
professor), ou na nação, pois, de acordo com a Igreja e com a Bíblia, isso foi instituído
por Deus:
Figura 7 - “Respeitai as Autoridades”
Fonte: O Livro da Primeira Classe. (p. 75)
51
Figura 8 - Texto “Portugal é Grande”
Fonte: O Livro da Terceira Classe (p. 17, 18)
Acima vemos um texto retirado do livro da Terceira Classe, que expõe Portugal
como um país pluricontinental e multirracial, detentor de terras além-mar: “Também são
Portugal [...]”, mostrando o poder e grandeza do Império Português. Além da imagem da
grandiosidade, também evocavam a “coragem dos antepassados” ao enfrentar perigos nos
mares, e o sofrimento devido às condições insalubres encontradas nos locais extremos em
que aportaram nos séculos passados.
52
O livro de leitura para a quarta classe, por exemplo, exibia o texto “Ser Português”,
que incutia nos pequenos o orgulho nacionalista que deveriam sentir ao afirmar pertencer
à nação portuguesa:
Quando alguém me perguntar a minha nacionalidade, devo sentir um
orgulho santo e nobre e responder: ‘SOU PORTUGUÊS’. Ser
português é pertencer àquela nação que, através do Mar Tenebroso,
arrostando os maiores perigos, vencendo o terror do ministério,
descobriu o caminho marítimo para a Índia e o Brasil. [...]
Esse mesmo texto citava personalidades ilustres da História de Portugal que
lutaram pelo país, no intento de induzir às crianças a importância de ajudar e defender a
nação sempre que se fizesse necessário – assim como seus antepassados, também
portugueses.
Essa ideologia, veiculada de diversas formas na escola, proporcionou ao país,
como era a expectativa do regime, maior submissão da população em relação ao governo,
desenvolvendo nas pessoas esse orgulho e admiração por tudo o que se propusessem a
fazer, seja no trabalho ou no lar, além do respeito pelo regime salazarista. Os adultos
aprendiam os valores por meio de seus filhos, e desta forma, podiam trabalhar tais
princípios também em seus lares, reforçando toda a instrução que a criança recebia em
sua escola.18
Mas não era somente na escola ou em casa que se instruíam os valores da pátria:
em 1936 Salazar criou uma organização nacional obrigatória para todas as crianças e
jovens portugueses do sexo masculino, dos sete aos quatorze anos, a Mocidade
Portuguesa. Uma das propostas desse grupo, de acordo com a lei, era cultivar nos seus
filiados a educação cristã tradicional do País e em nenhuma hipótese admitiria nas suas
fileiras um indivíduo sem religião. Um ano mais tarde, foi criada a versão feminina desse
grupo, a “Mocidade Portuguesa Feminina”, com as mesmas ideias, mas com algumas
diferenças: por serem meninas, ficariam excluídas as atividades físicas e os esportes que
poderiam “ser prejudiciais à missão natural da mulher e tudo o que possa ofender a
delicadeza do pudor feminino”19. Incutiria também a importância do trabalho doméstico
e mostrando o papel da mulher na família. O uniforme era padronizado, com algumas
diferenças de acordo com o sexo e com a faixa etária de cada grupo, e em alguns modelos
trazia um “S” de Salazar na fivela do cinto.
18 Retirado do Jornal de Letras: Educação – Ensaio. Data: 8 de setembro de 1999, p. 6 19 Regulamento da Mocidade Portuguesa Feminina, art. 4º, citado por Carvalho, 2001, p. 757.
53
Com a intenção de “insistir” nos valores do Estado Novo para os jovens da
Mocidade Portuguesa, cartilhas instrucionais foram criadas. Segundo eles, a Mocidade
Portuguesa estaria “preparando [os jovens] para a vida”, ao difundir as ideias já “sólidas”
na mente de cada um deles. No livreto de propaganda da Mocidade Portuguesa, o então
Comissário Nacional, doutor Marcello Caetano (sucessor de Salazar a partir de 1968),
definiu como: “Um movimento de formação integral da juventude que procura dar à gente
moça vigor físico, saúde moral e uma consciência cívica inspirada no mais alto ideal
patriótico e traduzida em sentido prático” (EDIÇÕES SNI, 1945). A pergunta necessária
que todos deviam responder era “Como deve ser o perfeito português” (Idem).
Em 1956 o tempo de escolaridade obrigatória foi alterada para cinco anos para os
meninos e a partir de 1960 essa mudança ocorreu também com as meninas. Quatro anos
depois, uma nova lei alterou para seis anos, o dobro se comparado com o início do Estado
Novo. Em relação ao “analfabetismo”, segue uma tabela sobre a quantidade de pessoas
que não sabiam ler baseada nos Censos feitos em Portugal desde 1930 a 1960, nas idades
a partir de 10 anos20, a efeito de comparação:
Tabela 1: Taxa de Analfabetismo em Portugal
1930 1940 1950
1960
69.6 % 57.4% 41,77
36%
Na tabela acima, nota-se a redução de praticamente pela metade da taxa de
analfabetismo em trinta anos após a reforma no ensino, sendo um dos pilares do
Salazarismo a ideia de “saber ler, escrever e contar”.
O número de estudantes na época salazarista só aumentou, em qualquer ciclo
(ensino primário, técnico ou ainda superior), tendo apenas tido problemas no rendimento
dos alunos, ainda considerado baixo.
Outro aspecto relevante para a educação foi como se dava a escolha de
“professores” para a função; não havia muitos profissionais formados, assim, incentivava-
20 Os dados de 1930 a 1950 referem-se a crianças a partir de dez anos, ao passo que a coluna de 1960 inclui
também crianças a partir dos 7 anos. Se nos quadros de 1930 e 40, contássemos a partir dos 7 anos, como
divulgado Censo, teríamos 70,9% (como amplamente veiculado) e 58,8%, respectivamente. Nas colunas
de 1930, 40 e 50 foram retirados do Instituto Nacional de Estatística, disponível em: www.ine.pt. Já a
estatística referente a 1960, foi retirada de Fernandes, 1973, p. 23.
54
se a figura dos “regentes escolares”. A princípio, para essa função, bastava apresentar
idoneidade moral e intelectual, sem quaisquer treinamentos e testes – e por vezes, por não
haver necessidade de alguém mais capacitado, tais regentes tinham apenas o ensino
primário. Porém, após alguns problemas com regentes que não tinham postura condizente
com os interesses do regime, quatro anos depois da implementação do novo sistema de
ensino, passou a ser obrigatória uma prova de aptidão para o cargo e os testes de admissão,
que englobariam perguntas de português, aritmética e algumas outras exigidas no
primário, além de uma prova oral de dez minutos. O candidato tinha meia hora para
responder às questões de cada matéria. A escolha dos regentes era tarefa importante, para
não causar problemas, e os escolhidos também tinham que cumprir certas regras para não
serem demitidos do trabalho. Além de não poderem se envolver em escândalos, tinham
que analisar com quem se casariam, o que só ocorreria mediante autorização do
Ministério da Educação Nacional. (CARVALHO, 2001). Os regentes também não
poderiam ser muito “doutos”: “fazer o ensino primário por meio de agentes altamente
intelectualizados tem inconvenientes gravíssimo [...] preferível seria que fosse bom e
simples; mas, quando não se possa ser bom, ao menos que não seja muito douto.”
(CARVALHO, 2001, p. 765)
1.3.2 A Censura
Uma das bases para que o governo ditatorial salazarista perdurasse e conseguisse
levar a população a seguir à risca todas as orientações do governo foi a existência de um
órgão que fosse responsável pela segurança do país. Por algumas vezes durante o regime,
esse órgão foi reformulado para atender às principais demandas e para que o controle de
tudo o que ocorresse fosse eficaz.
Com o fim da I República, muitos foram os órgãos criados para aumentar a
segurança do país após a extinção da Polícia de Segurança. Inicialmente, a Polícia de
Informações (PI) foi chefiada por um diretor contratado pelo Ministro do Interior, que
agia em Lisboa e Porto como forma de controle de todos os veículos de informação que
fossem publicados. Após dois anos, a PI passou a ser Polícia Internacional Portuguesa
(PIP) agindo nas duas cidades separadamente por alguns anos até se unificarem em 17
de março de 1928 e passarem a ser Polícia de Informações do Ministério Interior
(PIMI), que tinha como função principal de “reprimir os crimes sociais”.
55
Depois de muitas dissoluções, instabilidade político-militar e alguns protestos
contra a violência da PIMI, foi criada em 1933 a Política de Vigilância e Defesa do
Estado (PVDE), pelo Decreto-Lei nº 22.99221, de 29 de agosto. A PVDE era constituída
por duas seções, uma que se encarregava da prevenção e repressão contra os crimes de
natureza política e social e outra que era responsável por verificar as entradas,
permanências e saídas de estrangeiros do território nacional, a sua detenção, caso se
tratassem de elementos indesejáveis, a luta contra a espionagem e a colaboração com as
polícias de outros países. Em 1934 foram-lhe atribuídas novas funções, com a criação da
seção de Presos Políticos e Sociais, responsável por prover ao sustento, manutenção,
guarda e transporte dos presos por delitos políticos e sociais, tanto como formas de
prevenção, quanto aos já condenados. As atividades passaram a ser vigiadas e controladas
pela polícia, e o direito de reunião era bem regulado: “reuniões destinadas a fins de
propaganda política ou social só podem ter lugar depois de obtida autorização do
governador civil do respectivo distrito” (Legislação Repressiva, p.140-141 apud
MENESES, 2011, p. 187). A censura, segundo o decreto 22.469,
Terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua
função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de
todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral,
a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os
princípios fundamentais da organização da sociedade” (IDEM)
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a derrota nazi-fascista levou Salazar a
fazer algumas modificações nas instituições do Estado Novo, com o intuito de divergir –
pelo menos aparentemente – o máximo da política criada pelos Aliados e assim a PVDE
passou a ser PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (de acordo com o
decreto-Lei nº 35.046), e, similarmente à PVDE, a ela competiam quaisquer tipos de
serviços destinados à proteção e segurança do país; à sugestão de aplicação de medidas
de segurança e à prisão ou liberdade dos acusados. Tudo o que se referia à emigração, à
passagem e fiscalização das fronteiras terrestres e marítimas, ao regime de permanência
e trânsito de estrangeiros em Portugal e à repressão criminal cabia à PIDE, e aqueles que
não seguissem as leis seriam presos e julgados – a lista completa sobre a criação da PIDE
datada de 1945 encontra-se nos anexos (ANEXO C). O julgamento – quando ocorria –
acontecia muito tempo depois da prisão e após o cumprimento da pena a PIDE podia
21 Documento retirado do website criado para fins de investigação sobre o primeiro ministro António de
Oliveira Salazar. Disponível em http//oliveirasalazar.org. Acesso em 02/10/2014
56
prorrogá-la, caso achasse necessário ou percebesse que o preso representava uma ameaça
para o regime:
A maioria dos presos políticos não ia a julgamento (73 por cento entre
1933 a 1945) [...] em 1944, dos 226 presos políticos do campo de
concentração do Tarrafal, 172 estavam presos sem julgamento, nem
pena, ou permaneciam presos após já a terem cumprido. (ROSAS,
2013, p. 205);
A PIDE durou até 1969, quando assumiu a Direcção-Geral de Segurança (DGS),
criada pelo Decreto-Lei nº: 49.401, de 24 de novembro, e tinha praticamente as mesmas
obrigações da PIDE, como, por exemplo, o de zelar pela segurança do Estado, vigiar as
fronteiras terrestres e marítimas, punir infrações cometidas pela população e também
manter relações com organizações policiais nacionais e estrangeiras. Em 25 de Abril de
1974, a DGS foi extinta, juntamente com o regime opressor.
Para o historiador Fernando Rosas (2013), o regime utilizou duas formas de
repressão para conseguir os seus objetivos: a violência preventiva e a violência punitiva.
Segundo ele, a violência preventiva era a mais constante e “a que era apontada à
dissuasão, à intimidação, privilegiando a contenção e a vigilância permanente dos
comportamentos.” (p. 196).
O país era constantemente vigiado por diversos órgãos que funcionavam para
indicar o limite de cada atividade, como, por exemplo, o Ministério da Educação Nacional
(MEN), a Mocidade Portuguesa (MP) e a Organização das Mães para a Educação
Nacional (OMEN). Qualquer atividade só podia ser realizada com a estrita autorização
da polícia, que, por fim, era rigorosamente controlada pelo governo, e tinham a
incumbência de “vigiar o quotidiano e inculcar unívoca e autoritariamente os valores do
‘homem novo’ salazarista e da mulher a renascer como fada do lar e repouso do guerreiro,
vinculada à missão de o servir e à família como esteio da nova ordem.” (ROSAS, 2013,
p. 199). No âmbito educacional, por meio dos inspetores da MEN, os professores eram
devidamente selecionados pelo regime, os livros eram únicos e exaltavam o ensino da
religião católica, a pátria e a família, mostrando o papel que cada um dos integrantes devia
exercer no lar, conforme o trecho seguinte:
O ensino primário fora largamente entregue a regentes escolares cujo
critério de admissão eram os da fidelidade ao regime. Os professores
foram obrigados a dar aulas glosando cartazes de propaganda do Estado
Novo e a apresentar, depois, relatórios sobre o que tinham feito.
(ROSAS, 2013, p. 201)
57
Havia outras organizações como a organização corporativa, formada pelo Instituto
Nacional do Trabalho e Previdência (INTP) e a Federação Nacional para a Alegria no
Trabalho (FNAT):
Toda esta imensa panóplia burocrática (do Estado e da organização
corporativa), com a sua ação intimidatória no dia-a-dia, com o clima de
intimidação e de abstenção cívica que alimentava, visava instalar,
através de uma surda socialização do medo, um clima geral de
acatamento e submissão. (ROSAS, 2013, p. 200)
Foi esse clima geral de submissão, dessa interiorização da obediência e de
desmobilização que resultou num prolongado regime ditatorial (ROSAS, 2013), dando
uma falsa ideia de que o país caminhava bem, quando, na realidade, o medo e o
conformismo tomavam conta da população portuguesa.
Ainda se entendia como violência preventiva, todas as atividades que fossem
realizadas, sejam elas no âmbito escolar ou não, que não podiam acontecer sem a
autorização prévia do ministro do Interior, assim como a população também não tinha o
direito de fazer greves ou reuniões. Na prática, o rigor era ainda maior: “não se podia
organizar um torneio de xadrez numa escola, ou uma excursão num local de trabalho, fora
do monopólio da iniciativa ou da autorização da MP ou FNAT.” (ROSAS, 2013, p. 201).
A violência punitiva, como o nome diz, é a repressão por métodos coercitivos
daqueles que de alguma forma praticaram atividades que fossem além do permitido pela
polícia. Atividades de risco como seguir ou apoiar organizações clandestinas de luta
contra o regime, conspirando ou participando em atividades revolucionárias, aderindo a
uma greve ou comparecendo numa manifestação, podiam trazer grandes problemas aos
envolvidos, como torturas e penas de prisão. (ROSAS, 2013).
Para Salazar, a censura era uma importante ferramenta para controlar a paz, já que
era medida aceitável enquanto o mundo se encontrava em guerra. Adotou uma postura
ofensiva e sempre eliminava qualquer atitude de ameaça em seu governo. A partir de
1934 algumas cadeias foram projetadas como forma de punição para aqueles que não
seguissem as leis do regime, sendo um total de 6 cadeias: Cadeia do Aljube, duas cadeias
do Forte de Caxias, Cadeia do Forte de Peniche, Estabelecimento Prisonal Angra do
Heroísmo, sendo fechado em 1936 para abrir o último e o pior deles, o “Campo de
Concentração de Tarrafal”, em Cabo Verde. Alguns documentos mostram a quantidade
de presos existentes em cada uma das cadeias, como o seguinte, datado de 25 de setembro
de 1936, apenas dois anos após o início das prisões:
58
Figura 9 – Boletim da Existência de Presos (1936)22
Relação das cadeias e da quantidade de presos existentes em cada uma delas. Nesse quadro, ainda
existia uma prisão em Angra do Heroísmo, enquanto a do Tarrafal ainda seria ocupada no fim de
outubro.
O Campo do Tarrafal seria, inicialmente, construído em Angola, mas alteraram
para Cabo Verde por proporcionar alguns fatores mais atraentes para o governo. Dentre
eles, Angola era considerado um espaço indispensável para Portugal e, além do mais,
Cabo Verde, por sua posição distante do continente africano, era um fator relevante para
manterem os prisioneiros afastados de sua origem e numa situação de difícil
deslocamento – “Houve algumas tentativas de fuga, mas os fugitivos descobriam que não
tinham para onde ir”. (MENESES, 2011, p. 195). A ideia original era criar um espaço
para a recuperação das pessoas e um campo de trabalho agrícola e o Tarrafal, na cidade
de Santiago, parecia um local apropriado por ter uma fonte de água próxima. Com o
decreto pronto no dia 23 de abril de 1936, os prisioneiros começaram a ser levados para
o Tarrafal em outubro do mesmo ano, e as primeiras 15123 pessoas tiveram que construir
praticamente tudo, pois no local só havia tendas. Além disso, as condições insalubres do
lugar e o tratamento cruel transformaram o Tarrafal em um “campo da morte lenta”, como
apontam relatos de pesquisadores e de prisioneiros que lá estiveram:
22 Documento disponível para consulta online nos arquivos da Torre do Tombo. Código de Referência:
PT/TT/AOS/D-G/8/4/1 (m.0003). http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3889735 23 Nos anexos (ANEXO B) constam mais detalhes sobre os prisioneiros do Tarrafal.
59
Uma forma especial de castigo era a frigideira, uma cela, a certa
distância do campo principal, quase sem ventilação, atingindo assim
altas temperaturas no seu interior durante o dia. Entre os mosquitos,
trabalhos forçados, má alimentação e cuidados médicos praticamente
inexistentes, o Tarrafal era um desastre à vista. [...] Seis deles [dos
prisioneiros] morreram em quatro dias em Setembro de 1937. Mais
quatro morreram dias depois. [...] (MENESES, 2011, p. 195)
A prisão do Tarrafal era considerada a mais cruel e sinistra de todas e, durante seu
funcionamento, vários presos tentaram fugir, mas sem sucesso. Muitos protestos se
seguiram para o fechamento dessa prisão, mas Salazar a manteve aberta por quase dezoito
anos, sendo fechada em 1954 e reaberta após o início da Guerra Colonial, em 1961. Em
outro “Boletim de Existência de presos”, datado de 1945, consta a quantidade de presos
no campo de Tarrafal, além de outras prisões em Portugal:
Figura 10 – Boletim Da Existência de Presos e Deportados (1945)24
Relação das cadeias e da quantidade de presos existentes em cada uma delas. Nesse quadro, já
consta a Colônia Penal de Cabo Verde (Tarrafal)
Além dos prisioneiros em cadeias, do documento constam indivíduos que estavam
sob a guarda da PIDE por emigração clandestina e que ainda seriam interrogados.25
24 Documento disponível para consulta online nos arquivos da Torre do Tombo. Código de Referência:
PT/TT/AOS/D-G/8/4/1 (m.0005). http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3889735 25 Nos anexos (ANEXO B) desta tese consta a lista de todos os presos no Tarrafal entre 1936 a 1939. Nesse
período, passaram pela Colônia Penal de Cabo Verde 200 presos, dos quais treze deles teriam sido
“eliminados” até fim de 1938, sendo dez por morte “natural”. Pela lista também, é possível confirmar a
60
No total, trinta e seis pessoas morreram no Tarrafal26 – trinta e dois portugueses,
dois angolanos e dois guineenses – enquanto estiveram confinados, mas há outros que
perderam a vida logo após a libertação, por conta das péssimas condições em que
viveram. Vale ressaltar que no primeiro período de funcionamento do Tarrafal, entre 1936
e 1954, os prisioneiros eram em sua maioria portugueses, e depois de um ciclo fechado,
a prisão voltou a ser reaberta por ocasião da Guerra Colonial, em 1961, e a partir daí os
prisioneiros levados eram em sua maioria africanos. Passaram por lá 107 angolanos, 100
guineenses e 20 cabo-verdianos27. Em 1º de maio de 1974, uma semana após a Revolução
dos Cravos, as portas do Tarrafal se abriram e todos foram libertados.
Outras prisões em Portugal (Aljube, Peniche e Caxias), funcionaram entre 1934 e
1974, com exceção do Aljube, encerrado em 1965. A Prisão do Forte de Peniche (de 1934
– 1974) foi considerada a de mais alta segurança, embora tenha sido palco de uma das
mais espetaculares fugas durante o Estado Novo, em janeiro de 1960. A fuga contou com
um planejamento minucioso, e um envolvimento de muitos presos e alguns agentes, para
ser bem-sucedida. Os historiadores entrevistados no presente trabalho, Fernando Rosas e
António Borges Coelho, estiveram presos por mais de uma vez por atividades irregulares
durante o Estado Novo, Fernando Rosas em Caxias e Peniche, enquanto Borges Coelho
ficou em Aljube, além de Peniche. Tratar-se-á um pouco dos relatos pessoais desses
historiadores no capítulo dedicado a eles, especialmente António Borges Coelho, que
durante a entrevista compartilhou algumas experiências de quando esteve preso. Durante
todo o regime ditatorial, muitos passaram pelas prisões, e saber a quantidade exata de
presos é uma tarefa praticamente impossível:
Não sendo fácil estabelecer, com precisão, o número total de presos pela
PVDE/PIDE/DGS por razões políticas, os diferentes estudos efectuados
permitem estabelecer com razoável probabilidade que, entre 1933,
quando se cria a PVDE e se institucionaliza o Estado Novo, e o 25 de
Abril de 1974, a polícia política efectuou não menos de 30 mil prisões
por motivos políticos. (ROSAS, 2013, p. 204)
Outros métodos de punição do regime podiam ser as torturas do sono e da estátua,
utilizados pela polícia para conseguir mais informações de outros militantes. Mais
entrada de 151 presos no dia 29 de outubro de 1936, o primeiro grupo dos presos que foi obrigado a construir
praticamente todo o local. 26 Fernando Rosas em um vídeo na RTP (2014) fala em 40 mortes durante a existência do Tarrafal.
http://ensina.rtp.pt/artigo/fuga-prisoes-politicas-estado-novo/ 27 Idem
61
utilizada em Aljube no início dos anos 60, a “estátua” era um método no qual o preso
deveria ficar de pé o máximo de tempo possível; caso não suportasse, podia sentar-se
alguns instantes e voltar a se levantar –quanto mais cansado e esgotado, melhor para a
PIDE. Dependendo da situação, caso o preso tentasse dormir, haveria pancadas. Quando
não aguentavam mais, forçavam-no a falar. No caso da tortura do sono, o caso era impedir
que o preso dormisse - método que foi mais utilizado, sendo mais cansativo e prolongado
para o preso. Havia presos que ficaram sem dormir por sete dias consecutivos, e outros
chegaram até onze dias. Após serem submetidos a essas torturas, podiam sofrer também
com o isolamento, outro método utilizado pela PIDE:
Muitos detidos pela PIDE/DGS, referiram que, após um período de
serem sujeitos a violências e à tortura do “sono”, sentiram uma quase
felicidade, com o retorno à cela e ao isolamento. Mas, depois,
consideraram o isolamento mais difícil de suportar do que a própria
tortura, pois provoca, no indivíduo, um sentimento permanente de
ameaça sem objecto e uma vivência de despersonalização.
(PIMENTEL, 2007, p. 109)
Fernando Rosas (2013), que foi submetido a algumas torturas, explica que a
polícia política usava todos os recursos necessários para atingir os objetivos do regime:
“incluindo o recurso ao assassinato pela tortura nas cadeias ou por liquidação física dos
resistentes em emboscadas ou operações policiais de rua” (p. 203), mas que esses casos
de assassinato apenas ocorriam em situações extremas em Portugal, diferentemente do
que ocorria nas províncias ultramarinas durante a Guerra Colonial. Outras torturas já eram
bastante utilizadas:
A tortura do sono, a “estátua”, os espancamentos com vários tipos de
instrumentos de agressão, o isolamento prolongado, a chantagem e a
humilhação dos presos, a prisão arbitrária sem culpa formada nem
condenação judicial, foram os métodos constantemente usados pela
polícia política a que o regime procurará dar uma fachada de legalidade,
sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. (ROSAS, 2013, p. 203)
Segundo Pimentel (2011), a combinação de fatores levou à durabilidade do
regime, e não apenas a ação da PVDE/PIDE/DGS com seus “métodos eficazes” de
tortura. O auxílio da PIDE/DGS e também dos grandes pilares, a Igreja e as Forças
Armadas, foi fundamental durante o “terremoto delgadista” (assunto a ser tratado
posteriormente, ainda neste capítulo), e o período da Guerra Colonial, quando muitos
jovens começaram a lutar incessantemente contra o regime. O regime ditatorial também
62
durou porque conseguiu uma ‘organização de consenso’, através de aparelhos de
desmobilização cívica e de inculcação ideológica, bem como diversos instrumentos,
como os sindicatos nacionais e grêmios, e outras organizações como FNAT, MP e MPF.
(PIMENTEL, 2011). Os poucos que lutavam contra o governo não conseguiam passar
pela polícia, que intimidava e causava o medo na população, com seus meios de
repressão:
Em suma, pode-se dizer que a durabilidade do regime se deveu a uma
combinação de dois fatores decisivos: por um lado, o sucesso da
prevenção/desmobilização/intimidação cívica/repressão, por meio de
vários instrumentos, entre os quais a importante PIDE/DGS e, por outro
lado, o fato de o regime ditatorial, nos momentos de crise – 1945 e 1958
– 1961 – ter conseguido manter a coesão das Forças Armadas em seu
redor. O estertor do regime foi acompanhado por uma maior repressão
e um aumento da violência policial, que coincidiram com a
multiplicação dos problemas enfrentados pelo regime. (PIMENTEL,
2011, p. 148)
Rosas (2013) defende que a durabilidade do regime também se deveu à
combinação desses fatores apontados por Pimentel (2011), mas há ainda outro fator
importante, que foi a passividade de algumas pessoas perante os desafios, pois
o que largamente predominava não era o consenso, a aceitação livre, ou
sequer o sucesso de uma doutrinação massiva. Era a sujeição, a
obediência, a passividade, obtidas pela combinação eficaz do
enquadramento preventivo com a resposta punitiva. Não se pretende
dizer que o regime não tivesse tido apoios fiéis e entusiásticos, em
certos sectores sociais, ou em certas conjunturas históricas, sobretudo
até a Segunda Guerra Mundial. Mas não era, nunca foi, a mobilização
dessa gente que principalmente o susteve. Foi, quase sempre, a bem
sucedida desmobilização dos demais. (p. 202)
Rosas também ressalta (2013) que a ação das Forças Armadas foi igualmente
fundamental para a permanência de Salazar no poder. Elas eram inteiramente controladas
pelo regime, e tinham que obedecer rigorosamente aos comandos do poder, sob pena de
trocar toda a equipe, como ocorreu entre 1938-1940. Foi a ação desse grupo que segurou
Salazar após a Segunda Guerra Mundial e a fraude das eleições de 1958 (a ser visto
adiante).
63
1.3.3 Desdobramentos das Guerras
A guerra civil que eclodiu na Espanha em 1936 foi o acontecimento mais
traumático anterior à Segunda Guerra Mundial, que funcionou como “um teste” para os
países que nela se envolveram, trazendo consequências imediatas para Portugal, pela sua
proximidade geográfica. Como a Guerra Espanhola foi o combate de dois grupos que
divergiam politicamente, republicanos contra nacionalistas, Salazar percebeu a
importância de manter a Mocidade Portuguesa como forma de proteger a juventude das
ideias revolucionárias que tramitavam pela Espanha, além de criar um grupo “milícia
armada” para vigiar as fronteiras do país. Com algumas medidas sendo reformuladas
devido às questões internacionais, Salazar precisava, ao menos, manter-se em paz e não
se envolver com problemas externos – como conseguira durante a Grande Depressão. Se,
mais uma vez, saísse ileso da Guerra Civil Espanhola, seria, talvez, seu maior triunfo no
governo.
No entanto, não houve como Portugal manter-se à margem dos acontecimentos
no país vizinho. O grupo dos republicanos espanhóis, com ideias anarquistas e socialistas
– grupo de esquerda – ganhou apoio da União Soviética, ao passo que o grupo mais
conservador ganhou apoio do nazi-fascismo, do general Francisco Franco, da Igreja e
também de Portugal. Portugal demonstrou seu apoio a Franco fornecendo combatentes
voluntários28, facilitando a aquisição de equipamento militar, com abastecimento de
alimentos, entrega de refugiados e emissões propagandistas (GÓMEZ, 2011; MENESES,
2011). O funcionamento do Estado Novo se viu alterado com o início da guerra: Salazar
tornou-se responsável também pela pasta dos Negócios Estrangeiros, por perceber a
importância de “travar a extrema-direita”, fortalecida pela guerra na Espanha.
A posição de neutralidade adotada por Salazar durante a Segunda Guerra Mundial
foi uma estratégia para evitar grandes problemas em seu governo: sabia da fragilidade
militar portuguesa e da vulnerabilidade de seu império colonial (MENESES, 2011).
Salazar também contribuiu para que a Espanha, assim como Portugal, tomasse a decisão
da neutralidade, visto a grande proximidade com o território português e o quanto a
entrada da Espanha poderia ser prejudicial ao país. Notícias sobre a guerra também eram
28 O número de combatentes estimados de acordo com a pesquisa de Gómez (2011) foi entre 2.500 e 8.000).
64
divulgadas com cautela por Salazar, para que não pensassem que ele estivesse
favorecendo algum grupo específico.
O fim da Segunda Guerra Mundial parecia ser o momento favorável para a queda
do regime autoritário em Portugal, visto a derrota do nazi-fascismo e o enfraquecimento
desse tipo de governo. Os grupos de oposição solicitavam à Grã-Bretanha que exercesse
pressão diplomática sobre Salazar para que houvesse uma reforma política e uma
democratização do país. Esse momento teria sido uma oportunidade para o ditador rever
sua política e restaurar a confiança da população, uma vez que muitos grupos de oposição
passaram a se formar com o intuito de abalar a política salazarista. Tais grupos
promoveram algumas tentativas de golpe, todas falhadas e os integrantes das Forças
Armadas pareciam estar convictos e favoráveis a uma operação de queda do regime, o
que não ocorreu, assim como o (ou a falta de) apoio do Presidente Carmona. A última
tentativa da oposição ocorreu com as eleições presidenciais de 1949, em que o general
Norton de Matos seria o candidato da oposição, reivindicando a liberdade da imprensa e
maior fiscalização nos votos – mas, pela falta de condições de intervenção democrática,
desistiu de disputar as eleições, frustrando assim, os grupos de oposição.
Já Salazar, aproveitou o fim da guerra para continuar a sua política que sustentava
desde a sua entrada no poder: a liberdade não seria possível visto o perigo que ela
representava à nação, especialmente com a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial.
Combateu veemente a formação do MUD29 (Movimento de Unidade Democrática) por
acreditar que o grupo influenciaria negativamente a nação e ameaçaria os valores cristãos
pregados em seu governo:
Em face dos aliados, o ditador procurava na ‘guerra fria’ a justificação
para o seu mando, alegando a necessidade de combater o PCP, como
aliado estreito da URSS, e exaltando os perigos que ambos
representavam para a civilização ocidental e cristã. Internamente
tentava justificar a sua autoridade pela necessidade de defender, contra
a subversão comunista, os bons valores tradicionais consubstanciados
na trindade ‘Deus, Pátria e Família’. (TENGARRINHA, 1994, p. 392)
Assim, Salazar diminui a capacidade de intervenção e influência da oposição,
controlando repressivamente a situação interna. Da mesma forma, não abriria mão das
29 MUD foi um grupo formado após o término da Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1945 e tinha
como objetivo de reorganizar a oposição e se preparar para as eleições. Com uma grande adesão popular e
com o grupo se fortalecendo, Salazar decidiu ilegalizar, pois ia contra o seu regime.
65
províncias ultramarinas, muitas vezes questionadas no pós-guerra, com o argumento de
que estaria defendendo os valores da civilização cristã e ocidental que estariam sendo
ameaçados pelo maximalismo30:
Para Salazar, a “liberdade”, era ter a independência política e econômica, e para
isso seria importante que houvesse ainda “uma autoridade necessária e a liberdade
possível” (SALAZAR, 1951, p. 205), especialmente com a ameaça pós-guerra e de novas
ideias surgindo a partir dela:
Um grande estado – a Rússia -, tendo saído da última guerra vitorioso
e engrandecido, constitui potencialmente, por força da sua ambição
hegemónica e da tendência expansionista do comunismo de que é o
centro e fautor, um risco grave, não só para a independência e a
liberdade, mas também para a civilização de numerosos países.
(SALAZAR, 1951, p. 503)31
Deste modo, considerava o comunismo como o “grande inimigo do momento” (p.
508), sendo necessárias intervenções que pudessem repreender as atividades
oposicionistas atraídas por essa tendência.
Outro fato importante que sucedeu logo após a Segunda Guerra Mundial, foi a
regulamentação assinada pela França em 1945 que impedia a imigração clandestina,
exigindo, no caso, um contrato formal de trabalho de todos os estrangeiros que
resolvessem ir à França. Foram, então, assinados acordos com alguns governos que
exportavam mão-de-obra para a França, porém, Portugal manteve-se irredutível quanto a
essa decisão, acreditando que isso incentivaria a emigração dos jovens portugueses para
a França, enquanto o interesse de Salazar seria o envio desses jovens para as províncias
ultramarinas da África, em especial. Apenas em 1960, após muita insistência do governo
Francês, Portugal aceitou o acordo com algumas ressalvas para não especularem de que
Portugal estivesse motivando à emigração. Ainda assim, na imprensa francesa circulava
que Portugal estaria perdendo sua população para a ditadura, que fugia do governo
autoritário. A partir de 1963, Salazar assinou toda a documentação e só iriam para a
França aqueles que tivessem um contrato de trabalho regulamentado, mas, na altura, já
havia muitos portugueses vivendo na clandestinidade, e a PIDE atuava de maneira secreta
na França, procurando esses portugueses para serem deportados e presos.
30 Maximalismo: adeptos ao Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), também denominados
de bolchevistas ou, ainda, comunistas. 31 Discurso proferido no dia 12 de dezembro de 1950, dirigido à comissão da União Nacional, numa sala
da Biblioteca da Assembleia Nacional.
66
A emigração sempre ocorreu de forma controlada até 1960, notadamente em
direção ao continente americano, mas a partir de 1961, houve um aumento muito
significativo em relação às pessoas que emigraram:
Na década de sessenta, verificou-se o apogeu dos valores da emigração
oficial desde que houve conhecimento do facto. Nunca antes (ou até
mesmo depois), e em tão pouco tempo, emigraram tantos portugueses
(famílias inteiras), essencialmente para a Europa das melhores
condições de vida e do melhor cumprimento dos direitos, das liberdades
e garantias dos cidadãos.
[...]
Em 1964, verifica-se o ponto de inflexão, a mudança no sentido da
Europa, e os emigrantes portugueses passam a optar maioritariamente
pelos países europeus mais desenvolvidos: a França em primeiro lugar,
mas também a Alemanha (RFA), a Suíça, o Reino Unido,
inclusivamente, o pequeno Luxemburgo, mas com uma comunidade
portuguesa muito numerosa. (INE, 2006, p. 52)
As causas para esse surto de emigração devem-se, sobretudo, ao início da Guerra
Colonial, quando muitas famílias assumem o risco de partir para o desconhecido no lugar
de permanecer em Portugal e ver o filho ser forçado a seguir para os campos de guerra.
Outras opções foram mandar o filho só com o objetivo de conseguir melhores
oportunidades de estudo e trabalho no exterior – como ocorreu com Sérgio Godinho, um
dos entrevistados – que seguiu para a Suíça para estudar e, ao mesmo tempo, evitar uma
guerra. Aos que saíram de Portugal, embora houvesse uma expectativa em relação a uma
mudança de vida, havia um desconforto pela situação política do país:
Não foi com alegria e por vontade própria que emigrámos nos anos
1960 e 1970. A emigração é sempre um drama, uma expulsão, um
afastamento. Mas é também e sobretudo, um falhanço político dos
governos de antes e depois de 1974, [...] (MACHADO; CERQUEIRA,
2005, p.30)
Na mesma linha, Spínola32 (1974) também reprova o governo perante o aumento
da emigração ao expressar que esse fenômeno migratório é reflexo da crise atual, pois ao
tomar uma decisão de partir para o estrangeiro, por questão de sobrevivência, o cidadão
aceita “trocar as leis do seu país pela sujeição à lei estrangeira, prescindindo dos seus
direitos de cidadania em favor do seu bem-estar” (p. 21), uma vez que não se encontram
dentro do país oportunidades de trabalho e nem perspectiva de melhora.
32 O general António Spínola foi um dos militares que aderiu ao Movimento Capitães, e após a Revolução
dos Cravos, tomou o poder durante o Governo Provisório.
67
A tabela abaixo, baseada em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE)
comprova a dimensão da evasão que Portugal sofreu nesse período, especialmente para a
França, totalizando quase um milhão de portugueses:
Tabela 2 – Emigração para a França (1960-1974)
Emigração Oficial 410.095
Emigração Não-Controlada 538.957
Total 949.052
Fonte: INE, 200633
1.3.4 Anos Cruciais Para Salazar (1958-1962)
Entre os anos de 1958 e 1962 Salazar atravessou um período de crise em seu
governo começando pouco antes das eleições presidenciais de 1958 e perdurando com o
início da Guerra Colonial em 1961. A falta de crescimento econômico e a instabilidade
política geraram dúvidas acerca de sua sobrevivência no governo e muitos políticos se
uniram para tentar um golpe militar, mas sempre fracassaram. Sua permanência no
governo foi devido à falta de entendimento entre seus adversários e críticos do regime,
dando margem a justificativas e defesas por parte de Salazar.
Para as eleições presidenciais de 1958, Portugal contou com um forte candidato
independente, Humberto Delgado, que tinha sido representante de Portugal na OTAN,
adido militar em Washington, e foi um dos apoiantes do regime antes de ser influenciado
pela política norte-americana e pela amizade com o antigo inspetor da Administração
Colonial, Henrique Galvão:
A fazer fé nas palavras de Marcelo Caetano, foi a experiência de vida nos
Estados Unidos que despertou em Humberto Delgado a convicção de que era
necessário agitar o Estado Novo, um objetivo já referido por Delgado no início
da década de 1950, faltando apenas esperar pela sua promoção a general (que
ocorreu em 1953) para começar a agir. Delgado planejava mudar o regime a
partir de dentro e não opor-se completamente a ele. (MENESES, 2011, p. 467)
33 Tabela feita com base no Instituto Nacional de Estatística, 2006. Disponível em:
http://censos.ine.pt/xportal/xmain?xpid=CENSOS&xpgid=ine_censos_estudos
68
Em sua candidatura, Humberto Delgado afirmou que exoneraria o ministro, caso
ganhasse as eleições e sua postura causou desconforto no ditador:
Finalmente o seu estilo: o desassombro, a coragem física e moral como que a
resgatar as décadas de medo, de silêncio, de opressão, de temor, reverencial
face a um poder distante e autocrático – tudo resumido nesse santo-e-senha da
explosão popular e da esperança que foi o Obviamente demito-o! lançado sobre
Salazar. (ROSAS, 2013, p. 241 – grifo do autor)
Salazar viu-se fortemente pressionado com a atitude audaciosa de Delgado e além
de causar tumulto internamente, mexeu também com a população que começava a segui-
lo e a acreditar em alguma mudança. Anteriormente, as eleições presidenciais durante o
Estado Novo não houve candidatos de oposição, de maneira que Salazar nunca fora
realmente ameaçado, e pela primeira vez, um candidato independente concorreria as urnas
sem desistir da disputa antecipadamente.
Delgado levantaria o país de norte a sul, faria descer à rua, espontaneamente,
sem que ninguém soubesse como, surpreendendo tudo e todos no regime e nas
oposições, centenas de milhares de pessoas que o aclamavam em delírio, que
o levantavam em ombros, que vinham a pé, de longe, descalços, filhos no colo,
ver passar e saudar o “senhor general”. (ROSAS, 2013, p. 242)
Todos os esforços de Humberto Delgado foram em vão, pois no fim, o candidato
escolhido pela União Nacional, Américo Tomás, “venceu” as eleições por 75% dos votos,
resultados “sem dúvida manipulados” (GÓMEZ, 2011, p.74), sendo que o eleito foi “uma
personagem sem relevo cujo mérito principal era a sua ortodoxa fidelidade a Salazar”
(GÓMEZ, 2011, p. 74), conforme vemos propagandas
veiculadas como na imagem ao lado34, que mostra o candidato
sendo apoiado por António Salazar.
Alvo de ameaças por parte da polícia política,
Humberto Delgado pediu asilo político na embaixada do
Brasil, mas ainda assim planejava outras estratégias para um
golpe militar, sendo novamente frustrado.
Um ano após a fraude das eleições, Salazar aprovou
uma constituição que afirmava que o presidente seria eleito não mais por sufrágio, e sim
por um colégio eleitoral, formado apenas por membros da União Nacional, evitando
assim a possibilidade de ‘nova’ tentativa de golpe. O presidente eleito Américo Tomás
34 FIGURA 11: “Vote com Salazar Por Portugal”: Fonte: Imagem retirada dos Arquivos da Torre do Tombo,
sob número: PT-TT-AOS-D-M-18-1-14-647_m0001. Disponível para consulta online em:
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=3893358
69
permaneceu no poder por mais dois mandatos, saindo apenas em 1974, com a queda do
regime. Henrique Galvão (2010) também relatou em sua carta o episódio das eleições
fraudadas:
Ainda te foi fácil roubares escandalosamente as eleições e alcandorares o
candidato vencido à chefia do Estado. A máquina estava perfeitamente
montada para estas manigâncias. Mas já não te foi possível manter no país a
dúvida quando ao verdadeiro resultado das eleições. O Humberto Delgado
ganhou-as por maioria esmagadora. O país viu-te, alucinado e de cabeça
perdida como nunca, decomposto, knock down, no teu desvairo, a organizares
ridículas manifestações de desagravo, a atacares a Igreja, que também havias
mistificado fazendo-o passar como filho fiel, só porque ela, pela voz claríssima
e puramente religiosa do Bispo do Porto e de muitos sacerdotes, se recusou a
colaborar na tua farsa eleitoral e te chamou a atenção para a miséria deste povo
[...]. (GALVÃO, 2010, p. 57)
As eleições de 1958 trouxeram a Portugal inúmeras consequências para o governo,
e o país passou por períodos de intensa agitação social e política, greves, manifestações e
protestos estudantis. Além disso, o bispo do Porto, António Ferreira Gomes, redigiu uma
longa carta ao primeiro-ministro, discordando do “Estado Novo” em muitos aspectos,
dizendo que tal regime estaria em discordância com os Ensinamentos da Igreja
(MENESES, 2011). A coragem do bispo e os itens demonstrados na carta fez com que
sua demissão fosse exigida por Salazar, e além disso, sua carta foi copiada e inicialmente
distribuída entre os párocos da diocese, tornando-a logo conhecida entre o restante da
população. Para Salazar, ver a Igreja contra o seu regime, foi mais um golpe em seu
governo, e tentou logo recorrer ao Episcopado Português já que seria impossível reprimir
o bispo publicamente. O bispo foi afastado de seu cargo por um tempo, mas a Igreja não
o substituiu por outro como pedia o ministro; ele saiu do país, mas não pôde regressar
enquanto Salazar estivesse no poder.
Tais episódios revelam claramente como o ministro esteve sob ameaças internas
e externas, especialmente no fim do seu governo, mas que, com seu poder e autoridade
sobre os outros, conseguia sempre contornar a situação a seu favor. Mas as adversidades
ainda estariam longe de acabar, com o início da Guerra Colonial.
1.3.4.1 A Abrilada e a Guerra Colonial
A Guerra Colonial teve início em 1961 e foi o ponto chave para o desgaste da
ditadura. Pouco antes, Salazar ainda teve de enfrentar um período conturbado também
internamente. Logo no início do ano, Henrique Galvão, um de seus ex-ministros que se
70
revoltou duramente contra o governo, comandou o assalto ao paquete Santa Maria
chamando a atenção do mundo e especialmente da mídia americana, que já se mostrava
contrária as medidas adotadas por Salazar e o pressionava pela posse [ilegal] das terras
na África: o navio, que saiu da Argentina com direção aos Estados Unidos foi desviado
pelo grupo de militares com o objetivo de ir a Angola e liderar um golpe de estado. Mesmo
tendo falhado, o evento marcou a política salazarista e o enfraquecimento de seu governo
era evidente. Ainda, a ONU passou a pressionar Portugal após a descolonização de outros
países da África e o governo americano também questionou o andamento da
descolonização. Cabe aqui ressaltar que o general Humberto Delgado35 – exilado no
Brasil após represálias por parte do governo ocorridas por ocasião das eleições – enviou
carta ao Secretário Geral da ONU relatando a Política Colonial Salazarista e solicitando
uma posição em relação ao caso (ANEXO D). O posicionamento intransigente de Salazar
em relação à descolonização dos territórios ultramarinos forçou o Ministro de Defesa
Nacional Botelho Moniz a se rebelar contra o ditador e a tentar um Golpe de Estado que
ficou conhecido como Abrilada ou Golpe Botelho Moniz. Já seria a segunda tentativa em
menos três anos, iniciada com as eleições presidenciais de 1958, e ambas foram
fracassadas. De todos os obstáculos obtidos nos últimos anos e todos os adversários que
Salazar poderia enfrentar, Botelho Moniz teria sido talvez o mais arriscado para o
ministro, causando certa inquietação e foi o que realmente poderia causar a sua saída do
poder, por ter todas as evidências necessárias para o fim de seu comando: Adriano
Moreira (ministro do Ultramar em 1961) “ouviu Salazar desabafar que nunca se sentira
tão perplexo em toda a sua vida política, e admitir que o General Moniz tinha na mão
todos os comandos” (MOREIRA, 2004 apud ROSAS, 2013, p. 246).
Com a descolonização de grande parte dos países da África, na década de
cinquenta, restando praticamente a presença de Portugal em alguns territórios, a ONU
voltou a pressionar o país por posse ilegal de terras, mas Portugal continuou afirmando
que tais terras não seriam colônias36, e sim, parte do território português. Ainda na década
de 50, foram surgindo líderes de movimentos nacionalistas que passaram a reivindicar a
libertação das colônias, como por exemplo: Amílcar Cabral em 1956 fundou o partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC); Em Angola houve a
35 Humberto Delgado continuou suas tentativas de golpe de Estado após as eleições, sendo perseguido por
agentes da PIDE, até que em 1965, após um tempo exilado, foi assassinado pela polícia política na fronteira
com a Espanha, ao pensar que se encontraria com opositores ao regime. 36 A partir de 1951, por pressão da ONU, as colônias passaram ser chamadas de ‘províncias ultramarinas’.
71
rivalidade entre três grupos na luta contra o colonizador, a União das Populações de
Angola (UPA) em 1955, mais tarde conhecido como Frente Nacional de Libertação de
Angola (FNLA); o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), criado por
Agostinho Neto em 1956; e, por último, a União Nacional para a Independência Total de
Angola (UNITA) criada em 1966.Em Moçambique, a Frente de Libertação de
Moçambique (FRELIMO) foi constituída em 1962 por Eduardo Mondlane. Em São Tomé
e Príncipe também foi organizado um movimento que pleiteava a independência das ilhas,
o Comité de Libertação de São Tomé e Príncipe (CLSTP).
Salazar mostrava-se irredutível quanto à ideia de negociar uma saída dessas terras,
porque causaria um “efeito dominó”, e caso alguma delas viesse a ser independente, as
outras conseguiriam o mesmo feito com mais facilidade, uma vez que o governo estaria
fragilizado. Dessa forma, a solução foi combater e emendar uma guerra a “todo custo”
para manter as províncias ultramarinas em sua posse. A partir dessa época, com uma
Guerra Colonial, o governo português teve de se comprometer com 40% do orçamento
do Estado para a guerra, o que causava muitas revoltas pelo país, causando um forte
impacto não somente na economia, mas também para muitas famílias que tiveram entes
queridos lutando em uma guerra que não traria benefícios para o futuro da nação.
1.3.5 Primavera Marcelista e a Revolução dos Cravos
Os eventos ocorridos até então dão um panorama não muito favorável para o
regime português, especialmente por causa dos efeitos da Guerra Colonial que continuava
ceifando vidas nas províncias ultramarinas. Os problemas internos também forçavam
Salazar a repensar na sua política para resgatar confiança não somente da população, mas
principalmente das pessoas que o rodeavam, que trabalhavam juntamente com ele.
Porém, em agosto de 1968, o Presidente do Concelho começou uma longa batalha
contra os seus problemas de saúde advindos de uma lesão sofrida com uma queda em seu
escritório. Com idade avançada, os dias que sucederam a queda foram marcados por
constantes dores de cabeça e idas ao médico, apesar de o Presidente alegar que estaria
tudo bem. Com o agravamento do quadro, após uma cirurgia e duas hemorragias
intracranianas, e independentemente do desfecho, enquanto o ministro ainda se
encontrava hospitalizado, começaram a busca de um sucessor que conseguisse substituir
Salazar, governar sem a presença dele e, ainda, ter a aprovação das Forças Armadas.
72
Assim, no dia 27 de setembro de 1968, Marcello Caetano37 assumiu a posição de primeiro
ministro – o segundo ministro de Portugal desde 1932. Surpreendentemente, Salazar foi
melhorando de maneira gradual, mas ainda muito debilitado, não lhe contaram sobre a
sucessão de seu cargo, segredo que mantiveram até o dia da sua morte, quase dois anos
após o incidente. Retornou à sua residência sob cuidados médicos, mas sua equipe nunca
encontrou palavras para explicar-lhe o ocorrido, uma vez que Salazar ainda mantinha
esperanças de voltar ao poder quando terminasse o seu repouso e sua saúde se restaurasse.
Os acontecimentos políticos eram mantidos em sigilo: “Liam-lhe o jornal, o que queria
dizer que tinham de exercer censura sobre a informação transmitida, a fim de manter
secreta a nomeação de Caetano” (MENESES, 2011, p. 649). Mesmo percebendo já em
1970, um mês antes de sua morte, que os assuntos políticos foram mantidos em sigilo,
nunca soube de fato o que teria ocorrido. Uma infecção renal agravou sua saúde, e Salazar
veio a falecer no dia 27 de julho de 1970.
Caetano, em seu discurso logo após a morte de Salazar, diz que
Salazar recebeu um país arruinado, dividido, convulso, desorientado,
descrente nos seus destinos, intoxicado por uma política estéril. Deixou
um país ordenado, unido, consciente, seguro dos seus objetivos e com
capacidade para os atingir” (Caetano apud Meneses, 2011, p. 653)
Embora houvesse mérito por parte Salazar relativamente a alguns avanços do país,
era inquestionável que áreas como a agricultura e a indústria sofreram com os retrocessos,
levando os jovens ao desemprego e forçando-os a emigrarem.
A entrada efetiva de Marcello Caetano trazia à população grande expectativa de
mudança, especialmente porque o posicionamento político dele divergia do seu
antecessor. Porém, não seria possível nenhuma transformação decisiva que não
envolvesse o fim da Guerra Colonial e a independência das províncias ultramarinas, ações
descartadas pelo Presidente pela possibilidade de militares tomarem o poder:
As Forças Armadas, através dos seus chefes, punham, pois, ao
Presidente da República, como condição para aceitarem o novo Chefe
de Governo, que não só se mantivesse a política de defesa do Ultramar
como se evitasse qualquer veleidade de experimentar uma solução
federativa. O Chefe de Estado transmitiu-me estas únicas condições.
37 Marcello Caetano já havia sido um dos destaques do Estado Novo, ao ser um dos redatores da
Constituição em 1933, comissário nacional da Mocidade Portuguesa, e ainda o presidente do Conselho
entre 1954 a 1958. Durante dez anos, ficou fora da política – trabalhou como professor – retornando em
1968, quando foi o mais votado entre a equipe para ocupar o lugar de Salazar – mesmo tendo ideias
divergentes. Após a Revolução dos Cravos, Marcello Caetano ficou exilado no Brasil, onde foi bem
recebido e convidado para dar inúmeras conferências e aulas na área de Direito (ressalta-se que o Brasil
ainda estava sob o regime ditatorial). Lançou muitos livros sobre sua vida política e acadêmica e faleceu
em 1980, no Rio de Janeiro.
73
Ficou bem claro que, - se fosse mal sucedido no meu propósito de obter
em 1969 um voto eleitorado favorável ‘a defesa do Ultramar, eu cederia
o Poder às Forças Armadas. (CAETANO, 1976, s /p)38
Caetano aparentemente mostrava uma tendência inicial para uma política de
mudanças e reformas políticas, o que levou a denominarem esse período de Primavera
Marcelista. Segundo um depoimento dele, nunca se preocupou em fazer uma política de
esquerda ou direita, e sim, em ser fiel ao seu mandato e em averiguar as necessidades do
povo e fazê-la da maneira mais eficaz possível. (CAETANO, 1976). Ainda, “lutei contra
os partidos totalitários, [...] as actividades clandestinas, os perturbadores do sossego
público pelo terror, e como era meu dever, reprimi a desordem, a imoralidade, a
subversão. Fui vencido neste combate, hoje em dia apelidado de “fascista”. (s,p)
Mas questões de todos os lados ameaçaram o poder de Marcello Caetano:
oposições de governo, frentes democratas e socialistas; greves dos trabalhadores,
contestação estudantil (que ganharam força após o Maio de 6839), fatos que atenuaram a
fragilidade do governo e culminaram no fortalecimento dos militares, já em fins de 73 e
início de 74.
O ano de 1973 foi bastante conturbado para Marcello Caetano, com a
intensificação dos protestos por parte das Forças Armadas, com a Guerra Colonial (e
independência da Guiné-Bissau) e novamente a pressão da ONU contra a Política
Colonial portuguesa – agravada especialmente com a denúncia feita pelo TIMES que
repercutiu pelos jornais europeus, somando-se ao Massacre de Wiryamu40 ocorrido em
Moçambique em dezembro do ano anterior. Ainda nesse ano, ocorreram eleições gerais
de 1973 em que não houve candidatos de oposição por falta de transparência do governo
e mudanças na lei eleitoral.
Mas o momento mais relevante do ano ocorreu com o início das manifestações
contrárias por parte das Forças Armadas, iniciando-se no Porto, em junho de 1973, com
38 Texto integral disponível em: http://leccart2006.tripod.com/prof_mc.pdf 39 Maio de 68 foi um movimento ocorrido na França iniciado por estudantes com o objetivo de reivindicar
reformas no setor educacional, provocando muitos confrontos e uma grande repercussão midiática. A
tentativa do presidente francês Charles de Gaulle de inibir tal revolução gerou mais descontentamento
levando o restante da população (trabalhadores, camponeses) a aderir aos protestos e à greve que contou
com quase dez milhões de adeptos. O fato de ter sido um movimento que abrangeu os aspectos
universitários, sociais e políticos, a sociedade francesa ficou bastante desestruturada inicialmente e após
um mês de muitas revoltas, o presidente convocou novas eleições, vencidas por aliados de Gaulle. O
movimento refletiu internacionalmente impulsionando outros jovens a lutarem mais pelos seus direitos – o
que ocorreu em Portugal poucos anos depois. 40 O Massacre de Wiryamu ocorreu em Moçambique em dezembro de 1972, quando uma tropa portuguesa
matou em torno de quatrocentas pessoas de algumas aldeias, inclusive mulheres e crianças. O governo
português nunca confirmou os fatos.
74
um evento em que combatentes e ex-combatentes se reuniram em favor da defesa do
espaço Ultramarino – expondo que jamais trairiam a pátria. No Congresso dos
Combatentes do Ultramar pouco mais de quatrocentos oficiais reagiram às medidas e
promoveram um abaixo-assinado contra o evento e a guerra, iniciando a partir daí a
grande derrocada do governo: no mês seguinte, devido ao escasso número de capitães
para combater na guerra do Ultramar (muitos se eximiam dos deveres, talvez por serem
mais politizados e informados, levando a uma defasagem no número de combatentes), o
governo se viu obrigado a tomar medidas controversas que geraram discordância por
parte das Forças Armadas: para lutar na frente de batalha, não seria mais necessário um
curso de quatro anos como de costume, e sim, um curso intensivo de apenas seis meses,
para acelerar a chegada de mais combatentes. Com protestos e reações contrárias a essa
medida, o governo foi obrigado a revogar a lei, mas os oficiais continuaram com suas
manifestações contrárias ao regime, iniciando, assim, o Movimento Capitães (MC) –
conhecido posteriormente por Movimento Capitães de Abril. Muitos desses capitães já
estariam insatisfeitos com o governo de Marcello Caetano, e tais medidas foram o ápice
para aumentar o desequilíbrio entre as Forças Armadas e o governo. Foi esse movimento
que alterou a história portuguesa, sendo algo particular: “A grande singularidade no caso
português foi precisamente a intervenção democratizante do Movimento dos Capitães,
rara senão única neste século, e que estava longe de ser previsível, [...]” (PINTO, 1999,
p.20241)
A partir desses episódios, os capitães passaram a se reunir eventualmente para
discutir possíveis negociações para tomada de poder e com o tempo, o general António
Spínola – que já havia trabalhado nas províncias ultramarinas – também se uniu ao
movimento como um dos chefes das Forças Armadas, juntamente com o general Costa
Gomes, que era o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas.
Em fevereiro de 1974, Spínola lança o livro “Portugal e o Futuro”, obra em que
discute a fase de Portugal e o que deveria ser feito para salvá-lo dos problemas políticos
ocorridos, gerando uma grande repercussão, aumentando a confiança entre o Movimento
dos Capitães e o general Spínola, visto que suas ideias eram convergentes. Nesse livro,
ele explica o retrocesso do país com a continuação da guerra:
Reduzir a questão ultramarina a posições extremas, e apresentar ao País
o dilema da eternização da guerra ou da traição do passado, é atitude
que não conduz com o futuro de grandeza e unidade que legitimamente
41 Disponível online em: http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/revistas-e-
periodicos/revista-camoes/revista-no05-25-de-abril-a-revolucao-dos-cravos.html
75
aspiramos. [...] Quanta divisão estéril, quanta energia despendida,
quanta ameaça velada envolvem esses dois extremos, qualquer deles
em risco de resvalar para consequências incontroláveis! E ainda quanto
sangue ingloriamente derramado, quanta angústia e quanta perniciosa
demora na tomada do verdadeiro caminho resultam da irredutabilidade
das duas teses! (SPINOLA, 1974, p. 12, 13)
O movimento dos Capitães cresceu e seus planos foram minuciosa e secretamente
programados. Em março de 1974, surge uma data prevista para o Golpe Militar, para o
fim de abril. Assim, na manhã do dia 24, os militares foram avisados pelo capitão
Salgueiro Maia (um dos integrantes do MC) sobre o golpe que sucederia naquela noite,
logo após duas canções que seriam tocadas na rádio Renascença: Ao som da primeira
canção-senha, “E depois do Adeus” de Paulo Carvalho, em torno das 23h, os militares se
dirigiram ao quartel para se organizarem.
Apenas após a segunda canção, “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso que foi
tocada à 0h20 no programa Limite (com vinte minutos de atraso, para o desespero dos
militares), é que iniciaria a marcha em direção ao Largo do Carmo. Sanches Osório, um
dos seis oficiais que planejaram o Golpe Militar, explica a escolha dessa canção por Otelo
Saraiva de Carvalho: “A frase da canção ‘o povo é quem mais ordena’ era interpretada
pelos oficiais democráticos como uma palavra de ordem para uma democracia em que a
vontade do Povo fosse respeitada” (SANCHES OSÓRIO, 1975, p. 37, 38). Com as
operações militares em curso, deu-se a Revolução de 25 de Abril, também conhecida por
Revolução dos Cravos42. Com o povo nas ruas – logo após o discurso nas rádios e pela
TV, Marcello Caetano e sua equipe foram depostos do governo, dando início, assim, ao
período democrático na política portuguesa.
1.4 PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO (PREC)
Após a Revolução dos Cravos, iniciou-se uma fase de muita instabilidade no país
em relação à natureza do governo que sucederia o longo período ditatorial, conhecida
como Processo Revolucionário em Curso (PREC). Os primeiros dias democráticos foram
marcados por movimentação dos trabalhadores, formação de sindicatos e comícios, e
também greves de trabalhadores e estudantes, uma vez que manifestações não eram mais
proibidas (MATTOSO, 1994). Essa fase foi de incertezas por parte do cidadão português,
42 A revolução também ficou conhecida como Revolução dos Cravos devido a uma mobilização
populacional ao colocar os cravos nos canos das armas dos capitães. Tal gesto simbolizaria uma maneira
pacífica de resolver as coisas – como de fato o foi.
76
que passou a reivindicar direitos e salários mais dignos, empregos, melhores condições
de vida, enfim, todas as exigências que a população não tinha recursos para fazer
anteriormente. Em 17 de maio de 1974, António Spínola, escolhido pelos oficiais logo
após a Revolução, assumiu a presidência provisoriamente, instaurando o I Governo
Provisório após a queda da ditadura militar. O Ministro da Coordenação Interterritorial,
o dr. António de Almeida Santos, prevendo uma fase de difícil controle por parte do
governo, procura acalmar a população, especialmente os portugueses do Ultramar, que
esperavam uma solução para a guerra que, segundo ele foi “teimosamente mantida, contra
as constantes reivindicações do povo português” (ALMEIDA, 1974, p. 8), e ainda
afirmou a expectativa de que a solução e a liberdade total das colônias acontecessem
rapidamente.
A insatisfação e a incerteza populares eram amplamente vistas nas pessoas no
decorrer do PREC:
[...] mas passadas quatro semanas sobre o 25 de Abril, começo a
perguntar e não obtenho resposta, se isto será a Liberdade que o povo
português sonhava. Isto de libertarem-se terroristas sem pátria e
transformá-los em Heróis Nacionais. [...] Poderá o país aguentar a crise
económica que dia a dia se vai desenhando diante de todos, com a
paralisação da Indústria e do Comércio, com o aumento de desemprego,
[...]?. Que Deus guarde Portugal!43
Com a possibilidade de se formar partidos, muitas foram as tendências existentes
nessas fases, ocasionando diversos pequenos governos provisórios:
Tabela 3 – Governos Provisórios PREC
Governo
Provisório
Primeiro-Ministro Presidente Início do
Governo
I Palma Carlos António de Spínola 15/05/1974
II Vasco Gonçalves António de Spínola 18/07/1974
III Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 01/10/1974
IV Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 12/03/1975
43 Discurso proferido por Galvão de Melo na RTP no dia 27 de maio de 1974. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=mfa8
77
V Vasco Gonçalves Francisco da Costa Gomes 08/08/1975
VI Pinheiro de Azevedo Francisco da Costa Gomes 15/08/1975
Com exceção da Guiné (que se tornou independente ainda em 1973), essa fase
também foi marcada pela independência tardia dos países africanos, na ordem em que
segue: Moçambique (junho de 1975), Cabo Verde (julho de 1975), São Tomé e Príncipe
(julho de 1975), Angola (novembro de 1975) e ainda, na Ásia, com Timor-Leste
(novembro de 1975).
Apenas dois anos após a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1976, uma
Nova Constituição foi aprovada e em junho desse mesmo ano, Ramalho Eanes foi o
primeiro Presidente da República democraticamente eleito, recomeçando assim, um
período de maior estabilidade na política portuguesa.
78
Figura 12 - Comemoração no Aeroporto de Lisboa em abril de 1974 (LETRIA, 2013)
“Há sempre alguém que semeia
Canções no Vento que passa”
(Manuel Alegre /Adriano Correia de Oliveira)
CAPÍTULO 2
PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:
A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU
79
2. PERSPECTIVAS DA MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL:
A HISTÓRIA NA VOZ DE QUEM A VIVEU
2.1 MEMÓRIA
De uma maneira ampla, classifica-se a memória como lembranças do passado, que
continuam vivas no pensamento de cada um, e a capacidade de armazenar dados
pertencentes às histórias vividas ou impressões sentidas de cada uma delas. A memória,
como função psíquica, “nasce” da história e da antropologia, e tem o papel de conservar
informações e atualizar impressões passadas do indivíduo de acordo com suas
experiências posteriores (LE GOFF, 1984). Os estudos de memória abrangem diversas
outras áreas, como a psicologia, a neurofisiologia, a biologia e também a psiquiatria,
sendo, por isso, classificada como pluridisciplinar.
Le Goff (1984), em seu amplo estudo acerca da memória, também aponta para a
questão da recordação e do esquecimento, podendo a memória estar reprimida ou
conservada, dependendo do tempo, da história, dos interesses pessoais e da manipulação
exercida, ressaltada por psicólogos e psicanalistas, que
[...] quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento
[...], nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a
afectividade, o desejo, a inibição, a censura, exercem sobre a memória
individual. Do mesmo modo, a memória colectiva foi posta em jogo de
forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se
senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da
história são reveladores desses mecanismos de manipulação da
memória colectiva. O estudo da memória social é um dos meios
fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história,
relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento” (p 13).
Nesta pesquisa, a memória é entendida pelo viés da história, e discutindo, em
especial, a memória coletiva. Como a presente pesquisa se apoia nas entrevistas
individuais cujas memórias de cada um são sempre relatadas por meio de grupos e fazem
parte de um momento histórico de todo um país, estas memórias e lembranças narradas
são sempre coletivas. Desta forma, baseamo-nos nos conceitos de memória individual e
80
coletiva descritas especialmente por Le Goff (1996), Ricoeur (2008) e, principalmente
por Halbwachs (2006).
2.1.1 Memória Individual e Coletiva
Para falar de memória, Ricoeur (2008) recapitula os sentidos de memória vistos
em Santo Agostinho, John Locke, Husserl e Halbwachs. Dos três primeiros recupera com
um olhar interior sobre a memória e a lembrança contidas em nós mesmos, e de
Halbwachs destaca a memória com um olhar mais exterior, por meio da sociedade e do
grupo em que o indivíduo vive. Conforme Santo Agostinho, Ricoeur (2008) diz que “a
memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado
é meu passado”. (p. 107). A memória tem um caráter mais individual, não podendo ser
compartilhada com outros: “Minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir
as lembranças de um para a memória do outro. Enquanto minha, a memória é um modelo
de minhadade, de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito”
(p. 107). Segundo Locke, nos estudos de identidade pessoal e consciência, a memória, é
a condição necessária para a identidade pessoal, sendo esta construída por meio da
memória, que não é diferente de ‘lembranças’. Em Husserl, há uma aproximação com
Santo Agostinho quanto às questões da interioridade, memória e tempo.
Em contrapartida, assinala Ricoeur (2008), com um olhar quase totalmente
exterior, Halbwachs destaca a memória como sendo predominantemente um ato coletivo,
algo que o indivíduo depende de outros para que seja realmente ‘concretizado’. Segundo
ele, todo indivíduo nasce de um grupo social, cresce e aprende com base no contato com
os outros, e, por esta razão, todas as suas memórias e lembranças derivam da convivência
com o próximo e, assim, todas as suas experiências coletivas são acrescentadas à sua
vivência individual. Portanto, para Halbwachs, as experiências coletivas têm uma ligação
mais forte nas lembranças de cada um, sendo elas as que mais predominam na memória
do indivíduo. Não há lembranças individuais que não sejam de alguma forma
compartilhada com o outro, ou originado do convívio com o outro. Ao mesmo tempo, há
memórias que, ao serem compartilhadas com o outro, elas se diferenciam umas das outras,
porque cada um tem sua maneira de pensar, sua individualidade e personalidade. Assim,
as impressões de um indivíduo podem coincidir ou não com o outro, podendo ser
completados com as suas próprias ideias, e às vezes até confundi-las. Como diz
Halbwachs (2006),
81
admitamos, contudo que as lembranças pudessem se organizar de duas
maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que
as vê de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro de uma
sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais. Portanto,
existiriam memórias individuais e por assim dizer, memórias coletivas.
Em outras palavras o indivíduo participaria de dois tipos de memórias.
(p. 71)
Quando uma pessoa precisa relembrar o seu passado, geralmente ela recorre às
lembranças de outras pessoas, transferindo as ideias de outros para o seu contexto. Mas
ele ressalta que, dessa maneira, as memórias dos outros não costumam se confundir com
a memória individual, visto que é normal que nos lembremos de nossas próprias
sensações e ideias quando presenciamos certos momentos, mas com pontos de vista
diferentes dos demais.
Nossas impressões e lembranças acerca de um evento ocorrido no passado, ou
local em que estivemos, podem ser formadas por diferentes testemunhos (além do ‘eu’)
ou apenas por nós mesmos. O primeiro testemunho será sempre o “nosso” e à medida que
crescemos, envelhecemos e passamos por diversas experiências, as nossas próprias
percepções acerca de algo antigo podem sofrer modificações, e nossas lembranças de
adaptam ao presente, como se tivessem vários observadores. A relação entre o primeiro
testemunho, o “eu” e o outro testemunho deverá ser sempre “harmonioso”, visto que
foram parte de um mesmo acontecimento, e pertencem ao mesmo grupo, e entende-se que
as ideias e as recordações devam ser comuns. Mesmo que haja memórias únicas de um
indivíduo, nossas lembranças nunca são individuais pelo fato de estarmos inseridos em
um grupo, em uma sociedade, pois de acordo com Halbwachs, “Nossas lembranças
permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em
que somente nós estivemos envolvidos, e objetos que somente nós vimos”
(HALBWACHS, 2006, p. 30). Isso ocorre porque, segundo ele, mesmo que os outros não
estejam fisicamente presentes, eles estão em nossa memória e fazem parte de nós e de
nosso convívio. Assim há uma relação entre a memória individual e a coletiva, pois não
é possível o indivíduo se recordar de lembranças de um grupo se tais lembranças não se
identificam. Halbwachs afirma:
Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não
basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que
ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que
existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a
lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma
base comum. (HALBWACHS, 2006, p. 39)
82
Como mencionando por Halbwachs (2006), o indivíduo participa dos dois tipos
de memória, pois a memória é uma combinação das recordações de diferentes grupos dos
quais o indivíduo faz parte, seja da família, do trabalho, da escola, etc., pois o
“funcionamento da memória individual não é possível sem esses dois instrumentos que
são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas que toma emprestado de
seu ambiente.” (HALBWACHS, 2006, p. 72).
Ao mesmo tempo em que as memórias individual e coletiva estão sempre
partilhadas, há sempre características individuais e peculiares nas lembranças de cada um,
que permite que o indivíduo não se descaracterize perante um grupo, trazendo
informações e particularidades que só pertencem a ele.
A memória escrita nasceu da necessidade de se registrarem fatos orais e de se
compartilharem histórias ocorridas com um grupo ou em comunidades com o objetivo de
não se perder com o passar dos anos. Para Pierre Nora, retomado por Le Goff, a memória
coletiva é o “que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do
passado” (LE GOFF, 1996, p. 472).
A memória coletiva desempenha um papel profundamente importante na evolução
das sociedades na questão histórica, quanto ao aparecimento de arquivos, de documentos,
monumentos, e em todo o trabalho histórico que resulta dessa memória (LE GOFF, 1996).
Histórias de poder, de lutas pela vida, de sobrevivência são vistas e relembradas a partir
do trabalho da sociedade. “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar
identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1996, p. 476).
Halbwachs (2006) destaca a memória em indivíduos inseridos em “grupos de
referência”, ou seja, tipos de grupos os quais os indivíduos faziam parte em determinada
época de suas vidas. Tais grupos podem ser divididos por afinidade, identificação,
trabalho, etc. Com a inserção em tais grupos, as memórias foram construídas em conjunto,
sendo um trabalho tanto do sujeito como coletivo. Dessa forma, esses pensamentos
podem ser compartilhados, construídos em conjunto, embora, como sujeitos individuais,
muitos pontos de vistas podem ser diferentes. Como nas palavras de Halbwachs (2006):
“se a nossa impressão pode se basear não apenas na nossa lembrança, mas também na de
outros, nossa confiança na exatidão de nossa recordação será maior, como se uma mesma
experiência fosse recomeçada, não apenas pela mesma pessoa, mas por muitas” (p. 30).
83
Partindo da perspectiva das entrevistas realizadas, pode-se notar o quanto a
memória foi utilizada: as entrevistas se passaram mais de quarenta anos após a Revolução
de Abril, mas vale ressaltar que, para nenhum deles, os assuntos comentados durante as
arguições foram ditos pela primeira vez após tanto tempo. São assuntos que podem ser
corriqueiros para alguns e há outros que fizeram vários registros escritos acerca da
memória sobre o 25 de Abril. Ainda assim, não se pode confiar com precisão em registros
totalmente baseados na memória, pois ela pode ser falha, subjetiva e imprecisa. Como
acentua José Jorge Letria, um dos entrevistados, em uma de suas obras escritas
recentemente:
A memória, nesse exercício de expurgo e preservação, tornou-se
seletiva, o que não significa que o tempo a tenha mantido absolutamente
fiel. Mas a memória, não sendo um cão, não tem o dever de ser fiel.
Basta-lhe ser coerente e limpa, sem vocação para adulterar ou fantasiar.
(LETRIA, 2013, p. 15)
E ainda,
Não são memórias literárias, musicais ou jornalísticas. São, ao mesmo
tempo, muito mais e muito menos do que isso, por paradoxal que
pareça, pois quem tão intensamente viveu tantas coisas ao mesmo
tempo acaba sempre por omitir muito mais do que poderia revelar.
(LETRIA, 2013, p. 18)
A memória, para cada um deles, é a imagem que têm do passado, cada um à sua
maneira, sendo diferentes os pontos de vista e as perspectivas da realidade que enfrentam.
É na memória que guardam suas verdades, suas percepções e as histórias vividas de uma
forma diferente da que é contada pelos historiadores. Contudo, é preciso identificar em que
medida a memória pode ter sido afetada pelas ocorrências posteriores da vida de cada um,
ou, ainda, se o tempo pode ter apagado alguns detalhes sobre o passado. Traverso (2009)
assinala que “a memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos
posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por experiências que se
sobrepõem à primeira e modificam a recordação.” (p. 23). A memória, ainda segundo
Traverso (2009), se caracteriza como algo que está em constante modificação, não sendo
nunca cristalizada. Ela pode ser definida como “visão do passado que é sempre filtrada
pelo presente”. Dessa forma, conclui-se que qualquer material, documento ou uma
autobiografia que se utilize apenas resquícios da memória para reconstruir um evento, uma
fase acontecida num passado distante ou recente, será afetado pelas ocorrências posteriores,
e estarão sujeitos a uma representação não totalmente fiel do que realmente aconteceu.
84
O que ficou na memória, após tantos anos, ficou conservado por ser parte
importante de um acontecimento, e o que não está documentado por causa do
esquecimento, são detalhes, que, talvez, não tenham tanta importância de serem lembrados.
A memória, sendo seletiva, filtrou apenas as partes que, de alguma forma, foram
expressivas para a testemunha.
2.1.2 História e Memória
Se a memória perdura enquanto há existência, a história, para Halbwachs, é algo
que a memória é incapaz de alcançar, enquanto não há existência. Somos capazes de
guardar lembranças sobre o passado a partir do momento em que viemos à existência, e
faz parte da memória tudo o que pôde ser registrado e armazenado em nossas mentes pelo
fato de termos passado por aquelas situações. Tudo o que ocorreu anteriormente a este
período, faz parte da história:
se a condição necessária para que exista a memória é que o sujeito que
lembra, indivíduo ou grupo, tenha a sensação de que ela remonta a
lembranças de um movimento contínuo, como poderia a história ser
uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê essa
história e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de
acontecimentos que nela são relatados? (HALBWACHS, 2006, p.
101)
A história só existe da necessidade de se registrarem fatos ocorridos anteriormente à nossa
existência, ou seja, eventos que aconteceram durante um período em que a memória do
indivíduo já não é capaz de registrar, documentando fatos para que não se apaguem com
o passar dos anos e com o desaparecimento das gerações que viveram durante aquele
período. Ao mesmo tempo, Halbwachs aponta para a maneira como a história é escrita
pelos historiadores: a divisão de períodos como se uma era tivesse um começo, meio e
fim, deixando seus estudos fragmentados e dando a ideia de que cada período fosse
independente um do outro.
Assim como Halbwachs, Nora (1993) também distingue a ruptura entre memória
da história: ele reforça em suas obras que a memória é um fenômeno sempre atual,
absoluta, uma ligação vivida sempre no presente; enquanto a história é uma representação
do passado, uma delimitação do passado vivido e tem caráter relativo. A história trazia a
ideia de “rememoração”, “memorização”, e pode nascer da memória coletiva e a partir
dela, cria-se a história científica, sendo chamada de “revolução da memória”. A história
85
vai se formando a partir dos inúmeros lugares de memória (podendo ser lugares
topográficos, monumentais, simbólicos ou funcionais), como arquivos, bibliotecas,
museus, arquitetura, comemorações e também a partir das experiências históricas.
Ao mesmo tempo, outras distinções claras sobre memória e história estão baseadas
na maneira como se reproduz algum acontecimento. Os historiadores, ao escrever a
história, baseiam-se em informações documentadas, encontradas em arquivos, em
museus, na ciência. Enquanto lê-se registros de José Jorge Letria (2013), por exemplo,
baseado numa história pessoal vivida, em que são relatadas as emoções sentidas em uma
época, há uma clara distinção ao ler o historiador Fernando Rosas, que se apropria de
pesquisas históricas e acadêmicas sobre a época, distanciando-se do que de fato foi vivido
por ele. Como explica Letria:
Não tive a intenção de escrever História, tarefa que cabe, por direito,
aos historiadores, e sim de produzir, com a inevitável componente de
afecto e com a subjetividade que o processo selectivo da memória
implica, um relato sobre aquilo que vi e que vivi sobre os sentimentos,
as emoções, as esperanças e os sonhos que marcaram, nessas horas, as
vidas de milhões de portugueses [...]. Espero que a memória me não
tenha traído naquilo que é verdadeiramente essencial [...].” (2013, p. 17,
18).
Nessa passagem, Letria faz a distinção entre escrever História e escrever relatos
sobre o que foi vivido na História. A história e a memória são uma elaboração do passado,
e ao escrever a história, os historiadores utilizam provas, evidências, relatos científicos e
documentos, com datas, nomes e desdobramentos da história para escrever,
cientificamente, sobre o que ocorreu em uma determinada época sobre certo assunto.
Nestes relatos, não se expressam emoções, sonhos, sentimentos de nenhuma figura
política ou alguém que tenha sido parte do acontecimento, por estarem foram do alcance
de um historiador, e ainda, fora do tempo do historiador, e precisam manter o
distanciamento e a imparcialidade requerida por ele para que, de certa forma, possa
mostrar credibilidade no seu trabalho. Quando os relatos são feitos por pessoas que foram
vítimas ou testemunhas de um importante acontecimento, são feitos por meio da memória,
e todas as emoções, as experiências e os sentimentos estão sendo mostrados, dando uma
ideia de proximidade com o leitor. Além disso, são relatos subjetivos, visto por uma
pessoa, mostrando apenas um lado da história, que talvez possa ser diferente de outros
que também participaram do referido acontecimento, trazendo, dessa forma, diferentes
emoções, experiências, pontos de vista referentes a um único assunto. É importante que
86
o historiador leve em consideração os relatos de uma vítima ou testemunha, mas não deve
transformá-los numa perspectiva da escrita da História (TRAVERSO, 2009).
Ainda é muito difícil para um Historiador separar esses dois aspectos na hora de
escrever: “É normalmente muito difícil, para os historiadores que trabalham sobre fontes
orais, encontrar o equilíbrio justo entre empatia e distanciação e entre o reconhecimento
das singularidades e a perspectiva em geral” (p. 28). Para Catroga (2009), a memória tem
o objetivo de atestar a veracidade de que é narrado, enquanto a história é movida por uma
finalidade veritativa que precisa de comprovação para confirmar suas interpretações.
Nora (1993) atesta que a memória “é a vida”, é singular, subjetiva, e a história é objetiva
– pode ser ainda uma representação incompleta do passado; tem uma visão secular.
Traverso (2009), para ilustrar, mostra como uma pessoa, vítima de um campo de
concentração durante a Segunda Guerra Mundial, poderia descrever uma fotografia do
campo de Auschwitz. Nesta descrição, ela se lembrará do momento, da emoção, da
sensação, do medo, do cheiro, da fadiga, etc., e esses sentimentos estão fora do alcance
do historiador. Histórias que são contadas por vítimas e testemunhas tendem a ser
preenchidas por emoções e mostram o lado visto de acordo com a personagem da
narração. São essas emoções e sensações não vistas pela História que se podem perceber
nas entrevistas orais e nos relatos que José Jorge Letria, Sérgio Godinho, Francisco
Fanhais, Borges Coelho, Pedro Calafate e Fernando Rosas, que fazem parte desta
pesquisa.
2.2 PERSONALIDADES ENTREVISTADAS
Este item apresenta posições críticas e políticas de escritores, pesquisadores e
músicos entrevistados especificamente para esta pesquisa. No entanto, o material que se
comenta adiante também traz elementos extraídos de publicações (deles e de outrem)
produzidas com o intuito de divulgar seus olhares e opiniões diante daquele cenário
político vivenciado em Portugal na segunda metade do século XX.
Ao trabalhar apenas com a questão da memória, compreende-se a sua diferença
com a relação aos textos históricos, pois estes privilegiam informações documentadas e
baseadas predominantemente em pesquisas registradas em acervos e museus e seus textos
e procuram manter a imparcialidade e certo distanciamento, pois tem caráter unicamente
87
informativo. Já os textos baseados na memória de personalidades que viveram um evento
histórico têm um caráter não somente informativo, mas também procuram mostrar um
lado que a história talvez não seja capaz de enxergar, carregado de emoções e
subjetividade. A leitura de autobiografias, diários, retratos de juventude, por exemplo,
permite ao leitor coletar informações mais palpáveis, cenários que ocorreram por detrás
dos acontecimentos e sentimentos que normalmente não são elencados pela História, pois
não cabe a ela a fazê-lo. Foram essas informações que levaram esta pesquisadora a buscar
informações que a História “oficial” não registrara.
Frente ao objetivo de selecionar canções que agitaram Portugal na década de 60 e
70, optou-se por entrevistar algumas personalidades conhecidas nesse ramo para não
cometer o equívoco de selecionar canções apenas por meio de levantamento daquelas
mais citadas pelo público em geral ou mais conhecidas por serem mais envolventes e
empolgantes.
As entrevistas mostraram-se adequadas não somente para a seleção das canções,
mas também para possibilitar o entendimento do universo vivido por eles durante aquela
fase, os momentos de tensão, de expectativa e de esperança que eles, talvez mais do que
outros que viveram nessa fase como espectador puderam experienciar. Vale ressaltar que
a ideia do vocábulo “personalidade”, contido no título, em muito tem a ver com a história
da revolução portuguesa. A palavra, derivada do vocábulo latino “persōna”, que tem
como definições máscara de teatro, personagem, função e carácter de uma pessoa,
poderia ser utilizada aqui nas palavras “personagem” ou “personalidade”. Como
“personagem” traz a forte ideia de um ator de teatro, e uma pessoa que desempenha um
papel que não é o da vida real, optou-se por utilizar “personalidade”, que além de também
ser um sinônimo de personagem, o dicionário da Academia Brasileira de Letras traz uma
definição que abrange perfeitamente o contexto do capítulo: “conjunto de caracteres de
cada pessoa que a distinguem dos outros; pessoa que se destaca na sociedade. Os músicos
revolucionários não foram meros personagens ou “coadjuvantes” da revolução ocorrida
em 1974, porque se pode dizer que devido a eles, o golpe militar ocorreu da maneira que
foi. A música foi o estopim, a protagonista, e, além disso, muitos “despertaram” para as
questões políticas por meio dela. Talvez não somente isto, pois mesmo que algumas
pessoas já tivessem uma noção da política ditatorial salazarista, faltava-lhes coragem para
denunciar ou se opor ao governo opressor, de modo que a existência desses cantores foi
fundamental para suprir essa necessidade que sentiam de ser representados por alguém.
O leitor encontra, a seguir, dados concretos, vivos e carregados de emoções dos
88
entrevistados acerca de sua vivência do 25 de Abril. Encontram-se reunidas fotos e
documentação retiradas de memoriais e de acervos particulares, assim como informações
encontradas em obras várias, além das informações contidas nas entrevistas realizadas.
As entrevistas foram realizadas entre novembro de 2014 e fevereiro de 2015.
Foram gravadas (câmera digital, com suporte de um tablet) pessoalmente, garantindo um
contato mais natural e próximo com o entrevistado. As personalidades entrevistadas
foram: os cantores José Jorge Letria, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho, e os professores
António Borges Coelho, Pedro Calafate e Fernando Rosas. Realizaram-se todas em
Lisboa: nos escritórios de trabalho, em suas residências, em associações ou escolas. A
duração variou conforme a disponibilidade de cada um, entre 20 e 45 minutos. Todas
transcorreram com normalidade, com exceção da última, quando ocorreram problemas
técnicos durante a gravação, sendo gravados apenas trechos com poucos minutos, e dessa
forma, apresenta alguns cortes no DVD que está disponível nos anexos do trabalho. Vale
destacar, também, que relativamente à gravação da entrevista com Francisco Fanhais, há
informações ou perguntas que não transcorreram na mesma ordem das demais, pelo fato
de, informalmente, suas argumentações terem começado antes do início da entrevista
formal, logo na entrada da Associação José Afonso, onde fomos apresentados. No
entanto, destaca-se que, de nenhuma forma, tais percalços reduzem a qualidade do
trabalho e das informações recebidas e aqui prescritas.
A escolha dos entrevistados deveu-se primeiramente ao papel desempenhado por
cada um deles naquela época, sendo todos (com exceção do professor Pedro Calafate),
procurados pela PIDE, e às vezes, presos devido à alguma atividade irregular que ia contra
as imposições do governo ditatorial. Dentre os entrevistados, quatro deles (José Jorge
Letria, Francisco Fanhais, Sérgio Godinho e Pedro Calafate) eram cantores que se
valeram de canções como forma de expressar o seu descontentamento face às dificuldades
e situações vividas naquele momento. Desse modo, esperavam que, por meio do canto,
pudessem levar o restante da população a compreender e a apoiá-los nessa trajetória
arriscada que viviam. Outros dois que concederam a entrevista são atualmente
historiadores e professores universitários bem reconhecidos em Portugal, com livros e
inúmeras pesquisas sobre a história do país, mas que durante a fase ditatorial foram presos
pela PIDE por atividades irregulares.
89
2.2.1 José Jorge Letria
Figura 13 - José Jorge Letria
À esquerda, foto retirada da contracapa de sua obra lançada em 2013; à direita,
imagem da entrevista concedida à pesquisadora em seu escritório na Sociedade
Portuguesa de Autores, em Lisboa.
José Jorge Letria foi o primeiro dos entrevistados. Atualmente, exerce as funções
de jornalista, escritor e ocupa a presidência da Sociedade Portuguesa de Autores. Nasceu
em Cascais, em 1951 e foi na adolescência que começou a mostrar o seu gosto pela
música, ao tocar sua guitarra elétrica e a cantar canções prestigiadas de grupos como os
Beatles, Bee Gees, Birds, etc. Após entrar na universidade, em 1968 – fez primeiramente
o curso de direito e depois mudou-se para Letras – e com as influências do meio
acadêmico, passou a cantar canções que relatassem sua insatisfação popular em relação
ao governo. Influenciado principalmente por amigos, que também mostravam seu
descontentamento perante o cenário político, rapidamente entrou para o grupo dos
cantores de intervenção, criando amizades com outros músicos, entre eles Zeca Afonso,
o mais prestigiado cantor revolucionário português, autor de “Grândola, Vila Morena”,
morto em 1987. Gravou o seu primeiro disco em 1969, e uma das músicas gravadas,
“História de José sem Esperança”, reflete um pouco da sua história pessoal da época,
contando as dificuldades que enfrentou após a perda do pai, aos dezesseis anos; a entrada
da universidade; a necessidade de sustentar a casa sendo filho único, e também sobre a
possibilidade de entrar na guerra e deixar sua mãe para trás. Segundo uma entrevista
realizada por Eduardo Raposo (2014), em uma de suas obras, Letria diz que essa sua
canção era a fase inicial de sua jornada como militante e de sua posição contra a guerra.
Essa consciência política que ele adquiriu de uma maneira tão forte deveu-se ao fato de
sentir a necessidade de intervir com os colegas da universidade, sendo a maioria mais
velha que ele, e que já estava engajado nas lutas políticas há mais tempo (RAPOSO,
90
2014). Ele, como aluno, tinha grande interesse pelas artes, literatura, e já gostava de
escrever poemas. No Ensino Secundário (Ensino Médio), percebeu que a liberdade de
expressão era bem restrita:
Portanto a minha percepção individual como estudante e sobretudo
como estudante, que vocacionalmente estava muito virado para as artes,
tinha uma predileção muito grande pela literatura, pela reflexão ligada
a história, essas coisas mais ligadas à criatividade e à afetividade e
criação e, portanto, fui me apercebendo que não havia condições de
liberdade de livre expansão e expressão. [...] (LETRIA, 201444)
Fica claro que aqueles que queriam denunciar a situação política do país por meio
da escrita, tinham de fazê-lo de uma maneira muito sutil e criativa:
Pois bem, senti isso claramente, e no liceu, no ensino secundário, eu já
escrevia poemas na altura, e senti que as pessoas embora num caso ou
no outro estimulassem a criação, tinha muito medo em assumir, este
incentivo, este respeito, essa admiração que tinham pelo ato criador
porque o ato criador é que te dava a própria liberdade ou a falta de
liberdade, o ato criador era em si mesmo, uma denúncia da falta da
liberdade e portanto eles no fundo iam continuar a escrever, mas de
forma discreta, serena, não te expunhas muito. (Idem)
A partir de uma visão mais politizada, utilizou seu talento musical, poético e
literário para denunciar o cenário político em questão, especialmente os elementos que se
agravaram com a permanência da ditadura no poder, entre os quais podemos destacar “a
guerra, a falta de liberdade e os fluxos migratórios” (entrevista). A falta de informação
no campo da literatura que chegava ao seu país foi bem lembrada por ele, além também
das notícias que, muitas vezes não chegavam às pessoas:
fui-me deixando enquadrar através da privação de liberdade, e da
privação da informação, eu queria saber mais coisas e não tinha quem
me dissesse, queria, fazer perguntas e não tinha a quem as fazer, eu
queria ter acesso a mais livros, e não os podia comprar [...] (idem)
Com essa restrição, ele descreve que se tornou um “jovem revoltado”, e essa fase
coincide com a morte de seu pai, o que fez com que ele amadurecesse mais rapidamente
e trabalhasse desde cedo, para suprir as necessidades da casa. Influenciado por seus
amigos, utilizou a música para expor seu posicionamento político. Mesmo sabendo dos
riscos que corria, preferiu arriscar-se a ter uma vida amordaçada pela política:
E um dia, o meu avô paterno [...] advertiu-me:‘Tem cuidado com a
política, filho, nunca te metas nisso, porque ainda te podes desgraçar e
à tua família’. [...] Era a mentalidade de ‘a nossa política é o trabalho’,
44 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 27 de novembro de 2014 e o áudio encontra-se disponível em
um DVD ao final deste trabalho.
91
do ‘comer e calar’, do ‘atravessar a rua de chapéu na mão’ para
cumprimentar o superior hierárquico ou o tipo importante da Legião
Portuguesa. Tudo isso me revoltava e enojava, e sempre considerei a
passividade cúmplice uma coisa mais repugnante que o próprio
activismo de direita para perpetuar o regime. Ao menos esses mexiam-
se, tomavam posição, faziam alguma coisa, enquanto os outros se
calavam e agachavam, fazendo-se de mortos, à espera que ninguém
reparasse neles e os deixassem ir às suas vidinhas, tão caricaturadas, tão
sacudidas pela ironia cáustica do grande Alexandre O’Neill. (LETRIA,
2013, p. 32)
Havia outras pessoas que elogiavam o trabalho desses cantores, mas também
advertiam, lembrando os perigos que enfrentavam: “é bom ouvi-los e saber que vocês
existem, mas nem sabem o risco que estão a correr”. (LETRIA, 2013, p. 52)
Letria, como também outros entrevistados (e muitos jovens militantes da época),
teve como grande impulso para uma tomada de consciência política o início da Guerra
Colonial. Com a ida dos jovens à guerra, muitos deles mostravam-se contra as medidas
do governo e para que pudessem evitar a ida à guerra, resolveram sair de Portugal ou
tentar encontrar saídas para escapar da convocação para a guerra. Letria (2013) trata desse
episódio tanto em suas publicações, quanto na entrevista:
A partida de alguns amigos mais velhos para a guerra era sempre um
motivo de apreensão e angústia para namoradas, famílias e colegas do
liceu. Alguns não regressaram, ou regressaram com marcas
indisfarçáveis do horror vivido e as ocultas do horror testemunhado, a
que depois começou a chamar-se “stress pós-traumático de guerra” (p.
38)
[...]eu tinha 15 e alguns amigos tinham 17, 18 anos, foram fazer o
serviço militar, e em dois ou três casos, eu tive um conhecimento
prático, direto da morte de um e ferimentos de outros dois, o que é
complicado [...]. (LETRIA, 2014)
Ele, como não concordava, tampouco apoiava a Guerra Colonial, dizendo ser uma
“guerra sem futuro” e que não tinha “razões para permanecer”, faria de tudo para não ter
de lutar:
E ai de quem se atrevesse a dizer perto de mim que era a integridade da
pátria que estava em causa e que era em África que devia ser defendida,
se preciso fosse com o sacrifício da própria vida. Nunca o medo me fez
virar a cara ao perigo, mas naquela guerra não haviam de me apanhar,
porque não era minha, porque a minha pátria não estava ali e não me
revia, sem tradições coloniais na família, nos interesses, em muitos
casos humanos e respeitáveis, de quem lá vivia. (2013, p. 38)
92
Mostrava-se bastante comovido com os seus amigos que partiam para guerra e
voltavam com marcas ou sequelas que jamais cicatrizariam: “Perdi amigos e vi outros
regressarem estropiados, fingindo não me conhecer para não terem de assumir a dor do
que haviam perdido, olhos, braços, pernas, a virilidade, o direito ao sonho” (2013, p. 38).
Frente ao horizonte ameaçador e onipresente que ameaçava os jovens da época,
Letria tinha duas soluções para evitar ser convocado para a guerra: o adiamento escolar e
o requerimento invocando o amparo da mãe, já que era filho único de uma mãe viúva e
doméstica, ou ainda, a emigração, caminho tomado por muitos jovens da época, como
veremos nos casos do Padre Francisco Fanhais e Sérgio Godinho, por exemplo.
O grande impulso na sua carreira de músico, não somente para Letria, mas
também para outros jovens cantores como Francisco Fanhais, José Barata-Moura e
Manuel Freire, foi a participação deles no programa de televisão Zip-Zip, em 1969, dando
a eles oportunidade de ampliar seu público além do meio acadêmico, espaço em que já
eram conhecidos. O programa foi um sucesso absoluto, batendo os recordes de audiência,
e tornou conhecidos muitos dos cantores e autores que ainda não existiam para o público
em geral.
Letria também começou a trabalhar na área de jornalismo, começando pelo Diário
de Lisboa (1970) e mais tarde, como redator do República (1972), e foi a partir dessa fase
que começou a ter problemas com a PIDE, mas não se incomodava com o que podia
acontecer:
Fui vivendo. E vivendo e fazendo tudo aquilo que eu no dia a dia o
momento me empunhou. E, portanto, se eu achava que devia pegar
minha viola e ir cantar com Zeca Afonso, ia; se eu achava que cantar
[...] e dizer coisas de revoltados e revoltantes para os outros sobre as
condições políticas, sociais e econômicas do país, eu dizia, e como era
muito jovem e bastante irresponsável eu não ponderava os riscos que
corria. (LETRIA, 2014)
Quando em Paris pela primeira vez, em 1971, para gravar um disco com José
Mário Branco, pôde experimentar o que seria viver sem censura e ter acesso aos mais
variados títulos de livros e filmes que não eram circulados em Portugal:
A minha primeira visita a Paris, ido de uma Lisboa onde a oferta cultural
era parca e muito limitada pela Censura e onde o medo nos invadia o
quotidiano e nos fazia desconfiar de cada rosto desconhecido no café
de todos os dias, foi arrebatadora por tudo o que me proporcionou e
93
revelou. Senti uma verdadeira volúpia ao percorrer as livrarias do
Quartier-Latin, o mesmo por onde andara e escrevera António Nobre,
proclamando a independência da sua Lusitânia em pleno Bairro Latino.
Livrarias como a Joie de Lire, ou salas de cinema onde vi um tocante
filme húngaro a preto e branco de Károly Makk, intitulado L’Amour, e
outros que seria fastidioso enumerar, deixaram-me nos olhos e nos
ouvidos a poderosa sensação de poder saborear a liberdade, sem
receios, sem apreensões, sem ter de olhar duas vezes antes de falar. [...]
Paris para mim era uma festa, uma festa de luz, de cor e de sonho
cumprido para quem deixara para trás uma pátria silenciada e
estrangulada pelas tenazes de um medo de décadas. Ali senti-me livre
e em contacto com uma vida cultural que nunca antes experimentara.
(LETRIA, 2013, p, 95)
Figura 14 – Disco: Até ao Pescoço
Foto do disco gravado na França, com José Mário Branco.
Fonte: Letria, 2013
Essa visita a Paris deixou o jornalista com um desejo de poder viver isso em
Portugal, sentindo uma felicidade jamais vivenciada em seu país. Decidiu que, caso fosse
chamado para a guerra, fugiria para Paris, pois sabia que lá poderia viver com mais
tranquilidade, mesmo sabendo da possibilidade de não poder voltar ao seu país enquanto
durasse a ditadura.
A partir de 1971, os dias que antecediam o 1º de maio eram sempre marcados por
prisões da PIDE e, por isso, muitos cantores evitavam estar em casa por volta dessa data
e com isso, desviava dos possíveis agentes policiais:
Sobretudo a partir de 1971, quando o 1º de maio se aproximava, eu
tentava rumar a outros portos mais seguros, para evitar que me
apanhassem em casa, no sossego do sono solto, ou então em estado
94
vigil, por temer uma penosa surpresa. O medo existia, era real, quase
palpável, tinha rosto, forma e cheiro e continuo a sentir-me indignado
quando leio análises historiográficas desse tempo que apontam para um
totalitarismo brando, para uma ditadura suave, para um fascismo que
nem fascismo terá sido, mas que era cruel e violento, ao ponto de
assassinar José Dias Coelho, Catarina Eufémia ou José Ribeiro dos
Santos, cujo funeral, num final de manhã chuvoso, no cemitério da
Ajuda, em 1972, constituiu uma intensa e contida manifestação de pesar
e revolta dos colectivos. (2013, p. 52)
O primeiro livro de Letria, A Arte de Armar, publicado em 1973, enquanto
trabalhava no jornal República¸ recebeu ótimas críticas vindas, inclusive, de Zeca Afonso,
que a considerou como “poesia a sério”, deixando-o bastante orgulhoso de seu primeiro
trabalho como autor de livro.
Figura 15 - Capa do Livro “A Arte de Armar”
Capa de seu primeiro livro, retirado da obra “E tudo era Possível” (2013)
Logo após o espetáculo no Coliseu no fim de março de 1974 (há um subitem com
mais informações detalhadas sobre esse evento, devido à sua grande importância para os
músicos), começam os sigilosos preparativos para o 25 de Abril, e Letria, era um dos
poucos que tomaram conhecimento desse dia, em torno de duas semanas antes, quando
um amigo, Álvaro Guerra, lhe contaste os detalhes: “Está tudo em marcha. Tenho a
incumbência de criar um grupo de civis que possam ajudar os militares nas estações de
rádio, a escolher a canção adequada ou mesmo a escrever textos. Conto contigo”. (2013,
p.155). Para Letria, foi uma honra e também um peso guardar esse segredo, pois como
95
ele mesmo registrou, “estar por dentro do que vai acontecer, pelo menos nos seus aspectos
mais genéricos, é algo que todos desejam, mas poucos suportam a tensão da verdade que
não se pode partilhar nem confessar”. (1999, p. 64). Para ele, saber o que estava prestes
a acontecer, nesse caso seria algo como saber antecipadamente o dia e a hora de um
terremoto, atentado, ou acidente ferroviário (1999). Para a noite de 24 de abril, uma das
canções escolhidas como senha fazia parte do disco Cantigas do Maio, de Zeca Afonso,
e esse disco na rádio estava inacessível, já com os cortes da censura e trancado em um
armário. Dessa forma, José Letria emprestou o dele para que pudesse ser tocado naquela
noite.
Letria relembra a importância da música para o golpe militar: “É de uma
importância fundamental, aliás acho que a revolução portuguesa é historicamente aquela
que mais vai ser influenciada pela música. Todo o processo revolucionário tem uma
influência muito forte da música” (2014). Ele destaca que a música foi importante
principalmente para criar uma consciência coletiva que fortaleceu a união do povo, “tudo
o que nós queríamos estava escrito nas canções” (2014). Ele acredita que até o número
de militares que se conscientizaram foi graças à música (idem). Para o escritor, as canções
mais marcantes foram A Menina dos Olhos Tristes (pois “mexia diretamente com todos
eles”), e Vampiros. Ele também mencionou Trova do Vento Que Passa, por ter sido muito
relevante entre os universitários, e ainda, havia canções políticas da França, Espanha e
Brasil que tiveram uma boa repercussão entre eles; e a referência brasileira foi a canção
Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. Segundo ele, esta canção
era “bonita, simples, e com uma capacidade de mobilização extraordinária” (LETRIA,
2014).
Na manhã do dia 24, Letria ainda recorda temer o toque da campainha, como
podia acontecer sempre nos fins de abril, para prender os militantes que se indignavam
publicamente contra o governo, mas o toque não ocorreu, e ele continuou o dia como se
nada estivesse para ocorrer. Em outros de seus registros, ele revela:
Onde eu estava nessa noite? Estava em todas as esquinas à espera de
uma canção, à espera de uma voz que fosse o rastilho da indignação de
outras vozes. Estava apenas à espera, com a paciência dos gatos
seguindo com os olhos a trajectória diurna do voo dos pássaros. Medo?
Não, não tinha medo. Não tinha idade para ter medo. (1999, p. 21)
Letria se recorda desse dia tão sonhado por todos os jovens e o descreve
detalhadamente em suas obras e entrevistas, não se esquecendo de suas emoções,
96
angústias e expectativas em relação ao futuro português. Ele se recorda de pormenores,
como ter ido ao cinema com sua esposa e um casal de amigos, mas confessa que só se
lembra do enredo e detalhes do filme por ter assistido recentemente, já que, naquela noite,
a tensão e a ansiedade do que estaria por vir impediam toda a concentração em um filme.
A primeira canção-senha E Depois do Adeus tocara enquanto eles ainda estavam no
cinema, mas a segunda, Grândola Vila-Morena, foi ouvida por todos enquanto já estavam
no carro, por volta de meia-noite do dia 25. Os momentos posteriores às canções, ele se
recorda que foram tomados por dúvidas e talvez um pouco de frustração por pensar que
as tropas haviam abortado o plano. Ele registra esse evento em duas obras diferentes
lançadas num espaço de quatorze anos:
Teriam abortado o Movimento? Como haveríamos de encontrar
resposta para essa pergunta angustiante? As emissões de rádio
decorriam na mais absoluta normalidade, com a linguagem arrastada e
cúmplice dos locutores da madrugada. Os noticiários não davam
qualquer sinal que permitisse imaginar a mudança iminente. Era noite
calma e aparentemente sem história, num país onde a rotina e a
normalidade eram exasperantes (1999, p. 70)
à porta da Sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, e à do quartel
da GNR no Carmo não havia indícios de que tivesse sido desencadeado
um plano de prevenção. Tudo parecia angustiantemente normal. O que
estaria a acontecer? O que estaria a passar dentro dos quarteis? Por fim,
cerca das 3h10, vimos abrirem-se os portões do Batalhão de Caçadores
5, na rua Marques de Fronteira, e duas colunas fortemente armadas
avançarem em direcções distintas. [...] As horas seguintes seriam
decisivas para o êxito ou para o fracasso do levantamento militar.
(2013, pp. 157 e 158)
Vale comentar como Letria descreve detalhadamente sobre essa noite e sobre
todas as suas dúvidas e sensações vividas neste momento. Ele e um amigo procuravam
por mais pistas ou indícios de que tudo estaria caminhando para o bem, mas ainda mostra
suas ansiedades: “continuamos a circular pela cidade ainda adormecida, numa noite fria
e de luz escassa, à espera de outros sinais” (2013, p.158). Esses sinais só apareceram por
volta das seis da manhã, e às sete e meia Letria já estava a caminho da redação. “O resto
está escrito e documentado com imagens em fotografias, relatos e filmes, mas continua
presente na minha memória, levando-me a dizer, sem hesitar, que esse foi o dia mais feliz
da minha vida. ” (2013, p. 161, grifo nosso). Letria lembra que exatamente naquele ano,
dia 4 de junho, ele seria incorporado nas Forças Armadas, e poderia participar da Guerra
Colonial: “Devo ao 25 de Abril essa alegria ainda hoje difícil de descrever, não que me
97
faltasse coragem para combater, mas nunca numa guerra em que me recusava a
participar”. (2013, p. 163).
Letria (2013) relembra o clima após a Revolução dos Cravos: euforia, expectativa
e de trabalho intenso: houve a libertação dos presos pela PIDE, presenciada por ele,
quando pôde abraçar alguns de seus amigos. Muitos poemas e mensagens de escritores
se seguiram, como ele definiu: “era a nossa voz sem mordaça ou tutela. Era Portugal
inteiro a encontrar-se consigo mesmo, no imenso júbilo de ter orgulho de ser livre.” (2013,
p. 164). Nos 25 anos de queda do regime ditatorial, Letria fez um poema dedicado ao seu
filho (que na época da revolução era ainda bem pequeno), e relatou o que esse dia
representava para ele. Como destaque, é reproduzido aqui uma das partes em que ele
relembra o silêncio vivido em Portugal na época da ditadura:
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, num dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas45
(Letria, 2013, p.167)
Os tempos que se seguiram após a Revolução dos Cravos foram tomados de
expectativa, liberdade e motivação por terem conseguido tirar do poder uma ditadura que
já durava mais de quarenta anos. Os cantores, como menciona Letria, continuavam se
reunindo uma vez por semana para a gravação do Canto Livre, um programa no qual eles
apresentariam canções inspiradas neste novo momento que vivenciavam. A reunião entre
os amigos cantores continuou após a revolução, mas o país, enquanto desfrutava uma
nova fase de liberdade, atravessava também um período de instabilidade política. Era
inevitável o aparecimento de novas tendências políticas e, cada um deles, embora tivesse
sido alimentado por um mesmo ideal anterior ao golpe – o de acabar com o Governo
“Marcelista” e a Guerra Colonial – não compartilhava de uma mesma postura política
após a queda da ditadura.
Os cantores de resistência, como esse grupo era popularmente chamado, tentaram
definir qual seria a posição a ser tomada visto que era importante para os partidos políticos
contarem com o apoio deles. Reuniram-se no dia 30 de abril de 1974 e, a partir das
45 O poema na íntegra encontra-se nos anexos (ANEXO E).
98
exposições das ideias e do que acreditaram ser o melhor para Portugal, perceberam, na
verdade, que os artistas se divergiam um do outro.
Foi nessa noite que informalmente se separaram as águas e os
caminhos. De um lado ficariam os cantores e músicos afectos ao PCP,
atuando em centenas de “cantos livres”, e de outro, os artistas afectos
ao que viria a ser a UDP, intervindo nos “cantos populares”. Aquilo que
a luta contra a ditadura unira, acabou por ser clarificado e separado pelo
triunfo da liberdade e da democracia. Não eram divergências pessoais,
mas sim políticas, e eram inevitáveis, pois por trás de cada um de nós,
existia um percurso, uma lógica, uma coerência ideológica. (LETRIA,
2013, p.188)
Essas reuniões que aconteciam com frequência entre esses cantores serviam para
espalhar a alegria que tinham por terem conseguido atingir os seus objetivos, por meio da
canção. Ao mesmo tempo em que as canções continuavam a ser cantadas, outras
começaram a ser escritas com outros propósitos, visando atingir a política do momento,
sem a necessidade de uma letra mais elaborada, já que não passaria pelo crivo da PIDE.
Letria e Zeca Afonso atentaram para esse empobrecimento estético de suas canções, pelo
fato de serem mais diretas, mais panfletárias, menos elaboradas e escritas às pressas. A
perda dessa qualidade possivelmente se deve também à falta de interesse, ou tempo de se
reunirem da mesma maneira como faziam antes da revolução, pois queixavam-se de falta
de tempo, de serenidade e de distância para construírem canções mais elaboradas. Mesmo
consciente disso, Zeca Afonso dizia que o tempo era de combate, de ligação às massas de
organização da democracia de base (LETRIA, 2013).
Após o 25 de Abril, Letria continuou gravando discos de sucesso, contendo
canções com teor político como “A vitória é difícil, mas é nossa”, “Só de punho erguido
a canção terá sentido” e “Quem tem medo dos comunistas”. Com o tempo, Letria foi se
afastando dos palcos e do ramo da música, lançando o seu último LP em 1982.
Quando fala do futuro que esperavam para Portugal, enquanto muitos ainda se
queixavam dos problemas políticos que sucederam a revolução, Letria menciona alguns
itens que só foram possíveis de se concretizar com o término da ditadura. Ele relembra
que apenas após esses acontecimentos é que o povo pôde perceber a força e o poder que
tem e “em primeiro lugar, por fim a guerra” (2014), pois foi a partir daí que ele se deu
conta de que é possível viver sem fazer guerra. “O 25 de Abril representa para mim e para
todos que participaram e para a população portuguesa em geral a concretização de um
sonho mais profundo das nossas vidas” (LETRIA, 2014).
99
Ainda assim, há inúmeros problemas que Portugal teve de enfrentar, logo após o
25 de Abril, inclusive com a possibilidade de uma revolução civil, visto os problemas
políticos que sucederam com o governo provisório. “Ainda tive a sorte de ver de perto,
por dentro e por fora, o Portugal futuro, imperfeito, com tantas promessas esquecidas, ou
para sempre adiadas [...]” (LETRIA, 2013, p. 33). Relembra a morte prematura de seus
amigos Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira “também eles já não veriam o Portugal
futuro e, em certa medida, podem ter sido afortunados por não terem chegado a esse cais
de desembarque e não sofrerem com o fel do mais sentido desencanto que hoje nos
mortifica” (2013, p. 33). Ele acredita que as canções deveriam voltar a ser uma arma do
povo, já que é um meio que une a todos para um mesmo ideal: “É importante que as
canções voltem a ser um estandarte de luta, de combate, que possam ser usados em
processos que possam transformar o país de uma forma diferente” (LETRIA, 2014).
Letria gravou nove discos entre 1972 e 1981, e após muitos shows e sucesso,
encerrou a carreira de cantor em 1984. Atualmente trabalha como jornalista e escritor, e
possui uma vasta obra publicada, sendo romance, poesia e também livros infanto-juvenis.
2.2.2 Francisco Fanhais
Figura 16 – Entrevista Francisco Fanhais
Francisco Fanhais durante entrevista à pesquisadora na sede do núcleo da Associação José
Afonso, em Lisboa, em 4 de dezembro de 2014.
Francisco Júlio Amorim Fanhais, conhecido também como Padre Fanhais, nasceu
a 17 de maio de 1941, na Praia do Ribatejo. Seu pai era médico e apoiava o regime
salazarista. A partir dos dez anos, começou a frequentar os seminários de Santarém,
Almada, Lisboa e Olivais. Em 1964 concluiu o Curso Teológico, sendo ordenado padre
em seguida, começando a exercer também a função de professor no Colégio Diocesano
100
de Torres Novas e no Seminário Liceal de Penafirme. No fim da década de cinquenta, por
influência de amigos, sobretudo após a fraude das eleições de 1958, Fanhais começou a
se conscientizar e a perceber os absurdos do governo salazarista. O início da Guerra
Colonial e as canções de Zeca Afonso despertaram-no para a realidade da política e suas
amizades que cultivava eram mantidas pelo fato de o grupo seguir um mesmo ideal, o que
fortalecia o companheirismo e o contato entre eles. Para ele, não importava de onde cada
um vinha, mas sim, para onde queriam ir e qual o caminho que seria seguido (FANHAIS,
2014). Em 1969, Fanhais foi encorajado por Zeca Afonso a participar no programa de
televisão chamado Zip-Zip e a partir desse momento, passou a ser conhecido e a integrar
o grupo dos cantores de intervenção, ao lado de nomes já famosos na época como Zeca
Afonso, José Letria, Manuel Freire, Adriano Correia de Oliveira e José Barata-Moura.
Foi assim que Fanhais começou, então, a utilizar a música e o seu ofício de professor para
relatar o seu descontentamento com o governo, passando a ser um dos alvos da PIDE.
Fanhais, assim como Letria, também refletia sobre os riscos que corria ao utilizar
a canção como arma contra o governo, mas considerava importante sua divulgação acerca
dos problemas políticos que Portugal enfrentava. Além disso, não via razão para se
recolher:
Eu sabia que estava a entrar num caminho arriscado, mas pensei
comigo: eles [seus amigos cantores] têm família, mulher e filhos e se
arriscam, não se recolhem; eu não tenho nada a perder, não tenho
mulher, nem filhos, então porque eu não ia andar com eles, porque que
eu não ia para o mesmo caminho, porque que eu não ia trabalhar através
da música, daquilo que eu gosto de cantar, com os poemas que eu canto?
(FANHAIS, 201446)
Francisco Fanhais esclarece que sua fé no Evangelho foi uma das causas para que
delatasse o governo, por ser coerente com a mensagem de Jesus Cristo:
Eu tinha [...] outra razão muito forte para denunciar a Guerra Colonial,
porque eu fui padre durante seis anos, então eu entendia que, como
cristão, [...] que para ser fiel ao evangelho em que acredito, eu tinha que
denunciar a Guerra Colonial, [..], ao fazer isso, entrei em conflito com
a hierarquia eclesiástica, porque era impossível nós não denunciarmos
a Guerra Colonial sem entrar em conflito com o governo, e era
impossível, como cristão, silenciar o problema da Guerra Colonial.
(FANHAIS, 2014)
Suas canções continham teor político, ocasionando proibições por parte da PIDE
de se apresentar em público e de cantar certas canções. Todas as vezes que Fanhais subia
46 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 04 de dezembro de 2014 e o áudio completo encontra-se no
CD ao final deste trabalho.
101
ao palco, ele precisava informar as canções a serem cantadas, pois algumas poderiam ser
censuradas. Em uma de suas apresentações, Francisco Fanhais se recorda como um
homem da PIDE o interrogou durante o intervalo de uma de suas apresentações, e como
ele resolvia as questões, reconhecendo o seu erro e mostrando respeito pelos guardas:
Eu estava a cantar no Porto, [...] não me lembro da música exata que
estava a cantar, talvez fosse a Cantata da Paz, uma música que eu canto
que é “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, enfim, [...] e
no intervalo deste espetáculo, isto, é, antes do 25 de Abril, claro, veio o
homem da censura ter comigo e dizer que eu estava a cantar coisas que
ele não tinha autorizado. E eu disse “não lembro, não sei de nada, não
estou lembrado, [...], eu cantei aquela, estava autorizada, cantei não sei
o que...” “mas cantou uma que não tava - ...” [estala o dedo] “tem toda
a razão, tu tens toda a razão, eu não tinha intencionado cantá-la, mas as
pessoas começaram a pedir, não é, e entre o pedido das pessoas, e sua
proibição, eu optei por satisfazer o pedido das pessoas, furei sua
ordem”. (Idem)
Em um dos relatórios dos arquivos da PIDE encontrados na Torre do Tombo, em
Lisboa, sob o número PIDE DGS Del Beja PI Nº 3556 nt 51, a polícia registrou uma
conferência com a presença de padres para falar sobre as festividades religiosas e relatou
que o Padre Francisco Fanhais aproveitou a situação para cantar algumas de suas canções
que denunciavam o governo – sem especificar quais canções seriam estas. No arquivo
encontra-se documentado o seguinte registro:
O Aludido padre (Alipio Tavares Gaspar) pensou organizar uma série
de conferência a fim de elucidar os seus paroquianos sobre o significado
das festividades e da quadra do Natal que brevemente se celebra. Para
o efeito, convidou os indivíduos [...] que falaram somente segundo
informações colhidas sobre religião e especialmente relacionado ao
nascimento de Cristo, não se tendo aproveitado nenhum dos oradores
da ocasião para falar de política, excepto o Padre Fanhais na
apresentação dos temas que cantou.
(PIDE DGS Del Beja PI Nº 3556 nt 51 – grifo nosso)
Já outro documento arquivado pela PIDE contém uma entrevista do Padre
Francisco Fanhais concedida ao Jornal Reconquista, no dia 13 de dezembro de 1969,
comentando sobre a importância do uso da música como uma maneira de comunicar ao
povo sobre os acontecimentos políticos em Portugal:
[jornal] É muito importante cantar?
[Francisco Fanhais] Cantar para mim será uma fora de manter os
espíritos acordados, não deixá-los cair no ‘ramerame’ quotidiano. É
preciso pensar um bocado mais além, além dos problemas vulgares ou
102
de todos os dias. Ninguém pode ficar indiferente às guerras ou outras
coisas mais diretamente ligadas.
Os acontecimentos, por mais longe ou mais perto atingem cada pessoa
em cada ponto do globo. Além disso integro a minha missão de padre
também numa linha de certo modo equivalente. Acredito nos
evangelhos, e na sua subtil mensagem – a autêntica liberdade.
(PIDE DGS Del C PI 42277 NT 4925)
Em outras entrevistas, registradas em obras como a de Raposo (2014), Fanhais
reafirma a importância de cantar, pois para ele, a canção une, e é importante que “morda”
nas pessoas.
Fanhais sentia a resistência do governo e revela como era a grande dificuldade de
se viver em Portugal sob esse regime: “era muito duro lutar contra uma parede de cimento,
tentar destruí-la a cabeçada, nós ficamos com a testa ferida e a parede não mexe um
milímetro” (FANHAIS, 2014). Com essa resistência e enfrentando vários processos da
PIDE, Fanhais foi proibido de atuar nas três áreas que trabalhava em sua vida: de atuar
como padre, como professor e evidentemente, de cantar. Com essas proibições, sem
perspectivas do que fazer em Portugal e com riscos de ser preso, emigrou para a França,
em abril de 1971, e lá viveu até após o 25 de Abril, voltando a Portugal apenas algumas
vezes entre essas datas. Sofreu algumas críticas por ter saído de Portugal, por estar atrás
de “uma boa vida” (FANHAIS, 2014), enquanto na verdade procurava outros meios para
se sustentar, sendo a música a sua principal escolha.
Sendo assim, a primeira coisa que fez ao chegar em território francês foi procurar
o diretor musical José Mário Branco, para mostrar que estaria à disposição dele no que
precisasse, para continuar a ser útil através da música (idem). Fez participações em rádios,
shows e programas, não somente na França, mas também na Alemanha, Bélgica,
Inglaterra e Holanda. Gravou canções, fez teatro e participou da gravação do disco
Cantigas do Maio, e entre as canções estava a Grândola Vila Morena, canção-senha da
Revolução dos Cravos. José Mário Branco reuniu Francisco Fanhais e Carlos Correia
(Bóris) para gravarem com Zeca Afonso esse disco na França, em outubro e novembro
de 1971, e reservaram o famoso estúdio no Chateau d’Hérouville, a trinta quilômetros de
Paris, o mesmo estúdio pelo qual passaram, por exemplo, Elton John e Pink Floyd.
Quanto à gravação do disco, e especialmente da Grândola Vila Morena, Fanhais durante
a entrevista compartilhou algumas curiosidades, também encontradas no CD Cantigas do
Maio (1971/2012).
103
A canção, que segue um pouco o estilo das modas Alentejanas47, foi gravada em
duas fases, e a primeira delas às 3 da manhã, para conseguir o mais absoluto silêncio e
não atrapalhar a gravação dos passos feitos pelos cantores em cima da pedra britada da
rua fora do estúdio; a segunda parte da canção foi gravada no estúdio, no fim da tarde do
mesmo dia, e sobre o som dos passos gravados durante a madrugada, com os fones nos
ouvidos, Zeca Afonso começou a gravar a sua voz na primeira estrofe. Na segunda
estrofe, no verso “O povo é quem mais ordena” os quatro cantores entoaram a uma só voz
(idem).
No encarte do disco, encontra-se a descrição do mesmo cenário:
Assim, em volta da casa acastelada, com o estúdio instalado no sótão,
fixam-se num espaço perto das dependências e das cavalariças, os pés
na gravilha. Sallé [o engenheiro do som] desencanta uns enormes cabos
de microfone e extensões igualmente longas para os auscultadores que
emitiriam um metrónomo eletrônico. Depois, foi esperar pelas três da
manhã, “porque podia passar uma motorizada numa estrada ou um
carro, podia mugir uma vaca num campo ali ao lado”. Abraçados como
os camponeses [alentejanos], Zeca, José Mário, Bóris e Fanhais gravam
três ou quatro minutos dos seus passos na gravilha, num movimento
circular. No dia seguinte, os mesmos quatro gravam as vozes que
ficariam para história da música portuguesa e da Revolução de Abril.
(CD CANTIGAS DO MAIO, 1971/2012)
Fanhais admite na entrevista que jamais imaginaria que essa canção gravada
juntamente com o Zeca Afonso seria tão famosa e uma das escolhidas como senha para o
Golpe Militar no dia 25 de Abril. Fanhais soube da revolução já durante o dia 25 por meio
de amigos, e inicialmente não tinha ideia do tipo de revolução a que eles se referiam, se
era de esquerda ou de direita. Ele sabia da resistência de muitas pessoas ao admitir o
governo do Marcello Caetano, mesmo dentre aquelas que apoiaram Salazar. Muitos
generais fascistas iam contra o seu governo e perceberam o enfraquecimento do regime
após a morte de Salazar e podiam tentar derrubar o Marcelismo. Mas ao ligar o rádio,
Fanhais ouviu canções dos seus amigos e a partir daí viu que era o regime fascista que
havia caído.
Para ele, a emoção foi ainda maior quando soube que “Grândola” foi a “senha”
utilizada para o início das operações militares. Sentiu uma “dupla alegria”: a primeira
com o fim da ditadura e a segunda, por ter participado de toda a história e da gravação da
canção, marcando o seu nome para sempre na revolução do 25 de Abril. Dia 30 de abril,
47Música Alentejana: música com ritmos lentos, coro e estrofes inversas. Mais detalhes no capítulo de
análise.
104
retornou a Lisboa e participou das celebrações do fim do regime e do 1º de maio com os
amigos e com a população portuguesa.
Atualmente, com a intensificação de alguns problemas de Portugal, especialmente
na área da saúde, serviços públicos e segurança social, houve um descontentamento geral
da população, especialmente dentre aqueles que sonharam com o fim da Ditadura, pois,
para Fanhais (2014), “quem tanto sonhou com o 25 de Abril não se pode contentar com
tão pouco” e isto fez com que as pessoas voltassem a se manifestar e a mostrar a sua voz.
A música, para ele, tem esse papel de união, de ligação, justamente porque as
pessoas, tanto na época da ditadura, como na crise europeia em meados de 2000, se
mostravam descontentes, e se manifestavam de maneira conjunta através da música, que
é um instrumento que tem o poder de unir as pessoas. Com o descontentamento geral, a
música voltou a ter de novo esse papel de juntar as pessoas com os seus esforços e
entusiasmo, e a canção era o impulso necessário que alavancaria os protestos populares.
Atualmente, Francisco Fanhais é o presidente da Associação José Afonso48,
instituição criada em 1987 em homenagem ao maior cantor revolucionário português,
como forma de manter viva a memória, não somente do ponto de vista de sua arte, mas
também de sua cidadania, sua posição na vida e a maneira como ele procurava agir,
sempre em favor dos mais fracos (2014).
48 A Associação José Afonso foi criada em 18 de novembro de 1987, mesmo ano da morte do cantor, com
o objetivo principal de promover e difundir sua obra musical. Além disso, outras ideias da associação são:
ampliar e divulgar o Centro de Documentação sobre a vida e obra de José Afonso; organizar e apoiar
iniciativas válidas de ordem cultural, artística e recreativa; apoiar o desenvolvimento da música popular
portuguesa; estimular a participação crítica dos jovens além de instituir um espaço material, moral e cultural
de convívio, em torno das vivências e dos ideais comuns. A Associação dispõe de um acervo para consultas,
pesquisas e compras de materiais, livros e CDs que tem alguma relação com o cantor ou com a música
portuguesa. O local dispõe também de um espaço para a realização de eventos e filmes que de alguma forma
relembrem o período ditatorial e possam trazer às pessoas um debate acerca do que foi exposto. Os eventos
ocorrem com grande frequência em qualquer um de seus catorze núcleos espalhados no país. Informações
disponíveis no website oficial da associação: www.aja.pt. Acesso em outubro de 2014.
105
2.2.3 Sérgio Godinho
Figura 17 – Entrevista Sérgio Godinho
Sérgio Godinho em sua residência durante entrevista concedida à pesquisadora (Lisboa, 9 de
dezembro de 2014).
Sérgio de Barros Godinho é, dos três cantores entrevistados, o único que continua
a exercer a música como sua principal atividade, fazendo, ainda, muitos shows em
Portugal. Nasceu no Porto, em 1945, em uma família que lhe facultou, desde pequeno,
acesso à cultura e no seio da qual cresceu com ideias contrárias ao governo salazarista.
Sérgio Godinho começou a tocar e a cantar ainda na adolescência. Apreciava a
música francesa e, já na década de sessenta, na mesma época em que ouvia Rolling Stones
e Beatles, ouvia também Zeca Afonso, que começava a despontar na música portuguesa,
o que, para a vida de Godinho, foi um acontecimento marcante. Ao mesmo tempo,
relembrou, durante a entrevista, que a música brasileira também fazia muito sucesso com
canções de Chico Buarque e Ary Barroso, por exemplo. Em 1965, com a possibilidade de
ser recrutado para a o exército e ser convocado para a Guerra Colonial, saiu do país com
o pretexto de continuar os seus estudos no estrangeiro. Para ele, essa saída foi mais pelo
fato de poder criar novas experiências, morar sozinho e poder construir uma vida
diferente. Seu primeiro destino foi Genebra, na Suíça, onde cursou dois anos de
psicologia, sendo, inclusive, aluno de Piaget; mas abandonou os estudos por falta de
vocação para a área, percebendo que seu caminho voltava-se, realmente, para as artes.
Mudou-se para a França e lá começou sua carreira artística e musical, integrando o elenco
francês do musical Hair, participando de shows e fazendo parcerias com José Mário
106
Branco, produtor de discos. Passou pelo Maio de 1968 na França, vivendo a euforia da
população e sentindo que finalmente ocorreriam algumas mudanças, mas se decepcionou
pois “embora tenham deixado marcas culturais, tudo voltou como era antes” (GODINHO,
2014).
Cientes de que Sérgio Godinho estava no exterior, agentes da PIDE o localizaram,
como revelam processos encontrados na Torre do Tombo. Um deles, sob o número
46595/SR – NT 4157, segue transcrito obedecendo ao original:
Averiguar o paradeiro de Godinho
Reportando-me ao ofício confidencial em referência, tenho a honra de
informar V. Exª de que o nacional Sérgio de Barros Godinho se
encontra, presente em França, onde tem o seguinte endereço:
C/o Patrick Bforelli
17 – Rue Paul Albert
Paris, XVIII éme
Segundo o que foi possível averiguar-se, aquele indivíduo ausentou-se
do País para se eximir ao cumprimento dos deveres militares.
Porto, 17 de dezembro de 1968
Mesmo tendo descoberto o paradeiro de Godinho, esse fato não trouxe
consequências para ele, nem tendo sido obrigado a voltar a Portugal. Enquanto esteve no
exterior, relata que pouco contato teve com a música portuguesa, e as poucas composições
a que teve acesso não eram necessariamente produzidas e divulgadas em Portugal. Os
seus dois primeiros discos, Sobreviventes de 1971 e Pré-Histórias de 1972, foram
gravados na França e editados em Portugal, tendo sido o primeiro imediatamente
censurado, para, em seguida, ser liberado e, novamente, voltar a ser proibido. Para ele, a
polícia estava desnorteada: “a censura já estava sem saber o que fazer com os valores
internos [...], ora permitiam umas coisas, ora proibiam, depois tornavam a permitir”
(GODINHO, 2014).
Godinho participou do álbum de estreia de José Mário Branco (Mudam-se os
tempos mudam-se as vontades) como cantor e compositor de algumas das canções. Em
1973, casou, mudou-se para o Canadá e lá viveu até a queda do regime ditatorial em
Portugal.
Seu estilo de música é diversificado, sem representar um estilo específico. Não se
considera um cantor de intervenção, pois, para ele, sendo bem eclético, não gosta de se
107
rotular como um cantor de um gênero só. Compõe temas variados, mas, durante o período
ditatorial, suas canções voltaram-se para aquele momento político, o que permite incluí-
lo no grupo de cantores de intervenção. Quando perguntado sobre o título que atribuiria
à “canção de intervenção”, define-a como “música engajada socialmente”, de “cunho
social”, ou, simplesmente, “música popular portuguesa” (2014).
Para Godinho, tais canções de cunho social despontadas nos finais dos anos
sessenta e no início dos anos setenta foram extremamente importantes, pois mobilizavam
as pessoas para o que estava acontecendo no ramo da política do país. Ele menciona, por
exemplo, o fato de os oficiais levados para a Guerra Colonial ouvirem essas canções e,
com isso, aumentar o senso crítico e se comover com a situação vivida no país.
Godinho estava no Canadá quando se deu a Revolução dos Cravos, sabendo a
posteriori o que sucedeu em Portugal. Voltou ainda no mesmo ano, quando lançou o seu
disco “À queima-roupa”, o terceiro de sua carreira, muito bem recebido pelo público,
especialmente a canção Liberdade, retratando o drama vivido em Portugal após o 25 de
Abril. A letra da canção é ainda hoje utilizada em grandes manifestações que ocorrem no
país (como ele destaca em sua entrevista), e, mesmo não estando presente fisicamente,
sente-se representado por meio dos versos estampados em cartazes e nas vozes das
pessoas:
Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
E a sede de uma espera só se estanca na torrente (2x)
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada. (2x)
Só há liberdade a sério quando houver
a paz, o pão, habitação, saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o povo produzir.
Para ele, essa letra trazia algumas “ideias-base que transitavam no ar” e que eram
importantes repassar à população. Nas suas palavras:
A liberdade não é só um nome político do 25 de Abril, e há de fato uma
libertação para as culturas democráticas; mas a liberdade só faz sentido
se for preenchida com conteúdo, por isso que só há liberdade a sério se
houver a paz, o pão, a habitação, liberdade que mudar e decidir...
(GODINHO, 2014)
108
A eficácia da canção também foi percebida pelo cantor, especialmente após o 25
de Abril, quando viu os resultados que canções dessa natureza alcançam. Ele próprio foi
chamado para apresentar suas canções em associações, instituições, programas de rádio
e televisão, pois esse tipo de composição se tornou uma das mais importantes para a
época, pelo seu poder de mobilização e de união.
Para Godinho, o PREC, apesar de ter sido um período de transição com muita
instabilidade política em Portugal, para a música produziu um efeito positivo:
[Godinho] reconhece, por outro lado, que o PREC foi importante em
termos musicais, pois deu para conhecer o país por dentro, e na altura
havia um tipo de convívio e de disponibilidade muito grande, entre os
músicos e os espectadores. (RAPOSO, 2014, p. 233)
Nas palavras de Godinho, “isso era muito gratificante. A seguir ao 25 de Abril
senti que devia haver uma espécie de contaminação positiva de todas essas coisas que
estavam a acontecer”. Ele também elogia o trabalho do Zeca Afonso e de outros músicos
como o Francisco Fanhais e Adriano Correia de Oliveira, em especial a disponibilidade
de Zeca Afonso e a capacidade crítica que desenvolveu ao longo do seu percurso como
cantor e compositor (RAPOSO, 2014).
Atualmente, percebe o retrocesso de várias situações que fizeram a população
voltar às ruas, especialmente com a crise econômica europeia. Ressalta a desigualdade
econômica, a distância maior entre pobres e ricos, e a emigração forçada de muitas
pessoas. Relembra, também, como a situação de muitos artistas piorou com o fim do
Ministério da Cultura em 2011 (voltando a ser restaurado apenas em 2015) e o pouco
apoio que essa área tem recebido por parte do governo.
2.2.4 António Borges Coelho
Figura 18 – Entrevista António Borges Coelho
António Borges Coelho em sua residência durante entrevista
(Parede, distrito de Lisboa, 16 de janeiro de 2015)
109
O professor António Borges Coelho nasceu em 1928, em Murça, Trás-os-Montes.
Com uma vida marcada por intensas atividades políticas e acadêmicas, é respeitado
pesquisador da História portuguesa, tendo publicado diversas obras não somente frutos
de sua investigação acadêmica, mas também que incluem poesia e prosa ficcional. Após
anos de dedicação às aulas e orientações de dissertações e teses, deu sua última aula em
1998, mas continua atuante na área de pesquisa e colaborando de várias formas para a
continuidade desse trabalho.
Desde cedo Borges Coelho também se engajou na luta pela liberdade, e teve a
sensação de que a liberdade viria a Portugal com o término da Segunda Guerra Mundial,
com a vitória dos aliados, época em que se inicia um movimento de luta contra o regime.
Dois livros foram importantes para que Borges Coelho se conscientizasse dos danos que
o regime estava trazendo: “A Relíquia”, de Eça de Queiroz; e “A Mãe”, de Máximo
Gorki, que lhe “abriu um outro mundo completamente diferente” (BORGES COELHO,
201549). Na sua visão, enquanto perdurava o regime ditatorial, Portugal era “um país
pobre, um país triste, um país de emigrantes [...] não era livre” (idem), além do fato de
não gerar empregos ou quaisquer oportunidades, especialmente para os jovens. Borges
confirma os fatos mencionados em outras entrevistas, e relembra que as reuniões
estudantis também eram proibidas, mesmo havendo a Constituição que, teoricamente,
garantia essa possibilidade, algumas leis específicas lhes tiravam esse direito (idem).
Mesmo que a ditadura tenha durado várias décadas, não se pode generalizar que
durante todo o período as pessoas reagiram da mesma maneira – embora os adjetivos
usados por Borges Coelho, podem, segundo ele, se aplicar durante todo o processo. Na
entrevista, menciona alguns exemplos para se ter uma ideia de como funcionava o país,
e, segundo ele, Portugal era um país muito fechado (como citado no primeiro capítulo), o
centro da família era sempre a figura masculina, do “pai”, com total submissão da mulher
que, por exemplo, não podia sair sem a autorização do marido – e se acontecesse de ela
ter filho com o outro, o filho constava como sendo do marido, e não do outro. Outro
exemplo: para os jovens era muito difícil obter passaporte se não pertencesse às famílias
da elite, além do que as fronteiras eram sempre muito bem vigiadas para evitar a fuga.
Ele relembra que a fase final foi crucial para uma mudança de postura da
juventude universitária, especialmente com início da Guerra Colonial, e que essa situação
49 Entrevista concedida à pesquisadora no dia 16 de janeiro de 2015.
110
altera o país e o comportamento dos jovens, que passaram a emigrar para países como a
França, que recebeu a maior demanda de portugueses do período, a maior parte deles
fugindo para não participar da guerra. Segundo relembra o professor, Paris chegou a ter
quase 1 milhão de portugueses, como visto no capítulo anterior.
Após o término do ensino secundário, a essa altura já em Lisboa, e trabalhando,
Borges costumava dedicar parte do seu tempo à atividade política, integrando o MUD
Juvenil, “Movimento da Unidade Democrática [dos jovens]”, sendo, mais tarde,
funcionário político do Partido Comunista. Um dos motivos que levaram à prisão de
Borges Coelho foi o fato de ter criado uma biblioteca pública. Para conseguir livros e
doações entrava em contato com personalidades ricas, mas um deles, amigo do regime,
lhe respondeu: “um camponês precisa saber cavar bem, não precisa saber ler e escrever”.
(BORGES COELHO, 2015). Na segunda tentativa, a PIDE o prendeu e ele foi para o
interrogatório. Passou seis meses dentro de uma cela pequena e depois de julgado e
condenado, ficou seis anos e meio numa prisão, mas mesmo assim, continuava lutando:
Ora, eu estive lá seis anos e meio e pronto, isto significa é evidente
que nunca estive calado, e não tinha liberdade de falar, mas ninguém
podia tirar a liberdade de pensar[...]. (BORGES COELHO, 2015)
Em suas fichas, enquanto Borges esteve na prisão do Aljube, os agentes policiais
relataram na sua “Biografia Prisional”, como por exemplo, a data de entrada na prisão, o
motivo, suas idas à enfermaria, o tempo em que ficou sob os cuidados médicos, suas
transferências para outras prisões, seu julgamento e a data de término de sua pena, como
se pode ler na figura seguinte:
111
Figura 19 – Biografia Prisional de António Borges Coelho50
Detalhes de seus movimentos enquanto esteve na Prisão, desde 1956 a 1959
50 Torre do Tombo sob a referência: PT-TT-PIDE-E-010-111-22153_m0001. Disponível para consulta
online em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4302695. A segunda página consta nos anexos (ANEXO
B).
112
Borges Coelho, durante a entrevista, revelou alguns detalhes de sua vida na prisão:
Tive 6 meses naquelas celas do Aljube e depois tive dois anos em cela,
[...], mas com uma hora de recreio, [iam] no máximo 14 [pessoas], mas
normalmente não iam todos – se não houvesse castigo. No recreio e se
não estivesse a chover. Portanto havia “a máxima” lá, quando éramos
chamados eram sempre dois homens armados para cada homem preso.
[...] estávamos em celas, mas depois estive numa sala com quatro, só
que essa sala tinha uma grade que dava para o corredor. E no corredor
estava um guarda, que ouvia até os nossos sonhos, se sonhássemos alto.
Depois havia uma porta gradeada e depois de outra porta estava outro
guarda. E qual que era a saída? Eram sempre dois guardas a acompanhar
um preso, lá dentro não eram permitidas as bibliotecas. Portanto se eu
recebesse um livro, e o livro tivesse dois volumes, só entrava o primeiro
e tinha que devolver o primeiro para receber o segundo. Depois da fuga,
os papéis eram controlados, ou melhor, apreenderam–me todos os
papéis que eu tinha escrito. Depois autorizaram a consultar os meus
papéis, mas só podia levar no máximo dez folhas de cada vez, e tinha
que os devolver para ir vê-los outra vez [...] (BORGES COELHO,
2015, grifo nosso baseado na ênfase dada pelo entrevistado)
As visitas da prisão eram controladas: inicialmente era permitido haver contato
físico, mas após um tempo, houve proibição e passou a haver uma distância para
conversar com alguém, somente “aos gritos”. Após o cumprimento da pena e ser
libertado, voltou a cursar Histórico-Filosóficas, e durante o curso lançou a obra Raízes
da Expansão Portuguesa (que foi logo proibida) e a Revolução de 1833.
António Borges Coelho foi amigo dos cantores Adriano Correia de Oliveira e Luís
Cília, também músico de grande importância nessa fase. Entretanto, para o professor, as
canções de Zeca Afonso foram as mais significativas e marcantes, embora não cite
nenhuma específica. Borges Coelho considerou a canção de intervenção uma maneira
muito eficaz de conscientizar as pessoas dos absurdos do governo. Ressalta que, mesmo
com a censura, muitos conseguiam mostrar a sua voz e os pensamentos, pois
encontravam formas muito genéricas de dizer as coisas que iam na
mente das pessoas, portanto, poema contra a guerra era proibido, mas e
se fosse buscar o poema de Fernando Pessoa, que é “O menino de sua
mãe” e era muito difícil proibir o “O menino de sua mãe” [...] Portanto,
não há dúvida nenhuma que toda aquela geração de músicos teve um
papel muitíssimo importante na conscientização da juventude e
inclusivamente dos militares na Guerra Colonial, e foi sim um momento
decisivo [...].(BORGES COELHO, 2015).
Durante a entrevista, o professor compartilhou seus sentimentos acerca do 25 de
Abril, e o modo como tomou conhecimento do movimento: “eu soube por um militar que
113
morava aqui por cima, soube quando os acontecimentos estavam já em marcha naquela
noite... é claro que foi a maior alegria da minha vida ver as multidões pelas ruas” (idem).
Relembra o grande momento com o Primeiro de Maio, quando todos saíram às ruas e as
pessoas, ainda, com um pouco de receio, entreolhavam-se para certificar-se de que não
havia nenhuma metralhadora para interromper aquele processo (BORGES COELHO,
2015).
Quando perguntado sobre o período após a Revolução dos Cravos, Borges Coelho
utilizou a seguinte comparação: “a revolução é uma febre, e a febre não pode estar
continuamente no organismo social [...]”, justificando o fato de os acontecimentos
“esfriarem” após a revolução, e que também foi definido por ele como uma “grande
frustração”. Ao mesmo tempo, ele recorda as conquistas obtidas com um novo começo
para o país, como, por exemplo, no campo da educação, pois na época de Salazar, poucas
eram as pessoas que prosseguiam os seus estudos. Ele recorda que o local em que morava
quando menino devia haver em torno de três ou quatro mil pessoas, porém, pelo seu
relato, no máximo dez jovens fizeram o liceu, justamente porque a política do Estado
Novo destacava a importância de se trabalhar na agricultura, e que saber ler, escrever e
contar, como era ensinado nos três primeiros anos de escola obrigatória, era mais do que
o suficiente para a população em geral. Outros avanços citados por ele foram a melhoria
nas condições da saúde e a manutenção da liberdade da população conquistada com o fim
do regime.
Com a crise europeia após o ano 2000, o que chama a atenção é a quantidade de
portugueses que emigraram com o objetivo de conseguir melhores condições de vida, e
por isso a revolta e o descontentamento deram margem para que as canções voltassem a
ser evocadas pela população.
Em 2006, António Borges Coelho prestou uma homenagem aos “Tarrafalistas” –
pessoas que estiveram presas no Tarrafal durante o regime, por convite da União de
Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), realizada no Cemitério do Alto de S. João.
Nesta sua intervenção, vinda de alguém que também esteve preso e sabe de todas as lutas
engajadas por cada um, destacam-se alguns trechos:
Viemos homenagear homens comuns, operários, marinheiros,
intelectuais. Viemos prestar homenagem aos marinheiros do “Afonso
de Albuquerque”, do “Dão, do “Bartolomeu Dias” que ousaram
levantar-se contra a ditadura. [...]. Eram comunistas, anarquistas,
homens que se orgulhavam dos seus ideais e por eles arriscavam a vida.
Acreditavam na justeza da sua causa e que a história a tinha designado
114
como vencedora. Me feriram, golpearam, até a morte me deram. Nunca,
nunca me dobraram. Os homens que hoje homenageamos
desembarcaram do navio “Loanda” no dia 29 de outubro de 1936 na
Achada Grande do Tarrafal, ilha de Santiago de Cabo Verde. Eram 158
presos políticos. Inauguravam o Campo de Concentração do Tarrafal,
concebido segundo o modelo nazi. Campo da Morte Lenta lhe
chamaram. “Daqui ninguém sai com vida. Vieram para morrer”. [...] É
tempo de preservar a memória. Não permitamos que apaguem e
destruam as marcas no Tarrafal, no Aljube, na sede da PIDE, no
Tribunal Plenário, em Caxias, na PIDE do Porto, na Fortaleza de Angra,
na Fortaleza de Peniche. Constituem um património indispensável para
a pedagogia da liberdade e da democracia. Preservemo-lo para que os
nossos filhos e os nossos netos digam conosco: NUNCA MAIS! [...]
Viemos homenagear os bravos do Tarrafal. Queria terminar com
palavras de esperança e um apelo: Gozemos este sol, a alegria, o dar
das mãos e dos corpos. 51
António Borges Coelho, mesmo sendo um dos que sofreram com a prisão, não se
retrai ao falar dos detalhes e nem do sofrimento pelo qual passaram – pois essa é uma
forma de divulgar as atrocidades vividas para que tais atos não voltem a ocorrer e para
que não se apague da memória das futuras gerações as agruras enfrentadas pela liberdade.
Em 2007, o ilustre professor, catedrático jubilado da Faculdade de Letras de
Lisboa, foi homenageado pelo também historiador José Mattoso, pela sua história, pelo
conjunto de seu trabalho e por suas conquistas. Registra Mattoso:
No princípio da sua vida adulta arriscou a vida e a liberdade lutando
contra a ditadura salazarista. Não virou a cara às agressões da tortura,
da humilhação, da violência física e da prisão. [...] Desprezou o cerco
das ameaças, da marginalização e da vigilância da PIDE, viveu do seu
trabalho como jornalista, e, sem bolsas, sem ajuda de ninguém, fez o
seu curso de histórico-filosóficas. [...]. Quero agradecer ao prof. Borges
Coelho ter-nos mostrado o caminho certo, seja o combate frontal como
o que ele travou na juventude, seja o da conquista de uma posição a
partir do qual possamos fazer e ouvir a nossa voz, como ele fez também,
subindo, pela sua competência científica e a sua autoridade moral, ao
topo da carreira universitária. Queremos agradecer-lhe ter tido a
coragem de, com risco da própria vida, militar no combate
revolucionário de assim contribuir para eliminar um regime opressor
injusto. [...]. 52
Ainda nesse texto acima, o professor José Mattoso (2007) exalta o fato de o
professor António Borges Coelho não ter deixado que as marcas de uma vida sofrida
51 Retirado do website da Associação Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”. Disponível em:
http://maismemoria.org/mm/2006/10/31/antonio-borges-coelho-na-homenagem-aos-tarrafalistas/ 52 José Mattoso, 2007. Retirado do website do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de
Lisboa. Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA4/medievalista-
mattoso.htm
115
devido à opressão e às torturas às quais foi submetido, o silenciasse e o traumatizasse.
Pelo contrário, ainda sendo vítima, utilizou sua experiência, seu otimismo e toda a sua
inspiração para que servissem de estímulo para os outros e transmitissem essa alegria, em
vez de uma vida que destilasse amargura, ódio e rancor.
2.2.5 Pedro Calafate
Figura 20 – Entrevista Pedro Calafate
Pedro Calafate, durante entrevista à pesquisadora (Lisboa, 6 de fevereiro de 2015)
O professor da Universidade de Lisboa, Pedro Calafate, foi o mais jovem dos
entrevistados. É licenciado em História, mestre e doutor em Filosofia, e sua área de
pesquisa abarca a Filosofia Social e Política e História Política de Portugal e do Brasil.
Seu trabalho e pesquisa são reconhecidos nacional e internacionalmente, e, recentemente,
coordenou um projeto de pesquisa e edição das Obras Completas de Padre António
Vieira, dirigido pelo professor José Eduardo Franco.
Na época final do regime, o professor Calafate era um jovem adolescente e,
embora suas lembranças sejam poucas, já compreendia exatamente como funcionava o
controle do governo:
tinha 13 ou 14 anos...mas, em todo caso, já havia uma experiência
mínima do que era uma sociedade fechada, uma sociedade em que,
quando líamos nos jornais, sabíamos que não – que o que estávamos a
ler não era efetivamente aquilo que se passava. (CALAFATE, 201553)
Ele relata que havia “certo medo nos jovens da época”, pelo fato de não serem
livres e que uma reunião para discussão de ideais diferentes era algo impossível de se
53 Trecho da entrevista concedida à pesquisadora no dia 6 de fevereiro de 2015.
116
realizar – havia um limite para as reuniões, e não era permitido reunir mais de quatro ou
cinco pessoas num mesmo evento.
Quando ocorreu o 25 de Abril, Calafate se recorda de que foi um dia de muita
alegria e festa para todos. Lembra-se também que apesar das recomendações vindas pela
rádio e televisão para que as pessoas evitassem sair às ruas, muitos saíram para presenciar
uma festa que dificilmente poderia se viver novamente. Com a queda de Marcello
Caetano, a sociedade que era antes “pesada”, “cinzenta”, abriu caminho para novos
rumos, novos horizontes, e embora de início houvesse uma “desorganização social”, o
momento era de euforia, uma festa que todos comemoravam, mesmo com a incerteza do
que haveria de acontecer em seguida. A ideia de que seria possível, dessa vez, fazer
reuniões, realizar comícios e discutir política, era motivo de grande festa, pois são atos
que alegrariam uma juventude que tinha sido amordaçada pelo regime.
Após o 25 de Abril, com o sucesso da música naquele período, Calafate formou
um grupo musical chamado Resistência, que se apresentava em diferentes lugares de
Portugal em reuniões e comícios. Para ele, foram experiências de muita alegria, e as
canções eram “simples”, mas veiculavam mensagens mobilizadoras, instigando a força
do poder de transformação da vida do homem, e nas suas palavras: “acabaram por não ter
esse poder, mas acreditávamos que tinha... mas isso é parte do jogo” (2015). Nesses
comícios, a música sempre estava presente. As canções, além de serem conscientizantes,
costumavam deixar os comícios mais animados:
A música fazia parte disso, a ideia de mudar o mundo, de salvar o
mundo, que é uma ideia que acompanhou sempre, a história das
ditaduras, da humanidade, transformar a vida do homem, e essa
transformação dar-se-ia por que vias? Dar-se-ia pela cultura, dar-se-ia
pela escola, dar-se-ia também pela intervenção através da música, da
arte; na altura, na escola, o Marxismo era fundamental e a concessão da
luta de classes, [...] da transformação da sociedade e, portanto a arte
dentro da arte, e a música, que era uma forma que estava mais ou menos
ao alcance de muitos daqueles jovens na altura, que sabiam tocar,
alguns acordes de música e que tinham lido grandes poetas portugueses,
poetas de intervenção e que procuraram musicá-los e dar liberdade de
expressão musical e muitos dos comícios, das reuniões políticas que se
realizavam na altura de 75, 76 organizados por sindicatos, por partidos
políticos, eram muitas vezes animados por intervenção dos grupos
musicais [...]. (CALAFATE, 2015)
As canções do Resistência traziam letras que procuravam espelhar a realidade,
mas com sentido transformador: transmitiam a importância de uma sociedade sem
classes, de uma economia estatizada, revelando a forte influência que o partido comunista
117
exercia naquele período na vida política portuguesa e na mobilização dos jovens. Essas
canções visavam a incentivar os governos provisórios, (especificamente o governo do
primeiro ministro Vasco Gonçalves, de julho de 1974 a setembro de 1975), e também
retratavam a dificuldade da vida dos trabalhadores assalariados, da pobreza e da extrema
desigualdade. Para os jovens da época, sob uma forte influência do Marxismo, “O
Manifesto do Partido Comunista” era a chave para a compreensão do mundo
(CALAFATE, 2015).
O professor se inspirava nas obras poéticas de Manuel Alegre, sobretudo O
Lusíada Exilado e Praça da Canção, e também nas canções de Zeca Afonso e Adriano
Correia de Oliveira. Segundo ele, eram carismáticos, sempre queridos do público, e Zeca
Afonso, o mais importante, foi o precursor das canções revolucionárias da época.
Das canções que cita, a de referência foi Os Vampiros, que, juntamente, com a
famosa Grândola, foi marcante para toda aquela geração. Outra canção notável por
desvendar o quadro da sociedade na época, foi Cantar de Emigração, de Adriano Correia
de Oliveira. Esta canção, que será analisada adiante, mostra uma “sociedade triste,
depauperada” por causa da emigração, especialmente dos homens, para a França – que,
como mencionado no capítulo 1, na época assinara um acordo com o governo português
para “recrutar” trabalhadores portugueses. Assim, muitos homens deixavam suas famílias
forçadamente e, com a dificuldade de circulação entre os países na época, via-se uma
enorme quantidade de famílias incompletas, e as mulheres, as chamadas de “viúvas de
vivos”, viviam numa imensa saudade, como retratada pela canção que se popularizou
(CALAFATE, 2015).
O professor também compara essa emigração com a que ocorreu recentemente,
no ano de 2014, por ocasião da crise econômica europeia. A canção Cantar de Emigração
lançada em 1970 mostra o cenário que novamente toma lugar no país, tendo um número
de emigrantes ainda mais expressivo, revelando a insatisfação do povo com a situação de
Portugal. Frente a um panorama desfavorável e sem perspectivas de grandes melhorias, a
população não tinha outra alternativa a não ser a emigração em busca de melhores
condições de vida – e na época, além de os jovens estarem em busca de uma vida mais
estável, estavam também fugindo da repressão e da Guerra Colonial, quadro que já não
118
se aplica no cenário atual. Em 201454 houve uma evasão de 134.624 portugueses,
enquanto em 1966 (ano de maior fluxo anteriormente ao de 2014) foi de 120.239. Mesmo
em circunstâncias diferentes, estima-se que essa quantidade referente ao ano de 1966 pode
ser diferente, pois sendo clandestina, era difícil obter a quantidade com precisão. Em
razão disso, para Calafate (2015), seria importante que as canções voltassem a mostrar
essa revolta popular, assim como ocorreu na década de 60.
2.2.6 Fernando Rosas
Figura 21 – Entrevista Fernando Rosas
Prof. Fernando Rosas, durante entrevista na Universidade Nova de Lisboa a 05 de
fevereiro de 2015
O Professor Fernando José Mendes Rosas nasceu a 18 de abril de 1946 e é
atualmente investigador e professor no departamento de História da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Sua vida marcada pela
política começa desde cedo, com influência de amigos e família, que já tinha uma tradição
republicana antifascista. Em uma de suas mais antigas recordações, registrada em uma de
suas obras (2013) ele conta quando deparou pela primeira vez com a violência da polícia:
Teria uns 5 ou 6 anos, no início dos anos 50, ia pela mão do meu avô
num dos meses de Verão, em Santo António, na Costa da Caparica,
quando nos deparamos num terreiro frente à porta de uma taberna, com
um guarda da GNR, fardado, espancando brutalmente a soco e a
pontapé um desgraçado que nem tentava defender-se, já todo
ensanguentado. Em redor, mudos de medo, sem ousar um menor gesto
ou palavra, meia dúzia de homens assistiam. Na consciência de cada
54 Informação retirada de jornal “Observador”, disponível em: http://observador.pt/2015/06/16/portugal-
2014-o-ano-em-que-emigramos-mais-do-que-nunca-e-morremos-ainda-mais-do-que-nascemos/
119
um, na consciência do cidadão comum, e, sobretudo, na grande parte
dos pobres e socialmente desprotegidos, estava indelevelmente gravada
a mais indiscutível e mais eficaz das normas de prevenção policial do
regime: “com a autoridade não se brinca”. (p. 199)
Para ele, esse foi basicamente um dos pilares do regime: “com autoridade não se
brinca”, pois, a autoridade máxima era para ser respeitada e se necessário fosse, a polícia
podia abusar do poder e punir aqueles que infringissem as leis.
Seu envolvimento com a situação política do país foi natural, pois tanto na família,
como no liceu, havia muitas pessoas que lutavam contra o regime e a partir dos 15 anos
de idade, Rosas começou a ser ativista: foi militante da Resistência Antifascista, do
Partido Comunista Português, da Esquerda Democrática Estudantil e mais tarde fundou
o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (PCTP/MRPP - Maoísta). Em 1965,
aos 18 anos, foi preso pela primeira vez justamente por ser militante do Partido Comunista
após denúncia de Nuno Álvares Pereira, antigo funcionário do PCP que colaborou com a
polícia na perseguição de seus colegas. Rosas foi julgado pelo Tribunal Plenário, um
tribunal especial – eram “juízes vendidos à polícia, era uma espécie de braço judicial da
polícia política”55, e condenado a um ano e três meses de prisão correcional. Após sua
libertação, concluiu sua licenciatura em Direito, e fundou com outros três amigos o MRPP
e voltou a ser preso em 1971. Foi submetido à tortura do sono na sede da PIDE, foi
novamente julgado e condenado a um ano e dois meses de prisão, sendo proibido de
regressar à função pública após o cumprimento da pena.
Rosas quase foi preso uma terceira vez antes do golpe, em 1973, porém conseguiu
fugir da polícia, e se esconder em um local providenciado por um amigo angolano,
segundo relato a um programa da RTP – Rede de Televisão Portuguesa:
Eu fugi, fizeram uma perseguição de carro na rua, eu ainda tentei sair
do carro, não consegui; nessa altura o trânsito em Lisboa não é o que o
que era em 1973, e a certa altura, consegui ganhar uma vantagem sobre
eles, parei o carro, entrei pelas urgências da maternidade Alfredo Costa
e o homem que estava lá a entrar disse “tenha calma, onde é que está
sua senhora? Vá ali para fila pegar uma água”. Fui para fila, rasgando
todas as coisas que eu tinha, cartas, as que tinham folhas, ia rasgando,
ia comendo e tal e fui reparando que eles não vinham atrás de mim [...]
(ROSAS)56
Para se desviar da polícia, ficou em casa de amigos na clandestinidade, até que no
dia 25 de Abril, às oito da manhã, o acordaram para dar a notícia. Para ele, o 25 de Abril
55 Retirado da RTP, numa edição especial sobre o 25 de abril. Disponível em formato de vídeo:
http://media.rtp.pt/extremaesquerda/eu-estive-la/fernando-rosas-a-prisao/. Acesso em 15 de janeiro de
2015. 56 Disponível em: http://media.rtp.pt/extremaesquerda/eu-estive-la/fernando-rosas-prisao-falhada/
120
“é uma grande mudança, o princípio do resto das nossas vidas [...] como diria o Sérgio
Godinho”. 57 Ele relata que viveu com intensidade esse momento em que o mundo estava
atento ao que ocorria em Portugal (ROSAS, 2015).
Acerca do Canto de Intervenção, pontua que a “curiosamente a Revolução dos
Cravos criou pouca música de resistência” (como, de fato, se lê no item dedicado a Zeca
Afonso), mas nessa época se utilizou bastante as canções das quais já tinham sido sucesso
anteriormente à Revolução. A Grândola Vila Morena, como ressalta Rosas (2015), surgiu
novamente como um “hino” de protesto contra a Troika e contra a política da Austeridade,
já durante a recente crise econômica europeia.
Após a queda do regime, ressalta Fernando Rosas, alguns dos grandes avanços no
país, sendo a “democracia” a grande marca deixada pela revolução. Portugal pôde crescer
em alguns aspectos:
[a Revolução] traz, sobretudo, conquistas em três domínios que são
absolutamente marcantes, educação, a criação da escola pública, não é
criação, é democratização do acesso à escola pública, o segundo é o
serviço nacional de saúde, e o terceiro é o sistema de segurança social.
São os três grandes pilares da democracia. (ROSAS, 201558)
Mesmo com o atraso em algumas áreas, como no caso do controle operário, da
reforma agrária e dos cortes de privatizações, ele acredita que os benefícios são muitos,
como no caso da educação, da saúde e segurança social.
Fernando Rosas também ingressou na política exercendo o cargo de deputado pelo
bloco de esquerda, foi candidato à Presidência da República, em 2001 – ficando em quarto
lugar. Trabalhou como articulista da seção de História do jornal Diário de Notícias e desde
1992 escreve quinzenalmente no jornal o Público. Concluiu mestrado e doutorado em
História e é professor da Universidade Nova de Lisboa. É, ainda, consultor da Fundação
Mário Soares e diretor da Revista História. A sua área de pesquisa engloba o Estado Novo
e sua mais recente obra (Magnus Opus) foi lançada em 2012, sob o título de Salazar e o
Poder: A Arte de Saber Durar.
57 Entrevista dada à Rádio Antena 2, no dia 25 de junho de 1999. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Tc1335 58 Trecho da entrevista concedida a pesquisadora no dia 05 de fevereiro de 2015.
121
2.3 SOBRE JOSÉ “ZECA” AFONSO
Figura 22 – Fachada da Associação José Afonso
Reprodução de foto de Zeca Afonso na entrada da sede da Associação José Afonso, em
Lisboa. Acervo pessoal.
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, ou simplesmente “Zeca Afonso”, foi
o grande nome entre os cantores revolucionários, não somente pela qualidade de suas
músicas, mas também por ter sido praticamente o precursor do canto de revolução –
juntamente com Adriano Correia de Oliveira. Nascido em Aveiro, em 1929, morou em
Angola e Moçambique com os pais e em diferentes cidades de Portugal com os tios –
devido a problemas de saúde. Seu pai era delegado do procurador da República e morou
na África com sua família, e também em Timor, anos mais tarde. Aos nove anos de idade,
após um tempo com os pais e irmãos em Moçambique, foi morar com um tio defensor do
regime salazarista, que o obrigava a usar a farda da Mocidade Portuguesa. Mais tarde,
morou em Coimbra, continuou seus estudos, levou uma vida boêmia, foi duas vezes
reprovado e em 1949 iniciou o curso de Letras. A partir de 1953, começou a gravar
algumas de suas canções, e os primeiros discos, lançados ainda em 1953, são os Fados de
Coimbra, temas que costumava cantar em reuniões acadêmicas e pelos bares de Coimbra.
Nessa época também, cumpriu o serviço militar obrigatório, casou, teve filhos, e para se
122
sustentar financeiramente, começou a dar aulas, e uma de suas características como
professor era despertar nos alunos o espírito crítico:
A minha ação como professor era mais de caráter existencial, na medida
em que queria pôr os alunos a funcionar como pessoas, incutir-lhes um
espírito crítico, fazer com que exercitassem a sua imaginação à margem
dos programas oficiais.59
Em 1964, mudou-se com sua esposa para Moçambique, onde passou três anos
também exercendo a função de professor. Com o início das atividades da FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique), Zeca Afonso mostrou-se contra as práticas do
colonialismo e a PIDE o afastou do cargo de professor. Sem salário, decidiu voltar com
a esposa e os dois filhos mais novos para Portugal, deixando o primogênito em
Moçambique na casa dos avós. Mesmo em seu país, os tempos não foram fáceis: após a
retomada das atividades do ensino, e não deixando a prática da música de lado, a PIDE
voltou a persegui-lo e após a denúncia por uma de suas alunas, foi novamente expulso do
ensino. Zeca Afonso costumava fazer shows em diferentes lugares da Europa e participar
de muitas reuniões acadêmicas, e nessas reuniões mostrava o seu posicionamento político
e induzia os universitários com seus ideais.
A principal canção de Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena”, foi escrita em 17
de maio de 1964 após sua visita à cidade de Grândola, a convite da Sociedade Musical
Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) para um concerto, por ocasião do 52°
aniversário da fundação da sociedade. Neste evento, participou também Carlos Paredes,
um guitarrista muito apreciado por ele, embora não o conhecesse pessoalmente. Ao
chegar à cidade, foi muito bem recebido pelas pessoas, e percebeu também que o
empenho, a solidariedade e a fraternidade faziam parte dos ideais do povo, características
que colaboravam para a progresso da cidade. Soube que na SMFOG se escondia “um
ninho de progressistas, a maioria operários, entre os quais muitos comunistas
clandestinos, que escolheram a cultura como arma política” (GUERREIRO,
LAMAITRE, 2014, p. 51). Lá visitou a biblioteca, onde havia obras escondidas da polícia
sob o palco de madeira. A partir dessa visita, com o evento em si e a maneira pela qual o
povo da cidade enfrentava a censura, ficou encantado com o local, e compôs a canção
Grândola Vila Morena, logo após esse concerto. Quatro dias depois, enviou o poema
como forma de agradecimento à SMFOG pelo convite e pela receptividade. O poema foi
59 Trecho de uma entrevista retirada do site oficial da Associação José Afonso, concedida a Viriato Teles,
em “Se7e”, no dia 26 de janeiro de 1986. Disponível em: http://www.aja.pt/eu-dizia/
123
lido no fim do mês ao público reunido na Associação. Sobre esse poema, que no fim se
tornou a canção mais emblemática da história da música portuguesa, Francisco Fanhais
registra:
Na sua alma de Poeta calou fundo a emoção de encontrar, numa
pequena comunidade alentejana, um possível caminho para a liberdade
e a felicidade dos homens e mulheres do seu povo e da humanidade em
geral. (FANHAIS, in: GUERREIRO; LEMAÎTRE, 2014, p. 7)
Em entrevista, o próprio Zeca Afonso conta sobre essa experiência de visitar uma
cidade com ideais diferentes dos que havia visto em outros lugares do país:
- Falamos há pouco da “Grândola Vila Morena”. Quando e como a
compuseste?
- Foi há uns dez anos, precisamente na altura em que comecei a visitar
com mais assiduidade as sociedades de cultura e recreio. Umas das
primeiras que conheci foi Sociedade Musical Fraternidade Operária
Grandolense, para a qual também o Paredes tinha sido convidado. Eu
vinha do Algarve, de um meio um pouco diferente, e as relações
humanas existentes naquela sociedade eram de tal ordem que não
cheguei a saber quais eram os membros da sua direcção. Havia uma
distribuição de responsabilidades que me deu a ideia, talvez simplista,
de que uma sociedade socialista seria assim. Uma sociedade sem
desigualdades, em que as pessoas assumiam conscientemente o papel
que lhes cabia. Por ampliação desse contacto, é que fui levado a fazer
uma canção dedicada a Grândola60.
Como a canção foi feita em 1964, e somente gravada em disco em 1971, explica
o motivo dessa demora na mesma entrevista:
Como se falava muito em proibições, comecei por entrar com pezinhos
de lã e a cantar as canções menos contundentes. Depois à medida que
encontrava brechas, ia fazendo passar ao lado de duas ou três canções
líricas outra com um sentido mais objetivo. Assim, cheguei à Grândola,
e, ultimamente já no limite da permissividade, à Morte Saiu à Rua.
(idem)
A canção integra o conjunto de textos que será analisado mais adiante. Ela foi
cantada pela primeira vez em 1972, em Santiago de Compostela. Cabe dizer que foi
percebida nessa apresentação como música com grande capacidade de mobilização, por
ter provocado efeitos emocionais no público quando entoada. Essa canção produziu esse
mesmo efeito no dia 29 de março de 197461, durante o espetáculo no Coliseu, por ter sido
a última canção a ser apresentada, e as pessoas, com punhos erguidos, cantaram
60 Entrevista à Revista Flama, do dia 7 de junho de 1974. Disponível em:
http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaflama.pdf 61 Haverá um subitem com mais detalhes sobre esse espetáculo no Coliseu no dia 29 de março. A canção
Grândola Vila Morena também será retomada no capítulo de análise.
124
juntamente o refrão e partes da canção, considerada difícil de ser memorizada na ordem
correta.
Figura 23 – Álbum Cantigas do Maio
Álbum lançado em 1971, contendo a canção Grândola Vila Morena.
Fonte: Acervo pessoal.
Outras canções de Zeca Afonso, como Os Vampiros e Menina dos Olhos Tristes
também fizeram bastante sucesso na época e fazem parte do capítulo de análise. Era um
gênio poeticamente e suas letras alcançavam um sucesso enorme, fazendo com que a
polícia estivesse sempre perseguindo seus passos e proibindo a apresentação de algumas
dessas canções. Curiosamente, Grândola Vila Morena, nunca foi proibida, o que ajudou
na difusão da canção. Nos arquivos da PIDE, encontram-se inúmeros relatórios acerca de
Zeca Afonso e um dos selecionados destacava suas atividades de cantor numa das
reuniões de universitários que ele costumava participar sob a estrita vigilância da PIDE,
conforme se lê no processo de 1967, encontrado na Torre do Tombo:
No dia 11 de novembro findo foi organizada pelo “nice-club do
Barreiro”, sem qualquer licença, uma reunião de “universitários” de
Lisboa, que ali ocorreram em grande número durante a qual falou e
cantou o “elemento” desafecto bastante conhecido Dr. José Manuel
Cerqueira Afonso dos Santos, o “José Afonso”, professor do Liceu
Nacional de Setúbal, e cujos discos, de características subversivas, têm
sido quasi todos proibidos.
O José Afonso além de falar, cantou os “Vampiros” no que foi
acompanhado e aplaudido por toda a assistência.
19 de dezembro de 1967
(TORRE DO TOMBO: Proc. número 7407 – E – GT / NP – 1546, p.
2, grifo nosso)
125
Vale ressaltar como a Polícia se refere ao chamar o cantor de “elemento desafecto
bastante conhecido”, claramente pelo que já foi mencionado anteriormente: nessa época,
Zeca Afonso, além de já ser bastante conhecido por todos, sempre fez questão de mostrar
e divulgar sua discordância com o sistema político vigente em Portugal, sendo uma dura
ameaça para o regime.
Entre os estudantes, a presença de policiais também os deixavam irritados com a
falta da possibilidade de se realizar reuniões estudantis, e a proibição dada a Zeca Afonso.
Segue a transcrição de uma cópia do panfleto circulado do seminário de 1968, apreendido
pela PIDE e encontrado atualmente também na Torre do Tombo, sob o mesmo número
acima, na página 33:
Cópia do panfleto subversivo denominado ‘Seminário 68’
Emanado ao setor universitário de Lisboa na parte respeitando ao Dr.
José Afonso
2. Vampiros e Estudantes
É verdade, amigos! A sessão de convívio de medicina em que devia
cantar o Dr. José Afonso foi proibida por alguns “passarocos”, que em
vez de asas exibiam cartões e alguns títulos bem sonantes. Os
estudantes é que não acharam graça nenhuma à “visita” dos tais
“bisnaus”. E vai daí, foram para o Técnico, onde ouviram música
gravada do Dr. José Afonso, e depois uma balada cantada por este em
“carne e osso”. Triste sina a dessa Pátria! Enquanto na América pululam
os “falcões”, entre nós voam os “Vampiros”! Somos na verdade um país
pequeno!
(TORRE DO TOMBO: Proc. número 7407 – E – GT / NP – 1546, p.
33, grifo nosso)
“Vampiros”, como escreveram os estudantes, se referem justamente a uma das
canções de Zeca Afonso, também a ser analisada adiante. A PIDE sempre tentou prender
o cantor, porém como as prisões sempre ocorriam perto do início de maio, o cantor
conseguia se esquivar nessa época, escondendo-se, por exemplo, em casa de amigos.
Segue um “mandato de captura”62 emitido pela PIDE/DGS em 1971, também sem
sucesso (sendo apenas preso em 1973, por apenas alguns dias):
62 Arquivo retirado do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/media/Images/Zeca_mandato%20de%20captura1971.jpg. Acesso em abril de
2016.
126
Figura 24 – Mandado de Captura ‘Zeca Afonso’
Mandato de captura de Zeca Afonso. O fato deveria ser comunicado imediatamente à Direção
de Serviços.
Zeca Afonso, só soube depois da revolução que sua canção Grândola Vila Morena
havia sido escolhida como a segunda senha do movimento militar. José Jorge Letria
(2013) registrou em uma de suas obras, sua conversa com ele mais tarde pelo telefone:
Falei com ele ao telefone e confessou-me a sua surpresa e satisfação.
Estava visivelmente emocionado e ainda um pouco perplexo com a
escolha, e eu sei que, se tivesse dependido dele, talvez não fosse essa a
opção. Preferia outras canções por terem refrões mais simples e
mobilizadores. (p. 150)
Em entrevista concedida à emissora RTP em 30 de abril de 1974, cinco dias após
a queda do regime, Zeca Afonso estava no aeroporto com José Letria para receber os
exilados que vinham da França, entre eles José Mário Branco (conf. imagem que consta
na abertura do capítulo 2). Nessa ocasião falou sobre a escolha da música e suas
expectativas para o futuro de Portugal:
A Grândola era um fator estimulante da congregação das pessoas,
congregação emocional, [...] [foi um] pontapé de saída, e aliás, como
eu digo, sem a minha participação consciente é uma coisa que me enche
de regozijo, mas acho que temos que passar uma fase menos emotiva,
e trabalhar, organizar sobretudo as camadas populares sobretudo,
127
formarmos comissões... creio que neste momento é preciso congregar
uma frente da esquerda e organizar sobretudo as bases, há uma extensão
enorme de pessoas politizadas que vão neste momento entrar no
circuito, vão constituir os organismos que futuramente estarão a frente
desse facto revolucionário, desse país. (AFONSO, 197463)
A escolha da música como senha para a Revolução dos Cravos o deixou bastante
entusiasmado. Mas sempre agiu com naturalidade e, para ele, toda essa comoção acerca
da canção precisaria acabar, para que as pessoas pudessem agir logo com intuito de
melhorar o país. Ele reconhece que a canção foi “aquela a que mais condições reunia para
ser uma espécie de lugar geométrico, de pontapé de saída. Mas também poderia ser
qualquer canção, [...], pois se tratava apenas de um sinal convencional...” 64 . A canção
virou uma espécie de “hino popular”, e Zeca Afonso esperava que esse momento viesse
“a ser totalmente ultrapassado”:
De facto, a composição é um hino, embora seja vivida como uma
canção estimulante da união entre as pessoas, não propriamente da luta,
porque as canções de luta ainda terão de ser feitas pelas pessoas que
estão mesmo metidas na luta até o pescoço (como diz o José Jorge
Letria65). Já aí disse, num papel qualquer, que as canções não apontam
o caminho às pessoas, embora por detrás das canções exista uma visão
do mundo e uma ideologia política. O que as canções não podem é
apontar essa ideologia.66
Ele afirma, nesta entrevista dada poucos meses após a queda da ditadura, que o
importante seria lutarem pelos seus ideais e construírem suas próprias “canções”, pois ele
não concordava que suas letras tivessem um caráter de apontar um novo rumo a ser
tomado; se assim fosse, suas composições não poderiam mais ser vistas como canções, e
sim como “manifestos”, prontos para serem postos em prática. Ele também relata a falta
de criatividade para compor novas canções após o golpe, quando lhe perguntaram se ele
já havia composto algo: “Não. Pelo contrário, deixei de o fazer. Não fui capaz de compor
absolutamente nada.” Assim, o entrevistador compreendeu que ele estaria num certo
“embaraço” quanto ao que deve compor: “Estou. E ponho mesmo o problema de saber se
serei capaz de construir canções. ” 67
63 Entrevista de Zeca Afonso concedida à RTP no dia 30 de abril de 1974, por ocasião da chegada dos
exilados de Paris. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xXlresjhAqw. Acesso em
20/02/2016 64 Entrevista de Zeca Afonso concedida à Revista Flama, datada de 7 de junho de 1974, disponível no site
da Associação José Afonso: http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaflama.pdf 65 Zeca Afonso se refere ao disco de José Jorge Letria chamado “Até ao pescoço”, lançado em 1972. 66 Idem 67 Idem.
128
Esperava-se que, após a queda do regime, a mídia aproveitasse o momento de
euforia para falar acerca das canções, e do movimento dos cantores, e de toda a trajetória
deles como forma de fazer o público conhecer mais sobre todos os percalços e situações
que eles atravessaram, já que qualquer coisa sobre eles e suas canções eram censuradas
antes de 1974. Zeca Afonso nunca gostou desses holofotes e queria que toda essa
repercussão acerca de sua música diminuísse e desse lugar a resultados concretos.
Assim, como visto em algumas entrevistas de José Jorge Letria acerca do que
ocorreu após o 25 de Abril e a (falta de) união entre os cantores, Zeca Afonso também
relatou sobre esse ocorrido ainda na entrevista à Revista Flama (1974, p. 38):
[Flama] Antes de 25 de Abril, um espectador mais ou menos atento teria
a sensação de que havia maior união entre quem estava envolvido,
subterraneamente, num mesmo – e musical – objectivo comum. Ora
depois daquele dia, e passados que foram certos incidentes já
registados, esse espectador deve pensar que já não existe tal união, se é
que ela existia antes de 25 de Abril. Portanto que pensas sobre união e
desunião. Das pessoas, dos seus processos ou objectivos. Ou trata-se
apenas de mal-entendidos de ocasião? [Zeca Afonso] Essa pergunta é difícil como o raio. Sei tanto como tu. É
evidente que se estão a esboçar tendências de carácter político, que se
concretizam em programas, os quais têm uma realização prática ou
denotam um desajustamento entre a sua definição e a sua vinculação
prática. Tudo isto será consequência das contradições sociais vividas
neste momento, num país que é simultaneamente colonizado e
colonizador. Enfim, essa desunião é infelizmente (ou felizmente, não
sei) real.
[Flama] E já existia anteriormente ao 25 de Abril?
[Zeca Afonso] Sim, e agora talvez se tenha acentuado mais.
Ainda que a união possa ter sido afetada, Zeca Afonso nomeia os seus amigos
nessa entrevista, três dos quais foram entrevistados para o presente trabalho:
- Já confirmaste a desunião, já reflectiste divergências. Por isso, será
que te consideras isolado de um grupo, de uma corrente que possa
existir ou vir a formar-se, no setor musical ou artístico?
- Sinto-me perfeitamente solidário com os outros meus amigos e posso
nomeá-los: Francisco Fanhais, José Mário Branco, Adriano Correia de
Oliveira, Luís Cília, Sérgio Godinho, Manuel Freire, Laranjeira, José
Jorge Letria, A. P. Braga, entre outros. Cada qual terá a sua tendência,
cada qual terá a sua forma pessoal de enfrentar as tais puerilidades, mas
isso não exclui de modo algum a solidariedade que tenho para com eles.
- E eles para contigo?
- Acho que têm, até porque não têm nenhum motivo em contrário.
Enfrentámos as mesmas situações, a tal ponto que não se pode dizer que
tenhamos tudo biografias muito distintas uns dos outros. (grifo nosso -
p. 39)
129
Em 1985, em entrevista, Zeca Afonso afirma que não voltaria a cantar, - mas
meses depois, gravou o seu último disco, desta vez com José Mário Branco, quando
percebeu, por meio das críticas, que muitos o consideravam cantor de uma música só:
Não voltaria a cantar. Em nenhuma circunstância. Para o público, não.
Até porque possivelmente não teria nada de novo a apresentar. E acho
que as coisas devem acabar quando não adiantam nada. De resto sou
obrigado a concluir que o meu trabalho como cantor é menor… A
crítica em geral reduz-me ao autor das Cantigas do Maio, o que quer
dizer que antes e depois não fiz nada que preste. É uma bela crítica de
música, a nossa! Tem-me proporcionado notáveis baboseiras sobre o
trabalho de colegas, trabalho esse que em qualquer país decente seria
suficiente para afirmar o mérito dum cantor, pelo menos. (1985)68
O cantor foi o mais citado dentre as seis entrevistas realizadas para esta pesquisa,
além de ser constantemente mencionado nos registros escritos dos autores, especialmente
nas obras de José Jorge Letria:
Vi o Zeca pela primeira vez, de boina na cabeça, capote alentejano pelas
costas, camisa de flanela aos quadrados, calças castanhas e camisola
[suéter] azul escura. [...] José Afonso era, para os estudantes dessa
época e, sobretudo para os que enveredavam pela atividade musical e
pelo combate político contra a ditadura, uma referência, um símbolo e
um exemplo, embora ele fosse refractário a esse tipo de mitificação, que
reprovava e que visivelmente o inibia ou chegava mesmo a irritar.
(LETRIA, 2013, p. 46)
Zeca Afonso ficou conhecido como um líder, uma vez que procurou auxiliar na
conscientização da população diante dos absurdos da situação vivida. Esse despertar da
população precisava ocorrer urgentemente, pois o país não podia continuar naquela
condição sócio-político-econômica e a Guerra Colonial precisava ter um fim.
Zeca Afonso, sempre informal e fraterno, tinha a exacta noção dessa
urgência, da necessidade dessa síntese que nos levava a perceber o que
era urgente e inadiável e a dar-lhe a força e a eficácia, mas com imenso
desejo de agitar, mobilizar e despertar consciências. (LETRIA, 2013, p.
49)
Foi uma personalidade muito comentada em Portugal nos dias que se seguiram, e
até hoje muitos recordam o grande valor que Zeca Afonso trouxe para a música de
resistência, e seu poder influenciador:
Figura ímpar de seu tempo, Zeca Afonso teve o mérito de influenciar
uma geração de portugueses, que reconheceram no seu tempo e na sua
68 Entrevista concedida ao escritor e jornalista José Amário Dionísio em junho de 1985. Disponível em:
http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaamarodionisio.pdf
130
obra uma personalidade fora de série e um percurso musical marcante
e marcado pela coerência e modernidade (TVGi, 1999, p. 45)69
Francisco Fanhais, em sua entrevista também mencionou aspectos marcantes
sobre a canção de Zeca Afonso: na primeira vez que o ouviu cantar, sentiu algo como
“um murro no estômago”, pois foi quando finalmente, por meio da letra, constatou o que
estava acontecendo em Portugal. Ele percebeu em Zeca Afonso uma “relação autêntica”
com a música, além de ficar admirado com uma “voz maravilhosa” que ele tinha. Ainda
segundo Fanhais, as canções O menino do bairro negro e Os Vampiros – as mais
marcantes para ele – são as que o despertaram para a personalidade de Zeca Afonso,
(FANHAIS, 2014). Fanhais não imaginaria que viria a conhecer o cantor cinco anos após
o lançamento dessas canções, e ainda, que se tornariam amigos. Ao fundar a Associação
José Afonso, Fanhais teve a chance de “manter viva a memória, não só do ponto de vista
de sua arte, mas do ponto de vista também e essencialmente da sua cidadania, da sua
posição na vida, em favor sempre dos mais fracos” (FANHAIS, 2014).
2.4 REUNIÃO DOS CANTORES NO COLISEU: 29 DE MARÇO DE 1974
Para o ramo da música, este dia foi considerado uma prévia do que viria a ser o
25 de Abril. Foi a partir deste momento que as pessoas puderam ter uma noção ou talvez
uma ideia de que a revolução estava prestes a ocorrer, pois a mobilização do público nesse
dia foi tão grande quanto ao que eles iriam ver pouco menos de um mês depois, no golpe
do dia 25 de Abril.
Os cantores se reuniram no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, aguardando a
autorização da polícia para o início do espetáculo que contava com quase sete mil
telespectadores para ouvir o grupo dos cantores mais importantes da época. Receberam
uma ordem para que usassem “o bom senso” e desistissem das apresentações, o que seria
praticamente impossível, após ver a sala lotada à espera do início. Havia muitas pessoas
que moravam fora de Lisboa, percorreram longos caminhos “para não perderem a
oportunidade de ver pela primeira vez todos os cantores da resistência juntos” (LETRIA,
2013, p. 151). A lista das canções proibidas de serem cantadas chegou: Menina dos Olhos
Tristes, Venham mais cinco, e A Morte Saiu à Rua. Rapidamente, os cantores resolveram
69 Retirada da Revista TVGi, de abril de 1999: José Afonso “A Utopia e a Música”, p. 45
131
as canções e deixaram para encerrar com a Grândola Vila Morena por ser a única sem
cortes da Censura e que resumia tudo que desejavam dizer às pessoas naquela noite,
falando de fraternidade, amizade, e também por ser a “menos amputada” de todas aquelas
que poderiam ser cantadas (LETRIA, 1999). “Desculpa, Zeca, mas tens que ser tu a
fechar. – Mas por que eu? Qualquer um de vocês o fará melhor do que eu. – Não, tens de
se tu, porque tu é que representas tudo aquilo que temos para dizer, e é a ti que as pessoas
querem ver e ouvir.” (idem, p. 34).
Essa noite foi, sem dúvida, uma das mais marcantes antes do dia da Revolução,
após ver
Milhares de pessoas de pé, abraçadas, de isqueiros acesos nas mãos a
tentarem não perder uma palavra sequer de uma letra difícil de
memorizar pela ordem correta. Muita gente saiu a cantá-la, já depois da
1 hora da manhã, para uma Lisboa cheia de polícias a cavalo, de carros
de água e de agentes com pastores alemães pela trela. Apesar de tudo,
houve serenidade e contenção. [...]. Todos sentimos que algo de
decisivo estava prestes a acontecer, mas ignorávamos como, quando e
onde. (LETRIA, 2013, p. 152)
Figura 25 – Apresentação no Coliseu de Lisboa
Apresentação no Coliseu no dia 29 de março de 1974 (Letria, o segundo de pé, da esquerda para
direita; e Zeca Afonso, em pé, com as duas mãos no cabo do microfone, ao lado de Adriano Correia de
Oliveira, o primeiro da direita para esquerda.) Fonte: LETRIA, 2013, p. 7 (fotos)
A seguir, a representação deste show ocorrido após quarenta anos da queda do
regime, em 2014, no mesmo coliseu:
132
Figura 26 – Apresentação no Coliseu 40 anos depois
Apresentação no Coliseu no dia 28 de março de 2014
Fonte: Folheto da Associação José Afonso
Figura 27 – Folheto “Cantar Grândola”
Folheto (frente e verso) retirado na Associação José Afonso sobre a reapresentação no Coliseu
em razão da comemoração dos 40 anos da Revolução dos Cravos.
Sobre o folheto acima, distribuído pela Associação José Afonso, vale ressaltar que
entre os cantores que fariam parte das apresentações estavam Francisco Fanhais e Sérgio
Godinho, entrevistados para esta pesquisa. No verso do folheto, o texto fala sobre o evento
133
e da importância da canção Grândola Vila Morena. Além disso, menciona o fato de a
canção voltar a ser entoada nos dias atuais, em razão da crise socioeconômica iniciada
após o ano 2000, ratificando o caráter “intemporal e universal” da obra, por ter sido
cantada também em outros países, principalmente na Espanha, que, da mesma forma,
sofreu com a profunda crise financeira europeia.
A partir dos relatos acima, e do conhecimento de algumas canções que vieram a
ser famosas pelo conteúdo, segue-se a análise das sete canções mencionadas, na ordem
em que se segue: Trova do Vento que Passa; Os Vampiros, O Menino do Bairro Negro;
Grândola Vila Morena; Menina dos Olhos Tristes, Cantar da Emigração, e Liberdade.
134
Figura 28 – Associação José Afonso (Acervo pessoal)
Só há liberdade a sério quando houver
A paz o pão, habitação
Saúde, educação
(Sérgio Godinho)
CAPÍTULO 3
ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:
“HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO”
135
3. ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:
“HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ NÃO”70
Em Portugal, a canção como uma forma de protesto não se inicia à época da
Guerra Colonial: no início do século, antes da queda da monarquia, em 1910, o fado já
mostrava uma característica semelhante ao cantar sobre a vida rural e sobre temas que
incluíam a fome, a desgraça, a luta dos empregados e a esperança de um futuro melhor.
Com a chegada da República, e em seguida da ditadura, nem todos os tipos de músicas
foram bem aceites pelo governo, ocorrendo, assim, um desaparecimento gradual do fado
como tipo de intervenção, com a proibição dada pelo Secretariado Nacional de
Informação e a Emissora Nacional – obras do governo salazarista – mas, ainda assim, o
suficiente para inspirar outros cantores a continuarem fazendo o mesmo. O cante
alentejano também foi outro precursor do canto de intervenção, sendo, inclusive, uma das
grandes inspirações para algumas das composições que aqui são analisadas. Algumas
letras tinham tom de crítica social, contra a qualquer tipo de poder, pois relatavam as
injustiças e as condições precárias da população, mostrando a situação de um grupo
oprimido frente ao grupo opressor. (RAPOSO, 2014).
Letria (1978) aponta que desde o fim do século XIX canções dessa natureza foram
um refúgio e um modo de as pessoas condenarem a iniquidade e a opressão. Elas
ganharam força com as reinvindicações da classe operária, que incluíam redução da
jornada de trabalho e melhores salários – e essa união seria a única forma de (juntos)
pressionarem as autoridades com o objetivo de vencerem a repressão e a miséria. O
escritor ainda lista acontecimentos históricos pelo mundo que foram tema de várias
canções, mas a grande referência para o Canto de Intervenção do século XX veio com as
canções surgidas por ocasião da Revolução Cubana, em 1959, influenciando assim,
muitos movimentos na Europa e na América Latina, dentre os quais, destaca-se a canção
portuguesa:
Nos últimos anos da década de 60 existe já em Portugal um verdadeiro
movimento. Apesar da repressão, da apreensão de discos e da proibição
de espetáculos, os cantores cumprem a sua função, apelando para a
unidade de todas as forças democráticas e anunciando, por meio de
sátiras violentas, a agonia do fascismo. (1978, p. 27)
70 Versos da canção “Trova do Vento Que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira.
136
Outras formas de arte também demonstram o sentimento dos indivíduos frente ao
regime totalitário e opressor, mas, com a censura, muitas dessas manifestações foram
abafadas e algumas perdidas com o tempo. Por outro lado, vale ressaltar que há, por
exemplo, poemas de Fernando Pessoa (2015) – mesmo vivido tão pouco no regime
salazarista – exprimindo a insatisfação com a política ditatorial.
O canto de Intervenção teria sido, talvez, a maneira mais eficaz de mobilização
encontrada à época, pois, mesmo havendo a apreensão de discos, a propagação da música
aconteceria rapidamente, mesmo que os cantores só conseguissem cantar algumas vezes
em público devido à proibição da polícia. Os intérpretes aproveitaram a mobilização de
jovens, especialmente universitários, para difundir os seus ideais, e perceberam na música
a arte perfeita para isso: “A canção, desde que a carga política que transporta seja
claramente assumida por quem a faz ou difunde, pode ser um complemento activo da luta
de massas, devido à sua mobilidade e à sua capacidade de denúncia das contradições
sociais” (LETRIA, 1981, p. 19). O poder da canção aumenta se considerarmos o acesso
a ela, pois enquanto um livro, uma obra ou um panfleto chega às mãos de uma pessoa
pela leitura, que muitas vezes só se faz uma vez, uma canção é possível ser ouvida
diversas vezes, propiciando a disseminação de sua mensagem junto ao público.
Reconhecendo a importância da canção com caráter político como forma de
exprimir os mais sinceros anseios acerca de uma posição ideológica, e sabendo que cada
uma dessas canções apresenta um valor imensurável no que diz respeito ao conteúdo que
são capazes de exprimir, seguem-se análises das composições recorrentemente indicadas
pelos entrevistados (cf. capítulo 2). São elas:
a) Trova do Vento que Passa (1963): letra de Manuel Alegre; música de
António Portugal; interpretada por Adriano Correia de Oliveira.
b) Os Vampiros (1963): letra e música de Zeca Afonso
c) Menino do Bairro Negro (1963): letra e música de Zeca Afonso
d) Grândola Vila Morena (1964): letra e música de Zeca Afonso
e) Menina dos Olhos Tristes (1969): letra de Reinaldo Ferreira; música de Zeca
Afonso.
f) Cantar de Emigração (1970): letra de Rosalía Castro (1880); música de
Adriano Correia de Oliveira;
g) Liberdade (1974): letra e música de Sérgio Godinho
137
Quanto à expressão utilizada para nomear esse tipo de composição - “Canção de
Intervenção”, “Música de Intervenção”, “Canção Popular Portuguesa” – nunca houve um
consenso entre os estudiosos e até mesmo entre os intérpretes sobre qual seria a mais
adequada. O próprio Zeca Afonso, em entrevista dada em 1985, destaca a indefinição do
conceito e não gosta da denominação de “Música Popular Portuguesa”:
- Música “Popular Portuguesa”, entre aspas. Por quê?
- Porque esse conceito é muito polémico. Não sei se lhe chame música
de texto, música social, música de intenção política, música de
intervenção. São tudo conceitos muito indefinidos, mas música popular
é ainda mais polémico. Senão voltaremos outra vez para a discussão
sobre música popular e música tradicional e eu não quero entrar nisso.
Prefiro dizer ‘a música da minha área’ ou ‘da nossa área’, abrangendo
um conjunto de colegas ou ex-colegas que sempre estiveram nessas
coisas, que sempre tiveram um recurso próprio.71
Neste estudo, optou-se por “Canto de Intervenção”, denominação que é
amplamente aceita por estudiosos (RAPOSO, 2014; LETRIA, 1999, 2013),
especialmente por aqueles que enfatizam a letra das canções, como é o caso deste
trabalho. A música engloba o esquema rítmico, sons, melodias e notas que não são
centrais nesta análise, mas que serão evocados sempre que contribuam para melhor
compreensão do conteúdo abordado.
As canções selecionadas foram, segundo os entrevistados, as mais expressivas e
significativas nos últimos dez anos da ditadura. Transmitiam esperança para o povo
“amordaçado”, e, metaforicamente, por meio delas, eram capazes de “libertar” o povo,
criando uma força coletiva mobilizadora de toda a população por um mesmo ideal.
Das sete canções, três foram interpretadas por Zeca Afonso, revelando, assim, o
grande impacto que este artista trouxe às massas em sua persistente contra o governo:
“suas canções são fruto de uma inquietação diária e de uma reflexão constante”,
“chamavam a atenção para as duras condições de vida da população” e “denunciavam a
falta de liberdade de expressão, a repressão, a Guerra Colonial e a hipocrisia de um
regime, alicerçado em fachadas e em mitos em decadência”. (VISEU, 2014, p. 71).
Importante destacar que essas canções, evidentemente, iam na contramão das promovidas
pelo regime, conhecidas como “nacional-cançonetismo”, que retratavam valores
tradicionais portugueses e que, naturalmente, divulgavam os ideais e princípios do
governo, exaltando o “conformismo” entre os portugueses.
71 Entrevista à Revista Se7e, do dia 27 de novembro de 1985. Disponível em:
http://www.aja.pt/ficheiros/entrevistas/entrevistaviriatoteles.pdf
138
3.1 TROVA DO VENTO QUE PASSA
A canção Trova do Vento que Passa foi retirada de um poema de Manuel Alegre,
escrita em 1963 e interpretada e por Adriano Correia de Oliveira no álbum Fados de
Coimbra. O poema de Manuel Alegre é mais extenso, contendo quinze quartetos, ao passo
que na versão interpretada por Adriano Correia de Oliveira contém apenas três estrofes,
que serão trabalhadas aqui72.
Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
E o vento cala a desgraça
O vento nada me diz
Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa
Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não
Essa canção contesta o regime ditatorial em Portugal ao falar da “desgraça” que o
país vive. Quando fez estes versos, Manuel Alegre estava com Adriano Correia de
Oliveira, e desabafou “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre
alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Ao ouvi-los, Adriano Correia de
Oliveira profetizou que tais versos durariam para sempre (RAPOSO, 2014) e Manuel
Alegre logo finalizou o poema e tentaram musicá-lo, com ajuda de António Portugal
(músico e compositor que trabalhou com cantores como Adriano Correria de Oliveira e
Zeca Afonso). O sucesso dessa canção foi percebido três dias depois, quando cantaram
em uma festa de Calouros da Faculdade de Medicina: “foi um delírio, [Adriano Correia
de Oliveira] teve que repetir três ou quatro vezes, [...] Saímos todos para a rua a cantar.
A “Trova do Vento Que Passa” passou a ser um hino para aquele malta” (RAPOSO,
2014, p.194)
72 A cantora Amália Rodrigues também interpretou a canção em 1970, lançada no álbum “Com que Voz”.
Na versão dela, a única estrofe igual à versão de Adriano Correia de Oliveira foi a primeira; no restante, ela
seguiu a segunda e terceira estrofes da ordem correta do poema de Manuel Alegre.
139
Ao analisar a canção – veremos aqui apenas os três versos utilizados por Adriano
Correia de Oliveira – percebe-se que há uma regularidade em termos de métrica e rima.
Todos os versos são classificados como redondilha maior, e as rimas intercaladas em
ABAB CACA DEDE. Na primeira e terceira estrofes do poema, as rimas também são
intercaladas em agudas (terminadas em oxítonas) e graves (paroxítonas), ao passo que na
segunda estrofe, há apenas rimas graves. A maioria das rimas são consoantes, enquanto
há apenas duas toantes, vistas em cadeia/semeia e servidão/não. Outra característica do
poema que chama a atenção é a questão da sonoridade, com as repetições de vogais com
sons parecidos, causando uma assonância, além de poderem ser consideradas rimas
internas e toantes, como se pode ver nos substantivos “vento”, “tempo”, nos advérbios
“sempre” e “dentro” e do pronome “alguém”, repetindo os sons “em”:
Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
E o vento cala a desgraça
O vento nada me diz
Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa
Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não
Destaca-se também no poema a prosopopeia, ao haver a personificação dos
substantivos “vento” – em que o sujeito faz uma “pergunta ao vento” – e da “noite” em
que é qualificada como “triste”, adjetivo comumente utilizado para seres vivos. Há
também casos de anáfora – muito comuns em canções, na repetição “Há sempre”,
podendo ser vistas no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe e nos dois últimos
versos da terceira estrofe.
Essa canção revela a situação drástica de Portugal por causa do regime ditatorial,
em que a censura ainda agia com muita repressão e violência e o país ainda continuava
lutando contra as dificuldades – desemprego, onda de protestos, Guerra Colonial. A
primeira quadra, mesmo sendo criada por Manuel Alegre enquanto ele já estava em
Portugal [ficou preso em Angola por um período], poderia claramente ter sido escrito por
alguém que estivesse fora e precisasse de notícias do que estaria ocorrendo no país. Ao
fazer a pergunta ao vento, o cantor sabe que não haverá resposta, dando a ideia de que as
coisas continuariam à sombra da ditadura. O vento também poderia se referir a algo ou
140
alguém que “escondesse” os fatos que estejam ocorrendo no país. O vento “varre” a
sujeira (desgraça) que lá ocorre, mas não a tira do local. A primeira estrofe é totalmente
pessimista em relação aos fatos que vinham ocorrendo em Portugal, mostrando ser uma
situação que ocorre há muito tempo e que virou rotina, ao utilizar os verbos apenas no
presente do indicativo nesta primeira estrofe “pergunto ao vento que passa e o vento cala
a desgraça/ o vento nada me diz”.
Na segunda estrofe, altera-se o rumo da letra, indicando um otimismo ao utilizar
a conjunção adversativa “mas”, em “Mas há sempre uma candeia”, referindo-se às
pequenas coisas boas que ocorrem dentro dessa “desgraça”: a utilização do substantivo
“candeia”, traz uma conotação de “luz”, “inspiração”, e ainda que “fraca” e “passageira”
(como sugere uma luz de candeia), o texto diz respeito às canções “semeadas” por
alguém. O verbo “semear” implica o ato de “plantar” ou “lançar”, e as pessoas farão com
que as “canções” sejam ‘divulgadas’. Nesses versos cabem o provérbio bíblico “Quem
semeia vento, colhe tempestade”73, trazendo para esse contexto, um sentido oposto ao
pretendido pela Bíblia: enquanto biblicamente, aquele que semeia vento, colhe resultados
improdutivos, aos que “semeiam canções no vento”, esperam colher bons frutos:
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa
Se o “vento que passa” pode levar notícias, aos que semeiam canções no vento podem ter
suas canções “levadas” por ele, isto é, divulgadas especialmente pela própria população,
alcançando popularidade. Ao mesmo tempo, o vento, por estar sempre em movimento,
pode também fazer com que a canção “semeada” nele passe e se distancie rapidamente,
pois sendo ela muitas vezes censurada pela PIDE, as pessoas poderiam perder o acesso à
essas canções.
Na terceira estrofe, novamente, o poeta utiliza outra conjunção para contornar a
situação de tristeza: “mesmo”, suavizando todo o restante da estrofe, assim como ocorrido
na quadra anterior. Nessa última estrofe o autor enfatiza a existência de pessoas que
resistem ao que lhes é imposto, sendo, nesse caso, todos aqueles que combatem a ditadura
que está em vigor no país, seja ela por meio de canções, da literatura, seja por meio
daqueles que utilizam sua influência para motivar o ativismo.
73 Conferir Oseias 8.7, Bíblia versão JFA.
141
A principal mensagem desse poema diz respeito à esperança que esses poetas e
cantores sentem quando percebem que suas obras estão sendo divulgadas e bem recebidas
pelo público. É esse público que faz essa luta continuar, apesar de todo o clima opressor
e angustiante vividos.
3.2 OS VAMPIROS
A canção Os Vampiros, também de Zeca Afonso, foi uma das primeiras canções
de protesto surgidas na época da Guerra Colonial. Essa canção faz parte do disco Baladas
de Coimbra, lançado em 1963, e se tornou uma das canções mais emblemáticas do cantor.
Ressalta-se também, que essa é uma das canções mais citadas nas entrevistas, pois foi por
meio dela que muitos cantores passaram a conhecê-lo melhor e a seguir o mesmo caminho
percorrido por Zeca Afonso, como nos casos do Francisco Fanhais e José Letria, por
exemplo. Essa canção, possivelmente, nasceu da necessidade de mostrar mais
explicitamente o que vinha ocorrendo em Portugal por volta de 1963, quando esteve em
Coimbra. As canções mais cantadas da época não traziam o mesmo teor político e isso o
afetou, fazendo com que percebesse que as canções eram feitas unicamente para
entretenimento, mostrando um mundo perfeito e não condizente com a realidade. Dessa
forma, apontava que a canção também podia assumir um caráter informativo e
mobilizador, na expectativa de “fabricar um novo tipo de canção, cuja atualidade poderia
repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência
adormecida, em vez de o distrair” (VISEU, 2014, p. 79).
142
Segue a letra original da canção dividida em estrofes, conforme o manuscrito74
(Figura 29):
(I)
No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada
(II)
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
(III)
A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas
(IV)
São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
(V)
No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada
(VI)
Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
74Documentos retirados do “Centro de Documentação 25 de Abril”, da Universidade de Coimbra.
Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=dossierzeca. Acesso em abril de 2016.
143
Figura 29 – Manuscrito de Os Vampiros
144
Apesar de a canção ter sido composta em 1963, mais de cinquenta anos antes deste
trabalho, seu conteúdo é atemporal. Não raramente, o refrão “eles comem tudo e não
deixam nada” é visto como enunciados emblemáticos utilizados em protestos e
manifestações na sociedade portuguesa atual, além de muros grafitados com a letra da
canção (como a figura 31 abaixo), denunciando a indignação do povo frente ao governo,
que “suga” o dinheiro para as suas próprias necessidades e deixa, assim, de propiciar
melhores condições de vida para a população. Essa canção é sempre lembrada como uma
das canções mais presentes no Portugal contemporâneo, especialmente com a recente
crise europeia.
Figuras 30 e 31
Foto de um muro pichado com parte da letra de
“Os Vampiros”, como forma de
descontentamento do povo em relação ao
governo atual. Ressaltam-se ainda dois aspectos
nessa foto: as cores utilizadas remetendo a um
vampiro e ao sangue, preta e vermelha, e o
símbolo do jogo Pac-Man (come-come) em
vermelho, representação utilizada para mostrar
o que o governo “come”. Calçada de São
Francisco, Lisboa, em 19 de outubro de 2013.
Acervo pessoal.75
Muro pintado em homenagem a Zeca
Afonso, com a partitura da canção
“Os Vampiros” pela comunidade de
Ribeira Seca, Ilha da Madeira.76
75 Mais imagens de muros comemorativos do 25 de Abril poderão ser vistas no ANEXO F 76 Disponível no website da Associação José Afonso, em: http://www.aja.pt/mural-na-madeira/. Acesso em
abril de 2016.
145
A canção, de acordo com a letra manuscrita, contém seis estrofes de oito versos
cada – seis oitavas - e o refrão está em conjunto com a segunda e a última estrofes,
aparecendo também na metade da canção, logo após a quarta oitava. É cantada a uma só
voz, sem coro, e tem o acompanhamento de apenas um instrumento, o violão, dando uma
atenção especial para a letra da composição. Ao se fazer a escansão dos versos, percebe-
se que a métrica é variável, podendo ter de 3 a 6 sílabas77.Levando em consideração a
questão do som de algumas palavras na variedade do português europeu, alguns versos
podem sofrer ligeiras diminuições da quantidade de sílabas métricas, não perdendo, dessa
forma, a simetria desejada pelo cantor. Como exemplo, cita-se o quarto verso da primeira
oitava, “Pela noite calada”, em que a última sílaba métrica é “la”, formando assim seis
sílabas métricas, sendo, dessa forma, díspar com relação ao restante da canção, que nessa
mesma posição, formam versos com cinco sílabas métricas. Pela sonoridade da canção e
para efeito métrico, a palavra “noite” pode sofrer alteração, tendo apenas uma sílaba
métrica, igualando, assim, as cinco desejadas pelo cantor:
Pe/la/noi/te/ca/la/da = 6
Pe/la/ noi/te/ ca/la/da = 5
As estrofes contêm oito versos com métrica em sua maioria intercalada em
tetrassilábicos e redondilha menor 4-5-4-5-4-5, após algumas variações entre um verso e
outro, como será visto de maneira mais detalhada. A divisão das sílabas não obedece ao
mesmo esquema de uma divisão feita em poemas, pois, nesse caso, é necessário ouvir a
canção para obter o efeito e a métrica desejados. Assim ficaria a estrofe eliminando-se as
sílabas não tônicas e não pronunciadas para o efeito métrico (de acordo com a
interpretação de Zeca Afonso):
Num/ céu/ cin/zen/to = 4
Sob/ o/as/tro/ mu/do = 5
Ba/ten/do_as/ a/sas = 4
Pe/la/noi/te/ ca/la/da = 5
Vê-(e)m/ em/ ban/dos = 4
Com/ pés/de/ ve/lu/do = 5
Chu/par/ o/ san/gue = 4
Fres/co/ da/ ma/na/da = 5
77 O único verso de 3 sílabas métricas consta na primeira estrofe, no quarto verso: “Vêm em bandos”. No
caso, a palavra “vêm” é prolongada e dá o efeito sonoro de uma sílaba a mais, totalizando 4 sílabas métricas
nesse verso.
146
A segunda oitava, ao escandir levando em consideração apenas o poema, teremos
4-5-4-6-5-5-5-5. Ao analisar a canção e o efeito sonoro de Zeca Afonso, teremos uma
ligação entre os versos 3 e 4, e ainda, uma omissão da segunda sílaba dos versos 5, 6 e 7,
como no esquema a seguir:
Se_al/guém/se_en/ga/na = 4
Com/ seu/ ar/ si/su/do = 5
E/ lhes/fran/que/ia = 4
As/ por/tas/ à/che/ga/da = 6
E/les/co/mem/ tu/do=5
E/les/co/mem/ tu/do= 5
E/les/co/mem/ tu/do = 5
E/ não/ dei/xam/ na/da = 5
Se_al/guém/se_en/ga/na = 4
Com/ seu/ ar/ si/su/do = 5
E/ lhes/fran/que/ia_= 4
_As/ por/tas/ à/che/ga/da = 5
E/les/co/mem/ tu/do = 4
E/les/co/mem/ tu/do = 4
E/les/co/mem/ tu/do = 4
E/ não/ dei/xam/ na/da = 5
O restante do poema também segue a métrica 4/5/4/5/4/5/4/5 (com alguns versos
sendo respeitados conforme a interpretação da canção) e o esquema rítmico é variável,
podendo conter versos com diferentes sílabas acentuadas, sendo 1 e 4; 2 e 4 ou 2 e 5; 3 e
5; 1, 3 e 5. Os versos são regulares, apresentando rimas em toda a canção, especialmente
nos versos pares: “mudo”, “calada”, “veludo”, “manada” e “sisudo”, “chegada”, “tudo”,
“nada”.
Para começar o sistema interpretativo da canção, repara-se que há a descrição de
pelo menos três aspectos para ressaltar: o cenário (ambiente), os vampiros, e os vencidos.
Segundo a letra, o cenário está bastante favorável aos vampiros, pois fazem parte de um
grupo que está acima por ser mais poderoso que o restante:
Cenário Vampiros Vencidos
Superior:
Céu cinzento
Astro mudo
Noite calada
Noite abafada
Quem são:
Mordomos do Universo
Senhores a força
Mandadores sem lei
Quem são:
Manada
Vítimas dum credo
147
Geral:
A toda a parte
Inferior:
No chão do medo
O que fazem:
Batem as asas
Vem em bandos
Chupam o sangue
Comem tudo e não deixam nada
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
O que fazem:
Gritam
Jazem nos fossos
Como claramente diz a letra, há a comparação metafórica entre “vampiros” e
“governo” mostrando o cenário sombrio que Portugal estava vivendo naquela época –
assim como também há outra metáfora entre “manada” e “população”. A descrição do
ambiente como “céu cinzento” traz a ideia do Estado Novo que com seus métodos de
repressão e punição, amordaçava toda a população, a qual, por medo, seguia inerte e
passiva, sem confrontar o poderoso regime. Neste aspecto de silenciar a população, a letra
utiliza termos como “noite calada”, “astro mudo” e “noite abafada” para acentuar as
características do regime autoritário – personificando os substantivos “noite” e “astro”,
ao atribuir os adjetivos “calada” e “abafada” para o primeiro e “mudo” para o segundo.
Os verbos que se aplicam a cada função também são relevantes: enquanto os vampiros
voam, se alimentam, bebem e dançam, a manada (o povo) grita e morre. Essa discrepância
entre as funções, e a dominação do regime frente ao país inerte e sem reação, pode ser
vista também na ênfase ao falar do opressor, dando pouco espaço para o oprimido, como
se pode ver na tabela abaixo:
Estrofe A mensagem
1
Ênfase no opressor = recursos utilizados pelo regime de silenciar
a população: polícia repressora PIDE – DGS
Oprimido = manada: os recursos financeiros que deveriam ser
destinados à população sofriam com a “má administração” do
governo, e mesmo com o aumento de impostos, o povo não via
148
melhoria na qualidade dos serviços públicos. Além disso, a partir
de 1961, com o orçamento de 40% sendo destinado à Guerra
Colonial, grande parte da produção dos trabalhadores via seu
lucro sendo “sugado” pelo regime.
2
Continua a ênfase no opressor, insistindo na imagem da polícia
opressora do regime, que podia prender qualquer um que se
posicionasse contra o governo. Volta a enfatizar que o governo
continua “roubando” o dinheiro que pertencia ao povo, com a
antítese revelada no verso “eles comem tudo e não deixam nada”
3
Ênfase no opressor, na polícia que está por toda a parte, e o fato
de dizimar a vida daqueles que lutavam contra a opressão. Ainda
realça a brutalidade do regime, e a falta de compaixão e remorso
ao cantar: “mas nada os prende às vidas acabadas”.
4 Ênfase no opressor, e no poder que detém. Além disso, revela a
satisfação e o prazer que demonstram ao usufruir de tudo isso.
5
Pela primeira vez, destaca-se o oprimido e a luta que ele trava (e
perde) contra o opressor, apesar de mostrar, ao fim da estrofe, que
os oprimidos continuam lutando, esperançosos: “e não se esgota o
sangue da manada”.
Ressalta-se esse predomínio que os opressores têm no poema, mostrando a sua
autoridade, e seu caráter austero e sombrio para com os dominados, que seria toda a
população portuguesa, vítima desse regime abusivo. Na mesma esfera, visto que essa
canção foi composta no início do período da Guerra Colonial, pode-se atribuir esse
conflito gerado no poema entre colonizador e colonizado; no caso, Portugal sendo o
opressor, os vampiros, e as províncias ultramarinas seriam os oprimidos, a manada, a
vítima desses vampiros. Portugal, como colonizador, explorava as províncias
ultramarinas, retirando-lhes as riquezas, deixando-as sem “nada”, sem recursos
financeiros e sem bens para a estruturação de suas terras. Assim, teremos:
Vampiros = Estado Novo, PIDE – Portugal
Manada = povo, vítimas – províncias ultramarinas
A seguir, o gráfico mostra a posição que se encontra o opressor e o oprimido de
acordo com o poema, e vemos claramente essa guerra entre o superior e o inferior.
149
Simbolicamente, a figura “vampiros” traz essa dialética entre “perseguidor versus
perseguido”; “devorador versus devorado”, como o poema levanta. O triângulo procura
ilustrar a disposição dos vampiros, voando num céu cinzento, já pronto para atacar mais
uma vítima; enquanto as vítimas, no chão sem defesa, não resistem a mais um ataque,
tornando-se mais uma vítima do regime. O triângulo dá a ideia da quantidade de pessoas
existentes em cada um dos grupos: mesmo estando em número inferior, o governo utiliza-
se de armas e de ferramentas capazes de fazer o regime perdurar e vencer os oprimidos;
assim como Portugal sendo mais poderoso que as colônias ultramarinas, conseguia fazer
com que elas ainda estivessem submissas ao colonizador.
3.3 MENINO DO BAIRRO NEGRO
Outra canção de Zeca Afonso que também teve uma dimensão por falar da
realidade do país foi Menino do Bairro Negro. Lançada em 1963, como parte do disco
Baladas de Coimbra – mesmo álbum em que foi gravada a canção Vampiros, essa canção
tem grande importância pelo fato de ter sido praticamente aquela que marcou sua
‘ruptura’ com o ‘fado tradicional’, e traz características comuns das canções de
resistência: a desigualdade e esperança. Ao mesmo tempo em que há uma indignação
quanto ao momento presente, a esperança serve como um alento para a população e
principalmente para uma nova geração que está por vir, mostrando na canção, as crianças
(“meninos”) como o sujeito principal:
Opressor Céu Cinzento (Vampiros)
Oprimido Chão do Medo
Fosso
150
Menino do Bairro Negro
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Virá também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Zeca Afonso revela78 que uma das inspirações para o refrão dessa canção foi uma
das obras do brasileiro Josué de Castro, “Geopolítica da Fome”, lançada em 1951, que
trata sobre a questão da alimentação e desigualdade no mundo. Ele ressalta que o adjetivo
“negro” descrito no refrão em “Negro Bairro Negro” não tem relação com a cor da pele
dos meninos, mas sim com a condição deles de ‘exploração’, vistos na obra de Josué de
Castro. O “Bairro” se refere a um dos bairros da Ribeira, região típica da cidade do Porto,
local em que Zeca Afonso costumava ir para visitar alguns de seus amigos – e a primeira
vez que foi à cidade, chegou à noite, e ficou surpreso ao ver a dura realidade e a
desigualdade que havia no local e em seu país.
O início e o término da canção são marcados pelos sons de pássaros que dão a
impressão de liberdade e condizem com a vida dos “meninos” que vão “correndo, ver o
sol chegar”. No restante da música, o som do violão se faz presente, sempre
acompanhando a voz de Zeca Afonso. Nessa canção também se apresentam outros
elementos da natureza, tais como o sol, o mar e a terra.
A canção possui onze quartetos, dos quais quatro são repetição de estrofes
anteriores, e a maioria dos versos são classificados como redondilha maior, especialmente
78 Como visto no website da Associação José Afonso: http://www.aja.pt/verso-dos-versos/
151
os dois primeiros versos de cada estrofe, ao passo que o refrão é intercalado em redondilha
menor e tetrassilábico. As rimas são alternadas e cada estrofe contém terminações
diferentes – nove rimas diferentes no total – apresentando assim, uma grande variação no
esquema sonoro da canção. O poema, mesmo contento onze estrofes e divisão métrica
diferentes, apresenta uma simetria em relação ao seu formato, como podemos ver exposto
abaixo, mostrando a ordem das estrofes, começando pela primeira em azul e seguindo
abaixo, obedecendo a ordem das setas:
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar (2x)
Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz
Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti
Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver
Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego
Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
A quadra mais relevante do poema é a primeira, pois há a repetição dela na sexta
e décima-primeira estrofes, sendo o início, o meio e o término da canção, como ilustrado
em azul. Os versos dessas estrofes são heptassílabos (redondilha maior) e pentassílabos
(redondilha menor), e as rimas intercaladas (ABAB). Ainda em relação a essas estrofes,
há a presença de uma rima rica (“mar”, “chegar”) e pobre (“nascendo”, “correndo”) e o
substantivo mais importante é o “sol”, que revela a chegada de um novo dia, e a alegria
com que as crianças veem a chegada desse novo ciclo. Esse recomeço pode revelar uma
esperança, uma ansiedade por dias melhores sendo descritos na imagem do sol e também
dos meninos (crianças), que podem revelar uma nova geração, uma geração que traz uma
mudança para a humanidade. Ainda há a presença de dois verbos no imperativo (“olha”,
152
“anda”, do português europeu), e pode apresentar uma ‘ordem’ ao ouvinte, aos adultos:
“olha o sol que nasce”, “anda a ver o mar”.
As segunda, terceira, quinta, sétima, oitava e décima estrofes são equivalentes,
sendo os dois primeiros versos classificados como redondilha maior; os terceiros versos
são hexassílabos e os quartos e últimos versos são tetrassilábicos. As rimas são todas
intercaladas, com exceção da oitava quadra, sendo ABBB.
Já o refrão, apresenta versos pentassilábicos (redondilha menor) e tetrassilábicos,
havendo uma intercalação entre eles. Esse refrão é caracterizado pelas repetições dos
adjetivos “negro”, do substantivo “bairro” e do advérbio de negação “não”, acentuando
uma situação cíclica e sem uma aparente mudança, sendo evidenciado também pelos
verbos no tempo presente.
De acordo com o esquema a seguir, o menino e a (falta de) condição dele são
vistos como a mensagem central do poema:
Presente Futuro
Atmosfera Menino Esperança
Sol nascendo, chegando
Não há pão
Não há sossego
Meninos correndo
Menino sem condição
Irmão de todos os nus –
todos são iguais, porém, a
desigualdade presente na
terra faz com que alguns
tenham mais que outros)
Menino do mal trajar
Menino pobre (é) o teu lar
(elipse)
Tira os olhos do chão, vem
ver a luz
Um novo dia vem
Quem souber cantar virá
também
Há de um dia cantar esta
canção
Um dia hás de aprender
Toda a terra sorri
O poema reforça a ideia da desigualdade perante os homens, mas traz a esperança
de que, um dia, esses meninos conseguirão ser felizes, visto que o ambiente se apresenta
na canção mostrando ‘esperança’: o sol nasce para todos, a terra sorri [prosopopeia], e
por isso, um dia, os meninos haverão de sorrir e cantar também. O poema enfatiza que o
153
lugar é um bairro (que sabemos por Zeca Afonso que ele se refere a um bairro situado no
Porto), porém pode ter relação com qualquer lugar do mundo em que a desigualdade
esteja presente, cabendo, dessa forma, uma crítica ao problema social do mundo em geral
– inclusive de Portugal. Essa desigualdade faz com que falte o “pão” necessário,
referindo-se metonimicamente a qualquer tipo de alimentação que deveria ser adequada
para todas. No restante do refrão “onde não há pão/não há sossego” cabem duas leituras:
a primeira, sem a presença do pronome relativo “onde” na frase “não há sossego”, como
escrito abaixo:
“onde não há pão não há sossego”,
Com essa leitura o local representado pelo “bairro” revela a impossibilidade de
haver paz e tranquilidade uma vez que não são todas as pessoas que têm uma chance de
ter alimentação adequada. Na segunda leitura, – caso tenha ocorrido um zeugma com a
omissão do “onde”, ficaria assim descrito:
“Onde não há pão,
“(Onde) não há sossego”
No caso acima, o “bairro” apresenta dois grandes problemas: além de não haver
alimentação adequada para todos, também não há “paz”, podendo fazer alusão à Guerra
Colonial, já iniciada nesse período, indicando a falta de paz das famílias ao saber que seus
filhos ou maridos estariam combatendo nas províncias ultramarinas.
Ao mesmo tempo em que o poema apresenta as dificuldades de Portugal – e do
mundo por extensão - ele também mostra uma forma de se ter esperança nos versos em
que fala da natureza e da necessidade de os homens tomarem alguma providência, descrita
na “condição”: “Se não é fúria a razão; se toda a gente quiser” e “Se até dá gosto cantar;
se toda a terra sorri”. O poema também pode ser uma chamada para que todos “cantem”
contra a injustiça, e que os cidadãos possam utilizar suas vozes como arma contra
governos e regimes opressores, como se percebe nos versos: “queira ou não queira o
papão, há de um dia cantar esta canção”. Aqui o “papão” é uma metonímia de “governo”
ou daqueles que se enriquecem às custas do outro, provocando uma enorme desigualdade
econômica e social no país. O poema contém uma anáfora ao iniciar, pelo menos por
quatro vezes, um verso com a conjunção “se”: Se até dá gosto cantar/ se toda a terra
sorri; se não é fúria a razão/ se toda a gente quiser, mostrando que depende da população
uma mudança em relação à realidade apresentada no poema.
154
Embora o poema fale de um espaço e momento específicos, ele dá margens para
ser utilizado em contextos e épocas distintas, sendo, portanto, tão atual e presente nos dias
de hoje. Pensando à época em que o poema foi feito, durante a Guerra Colonial, o “bairro”
também poderia ser interpretado como uma das províncias ultramarinas, atribuindo toda
a desigualdade em que lá existia (e ainda existe) em relação a outros países desenvolvidos.
3.4 GRÂNDOLA VILA MORENA
Grândola Vila Morena, a canção-senha da Revolução dos Cravos, é a mais
importante da história da música revolucionária portuguesa, valor que lhe é atribuído não
somente pelo fato de ter sido escolhida como senha da revolução, mas também pela sua
força na atualidade, sendo reconhecida por sua atemporalidade. Desde a Revolução dos
Cravos até a presente data, essa é a canção de Zeca Afonso que mais versões apresenta,
sendo gravada e interpretada em várias partes do mundo, possuindo, ao todo, mais de
vinte versões em idiomas diferentes.79
Além dessa ampla divulgação à esfera mundial, e com duas diferentes versões em
português, essa força também pôde ser vista em alguns momentos em que essa canção foi
lembrada pelo público também na atualidade, especialmente com a crise europeia, após
o início do século XXI. Nessa ocasião, insatisfeitos com algumas medidas tomadas pelo
governo, especialmente em 2012, um grupo de jovens portugueses criaram o movimento
Que Se Lixe a Troika para protestar contra a recessão e o desemprego. E foi este grupo
que entoou a canção Grândola Vila Morena durante uma sessão plenária ocorrida em 15
de fevereiro de 2013, interrompendo o discurso do então primeiro ministro Pedro Passos
Coelho, com transmissão ao vivo pela ARTV. Após alguns minutos, os jovens foram
retirados e a sessão foi retomada. Outra situação marcante ocorreu na mesma época,
durante uma onda de protestos da mesma natureza na Espanha, em que uma orquestra
sinfônica tocou a canção de Zeca Afonso como protesto contra o governo espanhol na
Praça do Solem Madrid. Já em 2016, logo após os atentados ocorridos em Bruxelas, no
dia 22 de março, um coral belga também apresentou a canção em praça pública, mas dessa
vez em repúdio às ações terroristas do grupo do Estado Islâmico (EI), demandando, com
79 No site da Associação José Afonso encontra-se reunido pelo menos vinte e duas versões gravadas da
Grândola Vila Morena, em idiomas diferentes, e até mesmo versões que são apenas orquestradas.
Disponível em: http://www.aja.pt/20-versoes-para-grandola-vila-morena/
155
a canção, ideais de igualdade e liberdade, que têm sido perdidos ultimamente.80 Em
situações diversas, e em épocas diferentes, podemos perceber a força da canção por conter
expressões e valores gerais e sempre almejados. Além de seu caráter atemporal, destaca-
se também que a mensagem da canção pode ser considerada universal. Num ensaio de
Engelmayer (1999) é atribuída a canção uma ideia de um “futuro utópico”.
Esse valor atribuído à canção também lhe foi dado logo nas primeiras vezes em
que foi apresentada ao público, em 1972, contribuindo para seu forte poder de
mobilização, apesar da aparente singeleza de seus versos. A canção foi escrita em 1964,
por ocasião da visita de Zeca Afonso à cidade de Grândola, composta, preliminarmente,
três estrofes, tendo sido a última delas alterada antes de ser gravada em disco em 1971:
Original
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Capital da cortesia
Não se teme de oferecer
Quem for a Grândola um dia
Muita coisa há de trazer
Gravação em 1971
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
80 Tais informações estão registradas em sites de notícias, e algumas delas, com vídeos do ocorrido
disponíveis no youtube: quanto ao primeiro episódio aqui descrito, sobre a interrupção da fala do primeiro-
ministro: http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/grandola-vila-morena-interrompe-passos-coelho-no-
parlamento=f712989. Sobre a canção entoada em Madrid, na Espanha, a notícia está disponível em
http://www.tsf.pt/internacional/europa/interior/grandola-vila-morena-com-sotaque-castelhano-video-
3057894.html. E por último, sobre o coral belga:
http://www.cmjornal.xl.pt/mundo/detalhe/_grandola_vila_morenaem_bruxelas.html
156
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Originalmente o poema, feito especialmente como uma forma de gratidão pelo
acolhimento e receptividade dos habitantes de Grândola para com o cantor, seguiu uma
forma simples, com três quartetos heptassílabos (redondilha maior). Esse tipo de versos,
sob a ótica da métrica, é considerado simples por não precisar ter sílabas acentuadas
simetricamente, o que estimula sua utilização em canções populares, como é o caso dessa
canção, e esse estilo foi bastante utilizado em poemas de diversas épocas, tanto em
Portugal como Brasil.
As rimas são alternadas em ABAB CBAB DEDE (com mudança de rima em
apenas dois versos da segunda estrofe), com destaque para o fato de que nenhuma palavra
no poema rima com amigo. Em uma época em que o verso livre já era bastante utilizado,
inclusive por Zeca Afonso, em muitas de suas canções utilizava a métrica tradicional,
como foi no caso da Grândola, e, em poucas outras, apresentava versos livres, com
poucas rimas. Nesta canção, especificamente, o uso de versos com rimas e metrificados,
assim como outras da mesma época, pode revelar uma necessidade do autor de se
enquadrar em um “regime” fechado, em uma sociedade que não era livre – tudo devia ser
rigorosamente respeitado.
Antes da gravação da canção em 1971, ela tinha sido cantada uma vez, já com a
nova estrofe no final, porém sem os arranjos feitos para a gravação por José Mário
Branco. Como a canção retrata uma cidade na região do Alentejo, José Mário Branco
decidiu moldá-la de acordo com as características de uma canção alentejana, como a
157
repetição com inversão de estrofes – para ajudar na memorização – o ritmo lento, o coro
de vozes e os passos produzidos pelos cantores em cima da pedra britada.81O coro de
vozes é uma característica marcante no cante alentejano, por sua origem ser de pessoas
do trabalho agrícola, em que um dos trabalhadores costumava cantar uma parte e em
seguida o restante do grupo entrava com suas vozes, formando um coro polifônico.
Ressalta-se que, claramente, não havia qualquer acompanhamento instrumental,
utilizando apenas de suas vozes para entoar as canções, e a respeito do coro, as vozes
eram inteiramente masculinas ou inteiramente femininas – não havia a mistura entre eles
(NAZARÉ, 1979). Seguindo essa tradição, José Mário Branco colocou a canção
Grândola Vila Morena nos moldes do Cante Alentejano, visto que a cidade de Grândola
está situada na região do Baixo Alentejo:
[a canção] tinha aquela estrutura do modo alentejano, o que foi feito foi
um trabalho de estrutura só da canção a partir do material que Zeca
trazia, [...]. O nosso trabalho por proposta minha foi transformar a
canção com a estrutura de modo alentejano, ou seja, com, digamos, a
junção de vozes diferentes. [...] E por outro lado, a estrutura da letra,
fazer aquela inversão das quadras que é comum nas modas alentejanas.
E outro elemento que foi acrescentado também, por proposta minha, foi
o elemento dos passos, que acompanhou o que se ouve na canção.
(BRANCO, 2012, transcrição nossa)82
Sobre a inversão das estrofes, pode-se perceber na letra da canção gravada, que a
segunda, a quarta e a sexta estrofes foram repetições dos versos anteriores, porém com
ordens aleatórias. As rimas continuam em sua maioria alternadas em ABAB BABA
CBAB BABA DBDB, e a última estrofe interpolada em BDDB. Segue abaixo o esquema
81 O Cante Alentejano pode ter tido suas origens em músicas gregorianas e eclesiásticas ou também ter tido
influência árabe, visto que a região do Alentejo foi ocupada pelos mouros por cinco séculos. Essa região é
vasta e está situada entre o Tejo e o Algarve, é predominantemente rural, e com uma população com uma
quantidade bem limitada. Este canto tem como principal característica o canto polifônico, ou seja, há um
coro de vozes sendo guiado por um cantor central. Geralmente não há instrumentos e os versos costumam
ser invertidos nas estrofes seguintes, usando o último verso como o primeiro do seguinte, para facilitar a
memorização. Os temas mais utilizados no cantar alentejano são: vida rural, natureza, amor, religião e
mudanças no contexto social e cultural. Esse tipo de música é entoado desde o início do século XX durante
a lavoura nos campos e os operários costumavam cantar em coro enquanto trabalhavam, e esse ato ajudava
uns aos outros em termos de solidariedade, e serviam de estímulo, pois conseguiam passar pelo sofrimento
físico (GUERREIRO; LEMAÎTRE, 2014). Ressalta-se que durante o desenvolvimento dessa pesquisa, o
Cante Alentejano foi inserido como patrimônio Cultural da UNESCO, em novembro de 2014, fato
mencionado também pelo Francisco Fanhais, durante entrevista concedida à pesquisadora em dezembro de
2014. Registrado no website na UNESCO, disponível em: http://www.unesco.org/culture/ich/en/RL/cante-
alentejano-polyphonic-singing-from-alentejo-southern-portugal-01007
82 Entrevista de José Mário Branco à RTP, divulgado em 10 de maio de 2012. Disponível [em áudio] em:
http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-mario-branco-recorda-composicao-de-grandola-vila-
morena_a552408. Acesso em 10 de março de 2016.
158
utilizado na canção em cada uma das estrofes, com uma numeração correspondente em
cada verso para facilitar na visualização da ordem da estrofe inversa:
Grândola, vila morena 1
Terra da fraternidade 2
O povo é quem mais ordena 3
Dentro de ti, ó cidade 4
4 Dentro de ti, ó cidade
3 O povo é quem mais ordena
2 Terra da fraternidade
1 Grândola, vila morena
Ao cantar a segunda estrofe, os versos são exatamente os mesmos da primeira,
porém com a ordem distinta. Nesse caso, a segunda estrofe é precisamente inversa à
primeira, dando uma ideia de “espelho”, e nenhum verso igual (de nenhuma outra estrofe)
se encontra numa mesma posição, como se vê no esquema a seguir:
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade 1
Grândola, vila morena 2
Terra da fraternidade 3
3 Terra da fraternidade
2 Grândola, vila morena
1 Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira 1
Que já não sabia a idade 2
Jurei ter por companheira 3
Grândola a tua vontade 4
4 Grândola a tua vontade
3 Jurei ter por companheira
1 À sombra duma azinheira
2 Que já não sabia a idade
Seguindo a tradição alentejana, os últimos versos do primeiro, terceiro e quinto
quartetos se transformaram em primeiros versos da segunda, quarta e sexta estrofes
respectivamente, e, como já mencionado, sem repetir a posição.
O verso Grândola Vila Morena, por exemplo, aparece nas quatro primeiras
estrofes nas seguintes posições: 1, 4, 3, 2; e o mesmo ocorre com o verso Terra da
Fraternidade, que aparece nas posições 2, 3, 4, 1 também das quatro primeiras estrofes.
Com essa repetição em ordens aleatórias, a impressão é de que a canção não tem uma
ordem correta, podendo os versos serem utilizados em ordens aleatórias, sem indicação
de começo, meio e fim, mostrando um movimento cíclico. Nessa mesma esfera, este
movimento cíclico caracteriza essa canção considerada atemporal, pois com teor político,
que prega a “liberdade, igualdade e fraternidade” – ideais da Revolução Francesa, valores
contrários aos do regime – mostra claramente o clamor do povo pela democracia e pelos
mesmos direitos, princípios que são pregados sempre em qualquer parte do mundo, em
159
qualquer época, assim como vimos recentemente em lugares como Espanha e Bélgica,
além de Portugal. E pelo fato de os versos poderem ser utilizados em qualquer ordem –
com exceção dos versos A sombra duma azinheira/ Que já não sabia a idade – a letra da
canção torna-se difícil de ser memorizada na ordem correta da gravação, como
mencionado por cantores em algumas obras, pois qualquer uma delas confere sentido ao
que foi dito no verso anterior. Ao mesmo tempo, essa dificuldade com o conteúdo da
canção é superada pela escolha da estrutura que facilita sua memorização.
Ressalta-se que a letra dessa canção não foi proibida pelo regime, talvez pela falta
de compreensão da ideia real da mensagem, e, consequentemente, a divulgação da letra e
o valor que ela traz tiveram uma dimensão ainda maior, por poder ser entoada entre a
população, mesmo partindo de um cantor perseguido pela PIDE.
A canção foi gravada a quatro vozes - Zeca Afonso, Francisco Fanhais, José Mário
Branco e Carlos Correia - e todos fizeram o movimento dos passos que davam o ritmo à
canção, sendo ora mais fracos, ora mais fortes. Esses passos, como diz José Mário Branco
numa entrevista à RTP83, não era alusão à marcha militar, mas uma simulação dos passos
que os alentejanos dão quando caminham abraçados, cantando – por isso, também, os
quatro cantores fizeram esses passos abraçados, ditando o ritmo da canção. Ao se
aproximar a entrada da voz, os passos ficam mais fortes, e, em seguida, voltam a
enfraquecer. A gravação da voz de Zeca Afonso, ocorrida posteriormente, foi feita em
cima dos passos gravados, e o cantor começa a canção sozinho. Já o coro entra a partir da
segunda estrofe, no segundo verso: O povo é quem mais ordena, procurando representar,
justamente, a força que o povo tem sobre o poder, ordenando a democracia. O coro
somente canta os segundos, terceiros e quartos versos das segunda, quarta, e sexta estrofes
– das que já são a repetição da anterior.
A canção pretende mostrar que os ideais imaginados para Portugal seriam os
mesmos encontrados na cidade de Grândola, numa espécie de relação metonímica, da
parte pelo todo. A canção serve como um apelo da população para que tais características
possam ser estendidas ao país todo – especialmente por ver que naquela cidade havia
pessoas engajadas na luta contra o regime. A canção é um apelo à igualdade para todos
83 Entrevista de José Mário Branco à RTP, em 2012. Disponível em: http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-
mario-branco-recorda-composicao-de-grandola-vila-morena_a552408. Acesso em fevereiro de 2016.
160
os portugueses e à união. A música é utilizada como uma crítica ao governo, daquilo que
se gostaria de se ver em Portugal, mas que ainda não existia:
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena (democracia, liberdade)
Grândola
Em cada esquina um amigo (confiança nas pessoas)
Em cada rosto, igualdade
Não há fraternidade, há a maldade, a brutalidade
Portugal Não há liberdade, há a censura, a ditadura
Não há confiança: há a desconfiança por parte do governo
Não há igualdade, e sim a desarmonia, a desigualdade.
Substituindo-se Grândola por Portugal, como a referida metonímia, tem-se:
Em Portugal
O povo é quem mais ordena:
(O que o povo ordena? O que o povo quer ver?)
-Terra da fraternidade (um lugar harmonioso, livre)
-Em cada esquina um amigo (um lugar no qual se pode confiar nas pessoas, fazendo
alusão à desconfiança que os portugueses – e, principalmente, os cantores – sentiam no
regime, naqueles que estão a favor da censura e que os podem delatar à PIDE, e também
à própria PIDE que estava em todo lugar).
161
-Em cada rosto igualdade (um lugar no qual todas as pessoas sejam iguais e em que o
povo possa ter os direitos comuns de cidadãos, e que tenham voz e poder para fazer suas
mudanças, diretos existentes em um país democrático).
Nos dois últimos versos acima há uma elipse, a omissão do verbo “haver” ou “ver”, mas
que não interfere na significação. Poderiam estar assim escritos:
Em cada esquina há um amigo
Em cada rosto há igualdade
Do ponto de vista rítmico, mesmo que houvesse a palavra “há”, a contagem silábica não
mudaria nos versos; embora soaria estranho no segundo verso devido à sucessão de
diferentes sons vocálicos:
Em/ca/da es/qui/na_há_um/ a/mi/go
Em/ca/da/ros/to_há_i/gual/da/de
Para manter um paralelismo sintático, o cantautor optou por deixar sem o verbo nos dois
versos.
Nas duas últimas estrofes, o poema revela a vontade do povo português de ser
como Grândola, de ter como ideal aquilo que é a vontade de Grândola. O povo admite ter
como “ideal, companheira”, a vontade de Grândola, todos esses ideais descritos no
decorrer do poema. A palavra “azinheira”, que aparece no primeiro verso da quinta quadra
e se repete no penúltimo verso do poema, refere-se a uma árvore típica da região do
Alentejo e de alguns lugares na Europa e na África, que pode ser baixa de estatura, mas
por ser muitas vezes bem frondosa, dispõe de uma sombra, que pode dar conotações
diferentes.
Por um lado, a azinheira pode denotar o regime, no qual Portugal já vivia há muito
tempo, e as pessoas estariam abaixo dessa sombra “que já não sabia a idade”, revelando
uma duração muito longa do regime. Essa ideia é reforçada com a definição simbológica
de azinheira encontrada em Cirlot (1984), pois, de acordo com a mitologia romana, essa
era a árvore que consagrava Júpiter e Cibele, e era o símbolo da força e duração – tal
qual se mostrava o regime. Ao mesmo tempo, a “azinheira” pode trazer o sentido de
“liberdade”, posto que árvore, simbolicamente traz a ideia de vida, crescimento de alguém
ou de um povo – e, nesse contexto, poderia revelar o crescimento do povo português como
um povo unido, e que essa união seria capaz de trazer uma esperança maior para a
população, e a liberdade tão sonhada frente ao regime opressor. Observe-se, ainda, que
162
azinheira é uma árvore símbolo de Fátima: foi justamente nela onde ocorreram, segundo
a tradição do catolicismo português, as aparições de Nossa Senhora de Fátima aos três
pastorinhos, em 1917. As crianças rezavam o terço à sombra de uma azinheira, de onde
esperaram e viram as seis aparições, uma vez por mês – e tal árvore é mantida até hoje na
cidade de Fátima, como símbolo sagrado do local. Associando a “azinheira” de Zeca
Afonso à de Fátima, pode-se perceber que em ambas, aqueles que estão à sombra dessa
azinheira esperam o milagre – as crianças de uma aparição da Nossa Senhora e de seus
milagres, e o povo português, que espera o milagre do término do regime opressor.
3.5 MENINA DOS OLHOS TRISTES
A canção Menina dos Olhos Tristes foi escrita pelo poeta Reinaldo Ferreira84,
musicada e interpretada por Zeca Afonso85 e lançada em 1969. A canção é muito
melódica, marcadamente sentimental, sendo acompanhada apenas pelo violão, e critica a
Guerra Colonial, que ceifava a vida de milhares de jovens que lutaram em Angola, Guiné-
Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974:
Menina dos olhos tristes
o que tanto a faz chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar
84 Reinaldo Ferreira nasceu em 1922, em Barcelona (Espanha) e viveu em Moçambique. Sua poesia só
ficou conhecida após a sua morte, ocorrida em 1959. 85 O cantor Adriano Correia de Oliveira também interpretou a canção em 1964, antes, portanto de Zeca
Afonso, podendo ser considerada a primeira versão. Como foi primeiramente musicada por Zeca Afonso,
Adriano Correia de Oliveira teria pedido ao cantor a permissão para gravá-la.
163
A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
Do outro do mar
O soldadinho já volta
está quase mesmo a chegar
Vem numa caixa de pinho
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar
Do ponto de vista formal, a composição obedece ao mesmo padrão da divisão
silábica poética tradicional, com poucas exceções: no último verso das quadras 1 a 4, não
há a junção das sílabas “do” e “outro” na frase “do outro lado do mar”, para que a métrica
permaneça a mesma da dos versos anteriores, sendo todos eles caracterizados como
redondilha maior. O oposto ocorre na quinta estrofe, também no último verso: “está
quase mesmo a chegar”, em que a palavra “está” é contraída para igualar a quantidade de
sílabas, formando apenas uma sílaba com a palavra “stá”. Todos os versos pares terminam
com a última sílaba sendo forte, por serem verbos no infinitivo (todos terminados em -
AR) ou monossílabos tônicos (mar), sendo a única rima recorrente no texto inteiro – que
são classificadas como rima rica, visto que há a rima de um substantivo com um verbo;
outra rima encontrada nessa canção ocorre nos substantivos ‘soldadinho e pinho’, no
último verso.
O aspecto sonoro dessa canção é importante e merece atenção especial antes de
proceder ao comentário sobre a letra: a canção tem um ritmo lento, uma melodia
sentimental, melancólica, e até a quinta estrofe as notas obedecem a esse padrão que foi
imposto logo na primeira quadra. Ao término das estrofes 2, 4 e 6, na versão cantada por
Zeca Afonso, há um tom de lamentação (“huuum”), cantado juntamente com o violão,
instrumento bem marcado em todos os versos até a penúltima estrofe. As notas também
seguem um mesmo tom, não sendo tão agudas e nem tão graves, até a chegada da última
estrofe, quando se atinge o clímax com o final da narrativa que há no poema e a melodia
é alterada, mostrando uma “morbidez na vocalização de José Afonso”86 ao anunciar: “O
soldadinho já volta”
Assim, ao fim da quinta estrofe a expectativa do ouvinte é quebrada de duas
maneiras: a primeira delas, em relação ao som, deixando de se ouvir o violão, que não é
86 http://www.aja.pt/verso-dos-versos/
164
mais tocado entre os versos, como uma alusão ao luto, e com a subida do tom da nota,
que passa a ser mais aguda, nos versos “vem numa caixa de pinho, desta vez o
soldadinho”, além de serem tocados numa duração temporal maior que os versos das
estrofes anteriores. A segunda quebra de expectativa dá-se com relação ao conteúdo da
letra, por não mais manter a repetição ocorrida nas quadras anteriores, e pelo real
significado de o soldadinho “estar de volta do outro lado do mar”, agora morto, pois não
era esse o desfecho esperado pelo ouvinte e nem pela família.
Relativamente à letra destaca-se em cada estrofe a presença da palavra soldadinho
sendo o centro da mensagem, e também, outras personagens que fazem parte da família
do soldadinho enviado à guerra. Juntos (a menina, o senhor, a senhora e o amigo), todos
enfrentam a saudade e a dor de ter que conviver com a ausência do ente querido.
Em relação à escolha das palavras da canção, ressalta-se a preferência do
compositor pelo uso do diminutivo em “soldadinho”. Sabendo que muitos dos soldados
portugueses que iam à guerra estavam no auge da sua juventude, muitos com dezessete
ou dezoito anos, e inexperientes, eram obrigados a abdicar do convívio familiar, de seus
sonhos para lutar numa guerra que não lhes tinha apoio, nem lhes fazia qualquer sentido.
Além dos sonhos, os jovens deixavam para trás seus pais, namoradas e amigos, e os que
ficavam conviviam com a dor de ver alguém partir. Ao utilizar o diminutivo “soldadinho”,
além de enfatizar a juventude e a falta de experiência, ainda aumenta a compaixão por
parte de quem ouve a canção, atentando para uma das crueldades de se manter a guerra,
ao retirar do jovenzinho um futuro que lhes reservava. Ressalta-se que também o
compositor, Zeca Afonso, na altura do lançamento dessa canção, tinha em torno de
quarenta anos de idade, convivendo amigos bem mais jovens, como José Letria e
Francisco Fanhais, e a partir deles via como seria partir tão cedo, com tanta vida e
aspirações, e sentia-se penalizado e envolvido no lamento dessas vidas desperdiçadas.
As palavras escolhidas para caracterizar os entes dos soldadinhos que sofrem com
a ausência dele apontam que a situação não seria “temporária”, como nos versos “menina
dos olhos tristes” e “senhora de olhos cansados” – e não “menina com os olhos tristes”
ou “senhora com os olhos cansados”. O uso da preposição “de”, traz a ideia de algo
permanente – com o sofrimento que começou há tantos anos e se prolongará para o resto
da vida – pois aos jovens que morreram na guerra, a família carregará para sempre essa
dor – para os sobreviventes, com certeza, carregarão marcas físicas e psicológicas difíceis
de serem cicatrizadas.
165
Nas estrofes 1 a 4, nos dois últimos versos, o poema trabalha com uma repetição
que é reforçada pela negação: “O soldadinho não volta, do outro lado do mar”. Essa
repetição comunica uma história que não tem fim, e que se repete ano após ano (ao todo,
a Guerra Colonial durou treze anos). Além disso, a repetição também revela a longa
espera, por parte dos familiares, de notícias que nunca chegavam. A ausência dessas
informações podia ser para o bem, ou para o mal, pois a chegada de uma carta, por
exemplo, seria sinônimo de que a notícia poderia acabar com a esperança de qualquer um.
Já no penúltimo verso, em vez da repetição com a negação, no lugar no “não” há uma
ênfase no advérbio “já”, desvendando o incomum – confirmado pelo verso seguinte:
“desta vez o soldadinho”, mostrando a triste diferença em relação à rotina relatada nos
versos anteriores.
Esses dois últimos versos admitem múltiplas leituras: a) pode dar a ideia de uma
situação corriqueira, todos já sabem que o soldadinho “não volta”, e, por isso, as primeiras
estrofes já mostram o luto, pois expondo nas palavras utilizadas nos dois primeiros versos
de cada estrofe a tristeza e o choro dos familiares. Talvez por já saberem do desfecho e
esperarem a chegada do corpo do soldado – que podia voltar, ou não. Mas essa espera,
demonstrada nas estrofes, se refere à espera do corpo – talvez a certeza de que o
soldadinho realmente morreu em combate – e poder enterrar no seu país, de maneira
digna; b) As estrofes também podem revelar que a falta de notícias é angustiante para os
familiares – eles não sabem do desfecho, mas aguardam ansiosamente por notícias. Era
como se a família estivesse à espera todos os dias perto do mar, vendo os barcos que iam
e vinham das províncias ultramarinas, mas o soldadinho que tanto esperavam, não estava
no meio deles. Assim, com a última estrofe, indicando a volta do soldadinho, para as duas
interpretações há a quebra de expectativa: na primeira, o corpo realmente voltou e a
angustiante espera da família também acaba, podendo finalmente certificar de que o que
já sabiam, era a dura realidade. Na segunda hipótese, o desfecho se revela ainda mais
trágico, visto que havia uma esperança de que o soldado voltasse vivo da guerra, e não
em um “caixão”.
O termo “caixa de pinho” é utilizado como um “eufemismo”, no lugar da palavra
“caixão”, sendo uma maneira mais suave para “minimizar” a real expressão. Essa
expressão ainda colabora com a duração do verso da canção e ao mesmo tempo, com a
rima para “soldadinho”, sendo a única palavra da canção com essa terminação, mostrando
uma relação muito próxima entre eles.
166
Por meio do esquema abaixo, pode-se ver o destaque de cada estrofe e a razão da
tristeza de cada uma das pessoas. Em todas elas, o motivo é a ausência do soldadinho:
1 Menina Olhos tristes, de tanto
chorar
Soldadinho
Não volta
2 Senhor
Pensativo, cachimbo a
apagar
3 Senhora Olhos cansados, fatiga Já volta
4 Amigo
Triste, uma carta o fez
chorar Numa caixa de
pinho
5 Lua Viajante, vem informar
Temos na penúltima estrofe uma prosopopeia, com a personificação da “lua”,
assumindo o papel de “viajante”, “mensageira” e “informante”. Essa escolha pode ser
justificada pelo fato de ela ser um elemento único e onipresente e sendo viajante, fazendo-
se presente em vários lugares ao mesmo tempo, poderia ser a única que soubesse do
desfecho, ao acompanhar (mais ainda: ao guiar) os soldadinhos no triste regresso.
Simbolicamente, a lua, possuidora de quatro fases, assume ritmos biológicos: ao nascer,
crescer, decrescer e desaparecer, representando os ciclos da vida, do nascimento à morte
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006).
A escolha da lua no poema indica em que momento a ação se passa, pois, sendo à
noite, pode trazer a ideia de um tom sombrio, como se isso trouxesse desesperança,
tristeza e melancolia, confirmando os sentimentos demonstrados ao longo do poema.
A canção se encerra com outra negação, contida no advérbio “nunca”, também
relativo ao ‘soldadinho’, que tanto se refere ao tom de negação presente na canção inteira,
quanto à noção de temporalidade (em tempo algum, jamais): o soldadinho que “não volta
do outro lado do mar” também “nunca mais voltará ao mar”.
3.6 CANTAR DE EMIGRAÇÃO
Esta canção faz parte de um poema composto pela escritora galega Rosalía de
Castro (1837 - 1885), que faz referência à emigração ocorrida em Santiago de Compostela
em torno de 1880. Inicialmente em galego, Adriano Correia de Oliveira interpretou e
167
lançou a canção em 1970, no álbum Cantaremos. Adriano, juntamente com Zeca Afonso,
é um dos grandes nomes da Canção de Intervenção, e também sempre gravou letras de
sucesso. “Adriano foi responsável pela divulgação de muita da melhor poesia portuguesa”
(RAPOSO, 2014, p. 30), e nas palavras de Manuel Alegre, ele possuía uma voz “alegre e
triste, solidária e solitária, havia ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e
desamparo, festa e luto, amor e luta” (ALEGRE apud RAPOSO, 2014, p. 26).
A canção “Cantar de Emigração” em português está totalmente fiel à letra em
galego, também fazendo alusão à emigração em massa ocorrida especialmente a partir de
1960 em Portugal para outras terras da Europa, especialmente França. O poema retrata os
desafios que a emigração traz ao país, que além de perder homens trabalhadores, perdiam
também suas famílias, que ficavam desamparadas, sem a figura paterna para dar o suporte
à esposa e aos filhos. Esta canção foi lembrada pelo professor Pedro Calafate como uma
das canções que marcaram o período da Guerra Colonial, período de uma das maiores
emigrações ocorridas em Portugal – e o professor recorda que o período atual também
tem sofrido com as mesmas questões. Em galego, o poema contém cinco partes, e o
trecho utilizado na interpretação de Adriano Correia de Oliveira foi apenas a quinta e
última parte do poema original, como segue:
Pra Habana (v)87
Este vaise i aquel vaise,
E todos, todos se van,
Galicia, sin homes quedas
Que te poidan traballar
Tésen cambio, orfos e orfas
E campos de soledad.
E nais que non teñen fillos
E fillos que non tén pais
E tés corazóns que sufren
Longas ausências mortás
Viudas de vivos e mortos
Que ninguén consolará.
Cantar da Emigração
Este parte, aquele parte,
E todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens,
Que possam cortar teu pão
Tens em troca, órfãos e órfãs
Tens campos de solidão
Tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai
Coração, que tens e sofre
Longas ausências mortais
Viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará
A versão em português cantada pelo Adriano Correia de Oliveira tem o
acompanhamento de uma flauta transversal e uma viola, que são bem marcados durante
toda a canção, e especialmente a flauta, nessa canção, dá uma impressão de passar o
87 Retirado do website da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=139&p=38&o=r
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sofrimento das pessoas que se encontram sós, como descritos nas estrofes. A relação entre
a viola e a flauta está bem sincronizada, e ambos os instrumentos são tocados algumas
vezes sem o acompanhamento um do outro, havendo uma intercalação, dando a ideia de
diálogo entre eles.
Os versos são todos classificados como redondilha maior, e as rimas não seguem
uma sequência lógica, mas há muitas repetições presentes no poema que ajudam a manter
uma sonoridade regular. Se destacarmos apenas as rimas veremos “vão, pão, solidão e
coração” (em vermelho), que aparecem no segundo verso das duas primeiras estrofes, no
quarto verso da segunda estrofe, e ainda no primeiro verso da terceira estrofe. Já a
sequência “pai, mortais” segue a mesma sonoridade encontrada no quarto verso da
segunda estrofe e no segundo verso da terceira estrofe. O restante das palavras se repete,
mantendo a sonoridade estabelecida pelo poema como podemos ver em alguns dos
seguintes vocábulos, marcados no texto em azul: “parte”, “todos”, “órfãos e órfãs”,
“filhos”, “que não têm” “viúvas e vivos” “mortos – mortais”. Mesmo algumas das
palavras não sendo totalmente iguais, elas apresentam sons semelhantes.
Essa canção contém algumas figuras de linguagem que contribuem para destacar
a grave questão da emigração, e assim chamar a atenção do ouvinte para a escolha das
expressões que acentuam o problema. No segundo verso da primeira estrofe, ao dizer
“todos, todos”, além da aliteração, causada pela repetição da palavra, há uma hipérbole,
ao exagerar que “todos” os homens emigrariam. Galiza, nesse caso, seria uma
comparação metonímica de Portugal, já que estaria enfrentando o mesmo problema que
já foi enfrentado pela região galega. No último verso, o “pão” seria uma relação
metonímica com “alimento”, ou ainda “sustento” – já que aqueles homens que produzem
o alimento e, consequentemente, o sustento para os outros não estarão mais presentes.
Na segunda quadra, há uma anáfora, ao repetir, no início de cada verso a palavra
“tens”, para enfatizar o que ficaria nas terras vazias, ainda, há a omissão da palavra “tens”
no último verso, causando um zeugma, o que não prejudica no sentido, pois o verbo já
tinha sido utilizado três vezes anteriormente. Ainda pode-se dizer que há uma assonância,
ao conter muitas palavras com sons vocálicos parecidos – o “ã” ou “anasalado”, mesmo
entre aquelas que que não contribuem para a rima da canção: “órfãos”, “órfãs”,
“campos”, “solidão” “não”, e “mães”.
Na última estrofe, ocorre uma prosopopeia ao personificar o órgão “coração”,
comumente utilizado para mostrar o sentimento da pessoa em relação a alguma situação,
como podemos ver no verso “coração que [tens e] sofre longas ausências mortais”. No
169
terceiro verso, em “viúvas de vivos mortos” há uma aliteração, com a presença de
mesmos sons consonantais que chamam a atenção para o verso – no caso “viúvas de
vivos” – e anteriormente “mortais” com “mortos”. Ainda, há um paradoxo, ao chamar
“vivos” de “mortos”, pelo fato de os maridos não estarem presentes fisicamente.
Tantas repetições enfatizam a ameaça do problema da emigração, mostrando
uma ação corriqueira, e avisa a necessidade de se fazer algo para amenizar o problema.
O poema mostra a emigração forçada dos homens por questões da Guerra Colonial ou
financeiras, o que geraria maior problema para o país. Veremos estrofe a estrofe, como a
escolha das palavras, seja em galego ou em português, ajudam a desvendar desafios
enfrentados pela população.
Cenário: Essa época a agricultura ainda é a principal atividade econômica em Portugal, e a essa
altura muitos estão deixando seus trabalhos no campo para tentar vida mais rentável em outro
país, e assim tais trabalhos têm um risco de ficarem defasados com poucas vendas de produtos:
1ª estrofe
Pouco a pouco os homens vão partindo até que – se as autoridades não se
atentarem para esse problema – todos irão sair. (A palavra “todos” se repete, para
confirmar essa ameaça).
A palavra “Galiza” faz parte do poema original, e não houve a mudança com a
tradução. Galiza se refere a Portugal, que está sofrendo nessa altura o que a
Galícia sofreu em torno de oitenta anos antes.
Os trabalhadores homens que fazem serviço em agricultura são os responsáveis
pelo movimento financeiro do país, e são eles que cultivando a alimentação,
garantem a produção necessária para a população portuguesa. Sem a presença
deles, a produção se tornará escassa, e logo, não haverá nenhum homem que
possa fazer esse serviço da agricultura, e, assim, a movimentação financeira
também deverá baixar. Sem eles, quem irá garantir o pão para o povo português?
“Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão”
2ª estrofe
A segunda estrofe atenta para outro grande problema da emigração: o desfalque
das famílias. Com os chefes de família procurando outro meio para o sustento ao
viajar para fora do país, ele abdica de sua família, seu conforto e seus sonhos e
parte para o incerto. O que o país tem em troca com a saída desses homens, é,
além da falta de mão de obra, a quantidade de mulheres sós e filhos sem a
presença do pai. Os campos que seriam para o cultivo da agricultura, agora, sem
os homens, seriam “campos de solidão”, onde as mulheres chorariam a falta do
marido e não haveria mais plantação.
170
3ª estrofe
A terceira estrofe prolonga as consequências ditas na segunda estrofe, apelando
para o lado emocional do “coração” das pessoas que sofrem a ausência do
homem. A saudade se torna “mortal”, pois o fato de o homem não estar presente
fisicamente com a esposa, e sem saber por onde ele anda e o seu desfecho, muitas
mulheres tornaram-se “viúvas” mesmo sem estar. Para elas, era como se os
maridos já estivessem mortos, por causa da longa ausência, e o longo tempo sem
notícias. Ninguém seria capaz de consolar uma dor como essa.
1ª estrofe
repetição
O cantor volta a cantar a primeira estrofe, revelando ainda o grave problema de
muitos partirem. Mais uma vez a repetição se atenta para uma ação que não para
de ocorrer e eles precisam de medidas urgentes para conter a emigração. A única
saída para uma melhora seria a mudança política e econômica para que o país
voltasse a prosperar, e atualmente não há esperança de isso ocorrer.
Este poema também revela uma característica marcante da música e literatura
portuguesa de modo geral, a saudade. Uma definição já marcante do povo português
(CRISTÓVÃO, 2007), o poema mostra aspectos que revelam essa sensibilidade,
especialmente em toda a última estrofe: o sofrimento da mulher com a ausência do
marido, e sua condição de “viúva de vivo”, que nunca será aliviada. No poema o
sofrimento das mulheres também tem relação com a inexistência de soluções que
poderiam ter evitado a partida de muitos homens: a falta de uma boa vida, de trabalho, de
alimento, e as consequências que essa dificuldade financeira vivida no país trouxe para a
vida das pessoas. Essa nostalgia era um aspecto muito comum no decorrer dos anos
sessenta e setenta: as mulheres eram as que mais sofriam com esse panorama uma vez
que maridos e filhos poderiam ser chamados à Guerra Colonial, ou, em outros casos, a
emigração forçada era a solução tomada para fugir não apenas dessa convocação para a
guerra, mas também para fugir de uma vida instável que pairava sobre o país.
3.7 LIBERDADE
A canção Liberdade é a única dessa seleção que foi composta logo após a
Revolução dos Cravos e traz uma temática relevante em relação ao período português que
sucedeu o regime ditatorial. Composta e lançada por Sérgio Godinho (um dos
entrevistados) no seu disco À Queima-Roupa, ainda em 1974, logo após o seu retorno a
Portugal, foi um enorme sucesso por realçar os problemas que Portugal estaria
enfrentando e por ser um dos primeiros discos da fase do PREC, o teor das composições
171
reforça a preocupação com a política e com o país naquele período significativo que
deveria ser de mudanças. Esta canção é ainda muito lembrada atualmente, por discorrer
sobre desigualdade social, tema que continua recorrente em esfera global:
Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
A canção contém quatro estrofes, sendo as duas últimas apresentadas como
‘refrão’. Contém quatro versos em cada, podendo ser regulares e/ou livres, devido à
mudança da contagem da sílaba métrica nas duas últimas estrofes. Nas duas primeiras
quadras, todos os versos contêm quatorze sílabas métricas, e no refrão, podem variar entre
quatro e quatorze. As rimas são emparelhadas, sendo a primeira estrofe: AAAA, a
segunda BBBB, e, no refrão, segue a ordem: CDDD CEEE. As rimas das duas primeiras
quadras são graves, formadas apenas por paroxítonas, enquanto as rimas do refrão são
todas agudas, por serem oxítonas. Todas as rimas são externas, por aparecerem ao fim de
cada verso e perfeitas ou consoantes, por apresentarem correspondência total de sons.
A canção segue um estilo bem diferente dos estilos vistos em Zeca Afonso e
Adriano Correia de Oliveira, sendo esta com um ritmo mais acentuado para o rock e folk,
com o acompanhamento de viola, baixo, guitarra elétrica, bateria, além de outras duas
vozes. A letra serve como aviso tanto à população quanto aos “militares’ que tomaram o
poder em abril de 1974, pois mostra um conjunto de aspirações do povo que vivenciou
uma repressão por mais de quarenta anos e agora, diante da perspectiva da mudança,
precisa rapidamente ‘resolver’ as pendências acumuladas. Com a presença de antíteses,
172
o cantautor mostra situações vividas no país naquele período, como veremos estrofe por
estrofe:
Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Já no primeiro verso, ocorre uma antítese e um tipo de metáfora (catacrese) ao
revelar “o peso do passado e da semente”. A antítese é descrita pelo tempo “passado” e o
substantivo “semente”, que nesse caso, pode fazer alusão a algo que ocorrerá no futuro.
E o “peso”, nesse caso, não se refere a um peso comum, volume, mas de uma “força”,
“gravidade”, provocando uma catacrese ao utilizar uma palavra no lugar de outra mais
adequada: o “peso”, nesse caso, pode trazer dois sentidos: 1. o “peso” do país, que o
próprio Salazar deu à História portuguesa, com toda a contribuição de Portugal em relação
às grandes navegações e conquistas do passado, e 2. faz alusão ao “fardo” que Portugal
carregou nos últimos quarenta anos de opressão. Assim, tanto em um sentido como em
outro, esse peso “aumenta” em relação ao futuro, pois há a expectativa das pessoas de
voltarem à época dos grandes avanços, em que a nação se mostrava próspera; ou ainda,
quanto a sentir uma necessidade de haver (finalmente) um presente ou futuro favorável
às pessoas, após mais de quarenta anos na opressão.
No decorrer da canção, percebe-se que a leitura mais apropriada é em relação à
segunda hipótese, especialmente com o segundo e terceiro versos. O segundo verso
também apresenta uma antítese com a “espera de tantos anos” e “urgente”, referindo ao
tempo da ditadura salazarista. Pela história portuguesa, desde a queda da monarquia, em
1910, pode-se dizer que Portugal esteve sempre à espera dessa mudança que parecia vir
e não somente em relação ao período em que Salazar esteve no poder. No terceiro e quarto
versos (repetição) vemos outra figura metonímica utilizada por Sérgio Godinho, ao
afirmar que a “sede de uma espera só se estanca na torrente”.
Nesse caso, a sede pode se referir a um anseio de um povo, a uma série de
expectativas que as pessoas têm em relação a Portugal, que só será boa caso seja
concretizada; e ao mesmo tempo, essa “sede” também faz parte da necessidade de
sobrevivência, pois, sem “água” uma pessoa não sobrevive, e no caso da canção, sem as
necessidades básicas, também não. Muitos que emigraram foram a procura de trabalho,
173
liberdade e vida melhor para a família, caso contrário, não viveriam. Essa sede, essa
necessidade de sobrevivência só seria saciada com a melhoria em todas as áreas, e na
canção, a palavra “torrente”, vem confirmar essa ideia, pois, como uma “enxurrada de
água”, mostra que a melhoria não seria suficiente em apenas um ou outro setor, e sim, em
muitos setores, de tão atrasado que o país se encontrava.
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Mais algumas figuras de oposição são exploradas nessa estrofe, começando pelo
paradoxo logo no primeiro verso, ao “falar pela calada”. O silêncio do povo reflete a
censura, já que, na verdade o povo não esteve em silêncio, mas sim, foi silenciado. Por
meio da censura e do silêncio forçado, as pessoas exprimiam o que de fato estava
ocorrendo, e esse ato, por si só, já era uma forma de “denúncia” ao mundo. O segundo
verso mostra novamente a ansiedade das pessoas de desejarem tantas coisas (tudo),
porque nada tiveram, mostrando outra antítese. Assim, a vida cheia - que antes não era,
por falta de emprego, de voz, de saúde - hoje é uma vida que se deseja plena, com trabalho,
saúde, disposição e uma participação mais efetiva na luta. A repetição dos dois últimos
versos reforça a necessidade de uma mudança, além da anáfora, que ocorre com a
repetição das iniciais “só”, em três dos quatro versos.
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
A anáfora continua no refrão iniciado com a partícula adverbial “Só”. Nele, o
poema traz o que mais se exigia pelos portugueses quando do fim da ditadura: a
“Liberdade”. A canção reforça que a liberdade real só existe mediante a existência de
todos os aspectos que não eram possíveis de se ter com o regime salazarista. Como
exemplifica a canção: a paz (alusão à guerra que ainda ocorria), o pão (metonímia para
alimentação, que ainda não era adequada para todos), a habitação (a moradia, que também
174
não era uma realidade para todas as pessoas); a saúde (melhoria no sistema de saúde,
melhores hospitais) e a educação (melhoria e reforma no sistema de ensino)
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
Com a imposição da censura durante o regime as pessoas não tinham o direito de
intervir e nem de reivindicar mudanças, após o Golpe Militar, as pessoas esperavam que,
com a instauração da democracia, passassem a ter o direito de participar ativamente das
mudanças. O último verso encerra o poema referindo-se à injustiça da má distribuição de
renda.
O antagonismo presente na canção refere-se a uma gama de expectativas que não
foram concretizadas durante o salazarismo, e pareciam não se concretizar após a queda
do regime. Se a liberdade é tão desejada pelo povo, significa que durante todo o regime
salazarista as pessoas não se sentiam livres: se o regime acabou, a ideia, ou a expectativa,
era de que a liberdade fosse, enfim, conquistada também. Mas a canção adverte que essa
autonomia só seria conquistada de verdade, uma vez que todos os percalços e problemas
advindos com o salazarismo fossem igualmente extintos. Além disso, a liberdade não
seria de verdade: de que valeria uma liberdade com as expectativas frustradas? O que
seria a liberdade, se, no fim, as pessoas teriam de permanecer caladas e sem o poder de
decisão? Ou, ainda, se não houvesse investimentos nas áreas prioritárias, que realmente
seria a solução para as melhores condições de vida? Esse livramento causaria a verdadeira
ruptura entre o passado e o presente, mas essa ruptura só seria quebrada quando todos os
outros problemas citados na canção fossem vencidos também.
Essa canção foi uma forma de as pessoas perceberem que uma mudança não
acontece rapidamente, como todos esperam. Antes, é preciso que se lute para que ocorram
de maneira eficiente e gradativa, especialmente com ação do povo. A letra dessa canção
é ainda hoje recorrente em Portugal, não somente como uma forma de protesto contra a
desigualdade social, mas também em ocasiões em que se exaltam a conquista da liberdade
– ainda que parcial. A seguir, uma imagem retirada de um muro comemorativo de Abril,
que estampa as letras mais conhecidas da canção de Sérgio Godinho:
175
Figura 32 – Muro Liberdade88
Coletivo PCP da Figueira da Foz
“Paz, pão, habitação, saúde, educação”.
88 Disponível em: http://pallasathena-pt.blogspot.com.br/2014_08_01_archive.html
176
CONSIDERAÇÕES FINAIS
177
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao término da pesquisa, faz-se necessário destacar a relevância do papel da
música de intervenção na dinâmica da sociedade global e, neste caso em particular, no
contexto português. Retomando a epígrafe com que se abre este estudo, como canta Chico
Buarque, “sei que há léguas a nos separar”, mas essa distância Brasil – Portugal deveria
ser somente geográfica. Com essa perspectiva, propiciada pela ideia de lusofonia que aqui
se adota (cf. Brito 2010 e 2013), quanto mais nos aproximarmos da história, da cultura,
das experiências dos outros espaços lusófonos, maior a compreensão de nós mesmos.
Nessa direção, a lusofonia supõe o conhecimento e reconhecimento da história e da
cultura de outros países que falam a nossa língua, considerando, nesse caso, Portugal
como um componente do espaço lusófono, pois falar de lusofonia não é apenas falar da
África “portuguesa” ou de Timor-Leste; é falar, também, da matriz. Compreender a
história portuguesa oferece suporte para que nós, brasileiros, possamos entender também
a literatura, a música e a identidade, de tal forma que as reconheçamos junto de nós, como
parte de nós. E prossegue Chico Buarque: “Sei também quanto é preciso, pá, navegar”
para que esse conhecimento seja melhor difundido neste “lado do mar”.
Com esse enfoque de base, a presente investigação destacou elementos
linguísticos e poéticos de composições portuguesas que contribuíram para uma
conscientização política durante o Estado Novo, e que se mantem, ainda hoje, como
componente significativo no construto identitário do povo português.
Cada capítulo mostrou a importância para a compreensão das letras analisadas à
luz da História Portuguesa e possíveis razões para que cada uma delas tenha posição de
destaque no Canto de Intervenção. Percebe-se, primeiramente, que desde o início do
Estado Novo, as ideias inculcadas por Salazar tencionavam mostrar um Portugal perfeito,
um país de finanças equilibradas, a grandiosidade do Império Português, que exaltava um
passado heroico ao fazer referência à Época das Grandes Navegações; um país “pacífico”,
por exemplo, ao adotar, estrategicamente, uma posição neutra na Segunda Guerra
Mundial. Além disso, com o lema “Deus, Pátria e Família”, assume a importância da
submissão a Deus, da veneração à Pátria e do valor do papel de cada membro da família,
cabendo ao homem o lugar central e à mulher a os cuidados do lar e das crianças. Todos
que se preocupam em desempenhar corretamente suas funções, e seguissem os valores
pregados por Salazar, seriam bem-sucedidos, pois segundo mostravam as propagandas
178
panfletárias e os livros escolares, as imagens apresentavam crianças sempre felizes ao
ajudar os pais e as mulheres satisfeitas ao cuidar da casa, enquanto o marido cuidava do
campo e da agricultura.
Como visto, se tais valores recomendados traziam satisfação, sucesso e felicidade,
as pessoas o obedeciam, pois entendiam que o governo sabia o que era bom para o país e
para a população. O aprendizado escolar, restrito e mecânico, facilitava a difusão de tais
valores ao passo que as crianças – que seriam a próxima geração – não eram encorajadas
a pensarem criticamente.
Para a população mais instruída, ainda que utilizasse meios para reprovar as
práticas do governo, a PIDE sabia prontamente como repreender e punir a todos os que
se desviavam dos ensinos dogmáticos impostos por Salazar. A população foi por vezes
vista como submissa e conformada, porém, entende-se que essa passividade era, na
verdade, totalmente controlada pelo governo, para passar uma sensação de que a
população era ‘obediente’ porque praticava os seus preceitos. A punição era
imediatamente realizada, para que os grupos de oposição ao governo não influenciassem
o restante menos instruído e inibissem a insistência de tais práticas. Percebe-se que todo
esse conformismo foi, de certo modo, um “mito” de Salazar, elaborado para que não
surgissem outros grupos que pudessem desestabilizar o governo e a violência repressiva
e punitiva sempre funcionava muito bem a favor do regime.
Ao resgatar valores que engradeciam o país, Salazar criou uma nova identidade
portuguesa, e as propagandas idealizadas por António Ferro e o restante das exposições
confirmariam a importância dessa identidade. Gradualmente, o regime foi trabalhando
esse tipo de nacionalismo e patriotismo forjados, mostrando como deveria ser ‘um bom
português’ e como fazer para se sentirem identificadas com o ideário salazarista.
É nesse cenário que a música se revela como uma importante arma contra o
governo, pois o aparecimento dessas canções com cariz político alastrou o mundo juvenil
politizado e influenciou grupos que antes nunca haviam pensado por tais perspectivas.
Mas as canções só tiveram esse poder de influência porque as letras afirmavam as
necessidades gerais de um país que não andava em conformidade com o que era passado
pelo governo. A nação se mostrava melhor representada a partir das letras das canções, e
não por meio dos discursos do regime ou das propagandas exaustivamente veiculadas. Se
o retrato da sociedade estava contido na letra das canções, então os discursos de Salazar
mostravam uma ideia fictícia de um país que não condizia com a realidade, levando assim,
às pessoas a uma maior identificação com as letras, em detrimento do que era
179
representado midiaticamente. Salazar imaginou um país como ele queria que fosse visto
pelos portugueses e pelos estrangeiros, adotando uma figura imaginária que sustentasse
suas afirmações, conseguindo, portanto, a adesão das pessoas menos instruídas,
prolongando o seu controle sobre o país. Com as canções, ao ver que o país estava
representado ali, e que elas passavam exatamente a imagem como as pessoas se
enxergavam, originou um conflito identitário causando uma tensão entre as pessoas e o
ideário salazarista.
Para ilustrar, veremos como as canções aqui analisadas desmistificaram toda essa
ideologia pregada por Salazar, agrupando-as por contexto:
Canção O que Representa Contraste com o Ideário Salazarista
Menino do
Bairro Negro
Liberdade
Desigualdade Social
Em quase todos os panfletos em que haviam a
propaganda do Salazarismo havia escrito: “Tudo a
Bem da Nação”. E os relatórios da PIDE sempre
finalizavam “A Bem da Nação”. O bem da nação
almejado pelo povo era uma sociedade em que as
pessoas tivessem acesso à boa educação, saúde,
alimentação e a distribuição de renda fosse justa.
Se as pessoas realmente não viam que as
necessidades básicas não eram supridas, as
canções confirmavam o que de fato ocorria.
Menina dos
Olhos tristes
Guerra
Famílias
desestruturadas
Como um dos lemas, “Deus, Pátria e Família”, e
como uma nação de “paz”, Salazar mostraria que
tais valores faziam parte do seu governo e da
identidade do povo português. Com o início da
Guerra Colonial (e a contradição de um dos seus
ideais, a paz), desestruturou a população, não
apenas em termos identitários, mas também
financeira e ideologicamente. Além disso,
famílias ficavam incompletas, sem o pai ou sem o
filho que haviam ido à guerra.
Grândola Vila
Morena
Opressão
Superação
Grândola era a canção que trazia o modelo de uma
sociedade justa, igualitária e democrática, com
180
valores utópicos, ao contrário dos princípios
criados por Salazar. Se o Estado Novo pregava o
autoritarismo e a censura, a canção desfazia desses
princípios ao revelar que para o “bem da nação” a
sociedade devia seguir os valores que “Grândola”
seguia.
Cantar da
Emigração
Emigração
Novamente, a realidade desestrutura um dos lemas
de Salazar que exaltava a família e o trabalho na
agricultura. Com a emigração (forçada), e saída de
homens, as famílias se viam sem a figura
masculina que as sustentariam com o trabalho no
campo. Sem trabalho, sem homens, as mulheres
viravam “viúvas de vivos” e as crianças, órfãs,
abalando a estrutura familiar.
Trova do Vento
que passa
Tristeza, Opressão,
Resistência
Nessa canção, o país é caracterizado por estar
vivendo uma “desgraça”, que pode ser sobre a
questão da fome, emigração, opressão,
autoritarismo, etc. A tristeza (um dos sentimentos
mais utilizados nas canções), também mostra a
insatisfação popular de se viver sob tal regime,
mas que, ao mesmo tempo, é compensado por ver
que há pessoas que resistem e lutam por uma
sociedade mais justa.
Os Vampiros
Opressão
Má administração
O autoritarismo era pregado por Salazar, mas sob
a imagem de que seria uma forma eficaz de
alcançar seus objetivos, como a independência
política e financeira, sem ter problemas com a
oposição. Mas se o país demonstrava estar
financeiramente equilibrado, mas ao mesmo
tempo faltavam recursos para a população
enquanto eles gozavam de seus benefícios, essa
má administração denunciava o grave problema
do regime. Além disso, a brutalidade com o que a
PIDE trabalhava para defender os ideais do regime
causava ainda mais a revolta da população.
181
Vale ressaltar também que as imagens difundidas pelo Estado Novo transmitiam
cidadãos aparentemente satisfeitos, mostrando felicidade por estarem vivendo boas
condições na pátria. Nas imagens, o salazarismo trazia a conquista, o sucesso, felicidade.
A realidade mostrava que as pessoas lutavam pela liberdade, pelo trabalho, pela paz – o
que gerava a insatisfação e melancolia. Assim, com a ideia oposta ao que era pregado,
mas uma vez as canções se identificavam mais com a realidade das pessoas do que a
realidade pregada pelo Estado Novo.
A partir do momento em que as canções atingiram as pessoas – inicialmente
jovens universitários – a população passou a enxergar aquela realidade de outra forma e
a desconstruir toda aquela identidade que tinha sido criada anteriormente pelo governo.
O sentimento dos cidadãos em cada canção analisada contrasta com o sentimento
pregado por Salazar, o que nos faz entender a dificuldade do povo de construir e aceitar
a identidade imposta por Salazar, visto que a realidade é exposta de outra maneira:
Música Possíveis motivos de identificação com o público
Menino do Bairro Negro Pobreza e esperança.
Menina dos Olhos Tristes Tristeza, choro, cansaço e luto.
Trova do Vento que passa Desgraça, tristeza e esperança.
Vampiros
Na perspectiva do Governo e da PIDE: Enchem
as tulhas; bebem vinho novo; dançam a ronda =
Felicidade, Satisfação
Na perspectiva da População: No chão do medo;
tombam os vencidos; ouvem-se os gritos; na noite
abafada; jazem nos fossos = Medo, grito, opressão
e morte.
Cantar da Emigração Solidão e sofrimento.
Grândola Vila Morena Utopia.
Liberdade (Des)esperança.
182
A partir da exposição acima se percebe que tudo o que era sustentado pelo
salazarismo, foi sendo “desmascarado” pela realidade que muitos se recusavam a ver, seja
por conformismo, seja por ignorância ou medo. Como se pôde verificar ao longo deste
estudo, o papel que as canções tiveram para essa sociedade foi além de apenas informar:
elas desmistificaram a ideologia construída por Salazar, a identidade que demoraria anos
para ser produzida, por meio de muito trabalho propagandístico e censura. Inicialmente,
muitos ainda aceitavam a imposição e tentavam se identificar com o país criado pelo
Estado Novo, mas, a partir do momento em que o regime passou a se mostrar vulnerável
e a enfrentar problemas (como a fraude das eleições, pressões internas e externas, e grupos
de oposição, somando-se ao início da Guerra Colonial), inicia-se uma tensão, e o povo
entra em conflito com a identidade que lhe foi forjada pelo regime, passando a questioná-
la.
Dessa forma, a identificação com as canções favoreceu sua difusão durante a
Guerra Colonial, quando a revolta atingiu principalmente a juventude: é essa mesma
identificação que parece ocorrer atualmente, garantindo a manutenção da popularidade
dessas canções, por abordarem os mesmos entraves sócio-político-econômicos.
As declarações dos entrevistados colaboraram para a compreensão da dimensão
não apenas dos problemas do Estado Novo, mas também do papel que o Canto de
Intervenção desempenhou nesse período. A perspectiva mostrada por eles abarcou a
memória de cada um, e muitos dos dados relatados não estão ainda documentados pela
História (“oficial”), visto que eles presenciaram eventos e situações que muitas vezes não
possuem registros comprobatórios, assim, são obrigados a recorrer à própria memória
para compreender e analisar o que de fato ocorreu.
As entrevistas feitas com as personalidades mostraram que embora suas
experiências tenham sido diferentes na resistência à ditadura, todos compartilharam da
alegria e da esperança que sentiram com o fim do governo opressor. Conforme se
observou, a memória depende dos contextos em que cada um viveu, da faixa etária, dos
grupos a que pertenciam e da importância que cada um deu ao evento e às experiências
vividas no seu país (SOBRAL, 1998). Dessa forma, nesta pesquisa foi possível, também,
observar como cada um deles reagia e compartilhava experiências durante as entrevistas.
Para ilustrar a atitude de cada um deles perante um fato levantado nesta
investigação, tem-se, abaixo, como as memórias se aplicam, e como eles podem divergir
ou não em termos de sentimento ou reação, considerando que as experiências que tiveram
tanto anterior como posteriormente, foram completamente distintas:
183
Depoente Antes do 25 O 25 de Abril Pós 25
José Letria
influência de
amigos; impulso:
Guerra Colonial
antecipadamente
soube do Golpe
Militar
Temor; medo (de não
ocorrer); angústias em
relação ao futuro;
dúvidas; e após o
ocorrido: o dia mais
feliz da vida dele.
Expectativas, Motivação,
Euforia, Dúvidas, acerca
do futuro, mas o 25
representa a concretização
de um sonho. Conquista da
liberdade.
Referências Musicais: Vampiros; Menina dos Olhos tristes e Trova do Vento que Passa
Francisco
Fanhais
Influência de
amigos; proibido de
exercer suas funções
de padre, cantor e
professor – Emigrou
para a França
“Dupla alegria”: fim da
ditadura e por ter
participado da história
da gravação de
Grândola, canção
senha para o Golpe.
Voltou a Portugal.
Lutas, manifestações,
criação de cooperativas;
Criação da Associação
José Afonso em 1987.
Referências Musicais: Vampiros, Menino do Bairro Negro
Sérgio
Godinho
Influência da
família;
possibilidade de ser
recrutado para a
Guerra Colonial:
Emigrou para Suíça,
posteriormente para
a França e em
seguida, Canadá.
Estava no Canadá
quando houve a
revolução e só soube
depois dos detalhes.
Voltou a Portugal e
participou ativamente
do PREC.
O PREC trouxe efeitos
positivos para a música,
mas Portugal viveu
períodos difíceis com a
desigualdade econômica
(até hoje), e em alguns
pontos, foi um retrocesso.
Democracia.
(No caso do Sérgio Godinho, por ele ter feito uma canção memorável (Liberdade) lançada
após o 25 de Abril – e que até hoje faz sucesso, também foi escolhida para compor a parte
analítica, uma vez que seria a única que traria uma visão do país após a Revolução dos
Cravos)
184
António
Borges
Influenciado
especialmente por
meio da literatura;
ativista; país era
pobre, triste, sem
liberdade e sem
emprego.
Soube por um militar
Maior alegria da vida
dele
Mas ainda receio nos
dias que sucederam.
Euforia (que baixou);
grande frustração; mas
houve conquistas nas áreas
da educação e saúde, além
da democracia.
Referências Musicais: Canções de Zeca Afonso
Pedro
Calafate
Via Portugal como
uma sociedade
fechada, pesada,
cinzenta, opressora.
Dia de muita alegria e
festa para o povo,
euforia.
Incertezas, liberdade de
fazer reunião e discutir
política; criação de um
grupo musical: Resistência
Referências Musicais: Grândola Vila Morena, Cantar da Emigração, Vampiros
Fernando
Rosas
Influência de amigos
e família; ativista;
preso.
Viveu intensamente,
‘país de pernas para o
ar’; grande mudança
para todos, o “princípio
do resto das nossas
vidas”
Conquistas em áreas
importantes como:
educação, saúde, sistema
de segurança social; além
da liberdade – democracia
Referências Musicais: Grândola Vila Morena
No quadro acima, é possível visualizar as diferentes respostas e visões de cada um
acerca de um tópico específico sobre a revolução, pois com vivências que diferem um do
outro, as canções, as memórias, as histórias e as opiniões a respeito da revolução também
podem divergir, dependendo também de como cada um deles seguiu após a mudança do
regime. As diferentes escolhas da música também refletem a área deles e onde estavam
no momento, mas todos foram unânimes ao falar que Zeca Afonso e a sua composição
Grândola Vila Morena foram os mais memoráveis nesse período. Visto que a canção já
tinha sido anteriormente escolhida para análise pela sua trajetória, muitos cantores não a
mencionaram durante a entrevista, por saber de antemão a ideia da pesquisa.
Ressalta-se ainda, a partir do quadro, que embora as experiências de cada um
sejam divergentes, todos viram no 25 de Abril uma concretização de um sonho, uma nova
185
fase para a democratização de Portugal, e com uma esperança de um futuro próspero e a
expectativa de mudanças significativas para toda a população. O fato de Francisco
Fanhais e Sérgio Godinho retornarem ao país logo após a Revolução mostra também que
a esperança que eles sentiam de uma sociedade mais justa e igualitária – e que passaram
a lutar por isso e a participar ativamente – podia também ser vivida em Portugal.
Com relação aos objetivos propostos, acredita-se que tenham sido todos atingidos,
uma vez que o trabalho apontou os impactos que a fase ditatorial teve sobre o país e sobre
a construção de identidade do povo português, assim como seus reflexos no Portugal
contemporâneo; levantou algumas das principais canções de intervenção compostas
durante os períodos pré e pós-Revolução dos Cravos a partir das entrevistas feitas com
cantores, intelectuais, jornalistas que vivenciaram o período em estudo; analisou nas
canções selecionadas elementos linguísticos e poéticos reveladores de marcas de opressão
do regime ditatorial, observando como elas contribuíram para a (des)construção
identitária e, por fim, destacou a importância da música como forma de protesto e o
impacto que ela teve e ainda tem na História de Portugal.
Por fim, uma palavra à experiência que tivemos diante dos depoimentos sobre a
Revolução dos Cravos, nas vozes dos que a vivenciaram. Sem dúvida, trata-se de
referência no que tange à ideia de revolução com tom pacífico. Embora as últimas marcas
deixadas por Salazar e Marcello Caetano tenham sido decorrentes da Guerra Colonial, a
reação desvelou-se de maneira poética: com música e com flores. A Revolução
desabrochou com uma canção e prosseguiu com os canos das armas repletos de cravos,
simbolizando a paz, a união, a força e, por fim, a liberdade. É preciso, mais uma vez,
concordar com Chico Buarque: “Foi bonita a festa, pá”!
186
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em 15 de janeiro de 2015.
192
ANEXOS
____________________________________________________________
193
ANEXO A
E-MAILS
EXEMPLO DE E-MAIL ENVIADO AO ENTREVISTADO
RESPOSTAS
194
195
UTILIZAÇÃO DAS IMAGENS DISPONÍVEIS NO
SITE DA TORRE DO TOMBO
196
ANEXO B
PRISIONEIROS DO TARRAFAL (p. 1 e 6)
197
PRISIONEIROS DO TARRAFAL
BIOGRAFIA PRISIONAL DE ANTÓNIO BORGES COELHO
(continuação da p. 111)
198
ANEXO C
CRIAÇÃO DA PIDE (1)
199
CRIAÇÃO DA PIDE (2)
200
CRIAÇÃO DA PIDE (3)
201
CRIAÇÃO DA PIDE (4)
202
ANEXO D
CARTA DE HUMBERTO DELGADO À ONU
203
ANEXO E
POEMA DE JOSÉ JORGE LETRIA
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
Nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
Que rumavam às rádios e aos quartéis,
Engalanados de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
Ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
Desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
Que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, num dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas
Sim, sou eu neste retrato antigo,
A receber em festa os exilados, os que chegavam
Com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
Bordada a sangue e espuma no capote das nocturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
Do primeiro de muitos dias em que o tempo
Deixou de contar, em que os relógios
Se tornaram corolas de paixão e riso
Na lapela larga da alegria desta pátria.
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
Estava a afinar o coração pelo tom
Das mais belas melodias que alguém pode aprender
Só para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.
José Jorge Letria
204
ANEXO F
Muro da Câmara Municipal De Lisboa, em Alcântara-Mar, com a Ponte 25 de Abril ao fundo.
Pintura em comemoração dos 40 anos da Revolução dos Cravos. Fotos tiradas em 14 de
setembro de 2014. (Acervo pessoal)
Detalhes das gravuras: referência à prisão do Tarrafal, em Cabo Verde. (Acervo pessoal)
205
Referência à Guerra Colonial e às pessoas assassinadas pela PIDE. (Acervo pessoal).
Referência ao PREC e à falta de empregos. No canto direito é possível ver algumas das palavras
que constam na canção Liberdade, como “Educação” e “Habitação”. (Acervo pessoal).