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JULIA RUIZ DI GIOVANNI
Cadernos do Outro Mundo:o Frum Social Mundial em Porto Alegre
[VERSO CORRIGIDA]
De acordo:
Fernanda Aras Peixoto
Tese apresentada Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo para obteno do ttulo dedoutora em Antropologia Social.
Orientadora: Profa. Dra. Fernanda ArasPeixoto.
So Paulo2013
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Agradecimentos
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pelo apoio que tornou vivel a
pesquisa e elaborao da tese. /ao parecerista que acompanhou o desenvolvimento do trabalho
muito obrigada pelas sugestes e incentivo.
Ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social USP.
Professora Fernanda Peixoto, orientadora excepcional, que me encorajou a formular, a
partir de memrias e inquietaes, o projeto de pesquisa que resultou neste trabalho. Obrigada pela
confiana, sobretudo, pela amizade, por sua paixo pela troca intelectual, pelo olhar minucioso e
generosidade de grande mestre artes.
s/aos colegas do Coletivo ASA Artes, Saberes e Antropologia, incalculvel a
importncia deste lugar de parceria na construo desta tese e no meu percurso pessoal. Considero
um privilgio ter a companhia de vocs, vamos buscando juntos nosso prprio jeito de ser
antroplogas/os. A Julia Goyat e Lorena Avellar, agradecimentos especiais pela leitura antecipada
dos captulos e comentrios.
s/aos colegas do Hybris Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relaes de Poder, Conflitos
e Socialidades, grande companhia no atrevimento de pensar a poltica, a quem pude apresentar os
primeiros esboos da tese: muito obrigada pelas sugestes e provocaes.
s professoras Maria Filomena Gregori e Ana Cludia Marques por sua presena no exame
de qualificao e pela contribuio indispensvel ao desenvolvimento do projeto.
s pessoas que este trabalho me permitiu encontrar: obrigada, Hlio Menezes. E quelas que
tive a oportunidade de re-encontrar. A todas aquelas que tinham um causo de Frum para me
oferecer. A Alessandra Ceregatti, Ana Paula de Carli, Ana Paula Stock, Fernando Costa, Leandro
Anton, Adriano Marcello Santos, Rodrigo Nunes e outros amigos de Porto Alegre essa tese s
existe por causa da nossa conversa, que j dura mais de dez anos. Muitas pessoas importantes nahistria deste trabalho no pude, de fato, reencontrar: quem sabe tenhamos agora um bom pretexto
para retomar a conversa.
Olivia Gonalves Janequine, minha comparsa, que fez a reviso dos captulos.
A Geraldo e Maria Lcia, por tudo, sempre.
Ao Andr Mesquita, com quem sigo a viagem pra valer.
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Resumo
Di Giovanni, Julia Ruiz. Cadernos do Outro Mundo: o Frum Social Mundialem Porto Alegre. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.
A presente tese uma reflexo etnogrfica sobre o processo de constituiodo Frum Social Mundial (FSM) como experincia poltica particular,vinculada realizao de encontros internacionais anuais na cidade de PortoAlegre (RS, Brasil) entre 2001 e 2005, no contexto mais amplo de protestos,encontros e debates associados ao ciclo contestatrio dos movimentos anti-globalizao ou alter mundialistas. Partindo da anlise de textos produzidos arespeito do FSM, de documentos de registro da dinmica organizativa e dememrias institucionais e pessoais de participao neste processo, estetrabalho elabora algumas snteses a respeito da relao entre a forma deprticas e discursos e os modos de produo dos sentidos das experincias
polticas contemporneas. A tese contribui para reforar as anlisesqualitativas e crticas a respeito do fenmeno complexo do Frum SocialMundial, atravs de uma perspectiva antropolgica que tem como baseexerccio etnogrfico de ateno e descrio dos usos particulares decategorias generalizantes tais como estratgia, metodologia e memria.Voltada para a dimenso processual e expressiva dos modos de fazer emodos de dizer coletivos, este trabalho busca destacar densidade designificados e a historicidade das linguagens da ao poltica, a partir deinspiraes tericas retiradas das anlises das prticas cotidianas, quepermitem aproximaes entre as antropologias da arte e dos rituais s dapoltica e do conflito.
Palavras-chave: Movimentos Sociais, Antropologia da Poltica, Frum SocialMundial
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Abstract
Di Giovanni, Julia Ruiz. Other World Notebooks: the World Social Forum inPorto Alegre. Thesis (PhD) Faculty of Philosophy, Letters and HumanSciences, University of So Paulo, So Paulo, 2013.
This thesis is an ethnographic reflection on the process o constitution of thWorld Social Forum (WSF) a particular political experience, strongly linked tothe annual meetings that took place in Porto Alegre (RS, Brasil) between2001 and 2005, in the context of protests, encounters and debates associatedto the contention cycle of the anti or alter globalization movement. Taking as astarting point the analysis of texts written a about the WSF, documents thatregister its organizational dynamics and both personal and institutionalmemories of this process, this work develops a few synthesis about therelation between the form os practices and discourses and the production ofmeaning in contemporary politics experiences. The thesis is a contribution to
the qualitative and critical analysis of the complex phenomenon of the WorldSocial Forum, through ananthropological perspective built on the ethnographic exercise of attention anddescription of their particular uses of broad categories strategy, methodologyand memory. Focused on the processual and expressive dimension of theways of doing and ways of saying, this work makes an effort to highlight thedensity of meaning and historicity of the languages of political action, havingas a reference the analysis of daily life practices, which allow us to bringtogether the anthropologies of art and ritual and those of politics and conflict.
Keywords:Social Movements, Anthropology of Politics, World Social Forum.
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Sumrio
Introduo ............................................................................................................................................7
Os materiais da pesquisa................................................................................................................11
Itinerrio terico.............................................................................................................................13
O Frum como lugar poltico.........................................................................................................16
O Frum como forma.....................................................................................................................24
O Frum como experincia............................................................................................................27
1. Escrever o Frum: a noo de estratgia .......................................................................................29
Estratgia: categoria nativa ........................................................................................................35
Prticas e lugares de poder.............................................................................................................35
A estratgia e seus usos..................................................................................................................47
2. Metodologia e arquitetura do espao Frum .................................................................................58
Arquitetura do espao aberto......................................................................................................61
Mtodo e poder ..............................................................................................................................84
3. As formas da memria no Frum Social Mundial .........................................................................95
A memria horizontal ....................................................................................................................97
A memria habitada.....................................................................................................................115
Comentrio Final .............................................................................................................................133
Referncias.......................................................................................................................................137
Anexo A: Carta de Princpios do Frum Social Mundial ................................................................147
Anexo B: Temrio e esquemas metodolgicos do FSM entre 2001 a 2005....................................150
Anexo C: Financiadores dos Fruns Sociais Mundiais de 2003 e 2005..........................................156
Anexo D: Ficha do Mural de Propostas ...........................................................................................157
Anexo E: Nmeros do FSM entre 2011 e 2005 ...............................................................................158
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Introduo
As condies da possibilidade da histria real so, aomesmo tempo, as condies de seu conhecimento
Reinhardt Koselleck1
Escrever sobre o Frum Social Mundial e faz-lo no contexto das exigncias e
responsabilidades implicadas na pesquisa acadmica em geral e, especificamente, em uma tese de
doutorado, no um desdobramento natural de meu envolvimento militante nesta experincia
poltica. Tendo participado de todas as edies mundiais do FSM entre 2001 e 2005, alm de
encontros preparatrios e de edies nacionais e regionais (Fruns Sociais Brasileiro e Argentino,Frum Social das Amricas e do Frum Social Europeu), escolhi, no mestrado, no me deter em
uma reflexo a esse respeito, dedicando-me a estudar protestos de rua que uma abordagem focada
nas prticas e tticas no prprio fluxo conflituoso da performancedo protesto permitia tratar
como um universo de ao em larga medida estranho ao contexto dos Fruns (Di Giovanni, 2012).
Enquanto no mestrado o movimento da pesquisa perseguia, na transitoriedade da ao de rua, o
carter criativo e indcil da experincia poltica, construir um percurso de anlise sobre o FSM
exigia olhar de frente seus aspectos menos estimulantes, dedicar litania das racionalidades,institucionalidades e ordenamentos que conferem forma e permanncia ao Frum Social Mundial a
mesma ateno entusiasmada que as poticas astutas do protesto facilmente capturavam. Conduzir a
reflexo antropolgica para dentro desse contexto foi, assim, um caminho de desnaturalizao.
Ouvi falar do Frum Social Mundial pela primeira vez em meados de 2001, em uma das
reunies de um grupo de discusso sobre movimentos sociais e leituras marxistas organizado por
um professor de filosofia da Fundao Armando lvares Penteado, onde cursava o segundo ano do
bacharelado em Rdio e Televiso. Fui a Porto Alegre em 2001, a convite de um jornalista, membro
da ATTAC rede internacional de origem francesa que realiza campanhas pelo controle cidado
das transaes financeiras internacionais que participara de uma das reunies do grupo
apresentando as linhas gerais daquilo que deveria ser um grande encontro internacional de esquerda,
reunindo os intelectuais e representantes de organizaes e movimentos protagonistas das notcias
que acompanhvamos e discutamos com grande interesse, sobre manifestaes anti-neoliberais nos
cinco continentes. Embora mal reconhecesse os nomes da lista de palestrantes famosos
confirmados, concordei que se tratava de um encontro de extrema importncia, e me dispus a buscar
a um envolvimento poltico que jamais experimentara antes. Assim, a origem da minha trajetria
1Koselleck, 2011, p. 308.
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como ativista teve lugar em algum ponto da mesma trama de relaes, estruturas operacionais,
polticas, semnticas e afetivas que comeavam a dar forma ao prprio Frum.
Viajei capital gacha pela primeira vez em janeiro de 2001, um ms antes do evento,
acompanhando como voluntria a transferncia do escritrio da organizao geral do Frum do
prdio da Ao Educativa na Rua General Jardim, em So Paulo, para um conjunto de salas com ar
condicionado localizada no Centro de Eventos da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Uma de minhas tarefas era alimentar a seo Biblioteca das Alternativas do site
do Frum2 com os textos apresentados durante as atividades do FSM por representantes e
intelectuais, ou textos que estes mesmos convidados indicassem como referncia para os temas de
debate daquela primeira edio3. No entanto, o trabalho ia muito alm do acompanhamento do site.
Entre os voluntrios brasileiros e estrangeiros que trabalharam no escritrio, as incumbncias eramrepartidas segundo critrios variveis, fundados no grau de confiana que os funcionrios e
membros do Comit Organizador recm constitudo depositassem em ns, em nossa agilidade na
soluo de problemas, na fluncia em diferentes idiomas e na desenvoltura com que ramos capazes
de dar informaes e decifrar demandas atravs dos telefones que tocavam ininterruptamente.
Tendo visto muito pouco do que acontecia fora dos escritrios da PUCRS, regressei a So
Paulo e passei a fazer parte do pequeno ncleo paulistano da ATTAC, de que participavam tambm
membros da organizao do Frum. No mesmo ano, depois de, atravs da rede, ter tomado partedos protestos contra o G8 em Gnova, Italia (Di Giovanni, 2012), estive envolvida na preparao do
segundo Frum Social Mundial. Incentivada pelos companheiros da ATTAC, passei a participar
ativamente das reunies itinerantes de preparao do Acampamento Intercontinental de Juventude,
de que participava um pblico ativista muito diferente do que conhecera no ano anterior. Havia ali
sobretudo uma forte identificao quilo que chamvamos de uma nova gerao poltica,
independente da faixa etria e para alm da noo de juventude, ligada sensibilidade e s formas
organizativas que os protestos antiglobalizao tinham tornado visveis (Nunes, 2005, p. 288; DiGiovanni, 2002; 2003). Voltei a Porto Alegre em janeiro de 2002 por conta prpria, para colaborar
com as discusses gerais do Acampamento e com a organizao de uma srie de pequenos
encontros que recebeu o nome de Laboratrio Intergalactika(Baba, 2003; Nunes, 2005). No mesmo
ano, meses aps o segundo FSM, passei a trabalhar na Sempreviva Organizao Feminista (SOF),
organizao que ento sediava a coordenao em nvel nacional e latino-americano da Marcha
Mundial das Mulheres (MMM) um movimento feminista internacional. Foi como militante da
Marcha Mundial das Mulheres que participei dos Fruns Sociais Mundiais de 2003 a 2005. Nestes
2Ver http://www.forumsocialmundial.com.br.3Ver anexo B: temas do FSM entre 2001 e 2005.
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trs anos, trabalhei na realizao de atividades includas na programao pela prpria MMM e
outros movimentos aliados, na articulao de encontros e oficinas realizados em Porto Alegre
durante os eventos do FSM, acompanhando as reunies preparatrias gerais do Frum e da
Assembleia Mundial de Movimentos Sociais, e assumindo tarefas de representao e apoio junto a
instncias organizativas do FSM, entre elas o Comit Organizador Brasileiro de 2005 e algumas
reunies do Conselho Internacional.
Alm de corresponder ao percurso de envolvimento pessoal com o Frum, o perodo de
2001 a 2005, pode ser descrito como um ciclo inaugural do FSM, marcado por alguns aspectos
organizativos determinantes. Em primeiro lugar, o perodo em que o Frum se caracteriza por
encontros mundiais anuais, ao mesmo tempo em que se multiplicam fruns sociais em escala
regional ou local. Em segundo lugar, durante estes anos, a realizao dos encontros mundiaispermanece vinculada cidade de Porto Alegre. Embora a edio de 2004 tenha sido realizada em
Mumbai, na ndia, o FSM volta capital gacha em 2005, j marcado por mudanas e
questionamento, ligados em particular questo da periodicidade dos eventos mundiais e aos temas
da mundializao e da necessidade de enraizamento do FSM. Mais tarde, tais questes passam
a orientar a opo dos organizadores pela alternncia entre eventos globais unificados e rodadas de
Fruns temticos e regionais espalhados pelo mundo. Aps 2005, alm de os eventos mundiais
passarem a ser bienais, intercalados com atividades descentralizadas, sua localizao passa a serrotativa, embora vinculada a cidades do Sul geopoltico: Belm do Par, no Brasil, ; Bamako, no
Mali; e Dacar, no Senegal. Este primeiro ciclo do FSM, seu perodo de formao coincidente com a
poca de minha prpria formao como militante, define um assim recorte temporal (2001- 2005) e
geogrfico (a cidade de Porto Alegre) ao objeto da tese. Esta coincidncia entre o momento de
constituio do Frum e o ciclo de meu engajamento como ativista, tem implicaes do ponto de
vista metodolgico e terico. Se podemos afirmar queo fato de ter tomado parte no FSM neste
perodo oferece as vantagens de uma perspectiva de observao situada dentro do processoanalisado, preciso afirmar tambm que essa participao observante no garante a priori a
qualidade e a condio crtica da anlise. Encontrar um lugar de pesquisadora o primeiro
problema do trabalho.
A seleo de materiais na farta literatura publicada e no enorme volume de documentos
sobre o Frum disponveis na Internet relatrios de atividades, textos analticos, documentao de
reunies e debates, boletins informativos, notas de imprensa, relatos, e-mails um desafio
adicional que se impem imediatamente pesquisa. Alm de um grande fluxo de materiais sobre o
Frum produzidos e circulados entre 2001 e 2005, a produo continua aps esse intervalo,
multiplicando ilimitadamente as fontes disponveis. Mais do que possibilitar a coleta de materiais e
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informaes (encontrveis online em grande quantidade e variedade), as novas viagens a Porto
Alegre, bem como a participao na dcima primeira edio mundial do evento em Dacar, Senegal,
em 2011, empreendidas como viagens a campo e possibilitando reencontros com os espaos e
pessoas conhecidos durante o perodo de envolvimento com o Frum, foram um recurso
fundamental para que se pudesse constituir um novo ponto de vista sobre as experincias vividas e
formular questes sobre o prprio carter abundante, excessivo e em grande medida repetitivo da
fontes encontradas nos meios virtuais e bibliogrficos. Nestas viagens, sobretudo, o prprio tempo
que separa os momentos do engajamento imediato e os da pesquisa torna-se sensvel: as
transformaes materiais e imateriais com que somos confrontados (no espao urbano, nas redes de
relaes humanas, nos discursos ou nas fisionomias) transformam tambm nossos modos de olhar e
construir anlises.Percorrendo as notas da primeira viagem realizada a Porto Alegre durante o projeto, em
janeiro de 2010, encontro, por exemplo, a seguinte anotao de uma conversa com um dos
arquitetos envolvidos no planejamento do Acampamento da Juventude e, em 2005, um dos
responsveis pelo desenho de distribuio das atividades do Frum na cidade: Vir ao FSM j teve
um sentido de peregrinao. A ideia familiar minha memria de militante, provavelmente
reforada pela expresso atribuda aojornal Le Monde Diplomatique (e difundida com certo tom
pejorativo na imprensa brasileira), que define a cidade de Porto Alegre dos tempos do Frum, at2004 sob o governo do Partido dos Trabalhadores, como a Meca da esquerda internacional. Em
dilogo com esta imagem, uma passagem de Clifford Geertz em Obras e Vidas (2002, p.22 ),
anotada no caderno durante a mesma viagem, afirma que tambm a etnografia pode ter um carter
de peregrinao, mas , alm disso, uma forma de cartografia.
Em outro ponto do caderno de campo, refletindo sobre estas figuras, me pergunto: participei
ento do FSM at 2005 como peregrina e agora volto como antroploga para realizar uma espcie
de cartografia? Hoje a tese que concluo inclui cartografias: em vrios momentos aborda mapas dasedies do Frum em Porto Alegre, como marcas (reais ou imaginadas) da experincia nos
participantes e na cidade, ou como documentos grficos de relaes silenciosas de sentido e de
poder. Mas tambm a experincia militante, a do FSM em particular, tem seus momentos de
cartografia: fazer poltica tambm produzir mapeamentos. Lembro claramente que a admirao
por alguns ativistas muito presentes no perodo da minha entrada como militante no Frum Social
Mundial, entre 2001 e 2005, era inspirada pela habilidade que essas pessoas tinham de traar
amplos mapas mentais, bastante detalhados, referenciando segundo origens, filiaes ideolgicas,
relaes de aliana, propsitos polticos ou estilo, a vasta diversidade de movimentos, grupos,
organizaes, coletivos e personalidades que compunham o dito movimento antiglobalizao. Os
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documentos de metodologia e os temrios complexos de cada uma das edies do FSM podem ser
lidos em si mesmos como instrumentos de mapeamento e de navegao no universo de assuntos,
consensos e impasses polticos em um determinado momento histrico. No parece exagerado
afirmar que tambm os militantes, meus companheiros e nativos, so, nesse sentido, colegas
cartgrafos: produtores de espacialidades, de mapas do mundo em que vivem e de outros mundos
sonhados.
Ambos os sentidos atribudos por Geertz atividade do etngrafo, assimilveis a uma
descrio da experincia militante do FSM, parecem aqui colaborar mais com a aproximao entre
as posies de observador e participante do que com a exigncia que as separa. Isso no significa
que os dois pontos de vista sejam coincidentes, indica apenas que essa proximidade deve ser tratada
com o devido respeito. Se, como etngrafa, pretendo produzir mapas do Frum Social Mundial,ser necessrio antes dedicar um olhar atento aos mapas mentais, grficos ou afetivos que outros
sujeitos em campo parecem produzir continuamente. E se empreender uma etnografia tambm
uma forma de peregrinao um itinerrio de engajamento a etngrafa no Frum Social Mundial
tambm caminha sobre as pegadas de muitos outros peregrinos, inclusive sobre marcas antigas de
suas prpria passagem.
Os procedimentos da cartografia e da peregrinao dizem respeito relao entre formas de
engajamento (poltico) e a produo de conhecimento, tema subjacente dos exerccios de anliseque busco desenvolver sobre o Frum Social Mundial. As aproximaes que tais imagens sugerem
reforam, sobretudo, a compreenso de que a produo de conhecimentos no poder aqui ser
entendida como privilgio do pesquisador: a prpria escolha dos materiais a serem tratados nesta
tese em sua maioria discursos de natureza analtica indicam que o problema do exerccios de
interpretao que me arrisco a desenvolver no desbravar um territrio ermo, mas habitar um
campo intelectual j bastante populoso. Neste sentido, a perspectiva da pesquisadora no pode
definir-se apenas pela autoridade etnogrfica de quem esteve l: tantos estiveram l, comoescrever ento algo novo e relevante sobre um lugar comum? A pesquisa, assim, a proposta de
uma nova viagem que, mesmo percorrendo um itinerrio antigo, busca a formulao de perguntas
diferentes (no necessariamente maiores ou melhores) daquelas que a viagem militante permitia
formular.
Os materiais da pesquisa
Um volume impressionante de discursos sobre o Frum Social Mundial, cuja proliferao
nos meios eletrnicos praticamente diria, foi produzido de 2001 a 2005 e continua sendo
aumentado a cada ano, em um circuito que envolve desde os informes internos s organizaes
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integrantes do processo at declaraes e anlises difundidas em nvel internacional por intelectuais
de grande visibilidade, como Jos Saramago ou Immanuel Wallerstein. A viabilidade desta pesquisa
teve como desafio fundamental uma srie de escolhas com relao anlise deste material, posto
sempre em dilogo com as experincias de participao que ampliam exponencialmente as
possibilidades de leitura dos diferentes argumentos. No se trata de esgotar a anlise desta
produo, mas de oferecer um percurso possvel de leituras, pautadas pelo interesse em
problematizar algumas categorias empregadas para qualificar a singularidade da experincia poltica
no FSM, buscando entender assim as transformaes do sentidos da ao coletiva nesse contexto.
Como busquei esclarecer, esta pesquisa compreende uma confrontao sistemtica com a
tarefa de fazer de uma experincia militante, da qual h alguns anos tomei distncia, um campo
etnogrfico. Como escrever sobre o Frum Social Mundial de que fui e possivelmente ainda souparte? Levando em conta o desafio, o primeiro movimento da pesquisa procurou conjugar
justamente os dois verbos centrais desta pergunta: escrever e fazer parte. A matria textual no
apenas o corpo mais visvel do Frum, mas tem um papel fundamental em sua definio como
lugar poltico, como forma e como experincia. Assim, o maior volume do material de anlise
fundamentalmente composto de textos. O conjunto inicial de fontes primrias composto por
documentos hoje disponveis no website4criado pela secretaria do FSM, mantida em So Paulo at
2012. Este conjunto inclui documentos aprovados no mbito do Conselho Internacional - entre elesa Carta de Princpios do FSM -, documentos sobre regras e funcionamento, informes de reunies e
balanos internos, e uma srie de documentos ditos metodolgicos, referidos s edies anuais do
Frum Social Mundial, em que se definem os temas do encontro, a tipologia das atividades a serem
inscritas pelas organizaes participantes, os mecanismos de agrupamento e as condies de
realizao destas atividades. Os documentos registram mudanas ao longo dos anos, com a
complexificao dos temas e estruturas de inscrio e a relao complexa entre as premissas da
Carta de Princpios e as tenses de sua traduo em um mtodo organizativo que crescentementeconstitui o Frum Social Mundial e define seus limites.
O exame dessa primeira seleo de fontes obriga mobilizao de um conjunto mais amplo
de referncias. Alm dos documentos internos, os discursos que escrevemo Frum e so um modo
fundamental pelo qual pessoas e coletivosfazem partedele tm tambm como formas privilegiadas
as anlises e balanos. Em torno dos processos de realizao dos primeiros eventos do FSM em
Porto Alegre, gravita um conjunto de textos e artigos heterogneos, elaborados por ativistas,
representantes e intelectuais envolvidos nos encontros do Frum Social Mundial. Ainda que muitas
4Ver em http:// www.forumsocialmundial.org.
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vezes tenham como assunto mais evidente os eventos anuais, estes documentos so sempre
referidos ao Frum como um processo de carter internacional e permanente, fornecendo muitas
indicaes sobre os modos de construo de uma totalidade que ultrapassa os eventos individuais e
lhes confere sentidos comuns. As fontes analisadas incluem anlises e balanos produzidos entre
2001 e 2005, muitos deles disponveis na seo Biblioteca das Alternativas do site oficial do Frum
Social Mundial, a mesma que ajudei a alimentar como voluntria em 2001, sob a rubrica Balanos
dos eventos globais do Frum Social Mundial, distribudos em pginas dedicadas a cada ano5.
Tambm foram includos entre as fontes alguns textos de balano posteriores a 2005, encontrados
na mesma fonte, cujos contedos oferecem elementos adicionais para a anlise de processos e
noes consolidados no primeiro ciclo de formao do Frum. Publicados em sites independentes
da organizao do FSM e em vrias coletneas de artigos, estes textos no oficiais so defundamental importncia para a apreenso dos sentidos e tenses que permeiam os documentos
produzidos pelas instncias organizativas.
A anlise de iniciativas de memria e arquivamento relacionadas ao Frum Social Mundial
abarca ainda outros tipos de documentos, como mapas e fotografias, alm de algumas entrevistas e
muitas conversas realizadas com antigos participantes em Porto Alegre e So Paulo durante o
perodo da pesquisa. A investigao de formas institucionais e pessoais de registro e arquivamento
sobre o FSM nos colocou diante de projetos incompletos, colees que em grande parte foramdispersas ou jamais chegaram a se constituir, o que demandou um tipo de abordagem independente
da disponibilidade de acervos. Como veremos no terceiro captulo, o sentido da memria extrapola
as prticas de arquivamento: h muito mais memrias do Frum, que possuem dimenso imaterial,
que esto contidas explicita ou implicitamente na experincia cotidiana, nas aes e discursos, nas
marcas deixadas pela realizao do Frum em alguns espaos urbanos de Porto Alegre. No sendo
possvel uma descrio sistemtica do contedo de acervos disponveis e organizados, a ideia
refletir a partir das narrativas sobre coisas lembradas e esquecidas, em que as constelaes damemria so mobilizadas e reinventadas quase sempre no calor de acontecimentos presentes.
Itinerrio terico
A literatura existente sobre o Frum Social Mundial marcadamente uma literatura
militante. Como veremos no primeiro captulo, a produo de anlises sobre o FSM participa da sua
produo enquanto experincia, articula seu sentido de unidade e define sua especificidade poltica.
5A expresso eventos globais usado para diferenciar os encontros mundiais das edies regionais (por exemplo:Frum Social Europeu ou Frum Social das Amricas) e temticas (por exemplo: Frum Mundial da Educao ouFrum Social das Migraes), que se multiplicaram ao longo destes anos e so consideradas parte do processo FSM.
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Uma imerso nesta literatura engajada, tomada como fonte fundamental da pesquisa, foi
indispensvel para entender mais a fundo os modos de articulao desta linguagem, tarefa
indispensvel da pesquisa. Ao mesmo tempo, o desafio de encontrar um lugar de pesquisadora
passou necessariamente pela identificao de uma bibliografia analtica especfica com que
dialogar. So raros os textos em que encontramos um esforo interpretativo crtico carga de auto-
celebrao contida nos documentos oficiais. Faltam descries dos eventos e trabalhos que se
detenham na problematizao das caractersticas atribudas ao Frum por seus organizadores e
divulgadores mais entusiastas. Trabalhos como os Janet Conway, Thomas Ponniah, Boaventura de
Souza Santos e Jos Correia Leite, que articulam abordagens muito diferentes entre si, tm em
comum o fato de dificilmente levarem adiante questionamentos sobre a natureza dos prprios
discursos produzidos sobre o Frum: tendem a tomar como ponto de partida afirmaes quemereceriam ser expostas problematizao, luz do prprio envolvimento dos dos autores na
experincia do FSM.
Na literatura especfica, os autores que inspiraram nossa abordagem so aqueles que,
tambm engajados politicamente no processo, parecem ter buscado o caminho de desnaturalizar
afirmaes e conceitos estruturantes dos discursos que produzem o Frum enquanto tal: espao,
horizontalidade, dilogo, entre outros. Merecem ser mencionados, entre os trabalhos realizados
no Brasil, a dissertao de Diego Arajo Azzi (2008), publicada recentemente pela Hucitec, e otrabalho de Odaci L. Coradini (2009). Entre as publicaes no exterior, o nmero cinco da Revista
Ephemera: Theory and Politics in Organization (2009), dedicado ao FSM, organizado por Bhm,
Reyes e Sullivan, rene algumas das leituras que se mostraram mais frutferas na elaborao deste
trabalho, entes as quais se destacam as reflexes de April Biccum, Steffen Bhm, Colin Wright e
Rodrigo Nunes. O que estas anlises tm em comum, embora diferentes entre si do ponto de vista
dos temas especficos tratados e das abordagens escolhidas, o esforo de seus autores em
confrontar as expectativas e perspectivas conceituais que os levaram engajar-se na construopoltica do Frum - assumindo papis organizativos, promovendo iniciativas, mas tambm
produzindo anlises sobre ele - e a experincia direta de sua participao. A insistncia dos autores
em incorporar as contradies desta experincia ao trabalho analtico, sem minimiza-las, parece-me
uma virtude fundamental.
Referncias tericas mais gerais mostraram-se tambm relevantes no percurso de retorno
ao Frum Social Mundial, no para oferecer modelos, mas para inspirar sobretudo questionamentos
e interpretaes. Em primeiro lugar, as reflexes de Michel de Certeau (1980) sobre as noes de
ttica e estratgia em A Inveno do Cotidiano e sobre a ao poltica articulada como linguagem
em La Prise de Parole (1968), foram importantes na formulao do projeto de pesquisa e
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acompanharam o desenvolvimento da tese. No plano de observao proposto por De Certeau, a
poltica uma dimenso da experincia em que ao, enunciao, sentido e memria encontram-se
sempre fundidos. Trabalhando ao mesmo tempo com a anlise de prticas e discursos, emprego
neste trabalho uma expresso frequente de De Certeau, modo de fazer, de modo a tentar abranger
tanto a ao quanto as formas de linguagem, os modos de dizer, e coloc-las em um mesmo nvel
de complexidade simblica, para assim buscar compreender seu papel na constituio do Frum
Social Mundial como lugar poltico, como forma e como experincia.
Tambm o trabalho de Michael Herzfeld, sobre a complexidade das ideologias do Estado,
Cultural Intimacy (1997), forneceu inspirao terica para nossa abordagem do Frum Social
Mundial, em que pretendemos observar momentos em que relaes de poder so articuladas
tambm como linguagens de poder. a analogia com a propriedade da linguagem reconhecida porJakobson como funo potica que permite a Herzfeld revelar a mobilidade de significados e
intenes implicadas em uma forma poltica ou ideolgica aparentemente esttica, ou tornar visvel
que a espontaneidade e originalidade da ao poltica passam pelo domnio de cdigos de poder
surpreendentemente estveis (Herzfeld, 1997, p. 41).
A funo potica da ao social e poltica, como o modo que De Certeau identifica nas
artes do fazer quotidiano, uma formulao terica que busca enfocar a articulao entre regras e
seus usos, entre grandes sistemas explicativos e pequenas prticas quotidianas, entre estruturas eao desdobrada no tempo. Estratgia, metodologia e memria, como motivos condutores em uma
obra musical ou literria, so noes associadas a modos de fazer e modos de dizer que se repetem,
frmulas que indicam a presena de uma estrutura de sentidos subjacente aos discursos e prticas.
Ao mesmo tempo, cada vez que aparecem, misturadas aos interesses, pontos de vista e expectativas
de diferentes sujeitos em situaes particulares, trazem significados novos: observando-as, podemos
perceber como as frmulas aparentemente coerentes dos discursos militante tm sua integridade
posta em risco quanto mais so empregadas. Graas aos usos cotidianos, conflitantes e disparatados,as estruturas de sentido esto sempre sujeitas a rupturas, contradies e distores.
Os termos que servem de eixo para cada um dos captulos estratgia, metodologia e
memria cumpriram um papel fundamental na busca de uma aproximao livre e crtica, mas que
de alguma forma fizesse justia experincia de engajamento em que todos os conhecimentos
(meus e de outros) sobre o campo, apesar da passagem do tempo, esto enraizados. Cada captulo
toma como assunto uma palavra que ao mesmo tempo conceito analtico termo que faz parte de
um sistema de conhecimento e uma categoria em uso na experincia poltica dos Fruns: so
temas generalizantes, guias formais para a anlise, mas tambm noes procedentes do mundo da
vida (Koselleck, 2011, p. 307), feitas de particularidades e transformaes. Podemos dizer que
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estes termos nos oferecem chaves para decifrar relaes e situaes concretas justamente porque,
como prope Reinhardt Koselleck, outra das inspiraes importantes desse trabalho, so
constitutivas ao mesmo tempo da histria e de seu conhecimento (1979, p. 308).
Como j sugeri, a distncia que possibilita a construo de um olhar analtico distinto do
olhar de dentro , antes de mais nada, uma distncia temporal. A relao entre como se vive o
tempo da histria e como se produz seu conhecimento torna-se um problema que atravessa escolhas
metodolgicas e inspiraes tericas da tese e uma questo subjacente aos trs captulos analticos
que a compem. Estratgia, metodologia e memria, tal como se apresentam, marcadas por seus
usos contingentes no contexto do FSM, so noes entrelaadas dimenso do tempo: do a ver e
produzem relaes entre passado, presente e futuro.
O Frum como lugar poltico
Os discursos sobre aquilo que o Frum deve ser e para que serve so o material do primeiro
captulo da tese, articulam-se em torno a uma proposio estratgica: construir o FSM como lugar
de poder e saber e como lugar poltico particular no contexto de um movimento global mais
amplo, colocando novos atores em destaque no debate anti ou alter-globalizao. Como prope
Koselleck, a anlise racional que encontramos em textos programticos e analticos faz parte da
constituio de horizontes de expectativas (2011, p. 310): em sua natureza estratgica, a tarefa deescrever o Frum, um trabalho de antecipao do futuro. Os discursos que tomamos como
material fundamental do primeiro captulo, em particular aqueles produzidos entre 2000 e 2002,
falam do Frum no futuro: no se referem a experincias realizadas e conhecidas, mas ao domnio
do ainda no, daquilo que se espera, deseja, ou teme que ele seja.
Por volta do ano 2000, o cenrio poltico internacional estava marcado pela presena
insistente de manifestantes contrrios ordem mundial neoliberal que se consolidara aps o fim dos
acordos de Bretton Woods. articulao de campanhas atravs de redes internacionais, como as
campanhas contra a implementao da rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA) e o Acordo
Multilateral de Investimentos, somavam-se protestos de rua cada vez mais espetaculares. As
jornadas de protesto contra a Organizao Mundial do Comrcio (OMC) realizadas em Seattle,
Estados Unidos, em novembro de 1999, foram reconhecidas como a mais importante manifestao
que a sociedade norteamericana conheceu desde os anos de manifestaes contra a guerra do
Vietn (Seoane e Taddei, 2001, p. 113). Em 2000, uma multitudinria manifestao contra a
reunio anual do Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial em Praga, na Repblica
Tcheca, conquista as manchetes de jornais em todo o mundo.
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Onde quer que autoridades se reunissem para falar de globalizao, os manifestantes
antiglobalizao apareciam exibindo bandeiras e faixas, desafiando nuvens de gs lacrimognio,
gritando palavras de ordem, atirando pedras, deitando-se ou danando no meio da rua (Di Giovanni,
2012). Graas a esses protestos, um imaginrio poltico particular comeou a ganhar corpo: a
prpria a ideia da inevitabilidade das formas da economia global era contestada por formas de
organizao percebidas como novas, no tradicionais, que produziam um quadro de ao distinto
das agendas de partidos e os sindicatos, convencionalmente inscritas no contexto particular do
Estado-nao. Emergia um movimento global que tinha a escala planetria como base,
simultaneamente demandando e produzindo uma esfera poltica transnacional para seus discursos e
prticas (Nunes, 2005, p. 279).
Estamos vencendo dizia uma pichao em um muro durante os protestos de Seattle,difundida por uma fotografia: uma rede de ativismo decentralizada e sem nome exibia nas ruas
vitalidade, disposio em driblar foras policiais e habilidade de roubar a cena em um mundo
globalizado, confrontando as autoridades da ordem mundial. Como seguir vencendo era o
problema. Como encontrar formulaes coletivas sobre o significado poltico dessas vitrias? Como
capitalizar as energias das dezenas de milhares de manifestantes que saiam s ruas contra as
corporaes transnacionais, a Organizao Mundial do Comrcio ou o Fundo Monetrio
Internacional? Como dar o prximo passo na crescente confrontao que a fora daquelasmanifestaes finalmente permitia imaginar? Diante destas questes, comea a ser concebido um
outro tipo de evento: no voltado para o protesto, mas para a reflexo, um encontro de intelectuais e
movimentos de todo o planeta que oferecesse oportunidade de elaborao, no plano das ideias e
conceitos, da rebeldia antiglobalizao que se tornara visvel nos protestos de rua.
O Frum Social Mundial foi concebido neste esprito, como um evento simultneo e
antagnico realizao anual do Frum Econmico Mundial em Davos, Sua.6 Tratava-se assim de
uma espcie de contra evento, como os protestos de Seattle e Praga. No entanto, a iniciativa doencontro partia da avaliao de que os protestos eram insuficientes do ponto de vista poltico,
falhando em comunicar a um imaginado pblico global a existncia de proposies alternativas ao
neoliberalismo. Manifestar-se contra, at ento, parecia um modo efetivo de expor as injustias
do sistema mundial capitalista, mas, segundo Teivo Teivanem, ainda que vrios grupos
participantes tenham afirmaes programticas para futuros alternativos, a forma como esses
eventos foram encenados no foi muito favorvel a chamar a ateno pblica para esses futuros.
6 Encontro anual que rene os principais lderes empresarais, poltcos, intelectuais, empreendedores sociais ejornalistas para discutir as agendas da economia global, cuja base organizacional uma fundao sua financiada pormais de mil empresas de alcance transnacional.
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Parecia o momento propcio para transpor o limite do anti e desenhar para o movimento global
um horizonte construtivo: no se trata apenas de afirmar que o mundo no uma mercadoria, era
preciso sintetizar positivamente o sentimento de agitao social em torno de uma proposio um
outro mundo possvel.
No contexto de um suposto consenso sobre a necessidade da passagem a um momento mais
propositivo na histria deste movimento global, localiza-se a narrativa mais difundida sobre a
origem do Frum Social Mundial (FSM). A ideia original do evento e a definio de suas principais
caractersticas teriam sido fruto de uma conversa entre Oded Grajew, coordenador do CIVES
(Associao Brasileira de Empresrios pela Cidadania), Francisco Whitaker, da Comisso Brasileira
de Justia e Paz (CBJP) - rgo vinculado Congregao Nacional de Bispos do Brasil (CNBB),
voltado a temas de justia social e desenvolvimento e Bernard Cassen, diretor do jornal Le MondeDiplomatique e presidente da j mencionada rede ATTAC. Durante um encontro dos trs em Paris,
em fevereiro de 2000, imagina-se um evento anti-neoliberal a ser realizado em um pas do Sul
Global. Tendo em mente uma contraposio ao Frum Econmico Mundial de Davos, onde a
globalizao era tema de debates a servio do capital, propunha-se um outro encontro de
dimenso mundial e com a participao de todas as organizaes que vinham se articulando nos
processos de massa, voltado para o social o Frum Social Mundial (Whitaker, 2004). O Frum
Social deveria ser realizado nas mesmas datas do Frum Econmico, para que reforasse assim aoposio simblica e miditica entre os dois eventos (Teivanen, 2009).
Segundo o relato de Whitaker, teria partido de Bernard Cassen a ideia de sedi-lo e Porto
Alegre, capital de um estado que vem se tornando conhecido por suas experincias democrticas e
de luta contra o neoliberalismo (Whitaker, 2004). A perspectiva de Porto Alegre como uma cidade
de esquerda e anti-neoliberal vinha da notoriedade das experincias implementadas na cidade pelos
governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que se manteve na prefeitura por 16 anos, entre 1988 e
2004. Entre as iniciativas mais conhecidas, o programa de Oramento Participativo sistema deconselhos eleitos e assembleias abertas para a definio de prioridades e monitoramento da
aplicao de parte do oramento municipal ganhara fama internacional como um mecanismo
inovador de democratizao, participao popular e transparncia. Em 1998, Olvio Dutra, primeiro
prefeito petista de Porto Alegre, elegera-se governador do Estado do Rio Grande do Sul (1999-
2002), de modo que um evento na cidade poderia buscar o apoio no apenas da prefeitura, mas do
governo estadual.
O ncleo de organizaes brasileiras dispostas a assumir a iniciativa forma-se no em Porto
Alegre, mas em So Paulo, atravs de um acordo de cooperao entre a representao nacional da
ATTAC, a Associao Brasileira de ONGs (ABONG), as ONGs Ibase (Instituto Brasileiro de
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Anlises Scio Econmicas) e CIVES, a Rede Social de Justia e Direitos Humanos, a Comisso
Brasileira de Justia e Paz da CNBB, a Central nica dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) entidades que constituem a partir deste momento o Comit
Organizador Brasileiro do Frum Social Mundial. Uma comitiva destas entidades viaja a Porto
Alegre para uma exitosa consulta ao Governador Olvio Dutra e ao ento prefeito Raul Pont (1997-
2000) sobre as possibilidades de apoio ao evento, propondo como princpio a condio de
independncia da coordenao poltica da iniciativa, a ser conduzida no pelo Estado, mas pelas
entidades da sociedade civil (Whitaker, 2004).
Desde o primeiro evento FSM, realizado com apoio massivo da Prefeitura e do Estado e a
cooperao de redes de ONGs e agncias internacionais de financiamento, a responsabilidade das
decises polticas e logsticas passam pelo Comit Organizador. Alm de criar condies materiaispara a realizao dos Fruns, o Comit torna-se o centro mobilizador da enorme rede de
organizaes, de natureza to variada quanto possvel, interessadas em produzir um evento de
oposio ao Frum Econmico Mundial, a propor e realizar atividades nas cidade de Porto Alegre,
durante quatro ou cinco dias coincidentes com a realizao do Frum de Davos. Desde o incio,
foram convocados a participar do encontro todos os coletivos, de qualquer parte do mundo, que
manifestassem oposio ao neoliberalismo e fossem capazes de enviar representantes capital
gacha e garantir o desenvolvimento de atividades com recursos prprios no mbito de um vastoprograma comum.
Na primeira edio do Frum, o pblico de 20 mil pessoas j supera as expectativas dos
organizadores: esperava-se inicialmente algo em torno de cinco mil pessoas. Em 2005, quando o
Frum, j em seu quinto ano de existncia, foi realizado pela quarta vez em Porto Alegre, 155 mil
participantes foram cadastrados, sendo 35 mil integrantes do Acampamento da Juventude e 6.823
comunicadores. Neste que foi o ltimo ano em que foi realizado em Porto Alegre, o evento reuniu
cerca de 6.872 organizaes de 151 pases e 2.500 atividades diferentes: segundo estimativas daBrigada Militar, 500 mil pessoas circularam pela rea destinada s atividades do Frum, (FSM,
2005).
Odaci L. Coradini discute a participao no FSM a partir de um estudo baseado em
entrevistas e na aplicao de questionrios, promovida pelo IBASE (2005), no ltimo ano de
realizao do Frum em Porto Alegre (Coradini, 2009). Os limites da investigao frente
magnitude e complexidade do evento, so destacados de sada pelo autor, que registra ainda os
riscos do celebracionismo que ronda o estudo desde o trabalho de coleta de informaes. Para
Coradini, parece forada toda identificao de um denominador comum orientao poltica que
unifique o amplo leque de organizadores e pblico para alm de uma oposio generalizada
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globalizao (cuja definio varia muito). a partir de distines internas ao grupo de promotores
do Frum que o autor concebe as linhas gerais de mapeamento dos participantes do Frum:
alguns polos destacam-se, quanto s modalidades de organizao e de princpios delegitimao [] guardadas as propores, so basicamente esses mesmos polosque dividem e opem o conjunto de participantes, embora evidentemente com
pesos diversos (Coradini, 2009, p.224).
Segundo estes critrios de polarizao relativos a padres de organizao e de legitimao,
Coradini identifica na composio do Frum Social Mundial as presenas de organizaes sindicais
de esquerda (aspas do autor); ONGs de mbito local e nacional tambm esquerda; dos ditos
movimentos sociais, aqui definidos pela referncia ao MST, como aglutinaes de outras
organizaes menores e locais, mobilizadas em nome da populao pobre (aspas do autor) ou fora
do mercado de trabalho; organizaes com base no recorte de gnero; associaes de empresrios
em torno do tema da cidadania ( o caso do CIVES); organizaes estudantis; e organizaes
diretamente vinculadas Igreja Catlica (Coradini, 2009, p. 225-226). Em um polo quase residual,
o autor agrega as organizaes de muito peso na promoo do FSM, mas sem maior insero no
Brasil, como seria o caso da ATTAC.
Atravessado por esses e outros contedos de identidade e polaridades, o Comit
Organizador foi responsvel, pelo menos nos primeiros anos do Frum, pela realizao, de formaconcertada, de um ncleo de atividades de debate e apresentao de vises polticas que oferecesse
uma espcie diagnstico geral do mundo e das alternativas prticas ou tericas gestadas em
oposio ordem neoliberal da globalizao. Na preparao do FSM 2001, as organizaes
internacionais que desempenhavam papel de mobilizao e apoio poltico realizao do evento
foram includas em uma instncia provisria chamada de Comit Internacional Consultivo. Em
grande medida, a realizao de debates de maior destaque, assim como a participao de
intelectuais e lideranas polticas de reconhecimento internacional, dependia das redes de contato erelaes diretas dos membros do Comit e das organizaes que eles representavam. Ao Comit
Organizador, inicialmente de forma autnoma e mais tarde atravs de consultas formais s
organizaes participantes, cabia a formulao de um conjunto de temas ou eixos, em torno dos
quais todos os participantes deveriam propor suas atividades.
Como aponta Nunes (2005), todos os atores brasileiros envolvidos no lanamento do Frum
Social Mundial tinham relaes de longa durao com o Partido dos Trabalhadores (PT). O maior
partido de esquerda da Amrica Latina fora desde o final dos anos 1970, um dos mais importantesguarda-chuvas da poltica brasileira: especialmente no caso da CUT e o MST, mais do que
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simplesmente 'relacionados', foram talhados na mesma madeira, vieram do mesmo caldo de cultura
de que nasceu o PT no incio dos anos 1980 (Nunes, 2005, p. 280). A presena do partido no
Frum no pode ser tratada, como afirma o autor, como algum tipo de infiltrao: mais do que
como um fator de interferncia externa, essa presena uma contingncia da poltica nacional e
local. No se trata de um ator oculto manipulando as decises sobre temas e convidados, mas um
fator fundamental do cenrio poltico em que tais decises tm lugar:
a linha condutora comum entre os atores relacionados ao PT o governo do Estadoe alguns membros do Comit Organizador no eram ordens emanadas de algum
ponto, mas um entendimento compartilhado sobre quais outros atores deveriam serincludos e qual deveria ser a cara do Frum (Nunes, 2005, p. 281).
O contexto das atividades da sociedade civil relacionadas a eventos oficiais promovidos
pelas prprias instituies internacionais, em particular no mbito do sistema das Naes Unidas,
outro dos elementos importantes desse cenrio. A formao de um primeiro Comit Internacional
de Apoio ao Frum marcada por essa contingncia: ele constitudo oficialmente na ocasio das
atividades da sociedade civil paralelas s sesses especiais da Assembleia Geral das Naes Unidas
sobre o desenvolvimento social, a chamada Copenhagen+5, em Genebra, Sussa, de que participa
uma comitiva do Comit Organizador acompanhada pelo ento vice-governador do rio Grande do
Sul, Miguel Rosseto (Whitaker, 2004, p. 2; Azzi, 2007, p. 112). Tambm importantes na articulaode organizaes e redes internacionais europias, em particular em torno da realizao do
primeiro Frum teriam sido as reunies paralelas ao Frum Econmico Mundial de Davos, onde
circulavam propostas de consolidao de uma estrutura de colaborao, reflexo e articulao
poltica permanente entre as organizaes e redes envolvidas em aes nacionais e internacionais
contra as polticas neoliberais (Whitaker, 2004, p. 1-2; Tarrow, 2005, p. 130).
Como afirma Sidney Tarrow, encontros paralelos da sociedade civil, organizados para
coincidir com reunies internacionais oficiais, eram comuns nos anos 1980 e 1990:
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na medida em que a Guerra Fria arrefece e a prtica de realizao de cpulasinternacionais oficiais cresce geometricamente, as ONGs e movimentos sociaiscomearam a voltar sua ateno para a decises tomadas durante essas reunies,organizando encontros paralelos (2005, p. 129)7.
Ao final da dcada de 1990, tendem a se intensificar contra-cpulas, tambm simultneas
aos eventos oficiais, mas mais abertamente questionadoras da legitimidade das instituies
internacionais e claramente ligadas a prticas de confronto, tanto dentro dos espaos oficiais abertos
participao disciplinada da sociedade, quanto em manifestaes conflitivas do lado de fora
desses espaos: Seattle, em 1999, representaria o auge desta tendncia ao acirramento das
confrontaes.
Tarrow define o surgimento do Frum Social Mundial como uma fuso oportuna entre o
modelo da cpula paralela, mais comum para as organizaes dos pases da Europa e dos Estados
Unidos, e os encuentros internacionais que j faziam parte da cultura de ONGs e diferentes
movimentos sociais na Amrica Latina. Comum no movimento estudantil e entre as organizaes
feministas do continente, por exemplo, a prtica do encontro internacional tambm ganhara novo
significado na dcada de 1990, com a realizao, em 1996, do primeiro Encuentro Intergalactico
Contra el Neoliberalismo y por la Humanidad,em Chiapas, no Mxico. Trata-se da regio que o
levante do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional tornara um importante locus de inspirao e
intercmbio poltico (Nunes, 2005, p. 278), onde que os grupos e redes dos pases do norte, que
comeavam a mobilizar-se para boicotar as corporaes transnacionais e bater de frente com as
instituies financeiras internacionais, encontravam-se com o imaginrio das lutas populares latino-
americanas renovado pela potica do discurso zapatista.
As reunies paralelas, contra-cpulas e encuentroseram formas familiares e referncias para
os brasileiros que tiveram a iniciativa de promover o primeiro Frum e para os governos que se
interessaram em apoi-la (Tarrow, 2005, p. 130). Eram formas que expressavam concepes sobre a
poltica por vezes contraditrias. Por um lado, um evento internacional anti-neoliberal no poderia,naquele momento, ser concebido sem incorporar a linguagem organizativa e as expectativas que
7No caso das conferncias do sistema ONU, por exemplo, essa movimentao adquire uma dimenso fundamentaldurante os anos 1990, na medida em que as prprias conferncias tornam-se regulares e passam a ser consideradas partede um sistema global de governana, constituindo um espao de construo de acordos e objetivos comuns entreestados. Segundo Constanza Tabbush (2005), a regularidade e a visibilidade crescente destas conferncias as tornavaatraentes para a organizaes e movimentos interessados em influenciar os debates sobre polticas internacionais emtemas como direitos humanos, meio ambiente, desenvolvimento sustentvel, direitos das mulheres, racismo e novastecnologias. Ao mesmo tempo, a presena da sociedade era importante para aumentar a legitimidade das prpriasorganizaes internacionais e dos governos envolvidos nas negociaes nesses espaos. Este interesse significou, por
exemplo, que o apoio financeiro s ONGs crescesse significativamente entre os anos 1995 e 2000, perodo de ascensodo dito movimento antiglobalizao mas tambm de proliferao das conferncias globais das Naes Unidas sobre ostemas mencionados: uma das caractersticas da conferncias globais dos anos 1990 foi o encorajamento sem
precedentes da participao da organizaes do sociedade civil (Tabbush, 2005, p. 6).
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marcavam a ascenso de um movimento nas ruas, protagonizado por ativistas jovens: a crtica s
formas organizativas hierrquicas vistas como tpicas de uma esquerda composta fundamentalmente
por partidos polticos e sindicatos; as estruturas ditas horizontais e descentralizadas de tomada de
deciso; a organizao em rede de grupos poltica e ideologicamente autnomos e a resistncia
institucionalizao. Como veremos no Captulo I, a produo de anlises e balanos concomitante
realizao dos primeiros Fruns Sociais Mundiais fortemente marcada por um discurso de
valorizao disso que se apresentava na poca como uma nova forma de fazer poltica. Como
sntese dessa forma nova, surge para definir o carter do FSM a noo de espao aberto, ou
espao de dilogo, opostas ao sentido programtico ou de dirigismo que pareciam estar contidos
na noo de movimento.
Por outro lado, a concepo do Frum como espao, tambm fundada em mecanismosracionalizados de controle e hierarquizao tais como a criao de uma Carta de Princpios, a
concentrao das decises e gesto de conflitos polticos nas mos de um Comit Organizador e a
consolidao de um emaranhado crescente de regras de participao que tornavam o evento vivel
do ponto de vista das relaes institucionais, interessante para os investimentos do Estado e das
Agncias de Cooperao Internacional8. Cada evento sucessivo expande a variedade de grupos
participantes (e o nmero de participantes individuais), mas traz tambm um grau mais elevado de
institucionalizao (Tarrow, 2005, p. 131), bem como a consolidao de prticas no rarosemelhantes a formas ditas velhas, mecanismos de direcionamento e acumulao de poder
conhecidos das ONGs, bem como da esquerda partidria e sindical. Atravs do Frum, espao de
menos confronto, mais estruturado e favorvel do que os protesto de rua a gerar imagens amigveis
atravs da imprensa internacional, muitos grupos e organizaes que nos anos anteriores tiveram
um papel secundrio puderam vir frente outra vez e dar seu toque particular alter-globalizao
(Nunes, 2005a, p. 305). Esse vir a frente, em grande medida, toma a forma de discursos cujo
assunto o prprio Frum Social Mundial, discursos que constroem o Frum como sinnimo deum novo horizonte de ao poltica.
De maneira geral, esse Frum imaginado e escrito como locus da poltica do futuro,
combina ao contexto de prticas organizativas do universo institucional de relaes entre
organizaes sociais e Estado que caracterizam tanto o contexto das cpulas internacionais
paralelas quanto o quadro nacional de atuao das organizaes brasileiras que assumem
responsabilidades pela realizao dos eventos linguagem da auto-organizao, da radicalizao
democrtica e da reflexividade, fortalecida durante o ciclo de protestos do final dos anos 1990.
8Ver no anexo C a tabela de financiadores.
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O Frum como forma
Aps a realizao do primeiro encontro em 2001, a estrutura organizativa formada pelo
Comit Organizador Brasileiro e seu escritrio/secretaria sediado em So Paulo, comea a se
expandir. criado Conselho Internacional composto por dezenas de organizaes e movimentos,
tomados como representativos de lutas anti-neoliberais, que passa a responder pela direo poltica
do Frum Social Mundial. O Conselho Internacional, do ponto de vista de sua composio e do seu
lugar no processo de tomada de decises, incorporava e ampliava o Comit Internacional
Consultivo criado para apoiar a realizao do primeiro evento. Em sua nova forma, o Conselho
Internacional torna-se uma espcie de mbito permanente do FSM e referncia internacional a que
passa a se remeter o Comit Organizador Brasileiro. O documento Entenda a estrutura do Frum
Social Mundial, divulgado em dezembro de 2002, informa:
As questes polticas gerais, a discusso sobre os rumos do FSM e as metodologiasdos eventos anuais so debatidas e encaminhadas no mbito do ConselhoInternacional, composto por cerca de 130 organizaes, movimentos e redes cujaao tenha abrangncia internacional ou representatividade reconhecida (FrumSocial Mundial, 2002b).
o Conselho Internacional que aprova, neste momento, a Carta de Princpios (Anexo A),
documento que passa a representar a totalidade do Frum Social Mundial como um processocolaborativo e torna-se uma referncia constante de todas as decises e procedimentos internos da
em diante. Os contedos da Carta, organizados em 14 pontos - snteses formuladas em um contexto
particular - foram construdas, em sua primeira verso, pelo conjunto de organizaes brasileiras
que compunha at a concluso do primeiro evento, a nica instncia organizativa reconhecida,
capaz de emitir discursos em nome do Frum Social e definir suas regras. O emprego do termo
metodologias no documento que define as atribuies do Conselho importante: a linguagem do
mtodo ser, da em diante, o principal registro da atuao desta instncia Internacional, enquanto o
poder do Comit Organizador permanece ligado ao mbito da infra-estrutura.
A aprovao da Carta pode ser considerada o primeiro momento em que o FSM tratado
como uma forma poltica especfica. Mais do que estabelecer propsitos, trata-se de princpios de
um modelo organizativo ainda bastante indefinido: a Carta uma matriz de representaes polticas
a que devem corresponder algumas determinaes formais. Muitos pontos estipulados na Carta
tratam de uma srie de questes de ordem: a definio do tipo de atividades a ser realizadas no
quadro FSM, definido como lugar de debates, reflexes e circulao de propostas concebidas como
alternativas a um processo de globalizao comandado pelas corporaes transnacionais, pelos
governos e instituies transnacionais a servio de seus interesses; a preveno de disputas
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internas de poder sintetizadas na definio do Frum como espao aberto s diversidades; e o
estmulo ao reconhecimento mtuo e construo de iniciativas comuns entre as entidades e
movimentos que dele participam (Carta de Princpios, 2001).
Em outros documentos oficiais, como o Guia de Princpios para a realizao de eventos
FSM (2008), est presente um esforo semelhante de definir o Frum tendo como referncia uma
srie de procedimentos: ele sintetizado politicamente como uma espcie de manual prtico, algo
determinado por uma ordem de instrues e tarefas, mais do que por frmulas ideolgicas (essas
quando aparecem, tendem ao minimalismo)9. As concepes do FSM comoformae como mtodo,
fundadas na mesma perspectiva, ganham importncia nos primeiros anos de sua existncia e
continuam em operao depois de 2005, ao ponto de resultar no Guia mencionado acima, criado em
2008 como complemento Carta de Princpios. O socilogo Boaventura de Souza Santos incorporaessa abordagem ao dar o ttulo de Manual de Uso a sua anlise do Frum publicada em 2005
(Santos, 2005).
Os discursos em que o Frum Social definido como um forma metodolgica, objeto do
segundo captulo da tese, dialogam com a centralidade que as formas prticas adquirem no contexto
do movimento antiglobalizao, assumindo, mais do que as formulaes de demandas ou objetivos,
o papel de dar sentido organizao poltica. Como destaquei anteriormente, a anlise de sentidos
polticos neste contexto demanda um trabalho de descrio etnogrfica das formas da ao, uma vezque nos discursos dos prprios militantes, o corao do que Janet Conway chama de ethos
antiglobalizao (2008, p. 3), algo de que o FSM herdeiro, inseparvel de modelos prticos de
organizao, comunicao, confrontao e tomada de decises. Mesmo os ideais e conceitos mais
abstratos como criatividade, resistncia e rede chegam a ser definidos, nesta perspectiva
9Como acontece em um dos verbetes do inventrio ldico Astcias e tcnicas das lutas anti-capitalistas, de MorjaneBaba (um pseudnimo), publicado na Frana em 2003, um Frum Social pode ser descrito como uma rotina: Imensafeira da contestao, com estandes e barracas de lanche, bem como uma grande concentrao de camisetas com a efgiede Che e venda aos gritos de jornais raros com ttulos de outros tempos. Parte-se dali frequentemente com os bolsoscheios de panfletos os mais longos so os melhores os cadernos cheios de notas sobre mltiplos assuntos e acaderneta de endereos cheia de novos amigos ao redor do globo. Nos Fruns Sociais se encontram reunidos sindicatos,associaes, ONGs, partidos, mas tambm indivduos e grupos informais. Todos apresentam suas atividades e
participam dos debates e oficinas. A encontramos diferentes tipos de lugares de reunio, diferentes tipos de uso dapalavra [prise de parole](conferncias, debates, discusses mais horizontais, reunies polticas), um acampamento oualdeia, espaos auto-gestionados, espaos mais oficiais, hotis de luxo tomados de militantes. Um Frum Social
Mundial acontece todos os anos (os trs primeiros aconteceram e Porto Alegre, o de 2004 acontecer na ndia), ao qualse somam fruns sociais continentais, regionais, temticos, da minha cidade, do meu bairro (Baba, 2003, p. 104-105).Em tom ingnuo e irnico,Morjane Baba define o Frum descrevendo o que se faz dentro dele, como uma sequnciade procedimentos.
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pragmtica, como formas utilitrias: ferramentas10 que no apenas servem como meios
subordinados a um fim, mas podem ser empunhadas como smbolos de identidade, constituindo a
uma linguagem de diferenciao entre grupos (Di Giovanni, 2012).
O Frum Social Mundial, pode ser entendido como uma forma utilitria pela qual se
pretende diferenci-lo politicamente de experincias organizativas anteriores e contemporneas. O
segundo captulo desta tese, ao mesmo tempo em que busca apresentar a evoluo de uma
morfologia do Frum, busca construir uma distncia com relao aos enunciados que restringem a
anlise da forma ao registro utilitrio. No contexto dos estudos recentes sobre os movimentos
sociais, Daniel Cefa, no extenso trabalho Pourquoi se mobilise-t-on? (2009), faz consideraes a
serem levadas em conta antes de tomar o utilitarismo das definies militantes ao p da letra: o que
so ferramentas? A metfora da caixa de ferramentas, carregada de suposies de funo eeficincia, segundo Cefa, empregada com frequncia nos movimentos, incorporada em larga
medida pelas anlises baseadas em teorias da ao racional, da gesto de recursos, repertrios e
estruturas de oportunidade. Ela problemtica, afirma o autor, porque silencia o fato de que um
modo de ao, uma prtica, mais do que um instrumento, um operador de uma gramtica poltica:
define certos modos de visibilidade, de espacialidade e temporalidade (Cefa, 2007, p. 254). Alm
de investigar que relaes uma ferramenta capaz de produzir, preciso perguntar pelas relaes
e ordens em que se inscrevem sua criao e seus usos.No Captulo 2 veremos como, no caso Frum Social Mundial, sua realizao enquanto
metodologia, independente de qualquer valor de eficcia, o que define sua unidade poltica
enquanto processo e define o pertencimento de certos atores a uma mesma totalidade poltica: o
processo-Frum. preciso portanto, levar srio a proposio do Frum-como-mtodo, levar
adiante sua descrio como forma utilitria, mas duvidar das relaes aparentemente simples entre
recursos e oportunidades que aparecem para explicar, por exemplo, todo o universo de decises
e escolhas que determinam como, quando, onde e com quem um Frum Social acontece. Sob arubrica da forma e, mais especificamente, da metodologia, so definidos os temas a serem tratados
durante os eventos, as modalidades de inscrio de participantes, a tipologia das atividades, os
critrios para sua inscrio na programao do encontro e a distribuio da programao no tempo e
no espao. Fazer parte do Frum Social Mundial significa adotar uma srie de procedimentos, neste
sentido, adotar um mtodo que abrange, em sua escala mais ampla, as noes abstratas de respeito
10No livreto Caja de Herramientas, publicado em Buenos Aires por um coletivo de ativistas formado a partir deatividade realizadas no contexto do segundo Frum Social Mundial, tais conceitos so apresentados como peas de uma
caixa de ferramentas: "Pensamos que su productividad ser mayor em tanto que sean tomados simplemente comorecursos (herramientas) que podrn luego ser utilizados y recreados libremente por aquellos que se sientan llamados ahacerlo, afirma o texto de apresentao do Colectivo Intergalactika para sua Caja de Herramientas para la MilitanciaAnticapitalista (Intergalactika, 2003, p. 4).
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diversidade e disposio colaborativa, mas tambm, em escala reduzida, uma srie de regras
prticas que comeam com o ato de inscrio. A metodologia, tambm chamada de arquitetura
do Frum, no uma ferramenta neutra: ela estabelece classes de participao que correspondem a
critrios de legitimidade e representao. O sentidos polticos do Frum Social Mundial tendem a se
desdobrar em regras ditas metodolgicas, regras que do forma a esta experincia poltica.
O Frum como experincia
No por acaso a memria o tema do ltimo captulo desta tese. Se muitas vezes a memria
est identificada ideia de acmulo (de dados, documentos, resultados), ela remete tambm ao que
ficou faltando, lacunas e frustraes, que dizem tanto sobre uma experincia poltica quanto a
coleo de coisas que possam ser dispostas em catlogos ou somadas ao saldo positivo de umbalano. No universo denso das coisas vividas h muito do que escapa ao esforo de racionalizao,
contido nas anlises que se escreve sobre o Frum, e do que no obedece a regras de uso que
pretendem definir seu sentido. Uma incalculvel parte das atividades realizadas em Porto Alegre
durante os dias dos Fruns, bem como as pessoas que ali circulam, no passam pelo processo
formal de inscrio ou programao, nem so lembradas em informes e balanos. As propores de
cada um dos eventos ultrapassam e muito as capacidades explicativas de seus participantes e
organizadores. Em uma reunio de balano aps a edio de 2002, quando o Frum ainda noatingira nem a metade dos nmeros de participao a que chegaria em 2005, algum j afirmava sua
dificuldade em dar conta daquela experincia: o Frum ultrapassou a escala humana.
Na dimenso da memria, assunto do ltimo captulo da tese, buscamos recuperar a escala
humana no exerccio de pensar o Frum Social Mundial tal como ele se inscreve no passado,
incorporado a objetos, registros de acontecimentos, elaboraes e vestgios que possam ser
lembrados e articulados. Esta perspectiva particularmente importante para evitar que o Frum seja
reduzido a um modelo esquemtico como relao histrica de causa e efeito ou como uma espcie
de estrutura funcional vazia, a ser preenchida por contedos. A indagao sobre como o Frum
inscreve-se nas experincias individual e coletiva uma questo fundamental para que se possa
descrev-lo e analis-lo como fenmeno da ordem da cultura.
Tratar o FSM como fenmeno da cultura no equivalente a afirmar, sem maiores
consequncias, que o Frum Social Mundial define-se como uma nova cultura poltica
(Gribowsky, 2006). Aqui, pelo menos, a noo de cultura poltica no parece corresponder em
nada noo antropolgica de cultura: ela antes a ideia de cultura como um conjunto
suficientemente restrito de recursos, uma reedio da metfora da caixa de ferramentas. Neste
sentido, aparentemente, um objeto se torna cultural" na medida em que cabe em uma caixa,
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separado de seus usos improvveis e sobretudo considerado independente das relaes que lhe do
sentido: perde seu sentido poltico. necessria alguma vigilncia para que o destaque dado
dimenso cultural no contexto de movimentos sociais no termine recebendo o papel inglrio de
simplesmente designar uma desvinculao entre a ao social e seus efeitos de poder ou
simplesmente sua falncia em termos utilitrios. O cultural tornar-se-ia assim uma espcie de
vazio cognitivo, habitado por coisas efervescentes e aparentemente intratveis em termos da teoria
social, aprisionadas no mistrio das vivncias do corpo, que nunca se misturam com o pensamento
analtico e as decises de natureza estratgica. Sobre os acontecimentos de maio de 1968 na Frana,
Michel de Certeau formula perguntas ainda atuais: a que serve dizer que uma ao considerada
politicamente ineficaz uma revoluo cultural? A que serve, quando parece impossvel
descrever "resultados", enumerar os aspectos culturais de um processo como quem inventariaferramentas antigas, bonitas e fora de uso? (1968, p.42). A dimenso cultural no sentido
antropolgico uma perspectiva de imbricao fundamental entre prticas, poder e produo de
sentido como constitutiva do social.
Nossa reflexo final, sobre um Frum que j passado - mesmo que ainda exista como lugar
e como forma - busca trazer ao primeiro plano uma srie de resduos de uma experincia vivida e
que esta tese, de certa forma, permitir compartilhar. Curiosamente, aqui, o passado no feito de
uma coleo de objetos desbotados: ele vivo, habitado pelo sentido pleno do Frum SocialMundial como o lugar onde preciso estar agora. Um sentido poltico, sem dvida, carregado pela
intensidade fsica e intelectualmente sensvel do momento em que se deseja e pode mudar o mundo
o momento em que nos percebemos participantes ativos de sua transformao.
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1.Escrever o Frum: a noo de estratgia
um poder a preliminar deste saber, e no apenas seuefeito ou atributo. Ele possibilita suas caractersticas e
as comanda. Ele se produz a.Michel de Certeau11
O Frum Social Mundial no apenas um tipo de evento ou uma srie de encontros
localizados e intermitentes, mas envolve uma atividade contnua, em que pessoas e grupos se
encontram permanentemente engajados. A jornalista Naomi Klein registra uma imagem ao final do
primeiro encontro realizado em Porto Alegre, em 2001:
Um fato talvez no incomum no encerramento de um encontro assim me pareceudigno de nota: um casal no avio, que estava nos assentos da fileira ao lado daminha, ainda usava seus crachs do Frum. Era como se eles quisessem
permanecer naquele mundo sonhado, ainda que imperfeito, por um tempo umpouco mais longo, antes de se separarem nas conexes para Newark, Paris, Cidadedo Mxico, engolidos por um enxame de apressados homens de negcios, sacolasGucci dos free-shops e notcias da CNN sobre as cotaes das bolsas de valores
(Klein, 2002, p. 269).
Talvez no seja realmente um fato incomum. Acredito ter visto cenas semelhantes na pocade minha participao nos encontros. Tambm no improvvel que outros participantes tenham
conservado seus antigos crachs, por mais de dez anos, entre outras lembranas de militncia ou no
meio desses papis que se guarda teimosamente em uma gaveta sem saber ao certo o porqu de sua
importncia. Muitas palavras frequentes nos dias dos eventos como entidades, convergncia,
articulao, espao, sistematizao, aglutinao certamente continuam a ser usadas fora
dele. Por um lado, o Frum Social Mundial feito de convergncias temporrias, por outro,
consiste em um emaranhado de relaes, formas semnticas e pertencimentos que sobrevivem apsas cerimnias e marchas de encerramento. Da mesma maneira, para alm da presena nos eventos,
muitos participantes e organizadores, desde 2001, veem e enunciam o Frum Social Mundial como
lcus permanente de sua atividade poltica. Para usar a imagem que nos oferece Klein, alguns
participantes demoram a tirar seus crachs, outros no parecem interessados em faz-lo jamais.
difcil encontrar anlises que definam o FSM como um "ator poltico". Como veremos a
seguir, evita-se faz-lo parecer demasiado monoltico e busca-se distingui-lo do estilo dos partidos
polticos e movimentos. Entretanto, comum que os mesmos autores que enfatizam seu carter
11De Certeau, 1980, p. 60.
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mltiplo e polifnico escrevam sobre ele como um verdadeiro sujeito, dotado de corpo, alma e
vontade "o Frum opta", "o Frum precisa" (Teivanen, 2009, p. 94). Embora constitudo por
diferentes atores e modos de engajamento, no necessariamente coerentes entre si, e ainda que a
literatura enfatize insistentemente sua natureza plural, esse sentido de unidade do Frum nunca
desaparece por completo. Este modo objetivado de se referir ao FSM, que o separa dos sujeitos que
lhe do vida, parece fundamental para que pessoas e coletivos possam experiment-lo e falar dele
como algo que faz sentido em suas aes e discursos.
Aps a realizao do primeiro encontro em 2001, constitudo um Conselho Internacional
do Frum Social Mundial, composto por dezenas de organizaes e movimentos sociais, tidos como
representativos de lutas anti-neoliberais. So as mesmas organizaes que aderem convocatria do
primeiro Frum e que, de alguma forma, declaram-se dispostas a dedicar uma parcela de seusrecursos humanos, econmicos e polticos para consolidar algum tipo de rede de colaboraes em
torno do evento e de seu lema Outro mundo possvel. Includas no Conselho esto as oito
organizaes brasileiras integrantes do Comit Organizador, responsveis pela convocao do FSM
e pela viabilizao do primeiro evento em Porto Alegre. Com uma composio fixa, mas passvel
de expanso, e legitimado por princpios de representatividade temtica e geogrfica, o Conselho
Internacional aparece como lugar legtimo das reflexes e decises consideradas polticas e
estratgicas que devem conferir sentido colaborao entre as organizaes ali reunidas. oConselho Internacional que aprova, naquele momento, a Carta de Princpios, documento que define
o Frum Social Mundial comoprocesso colaborativoe passa a orientar seus procedimentos da em
diante. Segundo o texto da Carta,
O Frum Social Mundial de Porto Alegre foi um evento localizado no tempo e noespao. A partir de agora, na certeza proclamada em Porto Alegre de que "umoutro mundo possvel", ele se torna um processo permanente de busca econstruo de alternativas, que no se reduz aos eventos em que se apoie (Carta de
Princpios, 2001).
Enquanto instncia de tomada de decises, o Conselho recm-formado tambm distingue
seu funcionamento permanente dos eventos em que se apoie. As discusses e decises do
Conselho devem balizar as escolhas prticas implicadas na preparao de eventos futuros, mas fica
claro que o carter poltico e reflexivo de suas atividades referem-se a algo maior. Ao mesmo tempo
em que definem fronteiras e orientam procedimentos, a Carta de Princpios e a vigncia do
Conselho afirmam uma unidade do Frum Social Mundial que ultrapassa o sentido do evento anual.
Assim, a disposio para a continuidade dos engajamentos produzidos no primeiro encontro torna-
se condio necessria de integrao a ser respeitada por tod@s que queiram participar desse
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processo e organizar novas edies do Frum Social Mundial (Idem). A noo de processo
permanente,estabelecida na Carta, torna-se um princpio sobreposto s unidades de sua realizao
como evento anual (FSM 2001, FSM 2002, 2003 e assim por diante). nesse sentido, antes de
qualquer outro, que se torna possvel (e desejvel, segundo os organizadores) referir-se ao Frum
no singular, e no aos Fruns tomados como eventos particulares.
digno de ateno que seja um objeto textual a Carta a referncia permanente da
unidade de diversos que o Frum Social Mundial busca estabelecer. A Carta de Princpios
consolida-se ao longo do tempo como o smbolo mximo da pretendida coerncia interna do Frum
e de sua permanncia temporal, bandeira qual se atribui precedncia sobre quaisquer conflitos e
sobre a mobilizao intermitente dos fruns-eventos. De fato, a palavra escrita publicada na
Internet ou em papel, como material oficial, artigos de opinio e/ou artigos acadmicos, informesem pequenas publicaes de organizaes envolvidas ocupa espao fundamental na constituio e
definio do Frum Social Mundial. Segundo Peter Waterman, o Frum tem algo de um santurio
da palavra escrita e falada, no apenas pelo papel fundamental que a produo e circulao de
textos desempenham para manter o processo vivo fora da ocorrncia dos grandes encontros, mas
tambm porque os acontecimentos mais valorizados nesses encontros so sempre alguns minutos de
um orador ao microfone, diante de um pblico que pode variar de cinco a cinco mil pessoas, em
painis ou conferncias eventualmente transcritas e postas em circulao sob forma textual(Waterman, 2009).
A palavra a forma privilegiada tambm na seo Memria do FSM do site oficial. A
mais uma vez a palavra escrita que ganha protagonismo. Essa memria parece quase inteiramente
feita de transcries de discursos proferidos durante os eventos, boletins informativos enviados aos
participantes durante sua preparao e, principalmente, de anlises e balanos: textos descritivos,
programticos e crticos, produzidos por autores intelectual e politicamente mobilizados por
diferentes experincias de participao no Frum Social Mundial. Michael Albert escreve, em seubalano do FSM de 2002: Foi exaustivo, sem fronteiras, sem pontos finais. Possivelmente em
resposta mesma sensao, compartilhada por muitos participantes12, o que est em jogo nesse
corpo de textos analticos introduzir pontuao, nfases e cadncia na polifonia aberta e exaustiva
dos grandes eventos. Os textos interpretam fatos e discursos, associam ideias, constroem
perspectivas de anlise, julgam, classificam, nomeiam impasses.
12No ano seguinte, na apresentao de sua coletnea de artigos e entrevistas, Isabel Loureiro, Maria Elisa Cevasco eJos Corra Leite expressam a sensao comum: Acabado o Frum Social Mundial de 2002 em Porto Alegre, os
organizadores deste livro, certamente refletindo um sentimento comum a muitos, tiveram que enfrentar suaincapacidade de fazer um balano coerente da experincia vivida naqueles cinco dias. Conversando com uns e outros naesperana de construir uma viso de conjunto minimamente sistematizada, encontravam como resposta dvidas ecomplexidades (Cevasco, Leite e Loureiro, 2002, p. 9).
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Uma imensa variedade de textos desse tipo acompanha a realizao dos eventos do FSM,
publicados com o intuito explcito de intervir nos amplos debates que os encontros alentam, ao
mesmo tempo em que tratam de propor o Frum como um nicho central de formao de opinies,
de propagao e sntese de argumentos. Produzir anlises e fazer balanos, qualquer que seja o
alcance, parte daquilo que Boaventura de Souza Santos chamou de movimento utpico e
epistemolgico do prprio Frum (Santos, 2005, p. 15). Tais avaliaes tm por autores
intelectuais conhecidos apenas no universo do FSM ou alm dele, ou ainda aqueles que no
aparecem em bibliografias, existindo por meio de designaes coletivas ou permanecendo
voluntariamente annimos. Como militante da Marcha Mundial das Mulheres, eu mesma contribu
com essa produo textual, alm de ter colaborado com a elaborao de documentos coletivos,
publiquei dois textos assinados sobre o Frum Social Mundial: um artigo para um dossi daRevista
de Estudos Feministas, e, mais tarde, o artigo Despus de Mumbai, publicado na coletnea
Mumbai - Foro Social Mundial 2004, organizada pela ativista e escritora catal Esther Vivas.
Tendo em comum o fato de terem sido concebidos por seus produtores como formas de
interveno, esses textos escritos, transmitidos e lidos em silncio ou em voz alta, so tambm
responsveis por dar vida a um processo frum expresso muito comum entre organizadores e
participantes, que designa tudo aquilo que o FSM se torna quando deixa de ser apenas um evento. A
ideia de processo produzida, em grande medida, graas a essa circulao de textos, e indispensvel para que o Frum seja percebido como algo contnuo: uma unidade dinmica,
permanente e em evoluo, por oposio ideia do encontro espordico, pontual.
possvel dizer que, do ponto de vista do engajamento dos autores e da noo processual
que os orienta, escreverparao Frum e escrever o Frum so movimentos quase indistintos, que
produzem sua existncia social e cultural. As categorias pelas quais os textos de anlise enunciam
as experincias coletivas so inseparveis da constituio do Frum Social como acontecimento
poltico e histrico. Assim, o Frum processo compreende uma densa formao de enunciados,modos de narrativa e descrio, espacializaes, temporalizaes e segmentaes poltico-
semnticas. Desse ponto de vista, os enunciados de anlise e balano so acontecimentos
discursivos, produzindo efeitos na histria que os precede e que vir depois. Como sugere Foucault,
trata-se de acontecimentos ao mesmo tempo presos ao gesto transitrio da escrita ou da fala e
abertos uma persistncia complexa no campo da memria (Foucault, 1969, p. 41).
Tomar textos de anlise e balano como um conjunto de fontes primrias foi a forma que
encontrei de transpor a sensao de opacidade e esgotamento que me provocou o interminvel fluxo
de discursos produzidos em torno do Frum Social Mundial, fortemente carregados de repeties,
sensao esta que esteve na raiz da minha resistncia inicial a desenvolver um projeto de pesquisa
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sobre o tema. Este esforo tomou, j