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Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015
ISSN 2316-8102
BRASAS
Adrian Heathfield
Tanto já foi dito sobre o trabalho, a vida e a morte de Ana Mendieta que
adicionar uma única frase pode parecer ao mesmo tempo excessivo e
redundante. No entanto, a vontade de retornar a esse trabalho vez após outra é
irresistível: ele é multiforme, fecundo, exige atenção repetida. O emaranhado de
palavras que se formou em torno do corpo da obra de Mendieta é uma reação
direta ao poderoso mutismo do trabalho. Se a intensidade desse discurso nas
décadas de 1980 e 1990 era apenas uma consequência necessária das
circunstâncias de sua morte, ou uma reflexão sobre uma batalha mais ampla a
respeito de que vidas e obras de fato importavam ao mundo da arte na política
violenta da época, então as palavras devem ter arrefecido a essa altura. Mas os
argumentos continuaram a proliferar e engrossar porque a própria obra, em
silêncio e com paixão, continua a falar conosco. Os atos viscerais e incendiários
de Mendieta, seus vestígios corporais e impressões enlameadas ainda tocam,
queimam e incomodam. O uso que ela faz de substâncias elementares (terra, ar,
água, fogo e carne), seus deslocamentos da figura e do solo, comovem por meio
dos paradoxos emotivos da existência mortal: as tensões vividas entre o
material e o imaterial, o presente e o ausente, o que fica e o que vai embora.
Dessa maneira, essas obras operam nos limites do que pode ser pensado e dito
por meio de linguagem. Elas acessam sentimentos de existência elementar e
gesticulam na direção da ausência de limites e da eternidade. Apesar de
evidentemente estarem marcadas pelo momento em que foram
confeccionadas, essas obras carregam uma qualidade atemporal, tanto que
parecem estranhamente contemporâneas. Não é para menos que a obra de
Mendieta continua a perturbar o aparato cultural que deseja ordená-la, localizá-
la e contê-la: o mercado, os museus, os arquivos e as arbitrariedades da história
da arte.
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Ana Mendieta, Rape, 1973. Lifetime color photograph, 8 x 10 polegadas (20.4 x 25.4 cm). © The
Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York
Parte do atrativo da obra de Mendieta vem do seu não conformismo
marcante. É difícil nomear e localizar a prática dela nas narrativas estabelecidas
da história da arte ocidental relacionadas às décadas de 1970 e 1980. A obra dela
migrou rapidamente pelas disciplinas da arte sem se deter em nenhuma mídia
ou movimento específico. A assimilação prolífica e a adaptação singular de
compreensões contemporâneas e formas manifestadas em seu trabalho o situa
entre vários impulsos estéticos diferentes. Os primeiros trabalhos de Mendieta
podem ser vistos em afiliação com a body art: a cru Untitled (Rape Performance)
[Sem título (Performance de estupro)] (1973), junto com suas outras ações
ousadas do período, coincide com muitos aspectos daquela cena emergente.
Mendieta se retratou sem roupa, ensanguentada, “brutalizada” e descartada em
uma “terra de ninguém” anônima, e também em uma performance de duas
horas em seu próprio apartamento. Depois de anos de conceitualismo cerebral,
bacana e higiênico, os artistas foram tomados pela necessidade de
rematerializar a arte contemporânea (e de repolitizá-la) por meio do uso da
carne do artista como matéria estética. Ao explorar o corpo como uma coisa
mutável e que pode ser ferida, como um objeto avariado, os artistas corporais
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testaram os limites das ordens sociais e dos tabus. Risco físico foi utilizado para
questionar relações de poder e de desejo em identidade de gênero. O uso que
Mendieta faz da degradação e da submissão pode ser interpretado neste viés; o
fato de ela reunir um pequeno grupo para testemunhar seu corpo posado,
“profanado”, como uma ferida na consciência social que requer cura política.
Mas Mendieta nunca usou o próprio sangue nesses trabalhos (como fizeram
seus contemporâneos Marina Abramović, Chris Burden e Gina Pane). Ela encarou
a violência patriarcal de frente nessas ações, apesar de seu trabalho evitar o
masoquismo implicado nas feridas repetidas de seus colegas de body art: em
vez disso, ela usou corpos e sangue de animais para aludir ao cerimonial e ao
sacrifício. Sweating Blood [Sangue de Suor], feito no mesmo ano que as peças
sobre estupro, é um curta em Super-8 em que sangue de um coração de vaca
escorre pelo rosto imóvel e passivo dela. O filme manifesta ideias comuns à
body art: o físico e o emocional como rupturas das ordens do visual e do racional.
Porém também apresenta elementos figurativos que serão recorrentes em seus
trabalhos posteriores em escultura e em filme, além dos ambientais: o coração
como material mais do que humano, o interesse nos corpos como entidades
morfológicas e a preocupação com os vestígios corporais e as impressões
afetivas. Esta última preocupação com a força emotiva dos resíduos visíveis dos
corpos é cristalizada em um filme do mesmo ano, Untitled (Moffitt Street) [Sem
título (Rua Moffitt)], em que Mendieta registrou as reações passageiras de
transeuntes diante de um derramamento de sangue nojento na calçada. A
mancha carnal é uma interrupção no dia a dia, uma questão social, mas também
meio de testar a força vital de restos corporais em um local específico.
Como Untitled (Rape Performance) também mostra, Mendieta já estava
envolvida com uma arte no e do ambiente, apesar de a dela ser bem diferente
das qualidades prevalentes de boa parte da land art: natureza transformada em
algo monumental, com a paisagem designada como cena escultural. Da mesma
maneira, Mendieta era atraída pelo lado de fora, pelo mundo natural, e por fazer
intervenções estéticas em locais aparentemente intocados pelo humano e pelo
cultural. No entanto, o gesto escultural dela nesses locais “remotos” invocava
uma relação absolutamente mais íntima e questionadora entre o humano e “o
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selvagem”. O termo que ela inventou para a série Silueta — “esculturas corpo-
terra” — é a epítome perfeita da distinção e do estado liminar desse trabalho. A
relação apaixonada com a matéria elementar inaugurada em seus primeiros
trabalhos levou-a a comunhões temporárias com os materiais rebaixados e sem
forma que são a terra, a areia e as plantas. Longe de colonizar a natureza
alienígena, deixando uma marca de posse nela, há um estar-com-a-natureza
nessas obras que tira a força da reivindicação humana. Ao mesmo tempo, o
longo envolvimento dela com a prática da escultura foi desencadeado pelo
profundo compromisso com a total dissipação do objeto escultural (na natureza)
e por sua tradução nas durações e dimensões bem diferentes da fotografia e do
filme. Aqui há algumas afinidades visíveis com a arte conceitual: o uso da
serialidade e de imagens em estilo documental como evidência direta de uma
atividade. E, no entanto, para Mendieta, a ideia não tinha privilégio sobre a
execução, e estas não eram encenações isoladas, como acontece em boa parte
das obras conceituais: as qualidades emocionais, sensuais e afetivas de seus
materiais eram vitais e eram desempenhadas por meio da forma aguda da
imagem escolhida. A serialidade aqui é aberta e ocorre como a consequência
inevitável de uma paixão mutante e sustentada há muito tempo. Em seus
trabalhos posteriores, em que esculturas e totens reais de fato permanecem,
um diálogo com as noções dominantes da escultura minimalista fica evidente,
mas Mendieta combina simplicidade e atenção à “matéria enquanto matéria”
com elementos bastante contrários ao ímpeto minimalista: formas orgânicas
irregulares persistem ao lado de simbolismo “antigo” enganoso.
Cada uma dessas diferenças em relação ao viés principal da body art, da
land art, do conceitualismo e do minimalismo é influenciada de maneiras
complexas pelo gênero e pela etnia de Mendieta, sua experiência como
forasteira dupla nos mundos de predominância masculina branca em que ela
transitava necessariamente. Mendieta era, de qualquer modo, um sujeito
deslocado e em desvantagem: um ser itinerante. Sua migração de Cuba para os
Estados Unidos com a irmã na adolescência foi resultado da situação política do
pai. Na idade de formação, isso fez com que as irmãs Mendieta fossem
excluídas do privilégio social, de um lar e das relações familiares para viverem
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em condições de tutelagem e alienação étnica e linguística. Muito disso, por
consequência, foi formado a partir da relação de Ana Mendieta com a terra como
“lar”; Mendieta certa vez descreveu seu trabalho como tentativa de recusa junto
à terra, que ela via como “uma imagem posterior do abrigo original dentro do
útero”. No início da carreira ela rejeitou os “lares” institucionais da prática
artística como locais para seu trabalho: o estúdio, a galeria e o museu. Assim,
ela realizou um investimento sustentável não apenas no exterior, mas nos
espaços decididamente marginais, não cosmopolitas e rurais do Iowa, do México
e então, finalmente, em sua “pátria-mãe”, Cuba. Se tais buscas eram dirigidas a
algum tipo de moradia primária, seja de gênero, terra ou nação, sua serialidade
continua a transmitir inquietação e as obras não resolvem (para seus
espectadores, pelo menos) os sentimentos de alienação a partir dos quais
podem comover. Uma certa solidão sempre persiste.
Ana Mendieta, Untit led (Si lueta Series, Iowa), 1977. Lifetime color photograph, 20 x 13 1/4
polegadas (50.8 x 33.7 cm). Coleção Museu de Belas Artes de Boston. © The Estate of Ana Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York
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Ana Mendieta, Untit led (Gunpowder Work), 1981. 35mm slide. © The Estate of Ana
Mendieta Collection, LLC. Cortesia de Galerie Lelong, Nova York
Nesta leitura, a arte de Mendieta fica presa em um movimento repetido
de retorno, uma busca pelo lar e pelo pertencimento conduzido pela terra: um
re-enraizamento. E, no entanto, a natureza frágil e que se desfaz de suas
muitas impressões na terra fala da impossibilidade de algum dia ir para casa, de
algum dia aterrissar, depois que uma pessoa é arrancada de seu lugar de origem.
A terra, de todo modo, não é simplesmente fecunda, abundante ou geradora
nessas obras, também é com frequência árida, inerte e improdutiva.
Instabilidade, não pertencimento e transição são as qualidades primárias que
aparecem nas imagens dela. Os vestígios corporais a que ela alude parecem
dispostos na direção de algum “outro lugar”. As obras de Mendieta com a terra
são uma exceção em relação às obras de muitos de seus contemporâneos
homens da land art, já que ela recusa gestos na direção da terra que iria impor,
suplementar e insistir. Na verdade, paisagens completas são raramente
examinadas na série Silueta – a locação fica fora do enquadramento –; em vez
disso, observamos com os olhos um pouco baixos para os contornos de um
corpo feminino singular contra a matéria da terra. E o que vemos ali não é tanto
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uma construção, mas um alojamento, um encaixe ou amarração de um corpo em
locais de conforto ou descanso temporário. Nas Siluetas posteriores, o corpo
posado de Mendieta abandona a cena e o que sobra são entalhes, moldes,
brasas e chamuscados; o traçado de contornos de uma forma feminina que se
desfaz, se consome, vai embora. A figura se transforma em contorno do corpo,
que por sua vez se dissolve na ausência de forma da matéria elementar. Como
distinguir a figura do solo? Será possível dizer com certeza que Mendieta está
agindo na terra, fazendo uma reivindicação, personificando-a? Terra e
elementos também são experimentados como agentes aqui. Água corre, terra se
desfaz, brasas brilham e fumaça se dispersa, depois some. O status
antropocêntrico da arte é deslocado por uma visão de produção humana como
apenas um aspecto de um sistema vivo de criações terrenas.
É melhor que tais obras sejam lidas como interações entre a terra, os
gestos e os vestígios de uma mulher; invocações das relações vibrantes e do
fluxo de todos os elementos terrenos, incluindo a carne do animal humano. A
terra é tocada com cuidado aqui, acariciada, para permitir que a transformação
incessante e exultante das coisas fale: murmúrios de uma consciência ecológica
radical.
Não é possível localizar as obras de Mendieta, nem pensar nelas como
objetos autônomos, porque as obras raramente residem em uma única forma,
mas vivem em algum lugar entre atos e formas. Este é particularmente o caso
da série Silueta, em que cada Silueta é a relação de uma performance, de uma
escultura, de uma fotografia ou de um filme. Junto com o compromisso
profundo com uma arte que é formada de maneira sensual a partir de matéria
orgânica, que se localiza na natureza e que se reverte aos elementos por meio do
processo inevitável do apodrecimento, vemos que esse investimento produz
algo mais, que acontece por último: imagens e filmes. Mas essa não é a captura
comum da arte performática em uma única fotografia icônica que então faz as
vezes da obra. Como as dimensões arquivistas desta publicação deixam claro, as
imagens de Mendieta proliferaram na medida em que ela tentou traçar durações
de ação no objeto. Perante a obra de Mendieta, o espectador lida com a relação
entre matéria e formas — performance, escultura, imagem —, cada uma delas
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carregando durações distintas, cada uma a consequência de uma atenção
duradoura. A obra se constitui em “algum momento” entre esses períodos: é
atemporal. E o que sobra não é soma nem condensação da obra, mas os
artefatos visuais que parecem iniciatórios, cheios de potencial: apontam a
futuras dissoluções ou reformações, um final nunca é visto. É também por isso
que, apesar das tentações de leituras fatídicas e biográficas, a obra de Mendieta
continua a resistir à sua redução ao ensaio da morte: suas passagens são
insistentemente extáticas, natais e prolíficas. Mendieta falava de seu trabalho
como partícipe “da tradição de um artista neolítico”, e a afinidade vai muito
além dos materiais, das formas e dos símbolos. A noção de arte como ritual, as
repetições sempre diferentes, as invocações de transfiguração e transformação
fazem com que essa arte seja imemorial. Matéria com espírito. Isso vem das
Américas das décadas de 1970 e 1980, mas também de algum lugar distante e
de algum tempo muito no passado, e é absolutamente vital quando vai embora.
Primeira publicação em Ana Mendieta: Traces (Hayward Publishing:
Londres, 2013). Texto reimpresso como cortesia da Hayward Publishing
(http://shop.southbankcentre.co.uk/hayward-publishing).
PARA CITAR ESTE ARTIGO
HEATHFIELD, Adrian. “Brasas”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 3, n. 14, jul. 2015. ISSN: 2316-8102.
Tradução de Ana Ban
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2015 eRevista Performatus e o autor