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RAFAEL PEREIRA DE SOUZA.
BATUQUE NA COZINHA, SINH NUM QUER!. REPRESSO E
RESISTNCIA CULTURAL DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS NO RIO DE
JANEIRO (1870 1890).
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Histria (PPGH), Instituto de Cincias
Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense,
como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo
de Mestre em Histria.
BANCA EXAMINADORA.
Profa. Dra. Gizlene Neder UFF (Orientadora).
Prof. Dr. Gislio Cerqueira Filho UFF
Prof. Dr. Humberto Fernandes Machado UFF.
Profa. Dra. Keila Grinberg UNIRIO.
Niteri, RJ
Maro de 2010.
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Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
S725 Souza, Rafael Pereira de."Batuque na cozinha, Sinh num quer!" Represso e resistncia cultural dos
cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890) / Rafael Pereira de Souza. 2010.
145 f.
Orientador: Gizlene Neder.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias
Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2010.Bibliografia: f. 136 - 145.
1. Cultos afro-brasileiros. 2. Perseguio policial. 3. Resistncia Cultural. I. Neder,Gizlene. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas eFilosofia. III. Ttulo.
CDD 981.04
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AGRADECIMENTOS.
Em uma das mais belas canes da msica popular brasileira, o cantor Roberto
Carlos diz em versos que todas as pedras do caminho, voc deve retirar.
Acompanhando os ensinamentos esta cano, pude contar com a presena e a ajuda de
inmeras pessoas que fizeram com que estas pedras no se transformassem em
grandes obstculos para no atrapalhar esta longa caminhada. Inicio os meus
agradecimentos, de maneira muito particular, a Profa. Dra. Gizlene Neder, pela sua
presena firme e constante, e pela sua orientao responsvel e sempre provocadora.
Sem a sua confiana, este trabalho no teria sido possvel; e sem a sua insistncia e
pacincia o ponto final jamais teria sido encontrado. Eu s tenho a agradecer a esta
grande mestra, e me empenhar sempre ao mximo para ser digno de tamanha confiana
que sempre depositou em mim, desde os tempos que trabalhei como bolsista de
iniciao cientfica no Laboratrio Cidade e Poder da UFF, perodo este que o tema
comeou a ser pensado.
Agradeo tambm ao grupo de orientandos e simpatizantes organizados pela Profa.
Gizlene Neder, todos so membros do laboratrio Cidade e Poder da UFF, e, dentre
todos, em especial minha amiga Ana Paula Barcelos, que leu e discutiu, de maneira
bastante entusiasmada, o meu projeto de pesquisa, sou grato tambm.
Os meus sinceros agradecimentos tambm aos professores Gislio Cerqueira Filho e
Humberto Fernandes Machado, que fizeram parte da banca de qualificao desta
dissertao, e com as suas leituras detalhadas, crticas e muitas sugestes, contriburam
de forma decisiva para o amadurecimento desta dissertao.
A maior parte da pesquisa que deu origem a esta dissertao foi realizada no
Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). A todas as pessoas, e foram
muitas, que me atenderam sempre educadamente; que me protegeram com materiais
como luvas, mscaras e culos cirrgicos para que eu pudesse manusear os Livros de
Matrculas da Casa de Deteno que se encontram em pssimo estado de conservao; e
as pessoas que se desdobraram para localizar meus pedidos, o meu muito obrigado.
Agradeo tambm aos profissionais da Biblioteca Nacional (BN), em especial aos
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profissionais que trabalham nas sees de peridicos e de Obras Raras, que sempre me
atenderam de forma muito educada e solcita.
minha famlia, que me ajudou nas horas mais difceis e que fez de tudo para que
eu tivesse as melhores condies para trabalhar: minha me Rosangela e ao Tio Amaro,
que tem sido mais do que tudo dois grandes amigos, fonte inesgotvel de apoio e de
compreenso, alm de serem exemplos de luta e sabedoria. Agradeo tambm aos meus
tios e tias, primos e primas, todos que, afinal de contas, fazem parte fundamental desta
dissertao. Muito obrigado a todos, pela solidariedade e oraes constantes.
Aos meus amigos de graduao da UFF, e em especial s minhas grandes amigas
Juliana e Rosane, que se transformaram em amigas de todas as horas, companheiras de
farras, de trabalho, e de tudo o mais, com quem sempre pude contar nas horas mais
difceis
Por ltimo, mas no menos importante, agradeo tambm queles que durante este
longo percurso ficaram esquecidos ou deixados para trs. Elos fundamentais nesta
cadeia de acontecimentos, que sem eles, talvez, no saberia se eu teria inclinado e
persistido nesta longa caminhada.
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Para a minha me Rosangela,
a quem um dia disse ser a rosa mais bela do meu jardim.
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ABSTRACT
BATUQUE NA COZINHA, SINH NUM QUER!. REPRESSION AND
CULTURAL RESISTANCE OF CULTURED AFRICAN-BRAZILIANS IN RIO
DE JANEIRO (1870 1890).
Rafael Pereira de Souza.
Orientadora: Profa. Dra. Gizlene Neder.
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria
(PPGH), Instituto de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em
Histria.
The aims of this work are to study the issue related to the persecution of homes for
the Afro-Brazilians cults in the last decades of the nineteenth century in Rio de Janeiro.
The arrests of religious leaders African descent are research in order to observe the
police repression on these houses and draw a roadmap of the experiences of these
religious leaders who availed themselves of the tradition of praising the bravery of their
ancestors, as the broader scope of the beliefs and practices religious people of African-
descendants in Brazil. The research was made through the Enrollment books of theHouse of Detention, newspapers of the historical period and literary. The dissertation
was concerned to identify the different strategies of resistance and negotiation of the
religious practices of popular classes in the city of Rio de Janeiro.
Keywords: African-Brazilians cults; police repression; cultural resistance.
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Sumrio da dissertao:
1. Introduo.............................................................................................. Pgina 12.
2. Vultos na escurido: mestres e discpulos......................................... Pgina 17.
3. Desvendando mistrios: os cultos afro-brasileiros nas
pginas policiais ........................................................................................ Pgina 48.
4. Religiosidade popular e africanidade na literatura brasileira......... Pgina 94.
5. Arquivos e Fontes................................................................................. Pgina 135.
6. Referncias Bibliogrficas................................................................... Pgina 136.
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Grficos, diagramas e quadros.
Grfico I Causas ou acusaes dos detidos (1870-1890) ......................... Pgina 22.
Grfico II Sexo dos detidos (1870-1890) .............................................. Pgina 24.
Grfico III Estado Civil dos detidos (1870-1890) ................................... Pgina 26.
Grfico IV Ocupaes Profissionais dos detidos (1870-1890) ................ Pgina 28.
Grfico V A cor dos detidos (1870-1890) ............................................ Pgina 33.
Grfico VI Freguesias onde aconteceram as batidas
policiais (1870-1890) .................................................................................. Pgina 37.
Grfico VII Local de residncia dos detidos (1870-1890) ...................... Pgina 38.
Grfico VIII Naturalidade dos detidos (1870-1890) ................................ Pgina 41.
Grfico IX Nacionalidade dos detidos (1870-1890) ................................ Pgina 44.
Grfico X Faixa etria dos detidos (1870-1890) ...................................... Pgina 45.
***
Diagrama I Rainha Mandinga e as pessoas relacionadas
a ela no momento da sua priso (1879) ....................................................... Pgina 69.
Diagrama II Feiticeiro Laurentino Inocncio dos Santos
e as pessoas relacionadas a ele no momento da sua priso (1890) .............. Pgina 74.
Diagrama III Feiticeiro e curandeiro Francisco Firmo e as
pessoas relacionadas a ele no momento da sua priso (1884) ..................... Pgina 81.
***
Quadro I Triunfos, Handicaps e Carreiras ............................................... Pgina 119.
Quadro II Referncias das prises por motivos de perseguies
religiosas ( Livros de Matrculas da Casa de Deteno e Imprensa) .......... Pgina 122.
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INTRODUO.
O presente trabalho tem como principal objetivo abordar questo relacionada
perseguio aos cultos afro-brasileiros nas ltimas dcadas do sculo XIX. Para a
realizao desta, trabalhamos com documentos da instituio policial (Livros de
Matrculas da Casa de Deteno) para demonstrar como se dava essa represso.
Tambm trabalhamos com algumas coberturas jornalsticas da poca, analisadas com o
intuito de observar melhor quais seriam as descries e tambm o emprego dos seus
juzos de valores na cultura poltica difundida na cidade do Rio de Janeiro. Acreditamos
que este tema seja pertinente devido ao fato de que a presena de religies e tradies
africanas preocupavam tanto s autoridades policiais e judicirias quanto s autoridades
eclesisticas. O local da minha pesquisa foi a cidade do Rio de Janeiro, que neste
perodo proposto mostrava um crescimento do espao urbano e populacional enorme,
exigindo uma melhor organizao das instituies de controle social.
A cidade do Rio de Janeiro vinha sofrendo profundas transformaes desde a dcada
de 1870. Tais modificaes implicavam um alargamento deste espao urbano (em
termos geogrficos) com o surgimento de novas freguesias devido ao rpido
crescimento populacional. O surgimento destas novas freguesias pelo desmembramento
de antigas freguesias ligava-se ao aumento da populao segundo informao contida
no Recenseamento de 1906; exigiu a criao de novos distritos policiais, dentre outros
dispositivos de controle social.
Gizlene Neder1 nos faz lembrar que o crescimento do espao urbano carioca traz
consigo a marca da transio da formao social brasileira para o capitalismo. A cidade
do Rio de Janeiro o palco de um crescimento industrial significativo, possibilitando
uma maior diversificao social. Verifica-se tambm a constituio de um mercado de
trabalho livre que se desenvolve nesta cidade em torno os setores comercial,manufatureiro, de transportes, porturio e do funcionalismo pblico. O Rio de Janeiro
era uma cidade que, em 1890, tinha uma populao trs vezes maior do que a cidade de
So Paulo no mesmo perodo, e reunia consigo algumas condies que propiciaram a
sua expanso: o fato de ser uma cidade porturia; era na poca um importante centro de
produo comercial, e tambm o principal centro poltico do pas.
1NEDER, Gizlene.Discurso Jurdico e a Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Ed. Srgio AntnioFabris, 1995.
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Gizlene Neder2 diz que a designao cidade quilombada utilizada como era
metfora, dado o isolamento e a falta de polticas a que estas reas da cidade do Rio de
Janeiro estiveram submetidas. Exatamente na conjuntura ps-abolicionista que se tem
a radicalizao de uma poltica que segregou mais explicitamente o espao urbano
carioca (justamente quando a cidade negra do perodo colonial-imperial foi
desarticulada). Os morros, sobretudo, foram constituindo-se em reas de refgio para a
populao desalojada pelas diversas reformas urbanas que a cidade do Rio de Janeiro
vinha passando. A rejeio s propostas de urbanizao destas reas (vigentes at os
dias de hoje) e a manuteno de um estado psicossocial de pnico das classes
dominantes em relao aos moradores das reas quilombadas desde os primeiros anos
da Repblica, afinam-se com o autoritarismo da segregao imposta.
A grande contradio da cidade do Rio de Janeiro que ao mesmo tempo em que
respirava e desejava desesperadamente por modernidade, era uma cidade que tinha
parado a si mesma no tempo sua estrutura urbana era velha, ultrapassada e defrontava-
se com numerosos problemas de desenvolvimento. Era uma poca agitada, entre as
reformas de saneamento, revoltas populares, reorganizao do Estado e das suas
instituies de controle scia; derrubadas de velhos prdios e cortios, aberturas de
avenidas: enfim, o rio civiliza-se em determinados pontos de sua superfcie, mas a
misria das classes subalternas permanecia a mesma. O negro , sem sombra de dvida,
o segmento numericamente mais expressivo da populao das classes subalternas da
cidade do Rio de Janeiro neste perodo.
Diante desta conjuntura social, os cultos afro-brasileiros desta poca ganharam um
cunho mais assistencialista e imediatista. Constituram tradies que continuaram em
processo de contnua transformao a atender s necessidades mais urgentes dos
indivduos que as cultuavam. O que se observa que os cultos afro-brasileiros
expressavam a nova condio de subalternizao do negro nas grandes metrpoles doBrasil republicano, contendo o seu lamento e a sua revolta.
O que pretendo enfocar nesta dissertao que, em nome da ordem, do controle e da
disciplina social, as manifestaes religiosas dos negros, sejam nas ruas ou nos seus
terreiros, foram violentamente reprimidas pelas autoridades policiais e objeto de
excreo total por uma grande e ampla parcela da imprensa carioca naquele perodo. O
2NEDER, Gizlene. Cidade, Identidade e Excluso Social. Rio de Janeiro:Revista Tempo,
Departamento de Histria da UFF, Ed. Relum-Dumar, vol. 02, n 03, junho de 1997. As expresses,cidade europia e cidade quilombada, utilizadas por mim na abertura deste trabalho foi criadas pelaautora.
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que observamos que em diversas conjunturas histricas diferentes havia uma grande
preocupao com relao a essas prticas religiosas dos negros, seja na senzala ou nos
mucambos dos grandes centros urbanos no Brasil.
Entendemos que os significados de revolta emergiam nas religies populares eram,
a todo o momento, atualizados pelas condies de vida do negro carioca e dos demais
moradores dos setores populares da cidade do Rio de Janeiro, como pela intolerncia
como eram tratados pelas classes dominantes e por suas instituies, no importando de
que lado se colocassem.
O tema trabalhado nesta pesquisa se encontra, ainda hoje, em diversos discursos de
vrias autoridades civis e militares do nosso tempo: a acentuada preocupao com o
controle social e a disciplina da massa de trabalhadores pobres da cidade do Rio de
Janeiro. Essas preocupaes expressadas pelas autoridades policiais e pelas classes
dominantes revelam o que diversos autores denominam de medo branco. Este medo
ainda presente, apesar dos vrios disfarces que o racismo vem tentando empregar ao
longo dos anos de Repblica. As referncias escravido esto mais esmaecidas, mas o
racismo e o medo (do Outro) esto, ainda, muito acentuados.
Os momentos histricos de crises e mudanas institucionais possibilitam o
florescimento de propostas de organizao social e poltica, num sentido mais amplo,
bem como de projetos de cidade que expressam as mltiplas clivagens ideolgicas da
formao histrico-social. Nesse contexto histrico fica evidente qual o papel, e qual
o lugar das grandes massas de trabalhadores; e qual ser a poltica das autoridades
policiais referentes represso e controle a essa enorme massa de trabalhadores pobres
e moradores dos morros e das periferias da cidade do Rio de Janeiro.
As casas onde se praticavam os cultos afro-brasileiros sero aqui estudadas no
apenas como sendo um espao religioso, mas tambm, e, sobretudo, pela sua funo de
agente aglutinador das classes subalternas. Vista, portanto, como lugar que, porexcelncia, permitiu que os negros, pardos ou crioulos pudessem forjar uma nova
identidade, uma vez que a identidade herdada de seus ancestrais havia sofrido profundas
transformaes promovidas ao longo do sistema escravista brasileiro3.
Depois desta breve apresentao, situamos no primeiro captulo Vultos na
escurido: mestres e discpulos, onde pretendemos identificar quem eram as pessoas
presas por estarem nas casas destinadas aos cultos afro-brasileiros e como estavam
3SLENES, Robert. Malungu, Ngoma Vem!: frica coberta e descoberta no Brasil. So Paulo:RevistaUSP, n 12, dez./jan./fev./ de 1991 1992.
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inseridas na cidade do Rio de Janeiro naquele contexto histrico, entre 1870 1890.
Para tanto, utilizamos como fonte histrica bsica os Livros de Matrculas da Casa de
Deteno da Corte, que representam talvez o mais impressionante conjunto de dados
individuais de indivduos das classes subalternas da cidade do Rio de Janeiro4.
O segundo captulo, Desvendando mistrios: os cultos afro-brasileiros nas
pginas policiais, tem como principal objetivo adentrar nestas casas, e observar como
estavam constitudas no momento das prises de seus lderes. Para tanto, utilizamos as
notcias de jornais da poca que cobriram essas prises e analisamos a narrativa dessas
reportagens, no intuito de observar quais eram os seus juzos de valores diante das
prticas religiosas dos negros na cidade do Rio de Janeiro da poca.
No terceiro captulo, Religiosidade popular e africanidade na literatura brasileira,
analisamos a representao das figuras de lideranas religiosas afro-descendentes na
literatura brasileira. Trabalhamos basicamente com duas obras literrias: As vtimas-
algozes: quadros da escravido, de Joaquim Manuel de Macedo; e O tronco do ip,
Jos de Alencar. Nosso intuito aqui foi mais destacar as representaes, fruto das
posies polticas diferenciadas dos dois autores. No empreendemos, contudo, numa
anlise mais aprofundada sobre a relao da Histria com a Literatura.
Acreditamos que a importncia deste trabalho est no fato de retratar um perodo da
nossa histria marcado por uma forte represso, controle social, e desenraizamento
cultural, onde pouco se sabe sobre as estratgias de resistncia e de negociao das
classes subalternas implantao de um modelo idealizado pelas classes dominantes.
Marginalizadas da esfera poltica, impossibilitadas de expressarem os seus anseios e
viso de mundo, as classes subalternas criaram um universo autnomo de cultura.
Contudo, percebemos as relaes sociais e polticas de forma relacional, onde
apropriaes e circularidades culturais se apresentaram. flagrante o contraste de
valores entre esse universo e o das classes dominantes. O conflito foi inevitvel.
4Gizlene Neder trabalho com os Livros de Matrculas da Casa de Deteno no artigo: NEDER, Gizlene.Cidade, Identidade e Excluso Social. Op. Cit.
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Esta nova instituio carcerria visava atender as necessidades e as demandas da
cidade do Rio de Janeiro, que havia sofrido uma enorme expanso populacional no
final do sculo XVIII. Na Corte, no incio do sculo XIX, se inicia um longo debate
sobre a implantao de um sistema carcerrio que estivesse pelo menos prximo
daquele instalado nas grandes capitais europias, pois achavam que o antigo sistema
carcerrio no era satisfatrio6.
Carlos Eugnio Lbano Soares nos fala que a planta da Casa de Deteno formava
um grande quadrado, marcado nas duas extremidades por dois monumentais portes
separando as altas muralhas. No interior, duas galerias principais ladeadas pelos
cubculos, as celas individuais e as saletas, cada uma comportando seis pessoas
presos que, ocupam a galeria superior. Na galeria superior eram divididos os presos que
cometeram delitos mais brandos ou ainda no tinham sido condenados, que ocupariam
um setor denominado primeiro andar, enquanto que os de comportamento violento, os
condenados morte e os acometidos de doenas contagiosas ficariam num setor
denominado trreo. No andar inferior estaria o parlatrio, onde os presos se
comunicavam com os seus parentes, havia a secretaria administrativa da instituio e a
casa do carcereiro (ambas transferidas em 1873 para um sobrado), um quarto de
banhos, e um tanque para a lavagem de roupa.
Apesar de todo o debate por uma modernizao do sistema carcerrio na cidade do
Rio de Janeiro, o que observamos foi um completo descaso das autoridades com esta
instituio pblica, principalmente na questo da higiene do local. Quando foi
inaugurado em 1856, alm de havido um superlotamento de prisioneiros no ano
posterior, observamos que no havia sido instalado o sistema de encanamento de gua e
esgoto, problema este que s foi resolvido no ano de 1874.
Os Livros de Matrculasda Casa de Deteno.
O decreto n 1.744, de 02 de julho de 1856, de criao da Casa de Deteno,
determinava que cinco tipos de livros fossem mantidos pela instituio carcerria: um
livro de bitos, um de inventrio, um de conta-corrente dos presos sustentados pelo
6O antigo sistema carcerrio era formado pela Cadeia Velha, tradicionalmente localizada nos subsolos doSenado da Cmara, as masmorras da ilha das Cobras, as celas do Aljube e o calabouo de escravos. Ver,
SOARES, Carlos Eugnio Lbano.A negregada instituio: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850 1890.Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentao e InformaoCultural, 1994, p. 96-97.
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Estado, um de ndice alfabtico e um de matrculas dos detentos registrando as entradas
e sadas (para homens, mulheres e escravos separadamente) da instituio.
O primeiro livro tinha o registro dos bitos e a causa da morte. O segundo, de
inventrio, trazia os registros dos objetos que os presos portavam ao dar entrada na
priso, o valor do salrio dos presos que trabalhavam com o objetivo de amortizar
despesas ou para a formao de peclio. O terceiro livro servia para o registro dos
trabalhos que faziam os presos pobres sustentados pelo Estado, uma vez que esse
trabalho servia para pagar suas despesas na instituio. O quarto livro continha uma
lista em ordem alfabtica dos presos, que funcionava como ndice para os demais livros.
O quinto livro, que representa os Livros de Matrculas da Casa de Deteno,
representa talvez o mais impressionante conjunto de dados individuais de membros das
camadas populares do Rio de Janeiro nas ltimas dcadas do sistema escravista. Cada
nome perdido naquela interminvel relao retrata um drama pessoal, um rosrio de
sofrimentos muitas vezes tragicamente concludos, como os registros de bitos que as
enfermarias tratam de guardar. Estes livros de matrcula, contendo as fichas individuais
dos presos so diferentes para escravos e livres, comportando os seguintes dados para
os livres:
NOME
ORIGEM
FILIAO
CAUSA DA PRISO
AUTORIDADE QUE EFETUOU A PRISO
IDADE
ESTADO CIVIL
RESIDNCIAPROFISSO
COR
ROUPA QUE USAVA
DATA DA PRISO
DATA DE SOLTURA
AUTORIDADE QUE AUTORIZOU A SOLTURA
OBSERVAESALTURA
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BARBA
CABELO
ROSTO
NARIZ
Quanto aos escravos existem alguns acrscimos como:
NOME DO SEU SENHOR
NAO7
Atravs destas informaes sobre homens e mulheres que foram presas envolvidas
de formas diversas com os cultos afro-brasileiros, numa clara aluso as perseguies
feitas pelas autoridades policiais a estes cultos, farei minha anlise sobre quem eram os
lderes, os seus devotos e os seus clientes que procuravam estas casas por diferentes
motivos.
Lderes.
Observando as prticas religiosas africanas no Rio de Janeiro do sculo XIX,
constatamos que os lderes no eram apenas os indivduos que presidiam os cultos afro-
brasileiros propriamente ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de
iniciados, estrutura hierrquica e organizacional, calendrio de cerimnias e assim por
diante. Acredito que tambm fazia parte da liderana desses cultos os considerados
auxiliares mais prximos dos cabeas de cultos, incluindo nesta lista, por exemplo, o
chefes dos tocadores de atabaques (em alguns lugares no nordeste brasileiro so
denominados de tambaques, nome muito comum na poca) ou o responsvel pelo
sacrifcio dos animais.
Ainda considerei lder o adivinho ou o curandeiro que poderia desenvolver uma
prtica privada, no necessariamente ligada a uma casa de culto. Enfim, esses homens emulheres foram denunciados por prticas de adivinhao; exorcismo (tirar o diabo do
corpo); feitiaria (incluindo conjuras, poes e envenenamento com uma variedade de
preparos); por presidir oferendas de bebidas, comidas (sobretudo animais) e outras
divindades e aos mortos; celebrar diversas cerimnias (pblicas ou privadas) que
envolviam instrumentos de percusso, dana e canto; orientar diversos ritos de iniciao
7
Este item nos reserva um problema: quando aparece um africano nas fichas individuais dos Livros deMatrculas da Casa de Deteno da Corte, no lugar que corresponde NAO, o escrivo registra oporto em que na frica, o indivduo veio como escravo para o Brasil, e no o seu local de nascimento.
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desses cultos (foram descritos banhos, escarificaes, durao, alimentao, condies
de recluso e o tratamento dispensado aos iniciados). Tudo isso s poderia ser realizado
ou supervisionado por especialistas formados numa religio inicitica que primava pelo
segredo ritualstico8.
A maioria dos aqui considerados lderes estava envolvida em basicamente trs tipos
de acusao: adivinhao, feitiaria e curandeirismo. Essas pessoas normalmente
tinham seus auxiliares, seguidores, clientela e amigos, e estavam, com freqncia,
ligados a uma ou mais casas de culto, nas quais suas habilidades rituais podiam no ter
um compromisso de exclusividade com apenas uma casa de culto. Este o caso da preta
Feliciana Rosa de Jesus que foi presa duas vezes no ano de 1879 e em dias casas de
culto diferente: a primeira vez em 08 de janeiro, na casa do curandeiro Laurentino
Inocncio dos Santos; e a segunda vez em 25 de setembro, na casa de Leopoldina
Jacques da Costa, conhecida na corte do Rio de Janeiro como Rainha Mandinga. Em
ambas as prises era foi reconhecida como a matadoura, ou seja, era a responsvel
pelos sacrifcios rituais. Em outras palavras, por serem treinados, conhecerem os rituais,
plantas e assim por diante, eles tinham reputao de adivinhos, curandeiros e peritos na
comunicao entre seres humanos e deuses.
Causa ou acusaes para as prises.
Nos registros dos livros de matrculas da Casa de Deteno, com relao s
acusaes para a realizao das prises, os lderes religiosos esto sempre associados
aos de crimes por feitiaria, de serem dador de fortuna, ou de serem donos ou
consentir batuque nas suas casas (GRFICO I). As denominaes policiais com relao
s casas aparecem basicamente por duas denominaes: casa de dar fortuna (que
funcionaria exclusivamente para os rituais religiosos), e os zungs.
8
Considerei todas essas pessoas como lderes religiosos seguindo a sugesto pela por: REIS, Joo Jos.Sacerdotes, devotos e clientes no candombl da Bahia oitocentista. In: ISAIA, Arthur Csar (org.).Orixs e Espritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contempornea.Uberlndia: EDUFU, 2006.
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Grfico I Causas ou Acusaes dos detidos (1870 1890), em %.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Zung
Casa de dar fortuna
Desordem
Feitiaria
Batuque
Vagabundo
Suspeito de ser escravo
fugido
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Carlos Eugnio Lbano Soares9, foi um dos poucos estudiosos que dedicaram
devida ateno a esta forma de socializao comunitria dos negros no Rio de Janeiro,
elaborada pelos mundos da escravido, e que marcou, mesmo que de forma discreta e
subterrnea, a cultura popular da cidade do Rio de Janeiro. Apesar das informaes dos
viajantes relatarem estas casas como simples locais de refeitrio para africanos
desfrutarem de alguns pratos africanos entre eles o principal, o ang na realidade
elas tinham uma funo bem mais ampla. Nestas casas se realizavam festas, encontros,batuques. Os zungs eram, em sntese, pontos de referncia cultural da populao negra,
escrava ou livre, africana ou crioula, no meio urbano e possua uma caracterstica
peculiar: a capacidade de reunir grupos e pessoas que antes estariam dispersos, e mesmo
em conflitos.
9SOARES, Carlos Eugnio Lbano.Zung: Rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do
Estado do Rio de Janeiro, 1988.
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Leila Mezan Algranti10ao estudar o perodo joanino, menciona as casas de feitiaria
ou calundus; estas casas seriam especificamente ligadas s prticas religiosas, que
congregariam uma vasta clientela, e que estas casas seriam pontos de encontro de
portas adentro abertos para a comunidade de africanos e crioulos da cidade. O que
observamos que nos anos imediatos aps o perodo joanino, a terminologia policial
utilizada pelas autoridades para designar s casas de cultos afro-brasileiros (Casa de
feitiaria, ou calundus) foi desaparecendo, ao longo dos anos, dos registros policiais,
dando lugar, j na segunda metade do sculo XIX, a novas denominaes, que
desempenhariam as mesmas funes que esta j vinha exercendo.
Casas de batuque, casas de dar fortuna, casas de dar feitios, e outras
nomenclaturas iro aparecer nos registros policiais para denominar como sendo as casas
onde se realizam as prticas religiosas dos negros no Rio de Janeiro. Porm, ser o
termo zung que mais ir aparecer nos registros, com 60% do total. As autoridades
policiais tinham bastante receio dessas casas, porque eram conhecidas por serem
esconderijos para escravos fugidos, acobertando s suas fugas. A ex-escrava Isabel
Maria da Costa, de 25 anos, foi presa por ser encontrada em casa de dar fortuna e por
ser suspeita de ser escrava fugida11. Solteira, e com o emprego de engomadeira, foi
necessrio dois dias presa para comprovarem que ela no era escrava fugida, e que
poderia ser solta, pois j tinha conquistado o seu direito de andar livremente pelas ruas
do Rio de Janeiro. Talvez este receio houvesse porque estas casas promoviam reunies e
socializaes entre negros, o que era considerado algo gravssimo pelas autoridades,
pois poderiam estar se formando grupos de agitao contra a ordem vigente.
Com relao aos freqentadores, as acusaes esto por estarem nestas casas, e
tambm h um discurso de desqualificao dos freqentadores: esto associados no
motivo de suas prises desordem, serem vagabundo, algazarra, bbados habituais, numa
clara tentativa de marginalizao dos freqentadores destas casas.
Mulheres presas.
Quando analisamos os livros de matrcula da Casa de Deteno, constatamos que
entre os presos sobre a acusao de estar em casa de dar fortuna, a presena feminina
10ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro:
1808 1822. Rio de Janeiro: Ed. Petrpolis, 1988.11Livros de Matrcula da Casa de Deteno da Corte (doravante LMCDC), n 08, Ficha (doravanteF.)858, 22/08/1875, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (doravante APERJ).
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superior masculina: a presena feminina corresponde a 60%, enquanto a masculina
corresponde a 40% (GRFICO II). Este dado aponta a presena fundamental das
mulheres na estruturao e manuteno das casas coletivas. Algumas dessas mulheres
assumem papel vital na funo religiosa das casas, nas redes de compadrio que unem
moradias coletivas diferentes, e no papel de liderana nas comunidades onde vivem e
onde as suas casas funcionam como o caso da Rainha Mandinga e da Tia Ciata,
baiana esta que entra no cenrio cultural carioca na virada do sculo XIX para o sculo
XX.
Grfico II Sexo dos detidos (1870 1890), em %.
60%
40%
Feminino
Masculino
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno,Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Assim, podemos concluir que, a forte presena feminina entre os freqentadores dascasas de cultos era devido ao papel saliente que as mulheres detinham dentro da
hierarquizada sociedade escrava no meio urbano12. Com uma maior facilidade para
conseguir a sua prpria alforria, conseguiam agenciar ocupaes rendosas e de alta
12Sobre as mulheres escravas ver: SOARES, Ceclia Moreira. As ganhadeiras: mulher e resistncianegra em Salvador no sculo XIX.Afro-sia, n 17, Salvador, 1996, p. 57-72; FIGUEIREDO, Luciano.O avesso da memria: cotidiano e trabalho da mulher nas Minas Gerais no sculo XVIII.Rio de Janeiro:Jos Olympio/EdUnB, 1993; QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Viajantes do sculo XIX: negras
escravas e livres no Rio de Janeiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,n 28, So Paulo, 1988,p. 53-76; REIS, Joo Jos. Identidade e diversidade tnicas nas irmandades negras no tempo daescravido. Revista Tempo,n 3, v. 2, Niteri, 1997, p. 7-34.
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classificao, como o ganho, e tambm angariar a cumplicidade de homens poderosos.
As mulheres escravas, africanas ou crioulas, conseguiam ter uma enorme mobilidade
social nas grandes capitais de todo o Imprio, e muitas delas conseguiam criar um
espao prprio que permitia colocar em sua rbita de influncia um grande nmero de
negros cativos, ou mesmo libertos.
Estas mestras das casas de cultos afro-brasileiros formavam uma poderosa casta,
uma alta hierarquia no seio das camadas populares, conseguindo obter prestgio e poder
junto a essas camadas que se reuniam em torno delas buscando proteo, espiritual ou
at mesmo fsica, isso graas a sua influncia, s vezes, com pessoas muito poderosas.
Porm, vrias dessas mesmas mulheres no gozavam da mesma influncia com os
agentes policiais.
Porm nas acusaes de feitiaria e de ser dador de fortuna, observamos que a
maioria dos acusados eram homens, o que no significa necessariamente que tivessem
mais oportunidades para liderar grupos religiosos ou se estabelecer como adivinhos,
feiticeiros ou curandeiros. Constatei que algumas mulheres desempenhavam tarefas
como adivinhas ou curandeiras, o que, pelo menos dos nags e jejes, a adivinhao, ou a
arte de ver atravs do sistema divinatrio If ou Fa, seria uma prerrogativa dos homens,
os babalas13. Um exemplo de uma mulher presa por motivo de feitiaria foi Ana
Mina, africana da Costa da Mina, 48 anos, quitandeira como grande parte das outras
mulheres de sua Nao14. Ana era uma tpica africana ocidental na Corte do Rio de
Janeiro, cortejada por escravos e pretos livres, respeitada por alguns homens brancos de
condio social mediana, e at temida por sua habilidade nos feitios e nas mandingas,
da a explicao para a sua priso no Livro de Matrculas da Casa de Deteno. Com
sua saia chita e seu indefectvel pano da costa, era personagem imprescindvel da
paisagem carioca da poca. Mas todo o seu prestgio junto a uma camada da populao
urbana do Rio no impediu a humilhao de ser levada presa pelos policiais at aEstao Policial mais prxima.
No recolhimento de dados dos livros da Casa de Deteno algo nos chamou muita
ateno com relao ao estado civil dos freqentadores das casas de cultos afro-
brasileiros: 93% dos freqentadores se declararam solteiros, sendo que todas as
mulheres presas se declararam solteiras (GRFICO III). Apenas 5,5% dos
13BRAGA, Jlio Santana. O jogo dos bzios: um estudo da adivinhao no candombl. So Paulo:
Brasiliense, 1988.14LMCDC, n 25, F. 769, 27/04/1882, APERJ. A Priso de Ana Mina foi noticiada peloJornal doCommercio,no dia 28 de abril de 1882.
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freqentadores presos se declararam vivos, o que mostra que o mercado afetivo
poderia estar esquentando nestas diversas batidas policiais. O nico preso que declarou
ser casado foi o Sr. Loureno, africano de 55 anos, natural de mina, preso por prtica
de feitiaria15no dia 27 de julho de 1884, e solto dois dias depois.
Grfico III Estado Civil dos detidos (1870 1890), em %.
92%
2%
6%
Solteiro
Casado
Vivo
Fonte:Livros de Matrcula da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Um dos discursos utilizados por diversas autoridades no Imprio para o combate a
essas casas de cultos era que estariam combatendo a prostituio. Lus Carlos Soares,
em seu livro, revela que vrios mdicos escreveram teses sobre a prostituio no Rio de
Janeiro da segunda metade do sculo XIX, como o Dr. Pires de Almeida. O Chefe de
Polcia da cidade do Rio de Janeiro, em 1875, fez uma estatstica para saber qual era a
situao da prostituio na cidade. O objetivo de mdicos e autoridades policiais no era
apenas de combater, mas tambm de tentar controlar e higienizar esse mal necessrio
que era a prostituio16.
Todas essas mulheres que declararam no serem casadas, porm, bem provvel
que essas mulheres tenham relaes sexuais com algumas pessoas; possuindo amantes
que proveriam os seus sustentos, ou viver amasiada com algum, que poderia tambm
15
LMCDCD, n 36, F. 3407, 27/07/1884, APERJ.16SOARES, Lus Carlos.Rameiras, Ilhoas, Polacas... A prostituio no Rio de Janeiro do sculo XIX.So Paulo: Ed. tica, 1992.
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freqentar a casa de culto do qual so afiliadas. Acreditamos que para as pessoas
definirem o seu estado civil deveria ser algo de grande dvida, tendo em vista que se
tratava de um grupo de pessoas onde era muito comum a separaes de corpos, e a
aquisio de novas unies, claro que essas novas unies no teriam a menor aprovao
da Igreja Catlica. Martha Abreu Esteves mostra que os amansiamentos eram relaes
muito presentes entre os setores populares no fim do sculo XIX e incio do sculo XX.
A autora cita tambm diversas pesquisas que demonstram que no Brasil, desde a
Colnia, apesar dos esforos da Igreja Catlica, as relaes de amor nunca foram
necessariamente administradas pelo casamento religioso ou civil.17
Ocupaes profissionais.
Com relao questo do trabalho, nos deparamos com uma evidncia que no
deixa a menor dvida: a maior parte dos detidos estava ligada a servios domsticos
50% (GRFICO IV). O que em parte refora o peso que a escravido tinha nas casas de
culto, tendo em vista que as ocupaes domsticas geralmente eram compostas e
exercidas por escravos. A forte presena feminina ajuda a explicar esse predomnio de
cozinheiras, lavadeiras e engomadeiras. Entre os homens, o predomnio era de
pedreiros, carpinteiros e estivadores.
17ESTEVES, Martha Abreu.Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro daBelle poque. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989, p. 179.
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Grfico IV Ocupaes Profissionais dos detentos (1870 1890), em %.
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Servios Domsticos
Trabalhador
Cozinheiro
Costureira
Carpinteiro
Pedreiro
Quitandeira
Negociante
Alfaiate
Oficial de Chapeleiro
Ganho
Calafate
SapateiroBandeira
Copeiro
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Com o passar dos anos, nas ltimas dcadas do sculo XIX e o incio do sculo XX,
o trabalho ambulante aparece em grande nmero entre os presos da Casa de Deteno.
Movimentar-se amplamente na cidade do Rio de Janeiro, cultivar clientes, negociar
espaos nos limites urbanos eram prerrogativas do trabalho de rua que devem ter
ajudado na formao de uma rede de apadrinhados e compadres, capaz de montar uma
casa de pouso, de tentar se ocultar o suficiente do olhar moralista e policial, e se imergir
em micro-comunidades urbanas, silenciosas e centralizadores ao mesmo tempo. A
tradio do trabalho de ganho entre a escravaria urbana na primeira metade do sculo
pode ter tido um papel importante na formao destas casas comunitrias.
Observando alguns dos trabalhos ambulantes dos homens presos na Casa de
Deteno, constatamos algumas profisses que eram alvos de eliminao dos
reformadores urbanos daBelle poque, como os engraxates ao ar livre, os trapeiros, os
baleiros, e os democrticos quiosques, armaes de madeiras na calada, onde se vendia
caf, lcool, tabaco e tambm bilhetes de loteria18.
18CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro daBelle poque.Campinas: Unicamp/Cecult, 2001.
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Um dos presos declarou uma profisso que desapareceu completamente da cidade
do Rio. Carlos Henrique Pedro tinha como profisso bandeira19. Ele seria um
empregado da Companhia dos Bondes, que estariam posicionados nas esquinas das ruas
que h trafego de carros, para fazer sinais com uma bandeirola, a fim de evitar acidentes
entre os carros e os bondes. Carlos, de apenas 20 anos, foi preso no dia 29 de agosto de
1884, e s foi liberado cinco dias depois.
Um dos trabalhos ambulantes femininos que aparecem com bastante destaque a
quituteira ou como algumas mulheres declararam cozinheira. Uma das personagens
mais famosa no incio do sculo XX, a Tia Ciata e tantas outras tias baianas que
circulavam nas ruas do Rio de Janeiro compunham um quadro das ruas do Rio de
Janeiro, essas baianas quituteiras faziam parte da tradio carioca, atividade que tem
forte fundamento religioso, e que foi recebida com muito agrado na cidade do Rio desde
sua apario ainda na primeira metade do sculo XIX, quando sua presena foi
documentada no viajante Debret20. Essas mulheres cumpriam alguns dos seus preceitos
religiosos, como colocar parte dos seus doces no altar de acordo com o orix
homenageado no dia. Depois disso, essas mulheres iriam para os seus pontos de venda,
com sua saia rodada, pano da costa e turbante, ornamentada com os seus fios de contas e
pulseiras. Seu tabuleiro geralmente era farto de bolos e manjares, cocadas e puxas, com
nexos msticos determinando as cores e a qualidade do seu tabuleiro. Na sexta-feira, por
exemplo, dia de Oxal, ela se enfeitava de cocadas e manjares brancos.
Uma outra ocupao profissional que aparece em nmero bastante significativo
entre as mulheres a de costureira. Alguns historiadores21 tem trabalhado com a
hiptese de que algumas dessas costureiras teriam que se prostituir tambm para
garantir o seu sustento, tendo em vista que no havia muitas formas de sustento para
mulheres solteiras e pobres no Rio de Janeiro. Uma outra hiptese trabalhada que
algumas prostitutas costumavam se declarar costureira quando interrogadas pela polcia,apesar de alguns casos essas mulheres no terem o menor jeito com para a costura.
Uma outra ocupao profissional que aparece entre os presos da Casa de Deteno e
que no podemos deixar de falar o trabalho artesanal, que tinha uma certa presena
19SOARES, Antnio Joaquim de Macedo.Dicionrio Brasileiro da Lngua Portuguesa. ElucidrioEtimolgico Crtico das palavras e frases que, originrias do Brasil, ou aqui populares, senoencontram nos dicionrios da lngua portuguesa, ou neles vem com forma ou significao diferente(1875 1888).Rio de Janeiro: INL, 2 vols., 1954, p. 45.20
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil. Tomo I, Vols. I e II. So Paulo:Livraria Martins, 1981.21SOARES, Lus Carlos. Op. Cit., ESTEVES, Martha Abreu. Op. Cit.
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entre os escravos, livres e libertos. Como estes ofcios se realizavam em oficinas,
localizadas muitas vezes em ruas especficas (como a Rua dos Ferradores, que depois
passou a ser chamar de Gonalves Dias, e que tinha uma casa de dar fortuna que sofreu
algumas batidas policiais) eles podem ter contribudo para criar espaos de reunio de
trabalhadores e de seus clientes e freqentadores, alm de suas famlias.
Uma outra atividade profissional que aparece com bastante freqncia ente os
homens so os profissionais da rea de construo civil, como pedreiros, pintores,
carpinteiros, que esto em um setor mais especializado do mercado urbano. A presena
de profissionais desta rea, o que nos leva a considerar que estes profissionais poderiam
ajudar na construo de alguns templos, ou mesmo na conservao das casas que j
existiam, e que muitos deles freqentavam.
Com que roupa eu estou?
Todos os presos que detidos e levados para a Casa de Deteno, na sua ficha de
matrcula, o escrivo detalhada meticulosamente qual era a roupa que o novo detento
estava usando a hora em que foi efetuada a sua priso. Observamos que nenhum
feiticeiro, curandeiro ou adivinho preso foi levado para a Casa de Deteno utilizando
alguma roupa cerimonial. Para conhecer melhor quais seriam tais roupas s poderia ser
possvel se, durante a investigao policial fosse instalado algum inqurito policial,
pois, com o inqurito aberto, os investigadores teriam que reunir o maior nmero de
provas, com isso teriam de fazer um detalhamento completo sobre quais seriam essas
roupas cerimoniais e em que cerimnias ou ocasies esses lderes religiosos usavam tais
roupas.
Os homens, tanto os lderes religiosos quanto os devotos e clientes presos, em sua
grande maioria quando fichados pela polcia, utilizavam roupas de cores escuras, esempre vestindo cala preta, camisas de meia ou camisas de chita (seriam camisas com
um tecido de qualidade inferior e tendo estampas bastante coloridas).
Com relao aos homens mais velhos, a sua vestimenta era composta quase sempre
de cala escura, camisa branca, colete, palet e chapu, que poderia ser de lebre preto
ou de palha. Com esta roupa, que era utilizada pela maioria dos homens brancos que
circulavam pelos nobres sales da Corte, esses homens, que em sua grande maioria j
estiveram no cativeiro e conseguiram a sua liberdade, queriam dizer algo. Os estudiososdo tema observam que a linguagem dos trajes tornava visvel, exibindo aos sentidos, a
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ruas da cidade, alm de ser uma roupa incorporada ao dia-a-dia de muitos dos terreiros
dos candombls atuais.
Os livros de matrculas da Casa de Deteno, quando buscam fazer um
detalhamento em relao vestimenta dos presos que freqentavam as casas de cultos,
deixam uma importante lacuna em seus registros: no aparece nos livros se quando
foram presas, essas pessoas estariam usando algum tipo jias-amuletos, algo to
presente nas religies afro-brasileiras. Vrios viajantes, ao longo de todo o sculo XVIII
e XIX, descrevem os brincos, colares e outras jias-amuletos, que tanto eram usados por
mulheres quanto por homens negros, bem como o uso de balangands, por escravos ou
pessoas livres. A utilizao desses objetos nos revelam a presena cotidiana de
devoes e cultos entre a populao negra, ou ainda de significados que nem sempre foi
facilmente desvendados pelos seus senhores. Tambm outros enfeites poderiam ter
sentidos diversos, embora menos mgicos, como no caso, por exemplo, das pulseiras de
metal dourado com motivos geomtricos usados pelas escravas provenientes do Congo
cujo nmero variava segundo a condio hierrquica, de sua possuidora, dentro do
grupo tribal, denominadas malungas, vocbulo de origem claramente africana24.
Entre o mundo dos senhores e o da escravido, abria-se um enorme espao para o
embate entre intenes e sentidos, de lutas travadas com pedaos de panos e enfeites,
em busca de identidades e diferenas, de afastamentos e aproximaes. Um espao
minado e escorregadio, em que estavam imbricados questes morais, raciais, de gnero
e, sobretudo, culturais.
A cor dos freqentadores.
Com relao questo da cor dos freqentadores presos por estarem em casas de
cultos afro-brasileiros, a grande maioria 64% de todos os presos eram de cor preta(GRFICO V). Nesta categoria entraram todos os africanos, pessoas com idade acima
de trinta anos, e quase todos haviam sido escravos e tinham conseguido a sua carta de
alforria. Do restante, 31% eram mulatos ou mestios, e apenas 3% dos presos por
acusao de estarem em casas de cultos afro-brasileiros eram brancos de origem
24
LARA, Slvia Hunold. Sedas, panos e balangands: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Riode Janeiro e de Salvador (Sculo XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org). Brasil: Colonizaoe Escravido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 185186.
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europia: os portugueses Joaquim de vila de Pereira e Isaas de Couto25. Os outros 3%
foram as duas mulheres latinas presas por estarem em zung: Maria Martha, argentina; e
Maria Dolores Rios, paraguaia. Ambas receberam a designao de morena,
classificao essa que no ir aparecer para mais ningum em todo o perodo levantado,
de 1870 a 189026.
Grfico V A cor dos detentos (1870 1890), em %.
64%
30%
3%
3%
Preta
Pardos e M estios
Branca
Morena
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Hebe Mattos de Castro, em seu livro, mostra que os dados sobre cor em diversos
documentos do sculo XIX so muito problemticos, pois para camuflar o status,
muitos negros no se reconhecem como tal, devido associao imediata entre negro
e escravo27. Porm, acho que nos livros de matrcula da Casa de Deteno no
aparece tal problema, pois no seriam os presos que determinaria qual era a sua cor, e
sim o escrivo que registrava a sua chegada nas fichas desses livros.
25Ambos foram presos no dia 04 de agosto de 1881, e s foram soltos no dia 13 de agosto do mesmo ano.26Ambas as mulheres, com mais seis mulheres, foram presas no dia 01 de outubro de 1882. Enquantoalgumas das mulheres levaram de 03 a 06 dias para serem liberadas, as duas mulheres latinas foram soltas
no dia seguinte.27CASTRO, Hebe Maria Mattos de.Das cores do silncio: significados da liberdade no sudesteescravista, Brasil, sculo XIX.Rio de Arquivo Nacional, 1993.
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O problema em relao classificao da cor, dos freqentadores das casas de
cultos afro-brasileiros detidos, se d nas diversas designaes utilizadas para classificar
os mulatos e mestios. H um nmero elevado de pessoas fulos, que segundo o que se
dizia nesta poca, significava cor de mulato escuro, preto avermelhado28. Uma outra
denominao utilizada era cabra, que significava que a pessoa tinha um quarto de
mulato com negro, seria um caboclo escuro29. Uma outra denominao era bode, que
significaria mulato ou mestio30. A utilizao desta denominao tinha uma informao
a mais do que apenas a cor da pele do detido, era usada em metfora para dizer que o
cheiro, da raa africana, se assemelhava com o cheiro exalado pelos cabritos, uma
aroma no muito agradvel. Essas designaes foram muito mais utilizadas como forma
de desqualificao e de insulto do que pelos supostos grupos que tais termos evocam,
grupos estes que nem sempre se compreenderam e se organizaram enquanto tais31.
Assim como as roupas, tecidos e adornos eram lidos como smbolos da presena ou
ausncia de riqueza e de poder, como signos de comportamentos e costumes louvveis
ou escandalosos, do domnio ou submisso, a cor da pele e outras marcas fsicas foram
incorporados, ao longo de todo o perodo da escravido no Brasil, linguagem visual
das hierarquias sociais. Associadas a tantos outros elementos, perpassando as relaes
de explorao e dominao, o tom mais escuro da pele da maior parte da populao
associava-se ao universo da escravido, e ao estigma entre ser escravo ou ser livre. O
critrio da cor podia inverter sinais, trocar o positivo em negativo, ou vice-versa. O que
era luxo e poder, em um corpo branco, poderia tornar-se luxria e submisso, se usado
sobre uma pele mais escura.
A presena escrava.
Entre os escravos, observamos uma presena esmagadora de crioulos, porm issoera de se esperar, pois a cidade do Rio de Janeiro desde muitos anos no recebia mais
escravos africanos, e aqueles que eram remanescentes, geralmente seriam encaminhados
28SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 206. O autor diz que esta denominao se refereaos Fulbs ou Fulas, uma nao da frica Ocidental, situada entre o Senegal e o Nger, vizinha dosMandingas. As caractersticas fsicas dos habitantes desta nao seria cabelos crespos, mas no lanzudoscomo os dos negros; cor avermelhada; face ortgnata; nariz pequeno, cartilaginoso e aquilino; caraagradvel, mais inteligentes e em geral de melhor carter que os negros.29SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 79.30
SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 62.31LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiagem no Imprio do Brasil. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 2003.
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em grande nmero para as fazendas de caf, que pagavam um alto preo por estas
peas.
Uma outra peculiaridade, que nos registros de escravos na Casa de Deteno no
contm endereo, e sim, apenas o nome do seu dono. Assim, no podemos comparar
onde eles residiam e qual seria o seu percurso pela cidade para poder encontrar com
seus iguais, ou mesmo se moravam prximo destas casas de dar fortuna. Somente com
os livres e libertos que conseguimos ter noo do arco de influncia que estas casas
exerciam ao seu redor, ou se conseguiam atrair indivduos das mais diversas partes da
cidade.
Numa batida policial, realizada em junho de 1868, na Freguesia do Engenho Velho,
dentre os doze escravos presos nesta batida policial, um deles pelo menos tinha um
senhor ilustre: o escravo Antnio, que pertencia ao Baro de Mau, e foi o ltimo a ser
registrado no boletim de polcia. Todos foram fichados como tendo sido presos por se
encontrarem em batuque e dar fortuna, que era o jargo policial do tempo se referia s
prises em centros religiosos, geralmente de extrao afro-brasileira.
O escravo Antnio, que era propriedade do Baro de Mau, no chegou a completar
um dia inteiro detido na Casa de Deteno. Talvez por alguma influncia do seu senhor?
Acredito que esta possibilidade seja verdadeira. De acordo com a Mary Karasch32, o
statusdo senhor de escravo pesava nas relaes socais que o escravo mantinha com o
resto da sociedade. Assim, um escravo de um senador do Imprio ou de um rico
comerciante podia esperar um tratamento, pelos agentes da represso, diferente do
concedido a um cativo que fosse de uma pobre viva, ou de um arteso humilde.
Um outro dado a ser destacado nas fichas de matrculas dos escravos na Casa de
Deteno, observar que nos anos prximos da abolio da escravatura h uma
multiplicao de senhores para um nico escravo, registrado nas fichas. Desde dado
podemos tirar trs concluses: primeiro, a grande quantidade de escravos alugados quetrabalhavam na praa do Rio de Janeiro, na posse de um proprietrio, mas sob a
propriedade de outro.
Segundo, e possivelmente o mais significativo, que talvez haja uma estratgia de
prprio escravo para escapar do castigo de um senhor cruel, ou afasta-se de uma
punio mais severa por parte dos seus algozes imediatos, alinhando-se com um senhor
32KARASCH, Mary.A vida de escravos no Rio de Janeiro 1808-1850.So Paulo: Companhia dasLetras, 2000.
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poderoso, que no ficaria satisfeito em saber que seu cativo, um bem muito valioso e
caro, fora maltratado por policiais e carcereiros.
E, em terceiro, a infinidade de nomes de possveis senhores que ocasionalmente
aparecem nas fichas pode indicar tentativas reiteradas de ocultar o senhor verdadeiro, ou
exibir senhores fictcios que dessem cobertura s atividades de seus escravos.
Mary C. Karasch, em seu trabalho pioneiro sobre a escravido urbana carioca, nos
mostra que os cativos da cidade do Rio de Janeiro tinham a noite como um espao
privilegiado para socializar-se e muitas vezes a escurido noturna servia como proteo
contra olhares indevidos da ordem senhorial e policial. Os prprios senhores eram os
primeiros a perceber como a noite era importante para a vida social e comunitria de
seus cativos, e permitiam suas escapadas na escurido, mesmo contra a vontade das
autoridades policiais.
Vale a pena lembrar que as sadas noturnas, apesar de aceitas por alguns senhores de
escravos, eram proibidas pelo toque de recolher das 22 horas, a partir do qual era
proibido ao escravo andar nas ruas sem bilhete de autorizao dos seus senhores, sob a
pena de priso e multa para o proprietrio. Chegou a ser institudo um toque de sino,
que duraria meia-hora, para que ningum pudesse alegar desconhecimento da Lei. O
famoso toque de Arago, assim denominado pelo intendente da polcia que o
instituiu, no acabou com as sadas noturnas sem licena de escravos, que eram presos
no jargo policial por estarem fora de horas. Aparentemente os senhores eram
convenientes com estas prticas subversivas33.
Localizao geogrfica das casas.
Com relao localizao dessas casas na cidade do Rio de Janeiro, a freguesia com
a maior incidncia de batidas policiais foi a freguesia do Sacramento (GRFICO VI),em que um dos seus limites era exatamente a rua larga de So Joaquim. Esta freguesia
seria o centro, o local com o maior nmero de casas de dar fortuna, e o nmero elevado
de ocorrncias policiais no nos deixa que a menor dvida de que a polcia sabia onde
se procurar e reprimir o funcionamento das casas de cultos afro-brasileiros.
At o fim da segunda metade do sculo XIX, a rua Nncio (localizada no centro da
cidade do Rio de Janeiro, rua esta situada na divisa entre a freguesia do Sacramento e o
33SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Op. Ci.t,p. 49.
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Campo do Santana, e foi criada rasgando inicialmente em terras que pertenciam a
Ordem do Carmo, e da antiga Chcara dos Cajueiros34) foi talvez a rua da cidade onde
mais se concentraram casas coletivas de pretos e pardos, e onde as batidas policiais
foram mais freqentes35.
GrficoVI Freguesias onde aconteceram as batidas policiais (1870 1890), em %.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
SacramentoGlria
Esprito Santo
So Jos
Santa Rita
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Tal rua foi habitada por homens ilustres no perodo joanino, como, por exemplo, um
dos mais importante homens de cor na primeira metade do sculo XIX: o padre Jos
Maurcio Nunes Garcia, filho de um portugus branco com uma escrava, e que foi
agraciado pelo Prncipe regente D. Joo VI, sendo nomeado Mestre da Capela Real36.
34BERGER, Paulo.Dicionrio histrico das ruas do Rio de Janeiro (Centro).Rio de Janeiro: OlmpicaEditorial, 1974, p. 115.35Esta rua foi residncia de um famoso feiticeiro negro que foi preso por estelionato, tendo em vista queno poderia ser preso por ser feiticeiro j que o cdigo criminal no qualificava tal atividade como sendocrime. Sobre este personagem que ficou conhecido como Pai Quilombo, ver: SAMPAIO, Gabriela dosReis.A histria de Juca Rosa: cultura e relaes sociais no Rio de Janeiro.Campinas: Tese deDoutorado apresentado ao programa de ps-graduao em Histria da UNICAMP, 2000.36O Padre Jos Maurcio Nunes, apesar de nunca ter sado do Brasil, foi um grande percussor efomentador do movimento musical de sua poca. Historicamente, o padre a primeira pessoa de
importncia da msica brasileira. O que se conhece da sua obra encontra-se na sua totalidade emmanuscrito, depositado na biblioteca da Escola de Msica do Rio de Janeiro. In: ISAACS, Alan; eMARTIN, Elizabeth.Dicionrio de Msica. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985.
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Os registros de moradia de livres e libertos para comparar os registros dos
escravos e muito complicado, pois quando presos no tinha o seu endereo registrado,
apenas o do seu senhor nos mostram que apesar da predominncia da freguesia do
Sacramento, observamos tambm as freguesias de So Jos, Santa Rita, Glria e
Esprito Santo, Santana, Candelria e Santo Antnio, todas estas freguesias que
formavam o centro da cidade do Rio de Janeiro.
Compilando os registros de local de priso de livres e libertos com o local de
moradia, observa-se um ponto bastante significativo (GRFICO VII). Apesar da grande
maioria dos freqentadores das casas de cultos morarem nas freguesias que compem o
centro da cidade do Rio de Janeiro, 70% do total, os demais detentos, que contabilizam
30% eram freqentadores que moravam em outras regies da cidade, s vezes bem
afastadas do centro, como a freguesia do Engenho Novo e da Lagoa. Esse dado
demonstra que os feiticeiros negros detinham uma enorme fama e prestgio as classes
populares, e demonstra tambm que estas casas de cultos funcionavam, em muitos dos
casos, como lugares de encontro, de socializao, fora de seus espaos convencionais de
moradia e de vizinhana.
GrficoVII Local de residncia dos detidos (1870 1890), em %.
70%
30%
Centro da cidade
Outras freguesias
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
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Devido a uma maior vigilncia das autoridades policiais para tentar coibir o
funcionamento dessas casas de cultos, inicia-se um processo de afastamento destas
casas do centro do Rio. Com isso, nos limites da cidade, longe do burburinho e de
uma vigilncia policial mais intensa e prximos das rotas de fuga de escravos para o
interior do estado, grande medo dos senhores de escravos eram, neste momento, os
locais prediletos para as casas realizarem o seu funcionamento.
Porm, a completa transferncia destas casas do centro urbano da cidade para reas
mais distantes se dar na primeira metade do sculo XX. Aqui no somente interferem
mecanismos normalmente acionados pela presena dessas casas religiosas de negros e
suas manifestaes culturais numa rea utilizada por uma populao de maior poder
aquisitivo, mas tambm, a prpria redefinio da estrutura urbana, que paulatinamente
vai levando a populao de menor poder aquisitivo para regies ou reas menos nobres
da cidade37.
Longe dos olhos dos opressores, poderia estes terreiros realizar seus cultos com um
pouco mais de segurana e tranqilidade, sabendo que as suas casas e seus altares no
seriam profanados. Alis, mesmo nos dias atuais, quando um sacerdote tem o interesse
de instalar um novo terreiro, recorre ao expediente de procurar lugares mais afastados
ou isolados dos centros comerciais, pois acredita que ao fazer isto, ir encontrar as
condies mais favorveis para a realizao dos mais diferentes rituais.
Evidentemente que, completando esse quadro, inclui-se a dificuldade de comprar
terrenos em reas prximas dos grandes centros to carente de espaos vazios em
decorrncia do baixo poder aquisitivo dessa populao que dificilmente disporia dos
recursos necessrios aquisio de terras nas chamadas reas nobres da cidade.
Costuma-se minimizar as dificuldades financeiras realando-se a necessidade de boas
condies para o andamento dos rituais. Certo que em terrenos mais afastados do
centro da cidade pode ser comprado por um preo mais acessvel, alm de se poderescolher uma rea prxima a uma lagoa, a um crrego qualquer nas imediaes de uma
mata de onde posam colher as razes, folhas e frutos indispensveis para a execuo de
vrios rituais internos que algumas destas casas possuem.
37H uma crnica escrita por Joo Luso, noJornal do Commercio, onde diz: Veja o amigo o que dizesse jornal: o ltimo [candombl] foi polcia encontr-lo na Rua do Lavradio, l embaixo, junto Praa
Tiradentes! extraordinrio, mais alguns dias e teremos um candombl na Avenida. Ver: SEVCENKO,Nicolau.Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo:Companhia das Letras, p. 47.
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Esse deslocamento, para as reas perifricas da cidade, que poderia ser considerado
um recuo diante das permanentes incurses e batidas policiais a estas casas, resultou, na
verdade, numa forma de vitria se ns considerarmos os resultados positivos obtidos a
mdio e longo prazo. Esse distanciamento permitiu que diferentes grupos pudessem se
instalar em terrenos e espaos mais apropriados para o culto s divindades afro-
brasileiras, estruturando melhor e definitivamente os seus terreiros. possvel at que
esse afastamento compulsrio tenha desempenhado um papel relevante na preservao
de uma liturgia que podia, assim, ser praticadas tranquilamente e longe dos assdios,
muitas das vezes, indesejado e impertinente de algumas pessoas estranhas que no
pertenceriam ao culto.
Certo que esses homens e mulheres que aparecem nas fichas dos livros de
matrculas da Casa de Deteno, evitaram o confronto armado com a polcia por
absoluta incapacidade de confront-la com alguma margem de sucesso. Dificilmente
uma casa de culto poderia dispor de meios para tal enfrentamento, e nem era isso o que
queriam, diante de uma polcia extremamente agressiva, intolerante e fortemente
armada quando se deslocava para realizar as suas batidas policiais a estas casas. Porm,
isso no impediu que essas pessoas continuassem a realizar os seus encontros e tambm
que esboasse uma reao pacfica a estes confrontos com a polcia38.
Os baianos cariocas.
Nas anlises dos livros da Casa de Deteno, no que tange o local de nascimento, a
grande maioria dos freqentadores nasceram na cidade do Rio de Janeiro, representando
quase 45% dos presos detidos nas casas de cultos afro-brasileiros (GRFICO VIII).
Ainda com relao ao local de nascimento referente ao estado do Rio de Janeiro, a
grande maioria dos freqentadores presos nasceram na cidade de Niteri, comaproximadamente 52% dos presos nascidos no Rio. O estado brasileiro que aparece em
segundo lugar o estado da Bahia, com aproximadamente 13% do total. Outros estados
brasileiros aparecem tambm nos livros de matrculas: so presos nascidos em Minas
Gerais, Pernambuco, So Paulo, Rio grande do Sul, Esprito Santo e Par.
38Em outros estados brasileiros ocorria mesma represso as casas onde se realizavam os cultos afro-brasileiros. Destaco o estudo referente a represso em So Paulo, de PRANDI, Reginaldo. Os candombls
de So Paulo: a velha magia na metrpole nova. So Paulo: Ed. HUCITEC/USP, 1991; e na Bahia, deBRAGA, Jlio Santana.Na gamela do feitio: represso e resistncia nos candombls da Bahia.Salvador: Ed. UFBA,1995.
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Grfico VIII Naturalidade dos detentos (1870 1890).
0
10
20
30
40
50
60
70
8090
100
Rio de Janeiro
Bahia
Minas Gerais
Pernambuco
So Paulo
Rio Grande do Sul
Par
Esprito Santo
Mina
Benguela
Cabinda
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Para explicar o elevado nmero de baianos presos que freqentavam as casas de
cultos afro-brasileiros, devemos observar como eles se estabeleceram na cidade do Rio
de Janeiro, para depois conseguimos ver quais foram as suas atuaes nestas casas.Ao longo da primeira metade do sculo XIX, a provncia da Bahia passou por
algumas transformaes econmicas na qual no conseguia atender a grande massa de
trabalhadores livres disponveis. Com a esperana e a expectativa de se ter uma vida
melhor vrios foram os homens e mulheres que deixaram as suas famlias para trs e
decidiram arriscar a sua sorte na cidade do Rio de Janeiro.
Muitos desses baianos que chegaram na cidade do Rio de Janeiro na segunda
metade do sculo XIX, iro morar nos bairros centrais da cidade do Rio de Janeiro:
como a Gamboa, Sade e Santo Cristo, bairros que formavam o que veio a chamar de a
Pequena frica no Rio de Janeiro39. A escolha por estes bairros se dava devido ao
grande crescimento na segunda metade do sculo XIX das atividades porturias no Rio
de Janeiro, e diversas obras pblicas que estavam sendo realizadas nesta regio, como a
criao da estao da estrada de ferro. Porm, a cidade do Rio enfrentava um grave
problema que afetava diretamente o estabelecimento desses baianos e de todos outros
39SILVA, Eduardo.Dom Oba II dfrica, o prncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homemlivre de cor.So Paulo: Companhia das Letras, 1997, principalmente o captulo 4, Vida na Corte.
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indivduos na cidade: era a questo da moradia. Para resolver este problema, diversos
casares antigos transformaram-se em cortios, as chcaras foram sendo divididas e
loteadas entre vrias pessoas, fazendo com isso surgir um emaranhado de ruelas, becos
e casas que as autoridades policiais viam este local como antro de perdio e local de
grande periculosidade para toda a sociedade da Corte. E ser nessas casas e cortios
que iro residir a grande maioria dos freqentadores das casas de cultos afro-brasileiros.
Estes homens e mulheres que conseguiam obter uma situao econmica estvel na
capital (uma forma de trabalho estvel e rentvel, um lugar para morar, e um outro lugar
para poder cultuar os seus deuses), no hesitavam em trazer os demais parentes que
haviam ficado para trs, e tambm forneciam comida e moradia para outras pessoas que
buscavam o mesmo sonho que tinham anteriormente: de consegui ter uma vida melhor.
Essas redes de sociabilidade e de assistncia aos recm-chegados, permitiram um fluxo
migratrio regular at a passagem do sculo, o que em termos podemos observar a forte
presena dos baianos na cidade do Rio de Janeiro.
Alguns estudos tem demonstrados que alguns desses baianos que vem para a cidade
do Rio, vem para ocupar, de imediato, alguns postos de liderana nas casas de cultos
afro-brasileiros40, e tambm de alguns grupos festeiros, como no Carnaval41, se
constituindo num dos nicos grupos populares no Rio de Janeiro, naquela conjuntura
histrica, com tradies comuns, coeso, e um novo sentido do conceito de famlia, que,
vindo do religioso, expande o sentimento e o sentido da relao consangnea, criando
assim uma dispora baiana cuja influncia se estenderia por toda a comunidade
heterognea que se forma nos bairros em torno do cais do porto e depois na Cidade
Nova, povoados pela gente pequena tocada para forma do Centro pelas reformas
urbansticas.
Todos os debates e aes que eram realizados para a real concretizao da to
sonhada reforma urbana na cidade do Rio de Janeiro, ir fazer com que os indivduos dediversas experincias sociais, raas e culturas se encontrem nas filas da estiva ou nos
corredores dos cortios, promovendo esse situao, j no fim da Repblica Velha, a
formao de uma cultura popular carioca, definida por uma densa experincia scio-
cultural, que embora subalternizada e quase que omitida pelos meios de informaes da
poca, se mostraria, juntamente com os novos hbitos civilizatrios das classes
40MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro.Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, 1995.41CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma histria social do carnaval carioca entre1880 e 1920.So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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dominantes, fundamental na redefinio do Rio de Janeiro e na formao de sua
personalidade moderna.
Alm dos negros baianos que vieram tentar a sorte na cidade do Rio de Janeiro,
tambm constatamos um grande fluxo de escravos da Bahia vindo para a cidade, graas
ao trfico interprovincial, este tendo um grande crescimento com o colapso do comrcio
atlntico de escravos. Atravs do trfico interprovincial, houve um crescimento do
nmero de cativos das provncias do Norte, como se chamava na poca, andando nas
ruas da Corte; e estes cativos passaram a ser vistos com enorme suspeita pelos seus
senhores e pelas autoridades policiais, como sendo portadores de uma ndole rebelde,
altiva, e de difcil domnio domstico, como se dizia na poca42. Desrespeitar uma
postura municipal, como a que proibia escravos em estabelecimentos coletivos por
temor ao estmulo de fugas e revoltas era um sinal de sua postura inquieta.
O papel desempenhado pelos africanos.
No levantamento feito dos freqentadores presos por estarem em casas de cultos
afro-brasileiros no que se refere nacionalidade dos presos, os nascidos no Brasil
formam uma ampla hegemonia, so 80% do total dos presos (GRFICO IX). Nas
incurses da polcia s casas de culto, foram presos dois portugueses: Joaquim de vila
Pereira, de 20 anos; e Isaas do Couto, de 19 anos, ambos nascidos na cidade de Fayal.
Ambos eram solteiros, moradores da Rua da Alfndega e foram presos no dia 04 de
agosto de 1881, sob a acusao de estarem em casa de dar fortuna. Ambos foram
libertados no dia 13 de agosto43. Tambm encontramos uma argentina: Maria Martha,
de 47 anos, nascida em Corrientes; e uma paraguaia: Maria Dolores Rios, de 30 anos,
nascida em Assuno. Ambas eram solteiras, trabalhavam com servios domsticos e
residiam na mesma rua. Foram presas no dia 01 de outubro de 1882, sob a mesmaacusao que tiveram os portugueses acima: estarem em casa de dar fortuna44.
Completando as nossas informaes no que tange a nacionalidade, encontramos os
africanos em um nmero bastante reduzido, apenas 14%. Porm, eles ocupavam
42Este pensamento foi muito influenciado pela Revolta dos Mals. Sobre este tema, destaco: REIS, JooJos.Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals (1835). So Paulo: Companhia dasLetras, 2003.43Joaquim de vila Pereira: LMCDC, n 22, F. 3771, 04/08/1881, APERJ; Isaas do Couto: LMCDC, n
22, F. 3776, 04/08/1881, APERJ.44Maria Martha: LMCDC, n 27, F. 4769, 01/10/1882, APERJ; Maria Dolores Rios: LMCDC, n 27, F.4775, 01/10/1882, APERJ.
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posies estratgicas dentro das hierarquias das comunidades. Na primeira metade do
sculo XIX, eles detinham a hegemonia de serem os lderes de quase todas as casas de
cultos. Com o passar dos anos, e o fim do trfico negreiro, o que observamos que os
jovens negros ou crioulos nascidos no Brasil, que iro ocupar os lugares que antes
eram dominados pelos negros africanos, que seria a de liderar essas casas.
Grfico IX Nacionalidades dos detentos (1870 1890), em %.
Brasileiro
Africano
Portugus
Argentina
Paraguaia
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
Os africanos que foram presos nas ltimas dcadas da escravido, por freqentarem
as casas de cultos, tinham a idade bastante avanada (esto na faixa etria entre os 50 e
os 80 anos de idade), e a grande maioria dos freqentadores das casas de cultos afro-brasileiros tinha idade entre 20 e 30 anos (GRFICO X). Um dado que revela a
crueldade do sistema escravista, que nenhum dos africanos que foram presos
conseguiram lembrar os nomes de seus pais, talvez separados deles ainda beb. H um
africano, Francisco Antnio, de 70 anos de idade, que declara sendo seus pais Ado e
Eva, numa clara referncia ao casal bblico residentes do paraso, que para a Igreja
Catlica seriam os pais de toda a Humanidade45. Foi preso no dia 07 de junho de 1882,
45A priso do Sr. Francisco Antnio, e das outras seis pessoas esto: LMCDC, n 26, F.2900,07/06/1882, APERJ.
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por consentir desordem em uma casa denominada zung. Essa acusao nos diz que o
Sr. Francisco era o dono da casa, e esta estava em noite de festa (sendo de foro religioso
ou no). Junto com ele, foram presas mais seis pessoas, que estavam na festa promovida
pelo Sr. Francisco Antnio. Um outro africano preso foi o Sr. Domingos Jos
Filgueiras, africano, natural de Mina, com o seus 86 anos de idade. Foi preso no dia 06
de agosto de 1881, pelo Sr. Subdelegado da Freguesia do Esprito Santo, Dr. Candido
Leo, com a acusao de ser vagabundo e de prtica de feitiaria46. A acusao de
vagabundo recaia sobre ele porque no tinha trabalho declarado, apenas disse ser
trabalhador, termo bastante genrico para autoridades que desejavam patrulhar e
policiar essa populao mais de perto. Talvez no tivesse trabalho, porque no
precisava, poderia ganhar a sua vida com os seus servios de feiticeiro. Dois dias depois
foi solto pelo mesmo Subdelegado.
Grfico X Faixa etria dos detentos (1870 1890), em %.
9%
43%
16%
16%
9%
3%3% 1%
10 - 20 anos20 - 30 anos
30 - 40 anos
40 - 50 anos
50 - 60 anos
60 - 70 anos
70 - 80 anos
80 - 90 anos
Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno,Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.
46LMCDC, n 22, F. 3784, 06/08/1881, APERJ.
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suportar o ambiente de explorao, violncia e, na maioria das vezes, de separao de
parentes, algo que ocorria freqentemente com os escravos.
Os africanos que viajaram no mesmo navio para o Brasil, por exemplo, tornavam-se
muitas vezes malungos, ou companheiros da mesma embarcao, o que significava
tambm companheiros de sofrimentos, para falantes de diferentes lnguas de raiz banto.
Robert Slenes explicita que o termo podia significar muito mais, j que a travessia do
oceano tinha tambm o significado da travessia da kalunga, ou a linha divisria entre o
mundo dos vivos do mundo dos mortos, simbolicamente representada pelas guas do rio
ou do mar; atravessar a kalunga, ento significava morrer. Assim, os companheiros
desta travessia muitas vezes se tornavam irmos, ou malungos, um parentesco criado,
mas ainda assim muito importante para os negros. Mary Karasch diz que os escravos
que abandonavam a esperana de um dia voltar frica ainda nesta vida,
frequentemente recorriam ao suicdio atravs do afogamento, ou seja, da imerso na
gua, espcie de batismo que liberassem a lama para a travessia para a frica; da a
importncia da construo desses vnculos de solidariedade para resistir as incertezas
que os aguardavam no novo mundo
No caso dos jovens feiticeiros do Rio de Janeiro, eles poderiam ter tido ligaes
com pessoas que no fossem parentes sangneos, nem malungos seus, j que so
brasileiros e no fizeram a travessia, mas com certeza tiveram ligaes desse tipo com
um parente ou algum conhecido, para que pudessem aprender alguns princpios de
religies africanas. E reside a o importante papel desempenhado pelos africanos na
elaborao das casas de cultos afro-brasileiros na cidade do Rio de Janeiro.
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produtos cujo contedo e cuja aparncia respondem a novas necessidades. H mais rigor
e sofisticao concorrendo pelo prestgio.
Itens de escalas tcnicas incorporaram-se a uma tipografia que antes respondia
exclusivamente da habilidade manual. Inovaes mecnicas, a diviso do trabalho, a
especializao, a racionalizao de custos, a conquista de mercados novos pouco a
pouco transformaram a velha tipografia50.
Esse processo de desenvolvimento do jornalismo, em cuja base se acha a tipografia,
corresponde ao prprio desenvolvimento da economia. Na primeira metade do sculo
XIX, os resqucios da administrao colonial, a crise financeira, a grande porcentagem
da populao no analfabetismo e a instabilidade poltica, bloqueavam, de certa forma,
toda a produo cultural brasileira e, de modo particular, toda a imprensa.
Vrios editores de jornais e empresrios grficos comeavam a compreender que o
mbito restrito de um jornalismo mais literrio e mais poltico j no atende s
exigncias da sociedade, de um pas em transformao, vido por uma melhor qualidade
dos seus produtos.
Uma opinio dominante ento de que a imprensa deveria situar-se num plano de
interesses pblicos, de identificao com os sentimentos de valorizao da ordem
jurdica, de aperfeioamento das instituies e de conquistas sociais voltadas para o
indivduo.
Atravs desta conscientizao que, na segunda metade do sculo XIX, nota-se
tambm uma mudana na atividade profissional dos jornalistas, que ao invs de
permanecer na redao dos jornais, esperando pelos seus informantes alguma notcia,
eles passaram a sair s ruas, procurando um fato diverso, ou um ngulo diferenciado.
Assim, alguns textos jornalsticos da poca revelam a cidade em movimento, muitas das
vezes comentando fatos ou pessoas que antes eram meramente transplantadas para o
jornal.Alguns desses jornalistas da poca tambm realizavam alguns passeios noturnos
pela cidade, muitas das vezes acompanhados por um subdelegado de polcia e/ou outros
agentes policiais, e relatavam e presenciavam vrias batidas policiais s casas destinadas
s prticas dos cultos afro-brasileiros. Sero esses relatos jornalsticos que nos ajudaram
na recriao dos vrios cenrios, e de vrias prises realizadas pela polcia aos
participantes destas casas.
50SODR, Nelson Werneck.Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1966.
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talvez usado para se proteger do sol enquanto exercia o seu rduo e cansativo trabalho.
Joana Maria da Conceio, tambm africana da Costa da Mina, tinha cinqenta anos, e
tambm foi para a Casa de Deteno. Era casada, lavadeira e morava no Andara
Grande, vizinha da vasta freguesia do Engenho Velho. Nos chama a ateno era os seus
trajes, saia e chals de l com um turbante de pano branco, que possivelmente estivesse
envolvida com a ritualstica religiosa em que estavam envolvidos antes de serem
interrompidos pela polcia53. Uma outra africana foi levada para a Casa de Deteno:
Constana Maria da Conceio54, de vinte e cinco anos, vinda de Moambique, costa
oriental do continente africano. Residia no centro urbano da Corte, mais precisamente
na rua das Violas e era solteira; tinha como ofcio de lavadeira, assim como a da sua
companheira Joana, e bem provvel que tenha chagado ao Imprio brasileiro nas
ltimas levas do trfico clandestino de cativos africanos, que encontrou o seu fim em
1850.
O nico brasileiro deste grupo que foi fichado pelo escrivo da Casa de Deteno foi
Jos Nunes da Cunha. Era natural do Rio de Janeiro, pardo, morava na distante
Jacarepagu, e aparentemente no tinha uma profisso definida, pois havia se definido
apenas como trabalhador. Assim como os seus amigos africanos, ele ignorava os
nomes de seus pais. Todos foram soltos no mesmo dia em que entraram na Casa de
Deteno.
A operao na freguesia do Engenho Novo no foi uma ao isolada. Parece que as
autoridades policiais planejavam aes simultneas, em vrios pontos da cidade, no
apenas nas casas de dar fortuna, mas tambm contra os zungs, s casas de alcouce,
lupanares, casas de jogos, casas de tolerncia, ou quaisquer outras denominaes do
jargo policial para identificar habitaes utilizadas pelas classes subalternas como local
de socializao e troca.
Dias antes desta grande priso feita na freguesia do Engenho Velho, no dia 10 dejunho, foi feita uma outra grande priso em uma casa de dar fortuna, no 1 Distrito do
Sacramento55, onde o Sr. Subdel