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    RAFAEL PEREIRA DE SOUZA.

    BATUQUE NA COZINHA, SINH NUM QUER!. REPRESSO E

    RESISTNCIA CULTURAL DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS NO RIO DE

    JANEIRO (1870 1890).

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Histria (PPGH), Instituto de Cincias

    Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense,

    como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo

    de Mestre em Histria.

    BANCA EXAMINADORA.

    Profa. Dra. Gizlene Neder UFF (Orientadora).

    Prof. Dr. Gislio Cerqueira Filho UFF

    Prof. Dr. Humberto Fernandes Machado UFF.

    Profa. Dra. Keila Grinberg UNIRIO.

    Niteri, RJ

    Maro de 2010.

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    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    S725 Souza, Rafael Pereira de."Batuque na cozinha, Sinh num quer!" Represso e resistncia cultural dos

    cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890) / Rafael Pereira de Souza. 2010.

    145 f.

    Orientador: Gizlene Neder.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias

    Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2010.Bibliografia: f. 136 - 145.

    1. Cultos afro-brasileiros. 2. Perseguio policial. 3. Resistncia Cultural. I. Neder,Gizlene. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas eFilosofia. III. Ttulo.

    CDD 981.04

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    AGRADECIMENTOS.

    Em uma das mais belas canes da msica popular brasileira, o cantor Roberto

    Carlos diz em versos que todas as pedras do caminho, voc deve retirar.

    Acompanhando os ensinamentos esta cano, pude contar com a presena e a ajuda de

    inmeras pessoas que fizeram com que estas pedras no se transformassem em

    grandes obstculos para no atrapalhar esta longa caminhada. Inicio os meus

    agradecimentos, de maneira muito particular, a Profa. Dra. Gizlene Neder, pela sua

    presena firme e constante, e pela sua orientao responsvel e sempre provocadora.

    Sem a sua confiana, este trabalho no teria sido possvel; e sem a sua insistncia e

    pacincia o ponto final jamais teria sido encontrado. Eu s tenho a agradecer a esta

    grande mestra, e me empenhar sempre ao mximo para ser digno de tamanha confiana

    que sempre depositou em mim, desde os tempos que trabalhei como bolsista de

    iniciao cientfica no Laboratrio Cidade e Poder da UFF, perodo este que o tema

    comeou a ser pensado.

    Agradeo tambm ao grupo de orientandos e simpatizantes organizados pela Profa.

    Gizlene Neder, todos so membros do laboratrio Cidade e Poder da UFF, e, dentre

    todos, em especial minha amiga Ana Paula Barcelos, que leu e discutiu, de maneira

    bastante entusiasmada, o meu projeto de pesquisa, sou grato tambm.

    Os meus sinceros agradecimentos tambm aos professores Gislio Cerqueira Filho e

    Humberto Fernandes Machado, que fizeram parte da banca de qualificao desta

    dissertao, e com as suas leituras detalhadas, crticas e muitas sugestes, contriburam

    de forma decisiva para o amadurecimento desta dissertao.

    A maior parte da pesquisa que deu origem a esta dissertao foi realizada no

    Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). A todas as pessoas, e foram

    muitas, que me atenderam sempre educadamente; que me protegeram com materiais

    como luvas, mscaras e culos cirrgicos para que eu pudesse manusear os Livros de

    Matrculas da Casa de Deteno que se encontram em pssimo estado de conservao; e

    as pessoas que se desdobraram para localizar meus pedidos, o meu muito obrigado.

    Agradeo tambm aos profissionais da Biblioteca Nacional (BN), em especial aos

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    profissionais que trabalham nas sees de peridicos e de Obras Raras, que sempre me

    atenderam de forma muito educada e solcita.

    minha famlia, que me ajudou nas horas mais difceis e que fez de tudo para que

    eu tivesse as melhores condies para trabalhar: minha me Rosangela e ao Tio Amaro,

    que tem sido mais do que tudo dois grandes amigos, fonte inesgotvel de apoio e de

    compreenso, alm de serem exemplos de luta e sabedoria. Agradeo tambm aos meus

    tios e tias, primos e primas, todos que, afinal de contas, fazem parte fundamental desta

    dissertao. Muito obrigado a todos, pela solidariedade e oraes constantes.

    Aos meus amigos de graduao da UFF, e em especial s minhas grandes amigas

    Juliana e Rosane, que se transformaram em amigas de todas as horas, companheiras de

    farras, de trabalho, e de tudo o mais, com quem sempre pude contar nas horas mais

    difceis

    Por ltimo, mas no menos importante, agradeo tambm queles que durante este

    longo percurso ficaram esquecidos ou deixados para trs. Elos fundamentais nesta

    cadeia de acontecimentos, que sem eles, talvez, no saberia se eu teria inclinado e

    persistido nesta longa caminhada.

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    Para a minha me Rosangela,

    a quem um dia disse ser a rosa mais bela do meu jardim.

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    ABSTRACT

    BATUQUE NA COZINHA, SINH NUM QUER!. REPRESSION AND

    CULTURAL RESISTANCE OF CULTURED AFRICAN-BRAZILIANS IN RIO

    DE JANEIRO (1870 1890).

    Rafael Pereira de Souza.

    Orientadora: Profa. Dra. Gizlene Neder.

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria

    (PPGH), Instituto de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal

    Fluminense, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Histria.

    The aims of this work are to study the issue related to the persecution of homes for

    the Afro-Brazilians cults in the last decades of the nineteenth century in Rio de Janeiro.

    The arrests of religious leaders African descent are research in order to observe the

    police repression on these houses and draw a roadmap of the experiences of these

    religious leaders who availed themselves of the tradition of praising the bravery of their

    ancestors, as the broader scope of the beliefs and practices religious people of African-

    descendants in Brazil. The research was made through the Enrollment books of theHouse of Detention, newspapers of the historical period and literary. The dissertation

    was concerned to identify the different strategies of resistance and negotiation of the

    religious practices of popular classes in the city of Rio de Janeiro.

    Keywords: African-Brazilians cults; police repression; cultural resistance.

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    Sumrio da dissertao:

    1. Introduo.............................................................................................. Pgina 12.

    2. Vultos na escurido: mestres e discpulos......................................... Pgina 17.

    3. Desvendando mistrios: os cultos afro-brasileiros nas

    pginas policiais ........................................................................................ Pgina 48.

    4. Religiosidade popular e africanidade na literatura brasileira......... Pgina 94.

    5. Arquivos e Fontes................................................................................. Pgina 135.

    6. Referncias Bibliogrficas................................................................... Pgina 136.

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    Grficos, diagramas e quadros.

    Grfico I Causas ou acusaes dos detidos (1870-1890) ......................... Pgina 22.

    Grfico II Sexo dos detidos (1870-1890) .............................................. Pgina 24.

    Grfico III Estado Civil dos detidos (1870-1890) ................................... Pgina 26.

    Grfico IV Ocupaes Profissionais dos detidos (1870-1890) ................ Pgina 28.

    Grfico V A cor dos detidos (1870-1890) ............................................ Pgina 33.

    Grfico VI Freguesias onde aconteceram as batidas

    policiais (1870-1890) .................................................................................. Pgina 37.

    Grfico VII Local de residncia dos detidos (1870-1890) ...................... Pgina 38.

    Grfico VIII Naturalidade dos detidos (1870-1890) ................................ Pgina 41.

    Grfico IX Nacionalidade dos detidos (1870-1890) ................................ Pgina 44.

    Grfico X Faixa etria dos detidos (1870-1890) ...................................... Pgina 45.

    ***

    Diagrama I Rainha Mandinga e as pessoas relacionadas

    a ela no momento da sua priso (1879) ....................................................... Pgina 69.

    Diagrama II Feiticeiro Laurentino Inocncio dos Santos

    e as pessoas relacionadas a ele no momento da sua priso (1890) .............. Pgina 74.

    Diagrama III Feiticeiro e curandeiro Francisco Firmo e as

    pessoas relacionadas a ele no momento da sua priso (1884) ..................... Pgina 81.

    ***

    Quadro I Triunfos, Handicaps e Carreiras ............................................... Pgina 119.

    Quadro II Referncias das prises por motivos de perseguies

    religiosas ( Livros de Matrculas da Casa de Deteno e Imprensa) .......... Pgina 122.

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    INTRODUO.

    O presente trabalho tem como principal objetivo abordar questo relacionada

    perseguio aos cultos afro-brasileiros nas ltimas dcadas do sculo XIX. Para a

    realizao desta, trabalhamos com documentos da instituio policial (Livros de

    Matrculas da Casa de Deteno) para demonstrar como se dava essa represso.

    Tambm trabalhamos com algumas coberturas jornalsticas da poca, analisadas com o

    intuito de observar melhor quais seriam as descries e tambm o emprego dos seus

    juzos de valores na cultura poltica difundida na cidade do Rio de Janeiro. Acreditamos

    que este tema seja pertinente devido ao fato de que a presena de religies e tradies

    africanas preocupavam tanto s autoridades policiais e judicirias quanto s autoridades

    eclesisticas. O local da minha pesquisa foi a cidade do Rio de Janeiro, que neste

    perodo proposto mostrava um crescimento do espao urbano e populacional enorme,

    exigindo uma melhor organizao das instituies de controle social.

    A cidade do Rio de Janeiro vinha sofrendo profundas transformaes desde a dcada

    de 1870. Tais modificaes implicavam um alargamento deste espao urbano (em

    termos geogrficos) com o surgimento de novas freguesias devido ao rpido

    crescimento populacional. O surgimento destas novas freguesias pelo desmembramento

    de antigas freguesias ligava-se ao aumento da populao segundo informao contida

    no Recenseamento de 1906; exigiu a criao de novos distritos policiais, dentre outros

    dispositivos de controle social.

    Gizlene Neder1 nos faz lembrar que o crescimento do espao urbano carioca traz

    consigo a marca da transio da formao social brasileira para o capitalismo. A cidade

    do Rio de Janeiro o palco de um crescimento industrial significativo, possibilitando

    uma maior diversificao social. Verifica-se tambm a constituio de um mercado de

    trabalho livre que se desenvolve nesta cidade em torno os setores comercial,manufatureiro, de transportes, porturio e do funcionalismo pblico. O Rio de Janeiro

    era uma cidade que, em 1890, tinha uma populao trs vezes maior do que a cidade de

    So Paulo no mesmo perodo, e reunia consigo algumas condies que propiciaram a

    sua expanso: o fato de ser uma cidade porturia; era na poca um importante centro de

    produo comercial, e tambm o principal centro poltico do pas.

    1NEDER, Gizlene.Discurso Jurdico e a Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Ed. Srgio AntnioFabris, 1995.

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    Gizlene Neder2 diz que a designao cidade quilombada utilizada como era

    metfora, dado o isolamento e a falta de polticas a que estas reas da cidade do Rio de

    Janeiro estiveram submetidas. Exatamente na conjuntura ps-abolicionista que se tem

    a radicalizao de uma poltica que segregou mais explicitamente o espao urbano

    carioca (justamente quando a cidade negra do perodo colonial-imperial foi

    desarticulada). Os morros, sobretudo, foram constituindo-se em reas de refgio para a

    populao desalojada pelas diversas reformas urbanas que a cidade do Rio de Janeiro

    vinha passando. A rejeio s propostas de urbanizao destas reas (vigentes at os

    dias de hoje) e a manuteno de um estado psicossocial de pnico das classes

    dominantes em relao aos moradores das reas quilombadas desde os primeiros anos

    da Repblica, afinam-se com o autoritarismo da segregao imposta.

    A grande contradio da cidade do Rio de Janeiro que ao mesmo tempo em que

    respirava e desejava desesperadamente por modernidade, era uma cidade que tinha

    parado a si mesma no tempo sua estrutura urbana era velha, ultrapassada e defrontava-

    se com numerosos problemas de desenvolvimento. Era uma poca agitada, entre as

    reformas de saneamento, revoltas populares, reorganizao do Estado e das suas

    instituies de controle scia; derrubadas de velhos prdios e cortios, aberturas de

    avenidas: enfim, o rio civiliza-se em determinados pontos de sua superfcie, mas a

    misria das classes subalternas permanecia a mesma. O negro , sem sombra de dvida,

    o segmento numericamente mais expressivo da populao das classes subalternas da

    cidade do Rio de Janeiro neste perodo.

    Diante desta conjuntura social, os cultos afro-brasileiros desta poca ganharam um

    cunho mais assistencialista e imediatista. Constituram tradies que continuaram em

    processo de contnua transformao a atender s necessidades mais urgentes dos

    indivduos que as cultuavam. O que se observa que os cultos afro-brasileiros

    expressavam a nova condio de subalternizao do negro nas grandes metrpoles doBrasil republicano, contendo o seu lamento e a sua revolta.

    O que pretendo enfocar nesta dissertao que, em nome da ordem, do controle e da

    disciplina social, as manifestaes religiosas dos negros, sejam nas ruas ou nos seus

    terreiros, foram violentamente reprimidas pelas autoridades policiais e objeto de

    excreo total por uma grande e ampla parcela da imprensa carioca naquele perodo. O

    2NEDER, Gizlene. Cidade, Identidade e Excluso Social. Rio de Janeiro:Revista Tempo,

    Departamento de Histria da UFF, Ed. Relum-Dumar, vol. 02, n 03, junho de 1997. As expresses,cidade europia e cidade quilombada, utilizadas por mim na abertura deste trabalho foi criadas pelaautora.

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    que observamos que em diversas conjunturas histricas diferentes havia uma grande

    preocupao com relao a essas prticas religiosas dos negros, seja na senzala ou nos

    mucambos dos grandes centros urbanos no Brasil.

    Entendemos que os significados de revolta emergiam nas religies populares eram,

    a todo o momento, atualizados pelas condies de vida do negro carioca e dos demais

    moradores dos setores populares da cidade do Rio de Janeiro, como pela intolerncia

    como eram tratados pelas classes dominantes e por suas instituies, no importando de

    que lado se colocassem.

    O tema trabalhado nesta pesquisa se encontra, ainda hoje, em diversos discursos de

    vrias autoridades civis e militares do nosso tempo: a acentuada preocupao com o

    controle social e a disciplina da massa de trabalhadores pobres da cidade do Rio de

    Janeiro. Essas preocupaes expressadas pelas autoridades policiais e pelas classes

    dominantes revelam o que diversos autores denominam de medo branco. Este medo

    ainda presente, apesar dos vrios disfarces que o racismo vem tentando empregar ao

    longo dos anos de Repblica. As referncias escravido esto mais esmaecidas, mas o

    racismo e o medo (do Outro) esto, ainda, muito acentuados.

    Os momentos histricos de crises e mudanas institucionais possibilitam o

    florescimento de propostas de organizao social e poltica, num sentido mais amplo,

    bem como de projetos de cidade que expressam as mltiplas clivagens ideolgicas da

    formao histrico-social. Nesse contexto histrico fica evidente qual o papel, e qual

    o lugar das grandes massas de trabalhadores; e qual ser a poltica das autoridades

    policiais referentes represso e controle a essa enorme massa de trabalhadores pobres

    e moradores dos morros e das periferias da cidade do Rio de Janeiro.

    As casas onde se praticavam os cultos afro-brasileiros sero aqui estudadas no

    apenas como sendo um espao religioso, mas tambm, e, sobretudo, pela sua funo de

    agente aglutinador das classes subalternas. Vista, portanto, como lugar que, porexcelncia, permitiu que os negros, pardos ou crioulos pudessem forjar uma nova

    identidade, uma vez que a identidade herdada de seus ancestrais havia sofrido profundas

    transformaes promovidas ao longo do sistema escravista brasileiro3.

    Depois desta breve apresentao, situamos no primeiro captulo Vultos na

    escurido: mestres e discpulos, onde pretendemos identificar quem eram as pessoas

    presas por estarem nas casas destinadas aos cultos afro-brasileiros e como estavam

    3SLENES, Robert. Malungu, Ngoma Vem!: frica coberta e descoberta no Brasil. So Paulo:RevistaUSP, n 12, dez./jan./fev./ de 1991 1992.

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    inseridas na cidade do Rio de Janeiro naquele contexto histrico, entre 1870 1890.

    Para tanto, utilizamos como fonte histrica bsica os Livros de Matrculas da Casa de

    Deteno da Corte, que representam talvez o mais impressionante conjunto de dados

    individuais de indivduos das classes subalternas da cidade do Rio de Janeiro4.

    O segundo captulo, Desvendando mistrios: os cultos afro-brasileiros nas

    pginas policiais, tem como principal objetivo adentrar nestas casas, e observar como

    estavam constitudas no momento das prises de seus lderes. Para tanto, utilizamos as

    notcias de jornais da poca que cobriram essas prises e analisamos a narrativa dessas

    reportagens, no intuito de observar quais eram os seus juzos de valores diante das

    prticas religiosas dos negros na cidade do Rio de Janeiro da poca.

    No terceiro captulo, Religiosidade popular e africanidade na literatura brasileira,

    analisamos a representao das figuras de lideranas religiosas afro-descendentes na

    literatura brasileira. Trabalhamos basicamente com duas obras literrias: As vtimas-

    algozes: quadros da escravido, de Joaquim Manuel de Macedo; e O tronco do ip,

    Jos de Alencar. Nosso intuito aqui foi mais destacar as representaes, fruto das

    posies polticas diferenciadas dos dois autores. No empreendemos, contudo, numa

    anlise mais aprofundada sobre a relao da Histria com a Literatura.

    Acreditamos que a importncia deste trabalho est no fato de retratar um perodo da

    nossa histria marcado por uma forte represso, controle social, e desenraizamento

    cultural, onde pouco se sabe sobre as estratgias de resistncia e de negociao das

    classes subalternas implantao de um modelo idealizado pelas classes dominantes.

    Marginalizadas da esfera poltica, impossibilitadas de expressarem os seus anseios e

    viso de mundo, as classes subalternas criaram um universo autnomo de cultura.

    Contudo, percebemos as relaes sociais e polticas de forma relacional, onde

    apropriaes e circularidades culturais se apresentaram. flagrante o contraste de

    valores entre esse universo e o das classes dominantes. O conflito foi inevitvel.

    4Gizlene Neder trabalho com os Livros de Matrculas da Casa de Deteno no artigo: NEDER, Gizlene.Cidade, Identidade e Excluso Social. Op. Cit.

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    Esta nova instituio carcerria visava atender as necessidades e as demandas da

    cidade do Rio de Janeiro, que havia sofrido uma enorme expanso populacional no

    final do sculo XVIII. Na Corte, no incio do sculo XIX, se inicia um longo debate

    sobre a implantao de um sistema carcerrio que estivesse pelo menos prximo

    daquele instalado nas grandes capitais europias, pois achavam que o antigo sistema

    carcerrio no era satisfatrio6.

    Carlos Eugnio Lbano Soares nos fala que a planta da Casa de Deteno formava

    um grande quadrado, marcado nas duas extremidades por dois monumentais portes

    separando as altas muralhas. No interior, duas galerias principais ladeadas pelos

    cubculos, as celas individuais e as saletas, cada uma comportando seis pessoas

    presos que, ocupam a galeria superior. Na galeria superior eram divididos os presos que

    cometeram delitos mais brandos ou ainda no tinham sido condenados, que ocupariam

    um setor denominado primeiro andar, enquanto que os de comportamento violento, os

    condenados morte e os acometidos de doenas contagiosas ficariam num setor

    denominado trreo. No andar inferior estaria o parlatrio, onde os presos se

    comunicavam com os seus parentes, havia a secretaria administrativa da instituio e a

    casa do carcereiro (ambas transferidas em 1873 para um sobrado), um quarto de

    banhos, e um tanque para a lavagem de roupa.

    Apesar de todo o debate por uma modernizao do sistema carcerrio na cidade do

    Rio de Janeiro, o que observamos foi um completo descaso das autoridades com esta

    instituio pblica, principalmente na questo da higiene do local. Quando foi

    inaugurado em 1856, alm de havido um superlotamento de prisioneiros no ano

    posterior, observamos que no havia sido instalado o sistema de encanamento de gua e

    esgoto, problema este que s foi resolvido no ano de 1874.

    Os Livros de Matrculasda Casa de Deteno.

    O decreto n 1.744, de 02 de julho de 1856, de criao da Casa de Deteno,

    determinava que cinco tipos de livros fossem mantidos pela instituio carcerria: um

    livro de bitos, um de inventrio, um de conta-corrente dos presos sustentados pelo

    6O antigo sistema carcerrio era formado pela Cadeia Velha, tradicionalmente localizada nos subsolos doSenado da Cmara, as masmorras da ilha das Cobras, as celas do Aljube e o calabouo de escravos. Ver,

    SOARES, Carlos Eugnio Lbano.A negregada instituio: os capoeiras no Rio de Janeiro 1850 1890.Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentao e InformaoCultural, 1994, p. 96-97.

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    Estado, um de ndice alfabtico e um de matrculas dos detentos registrando as entradas

    e sadas (para homens, mulheres e escravos separadamente) da instituio.

    O primeiro livro tinha o registro dos bitos e a causa da morte. O segundo, de

    inventrio, trazia os registros dos objetos que os presos portavam ao dar entrada na

    priso, o valor do salrio dos presos que trabalhavam com o objetivo de amortizar

    despesas ou para a formao de peclio. O terceiro livro servia para o registro dos

    trabalhos que faziam os presos pobres sustentados pelo Estado, uma vez que esse

    trabalho servia para pagar suas despesas na instituio. O quarto livro continha uma

    lista em ordem alfabtica dos presos, que funcionava como ndice para os demais livros.

    O quinto livro, que representa os Livros de Matrculas da Casa de Deteno,

    representa talvez o mais impressionante conjunto de dados individuais de membros das

    camadas populares do Rio de Janeiro nas ltimas dcadas do sistema escravista. Cada

    nome perdido naquela interminvel relao retrata um drama pessoal, um rosrio de

    sofrimentos muitas vezes tragicamente concludos, como os registros de bitos que as

    enfermarias tratam de guardar. Estes livros de matrcula, contendo as fichas individuais

    dos presos so diferentes para escravos e livres, comportando os seguintes dados para

    os livres:

    NOME

    ORIGEM

    FILIAO

    CAUSA DA PRISO

    AUTORIDADE QUE EFETUOU A PRISO

    IDADE

    ESTADO CIVIL

    RESIDNCIAPROFISSO

    COR

    ROUPA QUE USAVA

    DATA DA PRISO

    DATA DE SOLTURA

    AUTORIDADE QUE AUTORIZOU A SOLTURA

    OBSERVAESALTURA

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    BARBA

    CABELO

    ROSTO

    NARIZ

    Quanto aos escravos existem alguns acrscimos como:

    NOME DO SEU SENHOR

    NAO7

    Atravs destas informaes sobre homens e mulheres que foram presas envolvidas

    de formas diversas com os cultos afro-brasileiros, numa clara aluso as perseguies

    feitas pelas autoridades policiais a estes cultos, farei minha anlise sobre quem eram os

    lderes, os seus devotos e os seus clientes que procuravam estas casas por diferentes

    motivos.

    Lderes.

    Observando as prticas religiosas africanas no Rio de Janeiro do sculo XIX,

    constatamos que os lderes no eram apenas os indivduos que presidiam os cultos afro-

    brasileiros propriamente ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de

    iniciados, estrutura hierrquica e organizacional, calendrio de cerimnias e assim por

    diante. Acredito que tambm fazia parte da liderana desses cultos os considerados

    auxiliares mais prximos dos cabeas de cultos, incluindo nesta lista, por exemplo, o

    chefes dos tocadores de atabaques (em alguns lugares no nordeste brasileiro so

    denominados de tambaques, nome muito comum na poca) ou o responsvel pelo

    sacrifcio dos animais.

    Ainda considerei lder o adivinho ou o curandeiro que poderia desenvolver uma

    prtica privada, no necessariamente ligada a uma casa de culto. Enfim, esses homens emulheres foram denunciados por prticas de adivinhao; exorcismo (tirar o diabo do

    corpo); feitiaria (incluindo conjuras, poes e envenenamento com uma variedade de

    preparos); por presidir oferendas de bebidas, comidas (sobretudo animais) e outras

    divindades e aos mortos; celebrar diversas cerimnias (pblicas ou privadas) que

    envolviam instrumentos de percusso, dana e canto; orientar diversos ritos de iniciao

    7

    Este item nos reserva um problema: quando aparece um africano nas fichas individuais dos Livros deMatrculas da Casa de Deteno da Corte, no lugar que corresponde NAO, o escrivo registra oporto em que na frica, o indivduo veio como escravo para o Brasil, e no o seu local de nascimento.

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    desses cultos (foram descritos banhos, escarificaes, durao, alimentao, condies

    de recluso e o tratamento dispensado aos iniciados). Tudo isso s poderia ser realizado

    ou supervisionado por especialistas formados numa religio inicitica que primava pelo

    segredo ritualstico8.

    A maioria dos aqui considerados lderes estava envolvida em basicamente trs tipos

    de acusao: adivinhao, feitiaria e curandeirismo. Essas pessoas normalmente

    tinham seus auxiliares, seguidores, clientela e amigos, e estavam, com freqncia,

    ligados a uma ou mais casas de culto, nas quais suas habilidades rituais podiam no ter

    um compromisso de exclusividade com apenas uma casa de culto. Este o caso da preta

    Feliciana Rosa de Jesus que foi presa duas vezes no ano de 1879 e em dias casas de

    culto diferente: a primeira vez em 08 de janeiro, na casa do curandeiro Laurentino

    Inocncio dos Santos; e a segunda vez em 25 de setembro, na casa de Leopoldina

    Jacques da Costa, conhecida na corte do Rio de Janeiro como Rainha Mandinga. Em

    ambas as prises era foi reconhecida como a matadoura, ou seja, era a responsvel

    pelos sacrifcios rituais. Em outras palavras, por serem treinados, conhecerem os rituais,

    plantas e assim por diante, eles tinham reputao de adivinhos, curandeiros e peritos na

    comunicao entre seres humanos e deuses.

    Causa ou acusaes para as prises.

    Nos registros dos livros de matrculas da Casa de Deteno, com relao s

    acusaes para a realizao das prises, os lderes religiosos esto sempre associados

    aos de crimes por feitiaria, de serem dador de fortuna, ou de serem donos ou

    consentir batuque nas suas casas (GRFICO I). As denominaes policiais com relao

    s casas aparecem basicamente por duas denominaes: casa de dar fortuna (que

    funcionaria exclusivamente para os rituais religiosos), e os zungs.

    8

    Considerei todas essas pessoas como lderes religiosos seguindo a sugesto pela por: REIS, Joo Jos.Sacerdotes, devotos e clientes no candombl da Bahia oitocentista. In: ISAIA, Arthur Csar (org.).Orixs e Espritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contempornea.Uberlndia: EDUFU, 2006.

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    Grfico I Causas ou Acusaes dos detidos (1870 1890), em %.

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100

    Zung

    Casa de dar fortuna

    Desordem

    Feitiaria

    Batuque

    Vagabundo

    Suspeito de ser escravo

    fugido

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Carlos Eugnio Lbano Soares9, foi um dos poucos estudiosos que dedicaram

    devida ateno a esta forma de socializao comunitria dos negros no Rio de Janeiro,

    elaborada pelos mundos da escravido, e que marcou, mesmo que de forma discreta e

    subterrnea, a cultura popular da cidade do Rio de Janeiro. Apesar das informaes dos

    viajantes relatarem estas casas como simples locais de refeitrio para africanos

    desfrutarem de alguns pratos africanos entre eles o principal, o ang na realidade

    elas tinham uma funo bem mais ampla. Nestas casas se realizavam festas, encontros,batuques. Os zungs eram, em sntese, pontos de referncia cultural da populao negra,

    escrava ou livre, africana ou crioula, no meio urbano e possua uma caracterstica

    peculiar: a capacidade de reunir grupos e pessoas que antes estariam dispersos, e mesmo

    em conflitos.

    9SOARES, Carlos Eugnio Lbano.Zung: Rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do

    Estado do Rio de Janeiro, 1988.

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    Leila Mezan Algranti10ao estudar o perodo joanino, menciona as casas de feitiaria

    ou calundus; estas casas seriam especificamente ligadas s prticas religiosas, que

    congregariam uma vasta clientela, e que estas casas seriam pontos de encontro de

    portas adentro abertos para a comunidade de africanos e crioulos da cidade. O que

    observamos que nos anos imediatos aps o perodo joanino, a terminologia policial

    utilizada pelas autoridades para designar s casas de cultos afro-brasileiros (Casa de

    feitiaria, ou calundus) foi desaparecendo, ao longo dos anos, dos registros policiais,

    dando lugar, j na segunda metade do sculo XIX, a novas denominaes, que

    desempenhariam as mesmas funes que esta j vinha exercendo.

    Casas de batuque, casas de dar fortuna, casas de dar feitios, e outras

    nomenclaturas iro aparecer nos registros policiais para denominar como sendo as casas

    onde se realizam as prticas religiosas dos negros no Rio de Janeiro. Porm, ser o

    termo zung que mais ir aparecer nos registros, com 60% do total. As autoridades

    policiais tinham bastante receio dessas casas, porque eram conhecidas por serem

    esconderijos para escravos fugidos, acobertando s suas fugas. A ex-escrava Isabel

    Maria da Costa, de 25 anos, foi presa por ser encontrada em casa de dar fortuna e por

    ser suspeita de ser escrava fugida11. Solteira, e com o emprego de engomadeira, foi

    necessrio dois dias presa para comprovarem que ela no era escrava fugida, e que

    poderia ser solta, pois j tinha conquistado o seu direito de andar livremente pelas ruas

    do Rio de Janeiro. Talvez este receio houvesse porque estas casas promoviam reunies e

    socializaes entre negros, o que era considerado algo gravssimo pelas autoridades,

    pois poderiam estar se formando grupos de agitao contra a ordem vigente.

    Com relao aos freqentadores, as acusaes esto por estarem nestas casas, e

    tambm h um discurso de desqualificao dos freqentadores: esto associados no

    motivo de suas prises desordem, serem vagabundo, algazarra, bbados habituais, numa

    clara tentativa de marginalizao dos freqentadores destas casas.

    Mulheres presas.

    Quando analisamos os livros de matrcula da Casa de Deteno, constatamos que

    entre os presos sobre a acusao de estar em casa de dar fortuna, a presena feminina

    10ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro:

    1808 1822. Rio de Janeiro: Ed. Petrpolis, 1988.11Livros de Matrcula da Casa de Deteno da Corte (doravante LMCDC), n 08, Ficha (doravanteF.)858, 22/08/1875, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro (doravante APERJ).

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    superior masculina: a presena feminina corresponde a 60%, enquanto a masculina

    corresponde a 40% (GRFICO II). Este dado aponta a presena fundamental das

    mulheres na estruturao e manuteno das casas coletivas. Algumas dessas mulheres

    assumem papel vital na funo religiosa das casas, nas redes de compadrio que unem

    moradias coletivas diferentes, e no papel de liderana nas comunidades onde vivem e

    onde as suas casas funcionam como o caso da Rainha Mandinga e da Tia Ciata,

    baiana esta que entra no cenrio cultural carioca na virada do sculo XIX para o sculo

    XX.

    Grfico II Sexo dos detidos (1870 1890), em %.

    60%

    40%

    Feminino

    Masculino

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno,Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Assim, podemos concluir que, a forte presena feminina entre os freqentadores dascasas de cultos era devido ao papel saliente que as mulheres detinham dentro da

    hierarquizada sociedade escrava no meio urbano12. Com uma maior facilidade para

    conseguir a sua prpria alforria, conseguiam agenciar ocupaes rendosas e de alta

    12Sobre as mulheres escravas ver: SOARES, Ceclia Moreira. As ganhadeiras: mulher e resistncianegra em Salvador no sculo XIX.Afro-sia, n 17, Salvador, 1996, p. 57-72; FIGUEIREDO, Luciano.O avesso da memria: cotidiano e trabalho da mulher nas Minas Gerais no sculo XVIII.Rio de Janeiro:Jos Olympio/EdUnB, 1993; QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Viajantes do sculo XIX: negras

    escravas e livres no Rio de Janeiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,n 28, So Paulo, 1988,p. 53-76; REIS, Joo Jos. Identidade e diversidade tnicas nas irmandades negras no tempo daescravido. Revista Tempo,n 3, v. 2, Niteri, 1997, p. 7-34.

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    classificao, como o ganho, e tambm angariar a cumplicidade de homens poderosos.

    As mulheres escravas, africanas ou crioulas, conseguiam ter uma enorme mobilidade

    social nas grandes capitais de todo o Imprio, e muitas delas conseguiam criar um

    espao prprio que permitia colocar em sua rbita de influncia um grande nmero de

    negros cativos, ou mesmo libertos.

    Estas mestras das casas de cultos afro-brasileiros formavam uma poderosa casta,

    uma alta hierarquia no seio das camadas populares, conseguindo obter prestgio e poder

    junto a essas camadas que se reuniam em torno delas buscando proteo, espiritual ou

    at mesmo fsica, isso graas a sua influncia, s vezes, com pessoas muito poderosas.

    Porm, vrias dessas mesmas mulheres no gozavam da mesma influncia com os

    agentes policiais.

    Porm nas acusaes de feitiaria e de ser dador de fortuna, observamos que a

    maioria dos acusados eram homens, o que no significa necessariamente que tivessem

    mais oportunidades para liderar grupos religiosos ou se estabelecer como adivinhos,

    feiticeiros ou curandeiros. Constatei que algumas mulheres desempenhavam tarefas

    como adivinhas ou curandeiras, o que, pelo menos dos nags e jejes, a adivinhao, ou a

    arte de ver atravs do sistema divinatrio If ou Fa, seria uma prerrogativa dos homens,

    os babalas13. Um exemplo de uma mulher presa por motivo de feitiaria foi Ana

    Mina, africana da Costa da Mina, 48 anos, quitandeira como grande parte das outras

    mulheres de sua Nao14. Ana era uma tpica africana ocidental na Corte do Rio de

    Janeiro, cortejada por escravos e pretos livres, respeitada por alguns homens brancos de

    condio social mediana, e at temida por sua habilidade nos feitios e nas mandingas,

    da a explicao para a sua priso no Livro de Matrculas da Casa de Deteno. Com

    sua saia chita e seu indefectvel pano da costa, era personagem imprescindvel da

    paisagem carioca da poca. Mas todo o seu prestgio junto a uma camada da populao

    urbana do Rio no impediu a humilhao de ser levada presa pelos policiais at aEstao Policial mais prxima.

    No recolhimento de dados dos livros da Casa de Deteno algo nos chamou muita

    ateno com relao ao estado civil dos freqentadores das casas de cultos afro-

    brasileiros: 93% dos freqentadores se declararam solteiros, sendo que todas as

    mulheres presas se declararam solteiras (GRFICO III). Apenas 5,5% dos

    13BRAGA, Jlio Santana. O jogo dos bzios: um estudo da adivinhao no candombl. So Paulo:

    Brasiliense, 1988.14LMCDC, n 25, F. 769, 27/04/1882, APERJ. A Priso de Ana Mina foi noticiada peloJornal doCommercio,no dia 28 de abril de 1882.

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    freqentadores presos se declararam vivos, o que mostra que o mercado afetivo

    poderia estar esquentando nestas diversas batidas policiais. O nico preso que declarou

    ser casado foi o Sr. Loureno, africano de 55 anos, natural de mina, preso por prtica

    de feitiaria15no dia 27 de julho de 1884, e solto dois dias depois.

    Grfico III Estado Civil dos detidos (1870 1890), em %.

    92%

    2%

    6%

    Solteiro

    Casado

    Vivo

    Fonte:Livros de Matrcula da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Um dos discursos utilizados por diversas autoridades no Imprio para o combate a

    essas casas de cultos era que estariam combatendo a prostituio. Lus Carlos Soares,

    em seu livro, revela que vrios mdicos escreveram teses sobre a prostituio no Rio de

    Janeiro da segunda metade do sculo XIX, como o Dr. Pires de Almeida. O Chefe de

    Polcia da cidade do Rio de Janeiro, em 1875, fez uma estatstica para saber qual era a

    situao da prostituio na cidade. O objetivo de mdicos e autoridades policiais no era

    apenas de combater, mas tambm de tentar controlar e higienizar esse mal necessrio

    que era a prostituio16.

    Todas essas mulheres que declararam no serem casadas, porm, bem provvel

    que essas mulheres tenham relaes sexuais com algumas pessoas; possuindo amantes

    que proveriam os seus sustentos, ou viver amasiada com algum, que poderia tambm

    15

    LMCDCD, n 36, F. 3407, 27/07/1884, APERJ.16SOARES, Lus Carlos.Rameiras, Ilhoas, Polacas... A prostituio no Rio de Janeiro do sculo XIX.So Paulo: Ed. tica, 1992.

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    freqentar a casa de culto do qual so afiliadas. Acreditamos que para as pessoas

    definirem o seu estado civil deveria ser algo de grande dvida, tendo em vista que se

    tratava de um grupo de pessoas onde era muito comum a separaes de corpos, e a

    aquisio de novas unies, claro que essas novas unies no teriam a menor aprovao

    da Igreja Catlica. Martha Abreu Esteves mostra que os amansiamentos eram relaes

    muito presentes entre os setores populares no fim do sculo XIX e incio do sculo XX.

    A autora cita tambm diversas pesquisas que demonstram que no Brasil, desde a

    Colnia, apesar dos esforos da Igreja Catlica, as relaes de amor nunca foram

    necessariamente administradas pelo casamento religioso ou civil.17

    Ocupaes profissionais.

    Com relao questo do trabalho, nos deparamos com uma evidncia que no

    deixa a menor dvida: a maior parte dos detidos estava ligada a servios domsticos

    50% (GRFICO IV). O que em parte refora o peso que a escravido tinha nas casas de

    culto, tendo em vista que as ocupaes domsticas geralmente eram compostas e

    exercidas por escravos. A forte presena feminina ajuda a explicar esse predomnio de

    cozinheiras, lavadeiras e engomadeiras. Entre os homens, o predomnio era de

    pedreiros, carpinteiros e estivadores.

    17ESTEVES, Martha Abreu.Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro daBelle poque. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1989, p. 179.

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    Grfico IV Ocupaes Profissionais dos detentos (1870 1890), em %.

    0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

    Servios Domsticos

    Trabalhador

    Cozinheiro

    Costureira

    Carpinteiro

    Pedreiro

    Quitandeira

    Negociante

    Alfaiate

    Oficial de Chapeleiro

    Ganho

    Calafate

    SapateiroBandeira

    Copeiro

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Com o passar dos anos, nas ltimas dcadas do sculo XIX e o incio do sculo XX,

    o trabalho ambulante aparece em grande nmero entre os presos da Casa de Deteno.

    Movimentar-se amplamente na cidade do Rio de Janeiro, cultivar clientes, negociar

    espaos nos limites urbanos eram prerrogativas do trabalho de rua que devem ter

    ajudado na formao de uma rede de apadrinhados e compadres, capaz de montar uma

    casa de pouso, de tentar se ocultar o suficiente do olhar moralista e policial, e se imergir

    em micro-comunidades urbanas, silenciosas e centralizadores ao mesmo tempo. A

    tradio do trabalho de ganho entre a escravaria urbana na primeira metade do sculo

    pode ter tido um papel importante na formao destas casas comunitrias.

    Observando alguns dos trabalhos ambulantes dos homens presos na Casa de

    Deteno, constatamos algumas profisses que eram alvos de eliminao dos

    reformadores urbanos daBelle poque, como os engraxates ao ar livre, os trapeiros, os

    baleiros, e os democrticos quiosques, armaes de madeiras na calada, onde se vendia

    caf, lcool, tabaco e tambm bilhetes de loteria18.

    18CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro daBelle poque.Campinas: Unicamp/Cecult, 2001.

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    Um dos presos declarou uma profisso que desapareceu completamente da cidade

    do Rio. Carlos Henrique Pedro tinha como profisso bandeira19. Ele seria um

    empregado da Companhia dos Bondes, que estariam posicionados nas esquinas das ruas

    que h trafego de carros, para fazer sinais com uma bandeirola, a fim de evitar acidentes

    entre os carros e os bondes. Carlos, de apenas 20 anos, foi preso no dia 29 de agosto de

    1884, e s foi liberado cinco dias depois.

    Um dos trabalhos ambulantes femininos que aparecem com bastante destaque a

    quituteira ou como algumas mulheres declararam cozinheira. Uma das personagens

    mais famosa no incio do sculo XX, a Tia Ciata e tantas outras tias baianas que

    circulavam nas ruas do Rio de Janeiro compunham um quadro das ruas do Rio de

    Janeiro, essas baianas quituteiras faziam parte da tradio carioca, atividade que tem

    forte fundamento religioso, e que foi recebida com muito agrado na cidade do Rio desde

    sua apario ainda na primeira metade do sculo XIX, quando sua presena foi

    documentada no viajante Debret20. Essas mulheres cumpriam alguns dos seus preceitos

    religiosos, como colocar parte dos seus doces no altar de acordo com o orix

    homenageado no dia. Depois disso, essas mulheres iriam para os seus pontos de venda,

    com sua saia rodada, pano da costa e turbante, ornamentada com os seus fios de contas e

    pulseiras. Seu tabuleiro geralmente era farto de bolos e manjares, cocadas e puxas, com

    nexos msticos determinando as cores e a qualidade do seu tabuleiro. Na sexta-feira, por

    exemplo, dia de Oxal, ela se enfeitava de cocadas e manjares brancos.

    Uma outra ocupao profissional que aparece em nmero bastante significativo

    entre as mulheres a de costureira. Alguns historiadores21 tem trabalhado com a

    hiptese de que algumas dessas costureiras teriam que se prostituir tambm para

    garantir o seu sustento, tendo em vista que no havia muitas formas de sustento para

    mulheres solteiras e pobres no Rio de Janeiro. Uma outra hiptese trabalhada que

    algumas prostitutas costumavam se declarar costureira quando interrogadas pela polcia,apesar de alguns casos essas mulheres no terem o menor jeito com para a costura.

    Uma outra ocupao profissional que aparece entre os presos da Casa de Deteno e

    que no podemos deixar de falar o trabalho artesanal, que tinha uma certa presena

    19SOARES, Antnio Joaquim de Macedo.Dicionrio Brasileiro da Lngua Portuguesa. ElucidrioEtimolgico Crtico das palavras e frases que, originrias do Brasil, ou aqui populares, senoencontram nos dicionrios da lngua portuguesa, ou neles vem com forma ou significao diferente(1875 1888).Rio de Janeiro: INL, 2 vols., 1954, p. 45.20

    DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil. Tomo I, Vols. I e II. So Paulo:Livraria Martins, 1981.21SOARES, Lus Carlos. Op. Cit., ESTEVES, Martha Abreu. Op. Cit.

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    entre os escravos, livres e libertos. Como estes ofcios se realizavam em oficinas,

    localizadas muitas vezes em ruas especficas (como a Rua dos Ferradores, que depois

    passou a ser chamar de Gonalves Dias, e que tinha uma casa de dar fortuna que sofreu

    algumas batidas policiais) eles podem ter contribudo para criar espaos de reunio de

    trabalhadores e de seus clientes e freqentadores, alm de suas famlias.

    Uma outra atividade profissional que aparece com bastante freqncia ente os

    homens so os profissionais da rea de construo civil, como pedreiros, pintores,

    carpinteiros, que esto em um setor mais especializado do mercado urbano. A presena

    de profissionais desta rea, o que nos leva a considerar que estes profissionais poderiam

    ajudar na construo de alguns templos, ou mesmo na conservao das casas que j

    existiam, e que muitos deles freqentavam.

    Com que roupa eu estou?

    Todos os presos que detidos e levados para a Casa de Deteno, na sua ficha de

    matrcula, o escrivo detalhada meticulosamente qual era a roupa que o novo detento

    estava usando a hora em que foi efetuada a sua priso. Observamos que nenhum

    feiticeiro, curandeiro ou adivinho preso foi levado para a Casa de Deteno utilizando

    alguma roupa cerimonial. Para conhecer melhor quais seriam tais roupas s poderia ser

    possvel se, durante a investigao policial fosse instalado algum inqurito policial,

    pois, com o inqurito aberto, os investigadores teriam que reunir o maior nmero de

    provas, com isso teriam de fazer um detalhamento completo sobre quais seriam essas

    roupas cerimoniais e em que cerimnias ou ocasies esses lderes religiosos usavam tais

    roupas.

    Os homens, tanto os lderes religiosos quanto os devotos e clientes presos, em sua

    grande maioria quando fichados pela polcia, utilizavam roupas de cores escuras, esempre vestindo cala preta, camisas de meia ou camisas de chita (seriam camisas com

    um tecido de qualidade inferior e tendo estampas bastante coloridas).

    Com relao aos homens mais velhos, a sua vestimenta era composta quase sempre

    de cala escura, camisa branca, colete, palet e chapu, que poderia ser de lebre preto

    ou de palha. Com esta roupa, que era utilizada pela maioria dos homens brancos que

    circulavam pelos nobres sales da Corte, esses homens, que em sua grande maioria j

    estiveram no cativeiro e conseguiram a sua liberdade, queriam dizer algo. Os estudiososdo tema observam que a linguagem dos trajes tornava visvel, exibindo aos sentidos, a

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    ruas da cidade, alm de ser uma roupa incorporada ao dia-a-dia de muitos dos terreiros

    dos candombls atuais.

    Os livros de matrculas da Casa de Deteno, quando buscam fazer um

    detalhamento em relao vestimenta dos presos que freqentavam as casas de cultos,

    deixam uma importante lacuna em seus registros: no aparece nos livros se quando

    foram presas, essas pessoas estariam usando algum tipo jias-amuletos, algo to

    presente nas religies afro-brasileiras. Vrios viajantes, ao longo de todo o sculo XVIII

    e XIX, descrevem os brincos, colares e outras jias-amuletos, que tanto eram usados por

    mulheres quanto por homens negros, bem como o uso de balangands, por escravos ou

    pessoas livres. A utilizao desses objetos nos revelam a presena cotidiana de

    devoes e cultos entre a populao negra, ou ainda de significados que nem sempre foi

    facilmente desvendados pelos seus senhores. Tambm outros enfeites poderiam ter

    sentidos diversos, embora menos mgicos, como no caso, por exemplo, das pulseiras de

    metal dourado com motivos geomtricos usados pelas escravas provenientes do Congo

    cujo nmero variava segundo a condio hierrquica, de sua possuidora, dentro do

    grupo tribal, denominadas malungas, vocbulo de origem claramente africana24.

    Entre o mundo dos senhores e o da escravido, abria-se um enorme espao para o

    embate entre intenes e sentidos, de lutas travadas com pedaos de panos e enfeites,

    em busca de identidades e diferenas, de afastamentos e aproximaes. Um espao

    minado e escorregadio, em que estavam imbricados questes morais, raciais, de gnero

    e, sobretudo, culturais.

    A cor dos freqentadores.

    Com relao questo da cor dos freqentadores presos por estarem em casas de

    cultos afro-brasileiros, a grande maioria 64% de todos os presos eram de cor preta(GRFICO V). Nesta categoria entraram todos os africanos, pessoas com idade acima

    de trinta anos, e quase todos haviam sido escravos e tinham conseguido a sua carta de

    alforria. Do restante, 31% eram mulatos ou mestios, e apenas 3% dos presos por

    acusao de estarem em casas de cultos afro-brasileiros eram brancos de origem

    24

    LARA, Slvia Hunold. Sedas, panos e balangands: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Riode Janeiro e de Salvador (Sculo XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org). Brasil: Colonizaoe Escravido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 185186.

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    europia: os portugueses Joaquim de vila de Pereira e Isaas de Couto25. Os outros 3%

    foram as duas mulheres latinas presas por estarem em zung: Maria Martha, argentina; e

    Maria Dolores Rios, paraguaia. Ambas receberam a designao de morena,

    classificao essa que no ir aparecer para mais ningum em todo o perodo levantado,

    de 1870 a 189026.

    Grfico V A cor dos detentos (1870 1890), em %.

    64%

    30%

    3%

    3%

    Preta

    Pardos e M estios

    Branca

    Morena

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Hebe Mattos de Castro, em seu livro, mostra que os dados sobre cor em diversos

    documentos do sculo XIX so muito problemticos, pois para camuflar o status,

    muitos negros no se reconhecem como tal, devido associao imediata entre negro

    e escravo27. Porm, acho que nos livros de matrcula da Casa de Deteno no

    aparece tal problema, pois no seriam os presos que determinaria qual era a sua cor, e

    sim o escrivo que registrava a sua chegada nas fichas desses livros.

    25Ambos foram presos no dia 04 de agosto de 1881, e s foram soltos no dia 13 de agosto do mesmo ano.26Ambas as mulheres, com mais seis mulheres, foram presas no dia 01 de outubro de 1882. Enquantoalgumas das mulheres levaram de 03 a 06 dias para serem liberadas, as duas mulheres latinas foram soltas

    no dia seguinte.27CASTRO, Hebe Maria Mattos de.Das cores do silncio: significados da liberdade no sudesteescravista, Brasil, sculo XIX.Rio de Arquivo Nacional, 1993.

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    34

    O problema em relao classificao da cor, dos freqentadores das casas de

    cultos afro-brasileiros detidos, se d nas diversas designaes utilizadas para classificar

    os mulatos e mestios. H um nmero elevado de pessoas fulos, que segundo o que se

    dizia nesta poca, significava cor de mulato escuro, preto avermelhado28. Uma outra

    denominao utilizada era cabra, que significava que a pessoa tinha um quarto de

    mulato com negro, seria um caboclo escuro29. Uma outra denominao era bode, que

    significaria mulato ou mestio30. A utilizao desta denominao tinha uma informao

    a mais do que apenas a cor da pele do detido, era usada em metfora para dizer que o

    cheiro, da raa africana, se assemelhava com o cheiro exalado pelos cabritos, uma

    aroma no muito agradvel. Essas designaes foram muito mais utilizadas como forma

    de desqualificao e de insulto do que pelos supostos grupos que tais termos evocam,

    grupos estes que nem sempre se compreenderam e se organizaram enquanto tais31.

    Assim como as roupas, tecidos e adornos eram lidos como smbolos da presena ou

    ausncia de riqueza e de poder, como signos de comportamentos e costumes louvveis

    ou escandalosos, do domnio ou submisso, a cor da pele e outras marcas fsicas foram

    incorporados, ao longo de todo o perodo da escravido no Brasil, linguagem visual

    das hierarquias sociais. Associadas a tantos outros elementos, perpassando as relaes

    de explorao e dominao, o tom mais escuro da pele da maior parte da populao

    associava-se ao universo da escravido, e ao estigma entre ser escravo ou ser livre. O

    critrio da cor podia inverter sinais, trocar o positivo em negativo, ou vice-versa. O que

    era luxo e poder, em um corpo branco, poderia tornar-se luxria e submisso, se usado

    sobre uma pele mais escura.

    A presena escrava.

    Entre os escravos, observamos uma presena esmagadora de crioulos, porm issoera de se esperar, pois a cidade do Rio de Janeiro desde muitos anos no recebia mais

    escravos africanos, e aqueles que eram remanescentes, geralmente seriam encaminhados

    28SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 206. O autor diz que esta denominao se refereaos Fulbs ou Fulas, uma nao da frica Ocidental, situada entre o Senegal e o Nger, vizinha dosMandingas. As caractersticas fsicas dos habitantes desta nao seria cabelos crespos, mas no lanzudoscomo os dos negros; cor avermelhada; face ortgnata; nariz pequeno, cartilaginoso e aquilino; caraagradvel, mais inteligentes e em geral de melhor carter que os negros.29SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 79.30

    SOARES, Antnio Joaquim de Macedo. Op. Cit., p. 62.31LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiagem no Imprio do Brasil. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 2003.

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    em grande nmero para as fazendas de caf, que pagavam um alto preo por estas

    peas.

    Uma outra peculiaridade, que nos registros de escravos na Casa de Deteno no

    contm endereo, e sim, apenas o nome do seu dono. Assim, no podemos comparar

    onde eles residiam e qual seria o seu percurso pela cidade para poder encontrar com

    seus iguais, ou mesmo se moravam prximo destas casas de dar fortuna. Somente com

    os livres e libertos que conseguimos ter noo do arco de influncia que estas casas

    exerciam ao seu redor, ou se conseguiam atrair indivduos das mais diversas partes da

    cidade.

    Numa batida policial, realizada em junho de 1868, na Freguesia do Engenho Velho,

    dentre os doze escravos presos nesta batida policial, um deles pelo menos tinha um

    senhor ilustre: o escravo Antnio, que pertencia ao Baro de Mau, e foi o ltimo a ser

    registrado no boletim de polcia. Todos foram fichados como tendo sido presos por se

    encontrarem em batuque e dar fortuna, que era o jargo policial do tempo se referia s

    prises em centros religiosos, geralmente de extrao afro-brasileira.

    O escravo Antnio, que era propriedade do Baro de Mau, no chegou a completar

    um dia inteiro detido na Casa de Deteno. Talvez por alguma influncia do seu senhor?

    Acredito que esta possibilidade seja verdadeira. De acordo com a Mary Karasch32, o

    statusdo senhor de escravo pesava nas relaes socais que o escravo mantinha com o

    resto da sociedade. Assim, um escravo de um senador do Imprio ou de um rico

    comerciante podia esperar um tratamento, pelos agentes da represso, diferente do

    concedido a um cativo que fosse de uma pobre viva, ou de um arteso humilde.

    Um outro dado a ser destacado nas fichas de matrculas dos escravos na Casa de

    Deteno, observar que nos anos prximos da abolio da escravatura h uma

    multiplicao de senhores para um nico escravo, registrado nas fichas. Desde dado

    podemos tirar trs concluses: primeiro, a grande quantidade de escravos alugados quetrabalhavam na praa do Rio de Janeiro, na posse de um proprietrio, mas sob a

    propriedade de outro.

    Segundo, e possivelmente o mais significativo, que talvez haja uma estratgia de

    prprio escravo para escapar do castigo de um senhor cruel, ou afasta-se de uma

    punio mais severa por parte dos seus algozes imediatos, alinhando-se com um senhor

    32KARASCH, Mary.A vida de escravos no Rio de Janeiro 1808-1850.So Paulo: Companhia dasLetras, 2000.

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    poderoso, que no ficaria satisfeito em saber que seu cativo, um bem muito valioso e

    caro, fora maltratado por policiais e carcereiros.

    E, em terceiro, a infinidade de nomes de possveis senhores que ocasionalmente

    aparecem nas fichas pode indicar tentativas reiteradas de ocultar o senhor verdadeiro, ou

    exibir senhores fictcios que dessem cobertura s atividades de seus escravos.

    Mary C. Karasch, em seu trabalho pioneiro sobre a escravido urbana carioca, nos

    mostra que os cativos da cidade do Rio de Janeiro tinham a noite como um espao

    privilegiado para socializar-se e muitas vezes a escurido noturna servia como proteo

    contra olhares indevidos da ordem senhorial e policial. Os prprios senhores eram os

    primeiros a perceber como a noite era importante para a vida social e comunitria de

    seus cativos, e permitiam suas escapadas na escurido, mesmo contra a vontade das

    autoridades policiais.

    Vale a pena lembrar que as sadas noturnas, apesar de aceitas por alguns senhores de

    escravos, eram proibidas pelo toque de recolher das 22 horas, a partir do qual era

    proibido ao escravo andar nas ruas sem bilhete de autorizao dos seus senhores, sob a

    pena de priso e multa para o proprietrio. Chegou a ser institudo um toque de sino,

    que duraria meia-hora, para que ningum pudesse alegar desconhecimento da Lei. O

    famoso toque de Arago, assim denominado pelo intendente da polcia que o

    instituiu, no acabou com as sadas noturnas sem licena de escravos, que eram presos

    no jargo policial por estarem fora de horas. Aparentemente os senhores eram

    convenientes com estas prticas subversivas33.

    Localizao geogrfica das casas.

    Com relao localizao dessas casas na cidade do Rio de Janeiro, a freguesia com

    a maior incidncia de batidas policiais foi a freguesia do Sacramento (GRFICO VI),em que um dos seus limites era exatamente a rua larga de So Joaquim. Esta freguesia

    seria o centro, o local com o maior nmero de casas de dar fortuna, e o nmero elevado

    de ocorrncias policiais no nos deixa que a menor dvida de que a polcia sabia onde

    se procurar e reprimir o funcionamento das casas de cultos afro-brasileiros.

    At o fim da segunda metade do sculo XIX, a rua Nncio (localizada no centro da

    cidade do Rio de Janeiro, rua esta situada na divisa entre a freguesia do Sacramento e o

    33SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Op. Ci.t,p. 49.

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    Campo do Santana, e foi criada rasgando inicialmente em terras que pertenciam a

    Ordem do Carmo, e da antiga Chcara dos Cajueiros34) foi talvez a rua da cidade onde

    mais se concentraram casas coletivas de pretos e pardos, e onde as batidas policiais

    foram mais freqentes35.

    GrficoVI Freguesias onde aconteceram as batidas policiais (1870 1890), em %.

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100

    SacramentoGlria

    Esprito Santo

    So Jos

    Santa Rita

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Tal rua foi habitada por homens ilustres no perodo joanino, como, por exemplo, um

    dos mais importante homens de cor na primeira metade do sculo XIX: o padre Jos

    Maurcio Nunes Garcia, filho de um portugus branco com uma escrava, e que foi

    agraciado pelo Prncipe regente D. Joo VI, sendo nomeado Mestre da Capela Real36.

    34BERGER, Paulo.Dicionrio histrico das ruas do Rio de Janeiro (Centro).Rio de Janeiro: OlmpicaEditorial, 1974, p. 115.35Esta rua foi residncia de um famoso feiticeiro negro que foi preso por estelionato, tendo em vista queno poderia ser preso por ser feiticeiro j que o cdigo criminal no qualificava tal atividade como sendocrime. Sobre este personagem que ficou conhecido como Pai Quilombo, ver: SAMPAIO, Gabriela dosReis.A histria de Juca Rosa: cultura e relaes sociais no Rio de Janeiro.Campinas: Tese deDoutorado apresentado ao programa de ps-graduao em Histria da UNICAMP, 2000.36O Padre Jos Maurcio Nunes, apesar de nunca ter sado do Brasil, foi um grande percussor efomentador do movimento musical de sua poca. Historicamente, o padre a primeira pessoa de

    importncia da msica brasileira. O que se conhece da sua obra encontra-se na sua totalidade emmanuscrito, depositado na biblioteca da Escola de Msica do Rio de Janeiro. In: ISAACS, Alan; eMARTIN, Elizabeth.Dicionrio de Msica. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1985.

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    Os registros de moradia de livres e libertos para comparar os registros dos

    escravos e muito complicado, pois quando presos no tinha o seu endereo registrado,

    apenas o do seu senhor nos mostram que apesar da predominncia da freguesia do

    Sacramento, observamos tambm as freguesias de So Jos, Santa Rita, Glria e

    Esprito Santo, Santana, Candelria e Santo Antnio, todas estas freguesias que

    formavam o centro da cidade do Rio de Janeiro.

    Compilando os registros de local de priso de livres e libertos com o local de

    moradia, observa-se um ponto bastante significativo (GRFICO VII). Apesar da grande

    maioria dos freqentadores das casas de cultos morarem nas freguesias que compem o

    centro da cidade do Rio de Janeiro, 70% do total, os demais detentos, que contabilizam

    30% eram freqentadores que moravam em outras regies da cidade, s vezes bem

    afastadas do centro, como a freguesia do Engenho Novo e da Lagoa. Esse dado

    demonstra que os feiticeiros negros detinham uma enorme fama e prestgio as classes

    populares, e demonstra tambm que estas casas de cultos funcionavam, em muitos dos

    casos, como lugares de encontro, de socializao, fora de seus espaos convencionais de

    moradia e de vizinhana.

    GrficoVII Local de residncia dos detidos (1870 1890), em %.

    70%

    30%

    Centro da cidade

    Outras freguesias

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

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    Devido a uma maior vigilncia das autoridades policiais para tentar coibir o

    funcionamento dessas casas de cultos, inicia-se um processo de afastamento destas

    casas do centro do Rio. Com isso, nos limites da cidade, longe do burburinho e de

    uma vigilncia policial mais intensa e prximos das rotas de fuga de escravos para o

    interior do estado, grande medo dos senhores de escravos eram, neste momento, os

    locais prediletos para as casas realizarem o seu funcionamento.

    Porm, a completa transferncia destas casas do centro urbano da cidade para reas

    mais distantes se dar na primeira metade do sculo XX. Aqui no somente interferem

    mecanismos normalmente acionados pela presena dessas casas religiosas de negros e

    suas manifestaes culturais numa rea utilizada por uma populao de maior poder

    aquisitivo, mas tambm, a prpria redefinio da estrutura urbana, que paulatinamente

    vai levando a populao de menor poder aquisitivo para regies ou reas menos nobres

    da cidade37.

    Longe dos olhos dos opressores, poderia estes terreiros realizar seus cultos com um

    pouco mais de segurana e tranqilidade, sabendo que as suas casas e seus altares no

    seriam profanados. Alis, mesmo nos dias atuais, quando um sacerdote tem o interesse

    de instalar um novo terreiro, recorre ao expediente de procurar lugares mais afastados

    ou isolados dos centros comerciais, pois acredita que ao fazer isto, ir encontrar as

    condies mais favorveis para a realizao dos mais diferentes rituais.

    Evidentemente que, completando esse quadro, inclui-se a dificuldade de comprar

    terrenos em reas prximas dos grandes centros to carente de espaos vazios em

    decorrncia do baixo poder aquisitivo dessa populao que dificilmente disporia dos

    recursos necessrios aquisio de terras nas chamadas reas nobres da cidade.

    Costuma-se minimizar as dificuldades financeiras realando-se a necessidade de boas

    condies para o andamento dos rituais. Certo que em terrenos mais afastados do

    centro da cidade pode ser comprado por um preo mais acessvel, alm de se poderescolher uma rea prxima a uma lagoa, a um crrego qualquer nas imediaes de uma

    mata de onde posam colher as razes, folhas e frutos indispensveis para a execuo de

    vrios rituais internos que algumas destas casas possuem.

    37H uma crnica escrita por Joo Luso, noJornal do Commercio, onde diz: Veja o amigo o que dizesse jornal: o ltimo [candombl] foi polcia encontr-lo na Rua do Lavradio, l embaixo, junto Praa

    Tiradentes! extraordinrio, mais alguns dias e teremos um candombl na Avenida. Ver: SEVCENKO,Nicolau.Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo:Companhia das Letras, p. 47.

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    Esse deslocamento, para as reas perifricas da cidade, que poderia ser considerado

    um recuo diante das permanentes incurses e batidas policiais a estas casas, resultou, na

    verdade, numa forma de vitria se ns considerarmos os resultados positivos obtidos a

    mdio e longo prazo. Esse distanciamento permitiu que diferentes grupos pudessem se

    instalar em terrenos e espaos mais apropriados para o culto s divindades afro-

    brasileiras, estruturando melhor e definitivamente os seus terreiros. possvel at que

    esse afastamento compulsrio tenha desempenhado um papel relevante na preservao

    de uma liturgia que podia, assim, ser praticadas tranquilamente e longe dos assdios,

    muitas das vezes, indesejado e impertinente de algumas pessoas estranhas que no

    pertenceriam ao culto.

    Certo que esses homens e mulheres que aparecem nas fichas dos livros de

    matrculas da Casa de Deteno, evitaram o confronto armado com a polcia por

    absoluta incapacidade de confront-la com alguma margem de sucesso. Dificilmente

    uma casa de culto poderia dispor de meios para tal enfrentamento, e nem era isso o que

    queriam, diante de uma polcia extremamente agressiva, intolerante e fortemente

    armada quando se deslocava para realizar as suas batidas policiais a estas casas. Porm,

    isso no impediu que essas pessoas continuassem a realizar os seus encontros e tambm

    que esboasse uma reao pacfica a estes confrontos com a polcia38.

    Os baianos cariocas.

    Nas anlises dos livros da Casa de Deteno, no que tange o local de nascimento, a

    grande maioria dos freqentadores nasceram na cidade do Rio de Janeiro, representando

    quase 45% dos presos detidos nas casas de cultos afro-brasileiros (GRFICO VIII).

    Ainda com relao ao local de nascimento referente ao estado do Rio de Janeiro, a

    grande maioria dos freqentadores presos nasceram na cidade de Niteri, comaproximadamente 52% dos presos nascidos no Rio. O estado brasileiro que aparece em

    segundo lugar o estado da Bahia, com aproximadamente 13% do total. Outros estados

    brasileiros aparecem tambm nos livros de matrculas: so presos nascidos em Minas

    Gerais, Pernambuco, So Paulo, Rio grande do Sul, Esprito Santo e Par.

    38Em outros estados brasileiros ocorria mesma represso as casas onde se realizavam os cultos afro-brasileiros. Destaco o estudo referente a represso em So Paulo, de PRANDI, Reginaldo. Os candombls

    de So Paulo: a velha magia na metrpole nova. So Paulo: Ed. HUCITEC/USP, 1991; e na Bahia, deBRAGA, Jlio Santana.Na gamela do feitio: represso e resistncia nos candombls da Bahia.Salvador: Ed. UFBA,1995.

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    Grfico VIII Naturalidade dos detentos (1870 1890).

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    8090

    100

    Rio de Janeiro

    Bahia

    Minas Gerais

    Pernambuco

    So Paulo

    Rio Grande do Sul

    Par

    Esprito Santo

    Mina

    Benguela

    Cabinda

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Para explicar o elevado nmero de baianos presos que freqentavam as casas de

    cultos afro-brasileiros, devemos observar como eles se estabeleceram na cidade do Rio

    de Janeiro, para depois conseguimos ver quais foram as suas atuaes nestas casas.Ao longo da primeira metade do sculo XIX, a provncia da Bahia passou por

    algumas transformaes econmicas na qual no conseguia atender a grande massa de

    trabalhadores livres disponveis. Com a esperana e a expectativa de se ter uma vida

    melhor vrios foram os homens e mulheres que deixaram as suas famlias para trs e

    decidiram arriscar a sua sorte na cidade do Rio de Janeiro.

    Muitos desses baianos que chegaram na cidade do Rio de Janeiro na segunda

    metade do sculo XIX, iro morar nos bairros centrais da cidade do Rio de Janeiro:

    como a Gamboa, Sade e Santo Cristo, bairros que formavam o que veio a chamar de a

    Pequena frica no Rio de Janeiro39. A escolha por estes bairros se dava devido ao

    grande crescimento na segunda metade do sculo XIX das atividades porturias no Rio

    de Janeiro, e diversas obras pblicas que estavam sendo realizadas nesta regio, como a

    criao da estao da estrada de ferro. Porm, a cidade do Rio enfrentava um grave

    problema que afetava diretamente o estabelecimento desses baianos e de todos outros

    39SILVA, Eduardo.Dom Oba II dfrica, o prncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homemlivre de cor.So Paulo: Companhia das Letras, 1997, principalmente o captulo 4, Vida na Corte.

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    indivduos na cidade: era a questo da moradia. Para resolver este problema, diversos

    casares antigos transformaram-se em cortios, as chcaras foram sendo divididas e

    loteadas entre vrias pessoas, fazendo com isso surgir um emaranhado de ruelas, becos

    e casas que as autoridades policiais viam este local como antro de perdio e local de

    grande periculosidade para toda a sociedade da Corte. E ser nessas casas e cortios

    que iro residir a grande maioria dos freqentadores das casas de cultos afro-brasileiros.

    Estes homens e mulheres que conseguiam obter uma situao econmica estvel na

    capital (uma forma de trabalho estvel e rentvel, um lugar para morar, e um outro lugar

    para poder cultuar os seus deuses), no hesitavam em trazer os demais parentes que

    haviam ficado para trs, e tambm forneciam comida e moradia para outras pessoas que

    buscavam o mesmo sonho que tinham anteriormente: de consegui ter uma vida melhor.

    Essas redes de sociabilidade e de assistncia aos recm-chegados, permitiram um fluxo

    migratrio regular at a passagem do sculo, o que em termos podemos observar a forte

    presena dos baianos na cidade do Rio de Janeiro.

    Alguns estudos tem demonstrados que alguns desses baianos que vem para a cidade

    do Rio, vem para ocupar, de imediato, alguns postos de liderana nas casas de cultos

    afro-brasileiros40, e tambm de alguns grupos festeiros, como no Carnaval41, se

    constituindo num dos nicos grupos populares no Rio de Janeiro, naquela conjuntura

    histrica, com tradies comuns, coeso, e um novo sentido do conceito de famlia, que,

    vindo do religioso, expande o sentimento e o sentido da relao consangnea, criando

    assim uma dispora baiana cuja influncia se estenderia por toda a comunidade

    heterognea que se forma nos bairros em torno do cais do porto e depois na Cidade

    Nova, povoados pela gente pequena tocada para forma do Centro pelas reformas

    urbansticas.

    Todos os debates e aes que eram realizados para a real concretizao da to

    sonhada reforma urbana na cidade do Rio de Janeiro, ir fazer com que os indivduos dediversas experincias sociais, raas e culturas se encontrem nas filas da estiva ou nos

    corredores dos cortios, promovendo esse situao, j no fim da Repblica Velha, a

    formao de uma cultura popular carioca, definida por uma densa experincia scio-

    cultural, que embora subalternizada e quase que omitida pelos meios de informaes da

    poca, se mostraria, juntamente com os novos hbitos civilizatrios das classes

    40MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro.Rio de Janeiro: Secretaria

    Municipal de Cultura, 1995.41CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma histria social do carnaval carioca entre1880 e 1920.So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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    dominantes, fundamental na redefinio do Rio de Janeiro e na formao de sua

    personalidade moderna.

    Alm dos negros baianos que vieram tentar a sorte na cidade do Rio de Janeiro,

    tambm constatamos um grande fluxo de escravos da Bahia vindo para a cidade, graas

    ao trfico interprovincial, este tendo um grande crescimento com o colapso do comrcio

    atlntico de escravos. Atravs do trfico interprovincial, houve um crescimento do

    nmero de cativos das provncias do Norte, como se chamava na poca, andando nas

    ruas da Corte; e estes cativos passaram a ser vistos com enorme suspeita pelos seus

    senhores e pelas autoridades policiais, como sendo portadores de uma ndole rebelde,

    altiva, e de difcil domnio domstico, como se dizia na poca42. Desrespeitar uma

    postura municipal, como a que proibia escravos em estabelecimentos coletivos por

    temor ao estmulo de fugas e revoltas era um sinal de sua postura inquieta.

    O papel desempenhado pelos africanos.

    No levantamento feito dos freqentadores presos por estarem em casas de cultos

    afro-brasileiros no que se refere nacionalidade dos presos, os nascidos no Brasil

    formam uma ampla hegemonia, so 80% do total dos presos (GRFICO IX). Nas

    incurses da polcia s casas de culto, foram presos dois portugueses: Joaquim de vila

    Pereira, de 20 anos; e Isaas do Couto, de 19 anos, ambos nascidos na cidade de Fayal.

    Ambos eram solteiros, moradores da Rua da Alfndega e foram presos no dia 04 de

    agosto de 1881, sob a acusao de estarem em casa de dar fortuna. Ambos foram

    libertados no dia 13 de agosto43. Tambm encontramos uma argentina: Maria Martha,

    de 47 anos, nascida em Corrientes; e uma paraguaia: Maria Dolores Rios, de 30 anos,

    nascida em Assuno. Ambas eram solteiras, trabalhavam com servios domsticos e

    residiam na mesma rua. Foram presas no dia 01 de outubro de 1882, sob a mesmaacusao que tiveram os portugueses acima: estarem em casa de dar fortuna44.

    Completando as nossas informaes no que tange a nacionalidade, encontramos os

    africanos em um nmero bastante reduzido, apenas 14%. Porm, eles ocupavam

    42Este pensamento foi muito influenciado pela Revolta dos Mals. Sobre este tema, destaco: REIS, JooJos.Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals (1835). So Paulo: Companhia dasLetras, 2003.43Joaquim de vila Pereira: LMCDC, n 22, F. 3771, 04/08/1881, APERJ; Isaas do Couto: LMCDC, n

    22, F. 3776, 04/08/1881, APERJ.44Maria Martha: LMCDC, n 27, F. 4769, 01/10/1882, APERJ; Maria Dolores Rios: LMCDC, n 27, F.4775, 01/10/1882, APERJ.

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    posies estratgicas dentro das hierarquias das comunidades. Na primeira metade do

    sculo XIX, eles detinham a hegemonia de serem os lderes de quase todas as casas de

    cultos. Com o passar dos anos, e o fim do trfico negreiro, o que observamos que os

    jovens negros ou crioulos nascidos no Brasil, que iro ocupar os lugares que antes

    eram dominados pelos negros africanos, que seria a de liderar essas casas.

    Grfico IX Nacionalidades dos detentos (1870 1890), em %.

    Brasileiro

    Africano

    Portugus

    Argentina

    Paraguaia

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    Os africanos que foram presos nas ltimas dcadas da escravido, por freqentarem

    as casas de cultos, tinham a idade bastante avanada (esto na faixa etria entre os 50 e

    os 80 anos de idade), e a grande maioria dos freqentadores das casas de cultos afro-brasileiros tinha idade entre 20 e 30 anos (GRFICO X). Um dado que revela a

    crueldade do sistema escravista, que nenhum dos africanos que foram presos

    conseguiram lembrar os nomes de seus pais, talvez separados deles ainda beb. H um

    africano, Francisco Antnio, de 70 anos de idade, que declara sendo seus pais Ado e

    Eva, numa clara referncia ao casal bblico residentes do paraso, que para a Igreja

    Catlica seriam os pais de toda a Humanidade45. Foi preso no dia 07 de junho de 1882,

    45A priso do Sr. Francisco Antnio, e das outras seis pessoas esto: LMCDC, n 26, F.2900,07/06/1882, APERJ.

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    por consentir desordem em uma casa denominada zung. Essa acusao nos diz que o

    Sr. Francisco era o dono da casa, e esta estava em noite de festa (sendo de foro religioso

    ou no). Junto com ele, foram presas mais seis pessoas, que estavam na festa promovida

    pelo Sr. Francisco Antnio. Um outro africano preso foi o Sr. Domingos Jos

    Filgueiras, africano, natural de Mina, com o seus 86 anos de idade. Foi preso no dia 06

    de agosto de 1881, pelo Sr. Subdelegado da Freguesia do Esprito Santo, Dr. Candido

    Leo, com a acusao de ser vagabundo e de prtica de feitiaria46. A acusao de

    vagabundo recaia sobre ele porque no tinha trabalho declarado, apenas disse ser

    trabalhador, termo bastante genrico para autoridades que desejavam patrulhar e

    policiar essa populao mais de perto. Talvez no tivesse trabalho, porque no

    precisava, poderia ganhar a sua vida com os seus servios de feiticeiro. Dois dias depois

    foi solto pelo mesmo Subdelegado.

    Grfico X Faixa etria dos detentos (1870 1890), em %.

    9%

    43%

    16%

    16%

    9%

    3%3% 1%

    10 - 20 anos20 - 30 anos

    30 - 40 anos

    40 - 50 anos

    50 - 60 anos

    60 - 70 anos

    70 - 80 anos

    80 - 90 anos

    Fonte:Livros de Matrculas da Casa de Deteno,Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

    46LMCDC, n 22, F. 3784, 06/08/1881, APERJ.

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    suportar o ambiente de explorao, violncia e, na maioria das vezes, de separao de

    parentes, algo que ocorria freqentemente com os escravos.

    Os africanos que viajaram no mesmo navio para o Brasil, por exemplo, tornavam-se

    muitas vezes malungos, ou companheiros da mesma embarcao, o que significava

    tambm companheiros de sofrimentos, para falantes de diferentes lnguas de raiz banto.

    Robert Slenes explicita que o termo podia significar muito mais, j que a travessia do

    oceano tinha tambm o significado da travessia da kalunga, ou a linha divisria entre o

    mundo dos vivos do mundo dos mortos, simbolicamente representada pelas guas do rio

    ou do mar; atravessar a kalunga, ento significava morrer. Assim, os companheiros

    desta travessia muitas vezes se tornavam irmos, ou malungos, um parentesco criado,

    mas ainda assim muito importante para os negros. Mary Karasch diz que os escravos

    que abandonavam a esperana de um dia voltar frica ainda nesta vida,

    frequentemente recorriam ao suicdio atravs do afogamento, ou seja, da imerso na

    gua, espcie de batismo que liberassem a lama para a travessia para a frica; da a

    importncia da construo desses vnculos de solidariedade para resistir as incertezas

    que os aguardavam no novo mundo

    No caso dos jovens feiticeiros do Rio de Janeiro, eles poderiam ter tido ligaes

    com pessoas que no fossem parentes sangneos, nem malungos seus, j que so

    brasileiros e no fizeram a travessia, mas com certeza tiveram ligaes desse tipo com

    um parente ou algum conhecido, para que pudessem aprender alguns princpios de

    religies africanas. E reside a o importante papel desempenhado pelos africanos na

    elaborao das casas de cultos afro-brasileiros na cidade do Rio de Janeiro.

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    produtos cujo contedo e cuja aparncia respondem a novas necessidades. H mais rigor

    e sofisticao concorrendo pelo prestgio.

    Itens de escalas tcnicas incorporaram-se a uma tipografia que antes respondia

    exclusivamente da habilidade manual. Inovaes mecnicas, a diviso do trabalho, a

    especializao, a racionalizao de custos, a conquista de mercados novos pouco a

    pouco transformaram a velha tipografia50.

    Esse processo de desenvolvimento do jornalismo, em cuja base se acha a tipografia,

    corresponde ao prprio desenvolvimento da economia. Na primeira metade do sculo

    XIX, os resqucios da administrao colonial, a crise financeira, a grande porcentagem

    da populao no analfabetismo e a instabilidade poltica, bloqueavam, de certa forma,

    toda a produo cultural brasileira e, de modo particular, toda a imprensa.

    Vrios editores de jornais e empresrios grficos comeavam a compreender que o

    mbito restrito de um jornalismo mais literrio e mais poltico j no atende s

    exigncias da sociedade, de um pas em transformao, vido por uma melhor qualidade

    dos seus produtos.

    Uma opinio dominante ento de que a imprensa deveria situar-se num plano de

    interesses pblicos, de identificao com os sentimentos de valorizao da ordem

    jurdica, de aperfeioamento das instituies e de conquistas sociais voltadas para o

    indivduo.

    Atravs desta conscientizao que, na segunda metade do sculo XIX, nota-se

    tambm uma mudana na atividade profissional dos jornalistas, que ao invs de

    permanecer na redao dos jornais, esperando pelos seus informantes alguma notcia,

    eles passaram a sair s ruas, procurando um fato diverso, ou um ngulo diferenciado.

    Assim, alguns textos jornalsticos da poca revelam a cidade em movimento, muitas das

    vezes comentando fatos ou pessoas que antes eram meramente transplantadas para o

    jornal.Alguns desses jornalistas da poca tambm realizavam alguns passeios noturnos

    pela cidade, muitas das vezes acompanhados por um subdelegado de polcia e/ou outros

    agentes policiais, e relatavam e presenciavam vrias batidas policiais s casas destinadas

    s prticas dos cultos afro-brasileiros. Sero esses relatos jornalsticos que nos ajudaram

    na recriao dos vrios cenrios, e de vrias prises realizadas pela polcia aos

    participantes destas casas.

    50SODR, Nelson Werneck.Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,1966.

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    talvez usado para se proteger do sol enquanto exercia o seu rduo e cansativo trabalho.

    Joana Maria da Conceio, tambm africana da Costa da Mina, tinha cinqenta anos, e

    tambm foi para a Casa de Deteno. Era casada, lavadeira e morava no Andara

    Grande, vizinha da vasta freguesia do Engenho Velho. Nos chama a ateno era os seus

    trajes, saia e chals de l com um turbante de pano branco, que possivelmente estivesse

    envolvida com a ritualstica religiosa em que estavam envolvidos antes de serem

    interrompidos pela polcia53. Uma outra africana foi levada para a Casa de Deteno:

    Constana Maria da Conceio54, de vinte e cinco anos, vinda de Moambique, costa

    oriental do continente africano. Residia no centro urbano da Corte, mais precisamente

    na rua das Violas e era solteira; tinha como ofcio de lavadeira, assim como a da sua

    companheira Joana, e bem provvel que tenha chagado ao Imprio brasileiro nas

    ltimas levas do trfico clandestino de cativos africanos, que encontrou o seu fim em

    1850.

    O nico brasileiro deste grupo que foi fichado pelo escrivo da Casa de Deteno foi

    Jos Nunes da Cunha. Era natural do Rio de Janeiro, pardo, morava na distante

    Jacarepagu, e aparentemente no tinha uma profisso definida, pois havia se definido

    apenas como trabalhador. Assim como os seus amigos africanos, ele ignorava os

    nomes de seus pais. Todos foram soltos no mesmo dia em que entraram na Casa de

    Deteno.

    A operao na freguesia do Engenho Novo no foi uma ao isolada. Parece que as

    autoridades policiais planejavam aes simultneas, em vrios pontos da cidade, no

    apenas nas casas de dar fortuna, mas tambm contra os zungs, s casas de alcouce,

    lupanares, casas de jogos, casas de tolerncia, ou quaisquer outras denominaes do

    jargo policial para identificar habitaes utilizadas pelas classes subalternas como local

    de socializao e troca.

    Dias antes desta grande priso feita na freguesia do Engenho Velho, no dia 10 dejunho, foi feita uma outra grande priso em uma casa de dar fortuna, no 1 Distrito do

    Sacramento55, onde o Sr. Subdel