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ARTE, EXPERINCIA E MODOS DE ENGAJAMENTO
Daniela Abreu Matos
Resumo
O objetivo desse artigo questionar uma associao imediata entre arte etransformao social, reconhecendo a potncia transformadora nosmodos de engajamento de sujeitos neste caso, jovens moradores decomunidades perifricas resultantes de propostas artsticas queapresentam na sua dinmica interna o valor de uma experincia. Paraisso, propomos pensar a condio transformadora do fazer artstico apartir da noo de experincia, na acepo proposta por John Dewey(1980), filsofo vinculado ao pragmatismo norte-americano, a partir da
anlise dos relatos de jovens integrantes da ONG CRIA Centro deReferncia Integral de Adolescentes.
Palavras-chave: experincia; transformao; arte; engajamento.
Abstract
This article aims to question an immediate association between art andsocial change, recognizing the transformational potential in the individuals'modes of engagement - in this case, young residents of outlying
communities - as results of artistic proposals that have internal dynamicsof an experience. In order to do so, we propose to think the condition ofthe artistic transformation from the notion of experience in the senseproposed by John Dewey (1980), philosopher linked to Americanpragmatism, from the analysis of reports of young members of the NGOCRIA Integral Reference Center for Adolescents.
Keywords:experience; transformation; art; engagement
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Introduo
As ltimas dcadas do sculo XX marcam profundas mudanas nas
formas de organizao das lutas polticas, entram em cena atores e
coletivos1que pautam a transformao social a partir de novas formas de
atuao. Na Amrica Latina, os movimentos populares ganham fora
aps perodos difceis de governos antidemocrticos e ditatoriais. A pauta
das transformaes sociais est ligada possibilidade de diminuio das
desigualdades e a garantia universal dos direitos humanos. Esse
movimento contemporneo marcado pela pluralidade dos formatos de
atuao, surgem associaes, movimentos sociais, ONG's, coletivos que
defendem, tambm, as mais variadas bandeiras polticas e temas de
militncia, tais como, questes de gnero, sexuais, tnicas, geracionais,
trabalhistas, agrrias. Entre as novas formas de atuao esto
grupos que pautam o potencial transformador da arte, herdeiros das
propostas de pensadores e artistas como Bertold Brecht e Augusto Boal2,
entre outros, que propem novas maneiras de ver o mundo, se relacionar
com ele e, diante disso, transform-lo. Nesse momento, surgem diversas
ONG's organizaes no-governamentais , movimentos sociais e
grupos culturais que reconhecem como sua misso provocar mudanas
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1O debate sobre a idia de novos sujeitos e movimentos sociais tem um marcoimportante, no Brasil, com a publicao do livro Quando novos personagens entraram
em cena experincias e lutas dos trabalhadores da grande So Paulo 1970/1980deEder Sader, em 1988. Essa obra que tem como objeto de estudo prioritrio osmovimentossociais dos trabalhadores de SP, num Brasil ainda sob a fora da ditaduramilitar, vai alm de uma minuciosa anlise sociolgica desse objeto para construir demaneira muito slida a percepo da criao de um novo sujeito social epoltico(CHAUI, p.10,1995).
2Bertold Brecht, escritor, poeta, ensasta que desde o incio do sculo XX props o fazerda arte como uma ao poltica e transformadora. Nesse sentido produziu intensamente,elaborando, inclusive o teatro didtico, metodologia que influenciou muitos artistas eativistas, inclusive brasileiros, a exemplo de Augusto Boal, este uma das principaislideranas do teatro de Arena de So Paulo, nos anos 60, e criador do teatro dooprimido, uma metodologia conhecida internacionalmente que alia teatro ao social.
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sociais atravs da arte, o que acaba retomando, e at mesmofortalecendo, o debate sobre a funo da arte nas sociedades
contemporneas3. No entanto bastante comum o fato de que grupos e
coletivos que pautam o fazer artstico, em sua potncia transformadora, o
fazem a partir de um entendimento, ao nosso ver, reduzido dessa mesma
potncia porque a consideram em uma dimenso excessivamente
instrumental, ou seja, a arte a servio de algo, externo a sua prpria
dinmica. Nesse sentido, legitima-se muito facilmente a funo social deum grupo de teatro formado por jovens moradores de comunidades
perifricas, por exemplo se eles colocam em cena situaes de
excluso, preconceitos e desrespeitos vividos no seu dia-a-dia. Contudo,
se o espetculo encenado for um texto clssico, ou mesmo, uma histria
de amor, a condio transformadora costuma ser colocada em dvida,
pergunta-se: "onde est sua funo social?" Inmeras so as propostas
que surgem dessa nova sociedade civil organizada, e tambm do Estado,que consolidam uma viso instrumental, e, portanto, limitadora do fazer
artstico e da vivncia da dinmica de criao. De repente, a arte a
resposta mais imediata para os graves problemas sociais vividos pelas
populaes excludas do nosso pas e a ela cabe oferecer as solues.
Apenas a participao de crianas, adolescentes e jovens em aes
ligadas a diversas linguagens artsticas teatro, msica, dana, literatura
apresentada como a sada para a resoluo de graves problemassociais e profundas desigualdades vividas no cotidiano.
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3Alguns desses grupos tm, hoje, ampla visibilidade miditica como o AfroReggae, o Nsdo Morro, entre outros. Este ltimo tem a seguinte chamada no seu website (http://www.nosdomorro.com.br) Grupo de Teatro Ns do Morro. H 20 anos mudandorealidades atravs da fico. No entanto vale reafirmar que existem inmeros gruposespalhados por todo o Brasil com diferentes graus de institucionalizao que atuam sobprincpios semelhantes e que reinvidicam uma funo transformadora para asexperincias com arte.
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Essa proposio nova no porque inaugura um debate em tornoda funo social da arte, j que este um tema recorrente e importante
para a histria social e poltica das sociedades modernas e
contemporneas, e sim porque re-coloca a questo em uma dimenso de
maior porosidade entre as instncias sociais, culturais e polticas e, dessa
forma, nos oferece alguma possibilidade da instaurao de lugares no-
dicotmicos para o debate, a partir de uma reflexo crtica sobre o tema.
A nossa proposta, para esse artigo, questionar uma associao
imediata entre arte e transformao social. Para isso propomos pensar a
condio transformadora do fazer artstico a partir da noo de
experincia, conceito formulado como eixo central do pensamento de
John Dewey (1980), filsofo e pedagogo vinculado ao pragmatismo norte-
americano4. Buscaremos reconhecer uma potncia transformadora ou,
resistente,nos modos de engajamento de sujeitos neste caso, jovens
moradores de comunidades perifricas resultantes de propostas
artsticas que apresentam na sua dinmica interna o valor de uma
experincia.
Para examinar essa possibilidade, desenvolvemos um esforo
analtico a partir do acionamento de relatos de jovens integrantes do
CRIA Centro de Referncia Integral de Adolescentes5 organizao
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4Tradio filosfica inspirada nas reflexes de Charles S. Pierce e William James, nofinal do sculo XIX, que atribua funo significativa s experincias vividas e ao mtodoexperimental das cincias naturais na construo do conhecimento.
5O Centro de Referncia Integral de Adolescentes tem como misso, por meio da arte-educao e do despertar de sensibilidades, provocar nas pessoas atitudestransformadoras de si e da sociedade em que vivem, de forma coletiva e comunitria.Isso se d desde 1994, a partir de um trabalho de teatro com adolescentes baseado emproposta de arte-educao desenvolvida por Maria Eugnia Milet, sua fundadora e atualsupervisora geral.(Disponvel em HYPERLINK "http://blogdocria.blogspot.com/p/sobre-o-cria.html" http://blogdocria.blogspot.com/p/sobre-o-cria.html) Acessado em 16 deagosto de 2011)
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no-governamental localizada em Salvador, na Bahia, desde 1994, cujaatuao est pautada em uma dimenso transformadora do fazer
artstico.
Modos de engajamento re-inventados.
Es una manera de expresin, de distraerte, de pensar en otra cosa, de conocer a otras
personas, de armar otro mundo fuera de lo comn (sobre a arte).6Jovem participante de
Centro Cultural Comunitrio em Buenos Aires, Argentina.
A idia expressada pelo jovem argentino de armar outro mundo
fora do comum nos oferece um ponto de partida instigante para
identificarmos as formas de engajamento que revelam diferentes
maneiras de conexo com o mundo. Aqui estamos observando a atuao
de jovens que vivem sob condies sociais excludentes, moram em
bairros, comunidades, favelas, aglomerados, periferias que, embora a
variedade de termos para design-los, tm em comum a ausncia de
direitos e precrias condies sociais. Outro ponto em comum entre os
jovens, cujos relatos propomos analisar, participao em grupos,
coletivos, ONG"s, como forma de transformar esse espao de ausncia
em espao de ao.
Essas novas formas de atuao scio-poltica dialogam com umatradio de pensamento que as reconhece como uma possibilidade de
produo que se d a partir do prprio contexto de ausncia, ou
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6Resposta a pergunta "qual o significado da arte na vida das pessoas?" feita a jovensintegrantes de Centro Culturais Comunitrios localizados em bairros perifricos dacidade de Buenos Aires, Argentina. Disponvel em HYPERLINK "http://lamestiza-revista .b logspot.com/2007/11/arte-po l t ica-y- jvenes.html"ht tp : / / lamest iza-revista.blogspot.com/2007/11/arte-poltica-y-jvenes.html. Acessado em 30 de agosto de2008.
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escassez, ou mesmo por causa dessa condio. Muitos tericos, aexemplo do gegrafo Milton Santos, reconhecem a fora contestadora
das produes que surgem a partir dos cotidianos vividos de excluso e
desigualdades. A contradio aparente entre a pulso criadora e a
extrema escassez uma caracterstica fundante desse pensamento.
As proposies de Santos (2001) (re)afirmam o lugar do territrio,
da localidade, como ponto de partida de qualquer experincia, o espao
de exerccio da existncia plena. Dessa forma, o autor afirma a
intensificao da relao sujeito e territrio e mesmo entre os sujeitos
com a formulao do conceito de #cultura da vizinhana" como uma
estratgia de negociao com a situao de excluso (quase) absoluta.
Essa cultura da vizinhana valoriza, ao mesmo tempo, aexperincia da escassez e a experincia da convivncia eda solidariedade. desse modo que, gerada de dentro,
essa cultura endgena impe-se como alimento dapoltica dos pobres, que se d independente e acima dospartidos e das organizaes. Tal cultura realiza-sesegundo nveis mais baixos de tcnica, de capital e deorganizao, da suas formas tpicas de criao. Istoseria, aparentemente, uma fraqueza, mas na realidade uma fora, j que se realiza, desse modo, uma integraoorgnica com o territrio dos pobres e seu contedohumano (SANTOS, 2001, p.144/145)
A fora, destacada por Santos, resultado das possibilidades e
impossibilidades oferecidas pelo prprio territrio. Cada criao dohomem o resultado do enfrentamento das condies e
constrangimentos impostos pelo ambiente, assim as msicas, o gestual e
a dana dos integrantes do movimento HIP HOP, por exemplo, so os
produtos deste embate que se revela em marcas intrnsecas s prprias
criaes do movimento.
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Desse modo, acreditamos poder falar de #caprichosos modos de re-existncia", como prope Salles (2004), ou mesmo de aes de
resistncia que configuram, ento, novos modos de engajamento no
mundo como resultados da experincia, que se torna completa, e por isso
transformadora.
Seguramente, no mais possvel pensar asmanifestaes estticas e culturais hoje sem articul-lass questes bsicas do desenvolvimento econmico e
social. Por toda parte, emergem novos territrios culturaise disseminam-se novas dinmicas de criao einterveno que rapidamente se articulam comorespostas e interpelaes aos efeitos contraditrios dosp r o c e s s o s n e o l i b e r a i s d e g l o b a l i z a o etransnacionalizao da cultura e da informao.(HOLLANDA, 2004, p.7)
Nesse sentido, a produo dos indivduos e coletivos reconhecidos
como perifricos, pode ser entendida enquanto formulaes possveis
de modos de engajamento. Algumas produes confirmam esse
reconhecimento, como os textos apresentados a seguir, que pautam a
mudana a partir de movimentos que se do no cotidiano, porm
disparados por dinmicas artsticas propostas pelo CRIA .
O mundo gira, mas ele no outro, ns que somosoutros a cada momento, ns que mudamos a cadatoque, olhar... So tantas causas, tantas cismas, desejose culpas. "Eu ando pelo mundo prestando ateno emcoisas, em coisas que eu no sei o nome... pela janela doquarto, pela janela do carro, quem ela? Quem ela?"No fundo, todos ns sabemos que h uma busca, que ascoisas tem um porqu. Na verdade, lutamos o tempotodo, passamos em vrios lugares para voltar ao mesmolugar, nus de ps descalos e de olhos fechados.Entretanto, ainda h evoluo, as coisas acontecem e agente est sempre crescendo. Vejo muita gentecaminhando junto. Sueide Oliveira de Jesus Matos, 17anos, moradora de Paripe e integrante do grupo Tribo doTeatro. (MATOS APUD MILLET, 2002, p.54)
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Nessa fala, esto revelados os movimentos, as rupturas quedesguam em outros movimentos, com outros, que s vezes levam ao
mesmo lugar, que, no entanto no mais o mesmo lugar, est
transformado.
(..) com o teatro do CRIA pude me enxergar melhor,conhecer a minha sexualidade, minha etnia e mereconhecer como cidado brasileiro.Decidi fazer teatro nacomunidade, porque sempre vivi precariedades sociais epoucos me socorreram; a vida foi to cruel comigo que
acabei descobrindo esse meu poder de liderana queagora coloco em prtica. Desenvolvo aes (teatro) nacomunidade h dois anos, com os jovens desta minhamesma comunidade. Assim pude colocar em prtica osmeus aprendizados, e por conseqncia, transformaroutros em lideranas. Gilson Assis, 21 anos, morador doCalabar e integrante do grupo Tribo do Teatro. (ASSISAPUD MILLET, 2002, p.90)
J na fala de Gilson est colocada a pulso que resulta em ao, a
sua experincia de #precariedades" conformam uma fora, tambm sua,
de alter-la, mostrando um novo caminho repleto de potencialidades.
Percebo que no h sangue s em mim. Corre sangueem outro corpo tambm, em um vulco de idias epalavras em erupo. Derretemos mitos, tabus epreconceito, fazendo de outros, aliados. Eu no medivido, mas h um pouco de mim em cada um. JaianaMenezes, 16 anos, moradora da Boca do Rio e integrantedo grupo Abeb Omi. (APUD MILLET, 2002, p.58)
A descoberta do eu que est em relao com os outros um
momento de intensidade, nas palavras de Jaiana uma erupo que
revela outros, aliados, obstculos e provoca mudanas.
Esses textos revelam muitos traos em comum, entre eles, o fato
de serem resultados da vivncia de uma dinmica de criao
impulsionada a partir da interao com o lugar vivido, o comum, no
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entanto re-inventado pelo fazer artstico. As experimentaes, das quaisso resultados, acontecem em grupo, seguem uma metodologia de
criao de texto composta normalmente por dois momentos: o primeiro,
uma escritura individual a partir da questo quem sou eu?; o segundo, a
composio de um texto coletivo do grupo (formado por, em mdia, 16
jovens) que dialoga com a questo quem somos ns?7
Importante destacar que as falas dos jovens, registradas em textos
escritos, nos oferecem a possibilidade de reconhecer os modos de
engajamento suscitados a partir de marcas que os compem, j que no
temos como captar a dinmica do acontecer da experincia vivida.
Cotidiano, arte e experincia
A investigao desses fenmenos, e sua efetividade, nos aproxima
do conceito de experincia proposto por John Dewey, que propeentender a dinmica cotidiana da vida como marcada por momentos de
interao entre a criatura viva e o ambiente que surgem enquanto
experincias incompletas, passageiras e efmeras ou enquanto aquelas
que tem valor de uma experincia, sendo por isso momentos de
singularizao dessa interao, de organizao e organicidade entre as
partes vividas. O que distingue a experincia completa a sua
capacidade de se consumar, de chegar ao seu fim a partir das junes e
necessidades que so internas ao processo, e no por algum elemento
que a interrompe, conferindo-lhe uma unidade.
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7Para descrio e anlise detalhada dessa metodologia de criao artstica proposta erealizada pelo CRIA, ver a dissertao de mestrado Uma tribo a mais de mil o teatro doCRIA. (Milet, 2002)
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Uma experincia possui uma unidade que lhe confereseu nome, aquela comida, aquela tempestade, aquelaruptura de amizade. A existncia dessa unidade estconstituda por uma qualidade nica que penetra toda aexperincia, apesar das diferenas de suas partesconstitutivas (DEWEY, 1980, p.90).
A importante compreenso oferecida pelo autor de que podemos
identificar na qualidade da prpria interao seu carter de completo ou
incompleto. Essa distino fundamental para Dewey, na medida quesua proposta reconhece como esttica toda experincia completa, o que
oferece slidos argumentos para alargar o conceito de experincia
esttica e sua possibilidade de realizar-se em momentos diversos na
dinmica da vida. Pode ser a visita a um museu, como tambm o fazer de
uma comida, ou um encontro fortuto com uma rvore florida, os
relmpagos de uma tempestade, uma msica danada a dois, uma
poesia feita em grupo ou um texto encenado publicamente. a interaomesma que vai dizer da qualidade que possui.
Dessa forma, nossa argumentao espera consolidar uma
proposio que compreende o carter esttico presente em aes
criativas pautadas no fazer artstico do cotidiano de jovens das periferias
de centros urbanos brasileiros. Contudo, essa possibilidade da
completude de algumas experincias no pode ser dada como
caracterstica comum a todas elas, assim o desafio continua sendoreconhecer quando acontece e porqu? Ou, de outro modo, o que marca
a sua singularidade?
A construo desse caminho nos aproxima da relao,
estabelecida pelos tericos pragmatistas, entre o esttico e o artstico.
Nessa concepo, faz-se necessria uma distino, mas no uma
separao entre esses dois mbitos da vida. Nos dois momentos h uma
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ligao intrnseca entre o fazer e o sofrer, embora o esttico esteja maisprximo da experincia apreciativa e o artstico do processo de fazer.
A experincia de criao artstica esttica quando procura a sua
forma, a sua unidade, a partir da interao estabelecida entre o homem e
a prpria forma, e encontra a sua completude quando a matria exige seu
fim, sua consumao. Nas palavras de J. Dewey, o fazer ou obrar
artstico quando o resultado percebido de tal natureza que suas
qualidades enquanto percebidas controlaram a produo(1980, p.99).
Dessa forma, produo e recepo, criar e padecer esto presentes na
experincia que completa. Com as palavras da escritora Clarice
Lispector, a lembrana em carne viva o padecer que molda a escritura,
que para ns, a faz uma experincia.
Escrever tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu.
Como conseguirei saber do que nem ao menos sei?assim: como se me lembrasse. Com um esforo dememria, como se eu nunca tivesse nascido. Nuncanasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrana emcarne viva. (LISPECTOR, 1984, p. 58)
Percebemos, desse modo, que o movimento da escritura do quem
sou eu? - quem somos ns? capaz de provocar essa dinmica de criar
e padecer que d forma as representaes belas, que apresentam
unidade e completude. Na dinmica vivida pelos jovens, o texto escrito,re-escrito, falado, declamado muitas vezes at que seu criador/fruidor o
reconhea como temporariamente acabado. At a prxima abertura.
A compreenso de que uma experincia singulariza a relao do
sujeito com o mundo fundamental para a noo de unidade acionada
como exigncia para sua efetiva realizao, o que no se ope
formulao apresentada por Louis Qur do seu carter impessoal
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(QUR, 2007). Carter impessoal uma forma de entender que emborapossamos dizer que a experincia "tida" por algum, a sua inteireza e
completude est no aspecto relacional e partilhado entre a criatura viva e
o ambiente. Ela acontece a partir do encontro, portanto no est no
sujeito, nem no objeto isoladamente, mas na relao estabelecida entre
eles. Instaura, desse modo, uma condio inter-subjetiva.
O desenvolvimento dessa proposio est ancorado na
possibilidade de entendermos o sujeito no como agente e controlador da
experincia e sim como um fator integrado a ela. Esse agente humano
que est integrado a experincia tem um papel ativo no momento mesmo
que padece na interao. E essa atividade daquele que sofre a maneira
encontrada de se apropriar da experincia e faz-la sua, vivida. A partir
desse movimento ela pode passar por uma individuao, ou seja, ganhar
um nome, ser lembrada como aquela experincia. nesse movimento
tambm que o vivido tem lugar como complexificador e tensionador e, at
mesmo como qualificador, mas no como condio para a interao.
Essa apropriao que o individuo pode fazer da experincia como
sua um movimento intenso que confere marcas profundas. Os relatos
nos quais os jovens integrantes do CRIA re-elaboram, e investigam, a sua
participao nas dinmicas criativas revelam a intensidade desse
momento. Abaixo alguns relatos que mostram marcas dessa intensidade,
O teatro do CRIA para mim no se amarrar a um estilodefinido de arte, uma tempestade de coisas ao nossoredor, que nos enriquece, que no tem ttulos ou amarras.Neste teatro eu me percebo cidado, respeitando a mime aos meus sentimentos, veno obstculos, me constituocomo humano. Ted Wallace Alves da Silva, 15 anos,integrante do grupo Tribo do Teatro. (WALLACE APUDMILET, 2002, p.75)
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Quando cheguei aqui, com todo o!bombardeio de boas
energias e informaes, me vi em outro mundo, mas naverdade estava no mesmo mundo, s que agora via-o deoutra forma, enxergando a violncia, a misria, acorrupo...Mas tambm as oportunidades, a vontade demudar, a esperana, um mundo em cores (...) A minhavida mudou muito, eu mudei, eu me sinto encorajadapara ir em busca do que necessito, do que me faz falta etambm para enfrentar meus medos. Aqui eu aprendi eestou aprendendo a olhar mais para mim e tentardescobrir meus segredos e ser algum melhor sempre.
Aqui eu estou aprendendo a lidar com a vida e comminhas dificuldades. Ainda me faltam muitas coisas, masno esmoreo, no fico parada, ainda que s vezes,devagarzinho. Lucimar Cerqueira Sousa, 16 anos,integrante do grupo Mais de Mil. (SOUSA APUD MILET,2002, p. 105)
Um teatro que traz belezas, dores e principalmentedesabafos de um pas desigual, de um estado dominadopor um sistema monopolizador e uma cidade que no
valoriza a beleza do gueto, da periferia e, principalmente,do indivduo. (...) Aprendi a conviver e respeitar odiferente e tirar experincia, aprendizado e beleza do queno me comum. Aprendi a ver a beleza do outro e ver aminha beleza refletida nas aes e atitudes de quem merodeia. Aprendi a ser amigo e amar sempre sem ter medode demonstrar o que sinto. Aprendi a ouvir mais e s falarquando preciso for. Entender o que est por detrs deuma fala e a conduzir o debate para um caminho maisproveitoso. Mudou tudo em mim. Meu jeito de me ver, dever o outro, de encarar o mundo e de ver flexibilidade no
caminho para minhas conquistas. Alm de reforar o meudesejo de ver um mundo melhor. Nilton Lopes, 17 anos,morador da Boca do Rio e integrante do grupo Mais deMil. (LOPES APUD MILET, 2002, p.106)
"Tempestade", "bombardeio", "desabafos", so tentativas
realizadas pelos jovens de localizar a sua experincia, encaix-las no
mundo. Contudo esse mundo j no o mesmo, outro, e pode ser "em
cores"? Aqui a inquietude revelada, o momento disparador de novas
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conformaes, e por isso uma angstia que procura formas possveis dedescrever uma experincia.O territrio como lugar da experincia, na
concepo j apresentada de Milton Santos, componente fundante e
regulador dela mesma. O lugar mostra as suas marcas no decorrer e na
possibilidade da interao. J para as formulaes pragmatistas aqui
acionadas, a experincia regulada pela situao que,
(...) no um objeto ou evento singular, ou um conjuntode objetos e eventos. Pois ns jamais experienciamosnem formamos juzos acerca de objetos e eventosisoladamente, mas apenas em conexo com um todocontextual. Este ltimo que chamado uma situao(DEWEY,1980,p.58)
Acreditamos na possibilidade da aproximao dessas concepes
j que ambas nos fazem compreender que a situao surge no campo do
possvel e compreende as tenses, os constrangimentos que marcam a
ocorrncia da experincia. Desse modo, a situao que problemtica,ela mesma, aciona o processo de investigao, entendido enquanto a
dimenso criativa da experincia completa, ou, esttica. No caso da
produo perifrica, a escassez aparece com uma das situaes
problemticas e geradora de novas possibilidades no sentido de alter-la,
ou seja, transform-la.
No caso dos jovens moradores de comunidades perifricas e
integrantes de grupos artsticos no CRIA, os constrangimentos queconformam a experincia so tanto aqueles relacionados escassez e as
marcas dos territrios quanto queles oferecidos pela linguagem artstica,
no caso o teatro proposto pela ONG. A situao, assim conformada,
aciona o processo de investigao como revelado em relatos como o de
Lucimar que diz se ver "num outro mundo" para no mesmo momento
reconhec-lo como "o mesmo", s que visto de outra forma, ou ainda a
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fala de Gilson quando reconhece a situao de precariedade comoimpulsionadora do seu fazer teatral, portanto transformador da sua
realidade.
Acreditamos, dessa forma, que a argumentao terica
pragmatista colabora com a possibilidade de pensarmos o fazer artstico
desses jovens como dinmica possvel para a instaurao da
investigao que resulta em novas formas de engajamento do sujeito, no
sentido de ao, e, portanto, novas formas de interao com o meio que o
cerca, seu ambiente e contexto.
4. Consideraes Finais
A reflexo apresentada e os relatos-textos dos jovens analisados
neste artigo contribuem para a proposio de que a caracterstica interna
responsvel pelo carter transformador das dinmicas artsticas a suapotncia de conformao enquanto uma experincia, o que a caracteriza
enquanto experincia esttica. Dessa forma, propomos mudar a rota das
discusses em torno do papel transformador da arte ao reconhecermos a
necessidade de "des-automatizar" a relao entre arte e transformao
social. E tambm, com esse processo, reconhecer a transformao que
se d no cotidiano dos sujeitos que se re-inventam ao refazerem sua
insero soci al, a par tir de novos e diversos modos de
engajamento. A complexificao desse debate nos leva ao
entendimento de que a garantia de um novo engajamento dos sujeitos
com o mundo no pode ser tomada simplesmente pela participao na
atividade de criao ou artstica. Para que a experincia tenha um carter
esttico, e no seja mais uma daquelas que reconhecemos como
efmeras, cotidianas, incompletas, ela precisa se desenvolver at a sua
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cessao por caractersticas que so internas sua prpria dinmica,essa participao integrada condio para seu carter singular e
resultado da dinmica de criao e padecimento que a constitui.
Essa percepo tambm contribui para questionarmos se as aes
propostas pelo CRIA, ou por qualquer outra instncia, funcionam da
mesma maneira para todos os indivduos. Reconhecemos que no. A
relao de interao que move a experincia sustentada pela adeso,
que est relacionada possibilidade de engajamento suscitada pelas
condies da prpria experincia. Portanto, ela capaz de alterar o
sujeito mesmo e sua forma de engajamento com o mundo, a
transformao passa a ser um resultado possvel dos fazeres artsticos,
em suas mais variadas formas e linguagens.
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Daniela Abreu MatosDoutoranda no Programa de Ps-Graduao em Comunicao daUniversidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Comunicao eCultura Contemporneas pelo Programa de Ps-Graduao emComunicao da Universidade Federal da [email protected]
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