ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL SOBRE: ESTADO,
DESCENTRALIZAÇÃO E GESTÃO PÚBLICA
SANDRO LUIZ BAZZANELLA
WALTER MARCOS KNAESEL BIRKNER
Organizadores
ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL SOBRE: ESTADO, DESCENTRALIZAÇÃO E
GESTÃO PÚBLICA
CANOINHAS
2014
Universidade do Contestado – Campus de Canoinhas Reitora da Universidade do Contestado: Solange Sprandel da Silva Pró-reitor de Administração: Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Pró-reitoria de Pesquisa, Extensão e Assuntos Comunitários: Profª Itaíra Susko Pró-reitor de Ensino: Prof. Rafael Chapieski Pró-reitoria do Campus de Canoinhas: Luiz Alberto Brandes Comissão Científica Dr. Alexandre Assis Tomporoski (UnC Dr. Argos Gumbowski (UnC) Dr. Armindo Longhi (FAFIUV) Drª Elisete Barp (UnC) Dr. Everaldo da Silva (Unifebe) Dr. Jairo Marchezan (Unc) Dr. José Ernesto de Fáveri (UNIDAVI) Dr. Luiz Paulo Gomes Mascarenhas (UnC) Dr. Marcos Antônio Mattedi. (FURB) Drª Maria Luiza Milani (UnC) Dr. Reinaldo Knorek (UnC) Dr. Sandro Luiz Bazzanella (UnC) Dr. Valdir Roque Dallabrida (UnC) Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner (UnC) Dr. Wellington Amorin (UFMA) Ms Eduardo Gomes de Melo (UnC) Ms. Leandro Rocha (UFSC) Esp. Josiane Liebl Miranda (UnC)
Simpósio Nacional sobre: Estado, Descentralização e Gestão Pública (1 :
2013 : Canoinhas, SC) Anais do I Simpósio Nacional sobre: estado, descentralização e gestão
pública : [recurso eletrônico] / Sandro Luiz Bazzanella, Walter Marcos Knaesel Birkner, organizadores. – Canoinhas, SC : UnC, 2014.
ISBN: 978-85-63671-07-3 1. Estado. 2. Descentralização na administração. 3. Desenvolvimento
regional. I. Bazzanella, Sandro Luiz (Org.). II. Birkner, Walter Marcos Knaesel (Org.). III. Universidade do Contestado.
320.1 S612a
SUMÁRIO
EDITORIAL ................................................................................................................. 4
CAMINHOS PARA UMA EDUCAÇÃO AUTÔNOMA .................................................. 7
CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE: um relato de experiência voltado para a
igualdade participativa na discussão de políticas públicas ...................................... 10
DO PATRIMONIALISMO LUSITANO AO CENTRALISMO SOCIALISTA E
IGUALITARISTA JUDAICO-CRISTÃO: MATRIZES DO ESTADO BRASILEIRO ... 34
ESCOLA E FAMÍLIA NA PARTICIPAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL . 57
VARIÁVEIS DA DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA EM SANTA
CATARINA-BR ........................................................................................................ 73
O DIREITO À ACESSIBILIDADE: UM DIREITO POSTULADO NA CARTA MAGNA
BRASILEIRA ........................................................................................................... 91
FATORES INTERNOS E EXTERNOS NA EVASÃO ESCOLAR NO ENSINO
MÉDIO NOTURNO DO BRASIL ........................................................................... 100
A DISTRIBUIÇÃO DAS RECEITAS PÚBLICAS E O CENTRALISMO DO
GOVERNO FEDERAL E ESTADUAL CATARINENSE ......................................... 114
O PLANEJAMENTO URBANO DE MUNICÍPIOS COM BASE NO PLANO
DIRETOR .............................................................................................................. 132
A PRÁTICA DA AGROECOLOGIA NO ASSENTAMENTO MIMO, MUNICÍPIO DE
IRIENÓPOLIS (SC) ............................................................................................... 145
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EDITORIAL
O I Simpósio Nacional sobre “Estado, Descentralização e Gestão pública”,
realizado entre os dias 19, 20 e 21 de junho de 2013, propôs-se a refletir teórica,
conceitual e pragmaticamente as experiências de descentralização político-
administrativa em curso em vários estados brasileiros. Nesta mesma direção, o
evento pretendeu disseminar socialmente reflexões e práticas sobre o objeto
anunciado, além de proporcionar a troca de experiências e interpretações sobre tais
processos. Como resultados projetados buscou-se o aprofundamento da reflexão, a
ampliação da produção acadêmica ea instituição de um espaço de estudos entre
pesquisadores da temática, com vistas à constituição de uma rede interinstitucional
de pesquisa, além de oportunizar uma aproximação entre academia e gestores
públicos. O I Simpósio foi realizado por meio deconferências, palestras, mesas
redondas, com a participação de especialistas e pesquisadores no tema proposto,
além de autoridades e técnicos do setor público. O evento viabilizado pela
Universidade do Contestado foi conduzido pelo Programa de Pós-Graduação
Mestrado em Desenvolvimento Regional e do Curso de Ciências Sociais, com
ênfase em desenvolvimento regional.
No Brasil, em diversos de seus estados, existem experiências de
descentralização político-administrativa em curso. De modo geral, seu significado
está relacionado à necessidade do Estado encontrar respostas republicanas, por
meio da abertura de canais de comunicação com a sociedade civil, ou ao menos de
aproximação com ela. Essas experiências deixam transparecer, entre outros, um
conjunto de aspectos que foram refletidos, debatidos ao longo de todo o I Simpósio.
Nesta direção, apresentaram-se questões inerentes às experiências de
descentralização em curso, ressaltando-se os seguintes aspectos: a) Suas
características gerais diferenciadas; c) Distinções entre seus procedimentos; c) A
possibilidade de identificar os fundamentos teóricos que fundamentam tais propostas
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de descentralização; d) O significado inovador da descentralização, permitindo a
sinalização de uma tendência do Estado contemporâneo.
Sobre este e outros aspectos, o I Simpósio Nacional sobre Estado,
Descentralização e Gestão Públicacontribuiu para estimular a discussão dos
mesmos, com destaque para suas características constitutivas. A primeira é seu
caráter prioritariamente político. Tais experiências são inspiradas pela expectativa
geral de que a descentralização torne o processo decisório mais eficiente e justo do
ponto de vista da vontade soberana. Nessa perspectiva, as experiências de
descentralização não apenas instauram novos espaços, como permitem a
emergência de novas lideranças. A segunda característica dos processos de
descentralização é seu caráter administrativo. Trata-se de melhorar os
procedimentos por meio de uma maior racionalidade sobre a operacionalização
burocrática, pela otimização de recursos, melhor prestação de serviços, convergindo
para o aperfeiçoamento do caráter republicano do Estado.
Nessa direção, é urgente refletir tais características e procurar compreender
suas especificidades. A terceira característica da descentralização é de ordem
conceitual. O objeto em questão sugere esforços analíticos e interpretativos,
orientação por pressupostos presentes em autores da filosofia política moderna. Ou
seja, que os movimentos descentralizadores possam ser lidos, refletidos e
analisados sob a ótica contratualista, a partir de autores como Thomas Hobbes,
John Locke e Jean-Jacques Rousseau, mas também com Alexis de Tocqueville e,
federalistas como Hamilton, Madison e Jeferson.
Neste sentido, o I Simpósio Nacional sobre Estado, Descentralização e
Gestão Pública apresentou-se como ambiente reforçador dessa busca teórica,
requerendo investigação teórica e prática concomitante. Sob os argumentos acima
arrolados, este evento justificou-se socialmente como tempo e espaço de reflexão,
discussão, análise entre lideranças políticas, comunitárias, estudiosos e teóricos da
temática para compreensão da multiplicidade de perspectivas e possibilidades
advindas das experiências de descentralização e da reforma administrativa.
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Sob tais pressupostos é que se apresentam os artigos que compõem os anais
do I Simpósio Nacional sobre Estado, Descentralização e Gestão Pública. Trabalhos
que abordam diversos aspectos que compõem a racionalidade de Estado brasileira
em suas múltiplas dimensões, em seus limites e possibilidades na
contemporaneidade. Ademais, tais trabalhos demonstram de forma inequívoca que o
Estado não é uma entidade transcendente e monolítica, ou mesmo uma obra de
arte, mas o resultado das demandas sociais circunscritas em determinado contexto,
social, político, econômico e cultural em âmbito, local, regional, nacional e global.
Desejamos a você leitor, além de boa leitura, oportunas e estratégicas reflexões
necessárias ao avanço da razão de Estado brasileira em suas urgências de gestão e
de maior autonomia para o desencadeamento de ações de desenvolvimento
regional.
Dr. Sandro Luiz Bazzanella Filósofo
Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner
Sociólogo
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CAMINHOS PARA UMA EDUCAÇÃO AUTÔNOMA
Maria Benedita de Paula Silva Polomanei1
RESUMO: Estudo bibliográfico sobre o tema autonomia e educação, justifica-se pela necessidade de se construir caminhos para uma educação autônoma na atualidade. Objetiva discutir o conceito de autonomia e definir caminhos para uma educação autônoma, visando uma sociedade sem ambiguidades e que, ao mesmo tempo, não tire a liberdade humana. Fundamenta-se em Kant (1785), Rousseau (1712 – 1778), Bauman (2013), Agamben (2010), Freire (2000) entre outros. Os tópicos teóricos envolvem o conceito de autonomia, situação da educação atualmente e caminhos possíveis para a construção de educação autônoma que subsidie uma sociedade com possibilidades de vir a ser, respeitando o tempo que resta.
Palavras-chave: Autonomia. Educação. Sociedade.
ABSTRACT: Bibliographic study on the subject autonomy and education, justified by the need to build paths for an autonomous education today. Discusses the concept of autonomy and define paths for an autonomous education, towards a society without ambiguities and at the same time, do not take human freedom. It is based on Kant (1785), Rousseau (1712-1778), Bauman (2013), Agamben (2010), Freire (2000) among others. The theoretical topics involve the concept of autonomy, state of education today, and possible ways to build autonomous education to subsidize a company with possibilities of being, respecting the time left.
Keywords: Autonomy. Education. Society.
CAMINHOS PARA UMA EDUCAÇÃO AUTÔNOMA
A reflexão se inicia defendendo autonomia como uso público e privado da
razão e diante de tal afirmação, já defendida por Kant em sua obra “Fundamentação
da Metafísica dos Costumes” (1785) questiona-se: - A educação é capaz de formar
autonomias? Acredita-se que sim, porém não na atual educação brasileira. Como 1Pedagoga. Mestra em Educação. Membro do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, CNPq. Apresentado no I Simpósio Nacional sobre Estado, Descentralização e Gestão Pública de 19 a 21 de junho de 2013, Canoinhas – SC, E-mail: [email protected]
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será possível defender e construir autonomias com a apresentação de índices
alarmantes no quesito qualidade em educação, denunciados constantemente pela
mídia, com base em pesquisas? Nesse sentido, liberdade para escolher e agir
(situação basilar para conquistar a autonomia) como foi defendida por Rousseau
(1712 a 1778) se torna quimera, pois, que discernimento o sujeito que não lê, não
interpreta,pode apresentar? O contrato social preconizado por Rousseau está sendo
até hoje discutido, sem grandes avanços.
O panorama que se apresenta na realidade educacional brasileira, pode-se
afirmar que é fruto da falta de um projeto que subsidie uma educação de qualidade,
capaz de desenvolver o uso público e privado da razão, em prol de uma cidadania
consciente. Além disso, que possa na busca do bem viver e não do viver bem,
segundo Agamben (2010) construir um contrato social calcado na liberdade de
escolhas. Apresenta-se um Plano Nacional de Educação com prazo de validade
vencido. Sua reformulação foi aprovada apenas pelo CAE (Comissão de Assuntos
Econômicos) e segue para outras instâncias, objetivando a aprovação final. Vêm
acontecendo movimentações, pelo que parecem um tanto tímidas, para subsidiar a
segunda CONAE (Conferência Nacional de Educação) a ser realizada em 2014. O
que se afirma é que as mesmas deverão fortalecer a reorganizaçãodo Plano
Nacional de Educação. Quanta responsabilidade! Será que há autonomia para
tanto?
Outro aspecto que pode ser denunciado é a crise do conhecimento. Falta
poder de interpretação, a leitura de mundo defendida por Paulo Freire em sua
Pedagogia para a Autonomia (1996) cujo texto destaca a ética e a estética
caminhando de mãos dadas para a formação do sujeito autônomo. A inércia se
completa com a visível falta do poder de argumentação. Esses pontos elencados
precisam ser trabalhados desde o ensino infantil, avançando para o ensino superior.
Dependendo de como essa trajetória se constrói, defende-seser possível
desenvolver autonomias. Porém, faz-se necessário que profissionais que trabalham
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na educação, principalmente professores e gestores, exercitem sua própria
autonomia.
Há que se buscar definir um projeto educacional para a nação, o qual seja
consistente, discutido democraticamente, pois lembrando Saint-Exupéry (1943) você
se torna responsável pelo que cativas e na democracia se exercitam
responsabilidades. Faz-se necessário fomentar lideranças compartilhadas e
avaliações que não louvem a meritocracia.
Completando, o conhecimento, quer seja transmitido, construído ou mediado,
para usar termos que despertam polêmicas, representa ponto fundamental a ser
trabalhado. Com o conhecimento é possível desenvolver diálogos, projetos
interdisciplinares que, acredita-se,subsidiarão reflexões na vida pública e privada,
esculpindo sujeitos autônomos capazes de discernir, escolher e agir.
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CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE: um relato de experiência voltado para a
igualdade participativa na discussão de políticas públicas
Jean Pierre Chassot2 Sérgio Luis Allebrandt3
Juliano Perottoni4 Cíntia Cristina PruniKunz5
RESUMO: O funcionamento dos conselhos varia em conformidade com as ações que se estabelecem entre os participantes do processo, e suas deliberações são resultados de negociações que contemplem as diferenças de interesses de cada segmento e que garantam a transparência de relação entre os distintos grupos que o constituem. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo relatar a experiência dos atores envolvidos nos processos de discussão do Conselho Municipal de Saúde do município de São Valério do Sul-RS quanto à implantação de políticas públicas municipais, considerando a categoria da igualdade participativa proposta pelo Programa de Estudos em Gestão Social (PEGS), vinculado à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV). A partir dessa análise observa-se a sistemática de participação e tomada de decisão, tendo como base os critérios de análise: forma de escolha dos representantes, discurso dos representantes e avaliação participativa. Dentre as contribuições que o estudo revelou estiveram os desafios que o município deve enfrentar para elaboração e implementação das políticas públicas, e os avanços, uma vez que setores historicamente excluídos, como o caso dos indígenas e agricultores familiares, estão incluídos e consideravelmente participantes do processo.
Palavras-Chave: Gestão em Saúde. Políticas Públicas. Cidadania Deliberativa.
INTRODUÇÃO
Ao longo dos últimos anos, os conselhos gestores legalmente instituídos no
Brasil, foram gradativamente formados nos municípios e vêm alcançando as mais
variadas experiências em busca de ações e instrumentos que favoreçam o
desempenho de suas atribuições legais. No processo de institucionalização, estes
2UNIJUÍ. Mestrando em Desenvolvimento. E-mail: [email protected]
3UNIJUÍ. Prof. Dr. do Departamento.de Estudos da Administração. E-mail: [email protected]
4UFSM. Prof. Dr. da CESNORS. E-mail: [email protected]
5UFSM. Especialista em Gestão Educacional. E-mail: [email protected]
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representam espaços participativos, nos quais emerge uma nova cultura política,
configurando-se como uma prática em que se faz presente o diálogo, a contestação
e a negociação a favor da democracia e da cidadania.
O funcionamento dos mesmos varia em conformidade com as ações que se
estabelecem entre os participantes do processo, e suas deliberações são, em geral,
resultado de negociações que contemplem as diferenças de interesses de cada
segmento e que garantam a transparência de relação entre os distintos grupos que o
constituem. Essas relações, que têm como pano de fundo questões como: a
representatividade dos seus membros, a visibilidade de suas propostas, a
transparência de sua atuação, a permeabilidade e a comunicação com a sociedade,
sendo estas é que vão definir em cada conselho a qualidade de sua ação.
Para avaliar estes espaços, o Programa de Estudos em Gestão Social
(PEGS), vinculado à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da
Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV)tem como objetivos: desenvolver atividades
de ensino, pesquisa e extensão a fim de institucionalizar o campo de estudos em
gestão social nas relações sociedade-Estado, trabalho-capital e sociedade-mercado;
elaborar material conceitual e instrumental que auxilie diferentes organizações e
sujeitos sociais na gestão de políticas, planos, programas e projetos de natureza
social e de desenvolvimento territorial; capacitar gerentes e técnicos de
organizações do setor público, do mercado e da sociedade, no conhecimento do
referencial teórico-prático em gestão e controle social; transferir, socialmente,
tecnologias gerenciais para organizações do terceiro setor e movimentos
sociais.Desenvolveu critérios sob os conceitos habermasianos na ótica de cidadania
deliberativa, que de acordo com Tenório (2007, p. 54), significa que a “legitimidade
das decisões políticas devem ter origem em processos de discussão, orientados
pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia
e do bem comum”.
A partir destes princípios, classificados como categorias a serem observadas
em avaliação de processos de participação e decisão, o pesquisador relata a
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experiência vivenciada de acordo a categoria da Igualdade Participativa, que é
segundo Tenório (2007, p.55) “a isonomia efetiva de atuação nos processo de
tomada de decisão nas políticas públicas”, assim como seus critérios de análise:
forma de escolha dos representantes, que é o método utilizado para a escolha dos
representantes; discurso dos representantes, que é a valorização de processos
participativos nos discursos dos representantes; e avaliação participativa, que se
caracteriza como a intervenção dos participantes no acompanhamento e na
avaliação das políticas públicas.
Este trabalho tem como tema a participação social na gestão das políticas
públicas durante discussões no Conselho Municipal de Saúde no município de São
Valério do Sul/RS, pois o enfoque do controle da sociedade sobre as políticas
públicas evoluiu e ganhou destaque depois da Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988), resultado de longa história de lutas e conquistas visando à
participação popular. Frente a esta situação, diante do processo de democratização
instalado no país por meio da valorização de iniciativas associativas e da
participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas é que se
pergunta: é igualitária a participação nos processo de tomada de decisão no
Conselho Municipal de Saúde do município de São Valério do Sul?
Assim, será analisado o processo de gestão social e o modo como as práticas
de participação acontecem neste conselho especificamente, averiguando os
avanços que este modelo de desenvolvimento e de governança territorial produziu
em termos de cidadania neste ambiente diante das relações de poder que se
estabelecem a partir da observação da sistemática de participação e tomada de
decisão. Como base, foram usados os critérios de análise: forma de escolha dos
representantes, discurso dos representantes e avaliação participativa.
O trabalho tem relevância pelo sentido que a participação social tem-se
mostrado como aliada da gestão pública, principalmente se analisada pelo viés da
gestão social. Além disso, a realização do trabalho visa contribuir para o
desenvolvimento do município em questão, vislumbrado o enriquecimento das
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informações que serão obtidas e, consequentemente, incentivar futuras pesquisas
servindo de referência e ainda oportunizar o crescimento e o desenvolvimento do
saber.
OBJETIVOS
Relatar a experiência vivenciada pelo acadêmico nos processos de discussão
do Conselho Municipal de Saúde do município de São Valério do Sul-RS quanto à
gestão das políticas públicas municipais considerando a categoria da igualdade
participativa.
METODOLOGIA
Este estudo adota como premissa ontológica uma abordagem humanista em
que a realidade é fruto do processo cognitivo dos indivíduos e construída pelo
pesquisador em interação com aspectos históricos e sociais do objeto pesquisado
(HUGUES, 1980). Decorrentes desta premissa, de acordo com Vergara (2007) os
aspectos epistemológicos buscam uma concepção antipositivista no processo de
construção do conhecimento, ou seja, busca-se dialeticamente explicar a realidade
que se encontra “em constante fluxo e transformação”. E, ainda como destaca Gil
(1999) que o método dialético “fornece as bases para uma interpretação dinâmica e
totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser
entendidos quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influências
políticas, econômicas, culturais, etc...”.
Trata-se de um estudo descritivo em que foi realizado um relato de
experiência das atividades do conselho municipal de Saúde de São Valério do Sul,
dirigido para o conhecimento da realidade processual no sentido de gerar
conhecimento sobre a realidade local fundamentada na abordagem qualitativa.
Entende-se que exista uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito,
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possibilitando, assim, trilhar novos caminhos que possibilitem fazer descobertas,
encontrar novos significados a respeito do tema estudado, discutir e avaliar
alternativas ou confirmar o que já é conhecido, reconhecendo o conhecimento como
algo não acabado. Isto é, como uma construção que se faz e se refaz continuamente
no sentido da existência de uma interdependência entre o sujeito e o objeto, uma
relação inseparável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito, pois o
conhecimento não se reduz a um checklist de dados isolados. O sujeito-observador
é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos
atribuindo-lhes um significado.
Nesse sentido, este relato de experiência traz para o concreto essa relação
que o sujeito-pesquisador/observador desenvolveu com as constatações e
observações realizadas junto aos processos de discussão do Conselho Municipal de
Saúde do município de São Valério do Sul-RS quanto à gestão das políticas públicas
municipais, descrevendo se existe ou não igualdade participativa no processo de
participação de acordo com a matriz proposta pelo PEGS. O quadro 1, abaixo, foi
elaborado para ilustrar a categoria de análise e seus critérios.
Quadro 1 – Matriz de categorias e critérios de análise de espaços públicos
Categoria Critérios
Igualdade Participativa:isonomia efetiva de atuação nos processos de tomada de decisão nas políticas públicas.
Forma de escolha dos representantes: métodos utilizados para a escolha de representantes.
Discurso dos representantes: valorização de processos participativos nos discursos exercidos por representantes
Avaliação participativa: intervenção dos participantes no acompanhamento e na avaliação das políticas públicas.
Fonte: Elaboração com base em Tenório (2012).
Quanto aos procedimentos técnicos, para o desenvolvimento da análise, foi
utilizada como metodologia uma pesquisa observacional assistemática de
levantamento dos espaços existentes e usados pela população para participar na
gestão das politicas públicas. As interações com os membros (conversas) tiveram
amostras não-probabilísticas e escolhidas intencionalmente.
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Após a escolha da metodologia para realizar o estudo procurou-se verificar
como se dá a forma de escolha dos representantes, os discursos dos mesmos e a
avaliação participativa dentro do cenário escolhido por meio de observação e
interação com os atores envolvidos no conselho de saúde local com a intenção de
reunir informações suficientes para elucidar o problema existente. Os
acompanhamentos dos trabalhos realizados pelo conselho ocorreram durante o ano
de 2012, e foram acompanhadas reuniões ordinárias, assim como realizados
diálogos constantes com os conselheiros, assim como análise da legislação vigente
(Leis, Portarias, Regimento Interno, atas).
Além da realização desta prática, também foi realizada análise documental,
ou seja, foram analisadas leis, decretos, portarias, resoluções, isto é, análise
documental da legislação que rege o conselho de saúde de São Valério do Sul, pois
se julgou necessário para favorecimento da observação do processo e a evolução
das práticas, confrontando, assim, com os discursos dos entrevistados e
observações realizadas. Esses dados coletados e informações observadas foram
analisados por meio da análise de conteúdo, que segundo Allebrandt (2002, p. 33)
apud Jovchelovich, 2000, p.219 diz que esta “refere-se a qualquer técnica para fazer
inferência através da identificação sistemática e objetiva de características de
mensagens”. Em outras palavras, trata-se de analisar o que é dito em uma dada
unidade de comunicação. A autora ainda estabelece a seguinte distinção:
A análise textual implica examinar detalhadamente os conteúdos léxicos e as estruturas sintáticas, e usualmente toma a palavra como o elemento básico a ser analisado. A análise temática refere-se ao reconhecimento de certos temas, ou idéias, no texto e o seu enquadre em determinadas categorias.
Assim, como técnica de análise de conteúdo foi realizada a análise temática,
que segundo Minayo (1993) consiste em desmembramento do texto em unidades,
ou seja, foram separadas em categorias e organizadas em conformidade com os
fatores que determinam suas características.
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GESTÃO SOCIAL: ASPECTOS CONCEITUAIS
O debate acadêmico sobre o tema gestão social se dá num contexto de
drama e urgência. O agravamento de problemas sociais e as desigualdades no
mundo revelam que o atual sistema econômico produz cada vez mais bilionários, ao
mesmo tempo em que se revela incapaz de viabilizar uma vida digna e sustentável
para todos. As discussões geradas sobre o tema têm ganhado notoriedade ao longo
dos últimos anos pela importância que as questões sociais representam para os
governos dos Estados na implementação das políticas públicas.
Sachs, Lopes e Dowbor (2010) remetem a uma convergência de tensões,
como o crescimento populacional acelerado, liquidação de aquíferos, contaminação
de reservas planetárias de água doce, aumento da produção de automóveis,
expansão de cadeias produtivas geradoras de aquecimento climático, e também a
necessidade de soluções sistêmicas que viabilizem mudanças concretas no nível da
consciência desses desafios.
Carrion e Calou (2008) acreditam que frente a este contexto se estabeleçam
mudanças concretas nos processos de tomada de decisão, priorizando a redução da
desigualdade e o reequilíbrio ambiental. Enfatizam, ainda, a necessidade de
organizar com mais força a presença da sociedade civil neste processo.
Autores como Allebrandt (2010); Tenório (2008); França Filho (2008); Fischer
(2002) defendem o estabelecimento de um modelo de gestão mais participativo
através da articulação social e maior fluidez de informações entre atores e agentes
locais, públicos e privados por meio do compartilhamento de poder.
Allebrandt (2010) conduz este argumento com base em duas óticas principais:
a mercadocêntrica, que se defende pela supremacia do mercado como o grande
condutor da sociedade, deixando o Estado apenas como responsável pelo
cumprimento das leis e pela segurança, e a estadocêntrica, que considera o
mercado incapaz de conduzir as relações de poder existentes na sociedade,
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passando essa total responsabilidade para o Estado. Entretanto, no intento de
construir um modelo efetivamente cidadão, o autor apresenta um novo modelo
tripartite de sociedade, denominado tripé social. Este defende a construção de novas
relações de poder, com equilíbrio mínimo entre Mercado, Estado e sociedade civil,
através de um processo permanente de concertação entre estes segmentos, pela
constituição de espaços públicos que privilegie a cidadania.
Allebrandt (2010) ainda fala que a articulação deste triângulo concretiza-se
pelas relações de poder, pois “o Estado exerce o poder político, o mercado exerce o
poder econômico e a sociedade civil exerce o poder social”. É neste sentido, que o
conceito de gestão social tem sido evocado, acentuando a importância das questões
sociais tanto nas relações de trabalho nas organizações, como no na implementação
de políticas públicas.
Tenório (2008) defende que esta mudança de posição muda o enfoque de
quem deve ser o protagonista no processo dessas relações: a cidadania, colocando
o cidadão como “[...] sujeito privilegiado de vocalização daquilo que interessa à
Sociedade nas demandas do Estado e daquilo que interessa ao trabalhador na
interação com o capital”. Deste modo, a cidadania se expressa pelo “pleno exercício
de direitos exigíveis em benefício da pessoa humana e da coletividade”.
Schomer e França Filho (2008) argumentam que gestão social evoca uma
nova configuração no padrão de relações entre Estado e sociedade como forma de
enfrentamento das problemáticas contemporâneas, configurando-se como uma
inovação no campo administrativo, já que se trata de um ideal de gestão que não se
orienta para uma finalidade econômica, contrariando a tradição de técnicas
gerenciais em administração.
Para melhor compreensão deste novo ideal de gestão, Schomer e França
Filho (2008) sugerem dois níveis de análise ou de percepção da gestão social: o
primeiro é o nível societário, aquele que identifica como uma problemática da
sociedade, e outro no nível organizacional, aquele que a associa a uma modalidade
específica de gestão, sugerindo uma forma de gestão organizacional que subordina
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as lógicas instrumentais a outras lógicas mais sociais, políticas, culturais ou
ecológicas.
No que se refere ao termo gestão social como uma problemática da
sociedade (nível societário), Schomer e França Filho (2008) entendem como um
modo de gestão das demandas da sociedade pela própria sociedade, em que existe
uma dinâmica de auto-organização social que pode ocorrer a partir de espaços de
interação social, tanto no âmbito do Estado e da sociedade civil, como no âmbito do
próprio mercado, em condições específicas.
Ao referir-se à gestão social, Tenório (2007) a define como um processo
gerencial dialógico no qual a autoridade decisória é compartilhada entre os
participantes da ação, de modo que o adjetivo social de gestão é compreendido
como o espaço de relações sociais no qual todos têm direito à fala. O autor refere-
se, ainda, à cidadania deliberativa, entendida como uma ação de viés político
conduzida pela esfera pública e caracterizada pela ação comunicativa, na qual os
sujeitos ao apresentarem seus argumentos com bases racionais devem alcançar um
acordo comunicativamente, com base nos melhores argumentos.
Cabe destacar que o termo gestão social é estabelecido pelos fundamentos
epistemológicos definidos pela Escola de Frankfurt. Tenório (2008) enfatiza os
contrapontos entre teoria tradicional e teoria crítica observando que eles se
desenvolvem em três aspectos: a) a teoria tradicional é inadequada para analisar ou
entender a vida social; b) a teoria tradicional analisa somente o que vê, aceita a
ordem social presente, obstruindo qualquer possibilidade de mudança, o que conduz
ao quietismo político; c) a teoria tradicional está intimamente relacionada e é fator de
sustentação e dominação tecnológica na sociedade tecnocrática que vivemos.
Tenório (2008, p.15) “discutiu a racionalidade instrumental como razão
inibidora da emancipação do homem”. Das teorias originarias Frankfurteanas,
seguiremos a análise do alemão Jürgen Habermas que procura por meio de seu
conceito de racionalidade comunicativa estabelecer elementos conceituais
democratizadores das relações sociais na sociedade contemporânea.
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Este teórico alemão propõe um paradigma teórico-social que implemente a
razão a partir do consenso alcançado por uma ação social do tipo comunicativa, ao
contrário de uma ação social do tipo estratégica. O objetivo de Habermas, segundo
Tenório (2008, p. 20), é de “desenvolver uma teoria que, diferente da teoria
tradicional, positivista, denunciada por Horkheimer, permita uma práxis social
voltada para um conhecimento reflexivo e uma práxis política que questione as
estruturas sócio-político-econômicas existentes.”
Para Tenório (2005), a Gestão Social diferencia-se da Gestão Estratégica à
medida que tenta substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um
gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido
por meio de diferentes sujeitos sociais, e esta ação dialógica desenvolve-se segundo
os pressupostos do agir comunicativo.
Nesse sentido, Tenório (2008, p. 26) conclui que no “contexto da gestão
social orientada pela racionalidade comunicativa, os atores, ao fazerem suas
propostas, não podem impor suas pretensões de validade sem que haja um acordo
alcançado comunicativamente no qual todos os participantes exponham suas
argumentações”. O autor ainda dispõe que estes argumentos devem ser expostos
através da razão, do conhecimento, colocados discursivamente. Ou seja, quem fala
expõe suas ideias de maneira racional e quem ouve reage tomando posições
motivadas também pela razão.
Durante o processo da gestão social, admite-se que a verdade só exista se
todos os participantes da ação social admitem sua validade. Isto é, essa verdade é a
promessa do consenso racional ou a verdade não é uma relação entre o indivíduo e
sua percepção do mundo, mas sim um acordo alcançado por meio da discussão
crítica, da apreciação intersubjetiva. Ainda segundo Tenório (2008, p. 27), “sob uma
ação comunicativa, dialógica, um indivíduo procura motivar racionalmente um
outro(s) para que este concorde com sua proposição – nesse tipo de ação a
linguagem atua como uma fonte de integração social”.
20
O terceiro setor nos últimos anos tem sido apontado como uma alternativa de
gestão social, ou seja, tem sido referenciado como uma proposta para resolução de
muitos dos problemas sociais que assolam a sociedade contemporânea. Os
governos com seus discursos de Estado-mínimo e as empresas que oscilam em
suas estratégias de ação social, cabe então ao terceiro setor a responsabilidade
para atender as deficiências sociais. Este setor diferencia-se dos demais à medida
que desenvolve atividades públicas através de associações, entidades de classe,
fundações privadas, instituições filantrópicas, movimentos sociais organizados,
organizações não governamentais e outras associações assistenciais da sociedade
civil.
Tenório (2008, p.34) conclui dizendo que:
Ter o indivíduo como sujeito privilegiado de vocalização daquilo que interessa à Sociedade nas demandas ao Estado e daquilo que interessa ao trabalhador na interação com o capital, significa mudar a natureza dessas relações, quer dizer, passar de condições monológicas, tecnoburocratas e autoritárias para situações dialógicas, democráticas e intersubjetivas, do exercício da cidadania.
Nesse sentido, ainda Tenório (2008, p. 36) diz que a epistemologia de
desenvolvimento da gestão social não pode ser pautada por mecanismos de
mercado que orientam a gestão estratégica informada pelas teorias tradicionais, pois
esta teoria tem como enfoque a fundamentação da gestão estratégica-monológica,
como as empresas estão para o mercado. Já a base da epistemologia da gestão
social deve ser a intersubjetividade-dialogicidade, como a política, o bem comum,
contemplando o envolvimento da cidadania no espaço público e do trabalhador no
espaço privado. Assim, gestão social é o processo intersubjetivo que preside a ação
da cidadania tanto na esfera privada quanto na esfera pública.
21
CIDADANIA DELIBERATIVA
Para este trabalho, trabalha-se a gestão social num espaço público,
considerando a cidadania deliberativa nestes ambientes. Sob este aspecto, pode-se
discutir e observar diversas formas de caracterizar o significado do termo cidadania,
desde suas origens até sua aplicação prática. Mas para uma definição mais
contemporânea discute-se o conceito de cidadania segundo Jürgen Habermas
(2004) apud Tenório, (2007, p. 53) partindo da perspectiva liberal e republicana.
Segundo o desejo do autor de aproximar os dois conceitos “sem dar prioridade nem
aos direitos humanos, que se vinculam à perspectiva liberal, nem à soberania
popular que está relacionada ao enfoque republicano”. Dessa forma, partindo destes
dois contextos, liberalismo e republicanismo, Habermas propôs um enfoque
deliberativo, com fundamentação no diálogo.
De acordo com a perspectiva liberal:
O processo democrático tem como objetivo orientar o governo no interesse da sociedade, onde o governo aqui se faz representar pela administração pública, e a sociedade como uma rede de interações entre particulares, estruturada à semelhança do mercado onde a política tem como função de unir e motivar os interesses privados contra um aparato governamental especializado no uso administrativo do poder político para fins coletivos (TENÓRIO, 2003 p. 57).
Já na perspectiva republicana:
A política implica em mais que atuar como função mediadora, a política é concebida como forma reflexiva da vida ética substantiva como o meio pelo qual os membros de comunidade mais ou menos integradas se tornem conscientes de sua mútua dependência, e os interesses individuais são substituídos pela solidariedade e a orientação em direção ao bem comum aparecem como uma terceira fonte de integração social (TENÓRIO, 2003, p. 57).
Cidadania Deliberativa, de acordo com Tenório (2007, p. 54), significa “que a
legitimidade das decisões políticas deve ter origem em processos de discussão,
22
orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da
autonomia e do bem comum”.
A Cidadania Deliberativa encontra-se no meio termo entre as duas
perspectivas, ou seja, segundo Habermas (1997), apud Tenório (2007, p. 58), “o
liberalismo prioriza os compromissos e a liberdade para negociar” e “o
republicanismo dá prioridade ao que é melhor para o próprio grupo ou comunidade”.
Nesse sentido, procurando o que tem de melhor em cada perspectiva, o conceito
deliberativo tem como prioridade o consenso.
sob cidadania deliberativa tanto formas de deliberação dialógicas quanto instrumentais são institucionalizadas e válidas na formação da opinião e da vontade política, transferindo-se as condições de virtude do cidadão para a institucionalização de formas de comunicação em que possam ser feitos debates éticos, morais, pragmáticos e de negociação. Ela tem como base, portanto, as condições de comunicação, onde assim permite-se pressupor que decisões racionais podem ser tomadas no processo político (TENÓRIO, 2007, p. 59)
Por meio do diálogo, Habermas (1997) apud Tenório (2007), procura integrar
as duas perspectivas com o fim de submeter a um processo deliberativo para as
tomadas de decisões. Processo este que estimule uma cultura política de liberdade,
de socialização política esclarecedora, de iniciativas formadoras da opinião pública
originadas na sociedade civil.
Essa Cidadania Deliberativa constitui-se então em:
Uma nova forma de articulação que questiona a prerrogativa unilateral de ação política do poder administrativo do Estado. A perspectiva é que esta nova forma de participação contribua através do espaço público oferecido, para quebra de barreiras de classe, libertação da estratificação e exploração social e para que se desenvolva plenamente o potencial de um pluralismo cultural atuante conforme sua própria lógica, potencial que é tão rico em conflitos e gerador de significado e sentido (HABERMAS, 1997 apud TENÓRIO, 2007, p. 62).
Para Tenório (2007), existem cinco pontos cruciais para uma deliberação
utópica, ou seja, deve ser livre, no sentido de que os participantes estão obrigados
23
apenas pelos resultados de sua deliberação; deve ser também justificada, no sentido
de que as partes devem declarar seus motivos, apresentar, apoiar ou criticar
propostas; deve ser formalmente igual, no sentido de que os procedimentos não
podem distinguir os participantes do processo; deve ser substancialmente igual, no
sentido de que a distribuição existente de poder e recursos entre os participantes
não determinem duas chances de ajudar para a deliberação; e por fim, a deliberação
utópica tem como objetivo chegar a um consenso racionalmente motivado.
Do ponto de vista da teoria crítica, o conceito de gestão social rompe com as
separações e busca construir laços comuns com outros saberes, como o
entendimento de desenvolvimento territorial. O objetivo é, sobretudo, atender por
meio da coisa pública o bem comum e as necessidades da sociedade.
CONSELHOS GESTORES
O espaço adequado para que o procedimento deliberativo aconteça com
legitimidade é, segundo Habermas, em uma esfera pública, como se entende os
conselhos gestores, em que a sociedade civil, o Estado e o mercado interagem entre
si formando uma tríplice corrente: a sociedade civil por meio das organizações
nãoestatais e dos movimentos sociais organizados;o Estado, pelos seus poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário;e o mercado, pelos agentes econômicos e
produtivos. Nunca esquecendo que estes dois últimos também devem possuir
atitudes cidadãs e atuar como cidadãos, isto é, a coisa pública deve ser assunto de
todos, da sociedade como um todo.
De acordo com Teixeira (2000) apud Allebrandt (2002, p. 82):
Os conselhos são órgãos públicos legalmente instituídos regrados por regulamento aprovado pelo seu plenário, em várias situações são criados obrigatoriamente por legislação específica, sendo que a não existência destes podem comprometer o órgão da federação em questão no que tange às transferências de recursos por parte de outros entes de governo. Para a sua composição não existe normatização definida, mas exige-se a paridade dos representantes entre o governo e a sociedade civil.
24
Este autor ainda refere-se aos conselhos como instâncias de uma “nova
institucionalidade” no país, pois desenvolve um espaço público para deliberação
entre o Estado e a sociedade civil.
Allebrandt (2002) traz a ideia de que esta “febre conselhista” criada no Brasil
quando da elaboração da constituinte de 1988 deve ser vista como “elementos de
inovação na gestão pública”. Essa nova ferramenta aparece em função do
“descrédito do poder legislativo e do poder executivo, mas também devemos creditar
essa inovação à qualificação que os conselhos exercem sobre a gestão pública no
processo de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas”. A partir
de então, começa a surgir um novo modelo de democracia, que é claro, não substitui
a democracia delegativa ou representativa, na qual os cidadãos delegam aos
agentes políticos a função hegemônica de gestão. Porém, cria-se outra forma de
participar dos processos de decisão, caracterizada pela deliberação das questões
cruciais que envolvem a sociedade, pois se constituem como instâncias
descentralizadoras do poder decisório.
Como já mencionado, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988)
estimulou a implantação de diversos conselhos setoriais nos estados e municípios.
Gohn (2001, p. 7), define estes conselhos como “canais de participação que
articulam representantes da população e membros do poder público em práticas que
dizem respeito à gestão de bens públicos”. A autora ainda descreve que os
conselhos são canais de participação que propiciam um novo padrão de relações
entre o Estado e a sociedade, ao viabilizarem a participação dos diferentes
segmentos sociais na formulação das políticas públicas. Assim, possibilita à
população o acesso aos espaços onde se tomam decisões políticas e criam-se
condições para o sistema de vigilância sobre as gestões públicas, implicando em
maior acompanhamento na prestação de contas do executivo. Desta forma, com a
sociedade participando de boa parte das políticas públicas, os conselhos chegam a
ser vistos como um “poder paralelo” além dos já existentes poderes legislativo,
executivo e judiciário.
25
Teixeira (2000) traz o questionamento sobre a eficácia dos conselhos. Mas
segundo o autor, antes de falarmos em eficácia, entendida como a capacidade de
deliberar, controlar e fazer cumprir suas decisões é muito mais importante falar em
efetividade em três aspectos: primeiro, em relação à paridade, que não pode ser
apenas numérica, legal e normativa, mas uma paridade de condições de acesso a
informações, de capacitação técnico-política dos conselheiros e de disponibilidade
de tempo e recursos físicos, humanos e tecnológicos.
Em segundo lugar, quanto ao aspecto da representatividade é preciso
garantir, do lado da sociedade civil, que as escolhas dos conselheiros sejam
democráticas e que os mesmos também sejam submetidos a procedimentos de
controle e responsabilização. Embora não sejam eleitos como representantes da
maioria da população, a legitimidade dos membros dos conselhos decorre da sua
estreita vinculação à sociedade através das entidades representadas e do processo
de interlocução que estas desenvolvem ou podem desenvolver com a população.
Vinculação que precisa ser atentamente preservada. Ainda quanto à representação,
do lado da representação governamental é necessário exigir a designação de
representantes legítimos do governo, com capacidade e autoridade para decidir.
Finalmente, ao buscar a efetividade, os conselhos precisam recorrer ao apoio
e mobilização da sociedade civil para que, de fato, suas deliberações tenham mais
força. Assim, é necessário enfatizar a publicização do conselho, a divulgação das
suas ações e a discussão pública da sua pauta. Por outro lado, é preciso esclarecer
que os conselhos são principalmente um lugar de interlocução e de discussão de
propostas entre a sociedade civil e o governo. É um espaço institucional, e não um
espaço dos movimentos sociais, que surgem e se qualificam independentes do
governo. O desempenho do conselho, portanto, não depende apenas dos
representantes da sociedade civil, mas de um intenso processo de negociação.
Enfim, a institucionalização dos conselhos e sua disseminação pelos
municípios brasileiros os tornaram importantes instrumentos à disposição da
sociedade para o exercício do controle social sobre as políticas públicas.
26
RESULTADOS EXPERIENCIADOS DO CONSELHO DE SAÚDE DO MUNICÍPIO
DE SÃO VALÉRIO DO SUL QUANTO À IGUALDADE PARTICIPATIVA
Para analisar a gestão das políticas públicas com o intuito de verificar se as
tomadas de decisão ocorrem de forma participativa, pautadas na fundamentação
teórica de cidadania deliberativa, é preciso estudar de que forma ocorrem as
tomadas de decisões, neste caso, por meio da categoria Igualdade Participativa.
Assim, relatamos a experiência quando do acompanhamento no ano de 2012 das
atividades e normatizações do Conselho Municipal de Saúde do município de São
Valério do Sul-RS.
Nesse sentido, o Conselho Municipal de Saúde, foi reestruturado através da
Lei Municipal n. 566 de 06 de setembro de 2005 e também pela Lei Municipal n. 981
de 12 de dezembro de 2012. A segunda lei altera os artigos 6° e 7° da primeira que
trata da composição e representatividade do mesmo. Em vigor, atualmente o
colegiado tem em sua composição 12 membros titulares e em igual número de
suplentes, sendo distribuídas as vagas da seguinte forma: 50% (6 representantes)
para entidades e movimentos representativos de usuários, 25% (3 representantes)
para trabalhadores da área de saúde, e os outros 25% (3 representantes) para o
governo e prestadores de serviço privados conveniados, ou sem fins lucrativos.
Os usuários são representados por dois representantes do distrito de
Coroados e arredores, dois da Área Indígena do Inhacorá e arredores, dois da sede
do município e arredores. Os trabalhadores em saúde são representados por dois
representantes dos Agentes Comunitários de Saúde e um da Pastoral da Criança. O
governo é representado por um representante da Secretaria Municipal de
Assistência Social, um da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Turismo e
Desporto, um da Secretaria Municipal de Saúde. Assim como integrará a
composição do conselho como membro nato, o Secretário Municipal de Saúde.
O referido conselho legalizado pela lei acima é um órgão de instância
colegiada, de caráter deliberativo, consultivo e permanente que tem por finalidade
27
orientar a Administração Municipal no estabelecimento da Política Municipal de
Saúde em conformidade com as disposições estabelecidas pela Lei Federal 8080 de
19 de setembro de 1990 e principalmente pela Lei Federal 8142 de 28 de dezembro
de 1990.Tem como finalidade atuar na formulação, controle e execução da política
municipal de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, nas
estratégias e na promoção do processo de Controle Social em toda a sua amplitude,
no âmbito dos setores público e privado.
O conselho de saúde do município tem como objetivo principal atuar na
melhoria de condições de saúde da população, nos aspectos de promoção,
prevenção, proteção e recuperação da saúde. E para tal, o mesmo atua no
planejamento e fiscalização da alocação dos recursos públicos no setor de saúde a
nível municipal; na organização dos serviços públicos locais de saúde para
responder a demanda assistencial local, com eficiência e efetividade, garantindo
assim a universalização da assistência à saúde; na fiscalização e avaliação dos
órgãos prestadores de serviços, para que estes proporcionem uma atuação íntegra
à saúde e um desempenho com resolutividade satisfatória; na integração com
demais entidades e organizações afins, com esforços no intuito de evitar a diluição
de recursos e trabalho na área da saúde.
Cabe ao próprio conselho elaborar ou modificar e aprovar seu Regimento
Interno, estabelecendo sua normatização no que tange à sua formação e ao seu
funcionamento. Salienta-se que os membros do Conselho Municipal de Saúde de
São Valério do Sul exercem suas atividades sem remuneração, constituindo-se
então em relevante serviço prestado à comunidade. Nesse sentido, quando o
conselheiro é designado para participar de encontros, cursos, palestras, seminários
e outros eventos fora do município, apresentando despesas comprovatórias por
meio de documentos fiscais, o Executivo Municipal custeia essas despesas, como
deslocamento, estadia e alimentação dos conselheiros não governamentais.
O Conselho Municipal de Saúde reuniu-se-, ordinariamente, 12 (doze) vezes
por ano, e, extraordinariamente, por convocação de seu Presidente ou em
28
decorrência de requerimento da maioria absoluta dos seus membros. As reuniões
ordinárias são realizadas na segunda quarta-feira de cada mês e iniciadas com a
presença mínima da metade mais um dos seus membros em primeira convocação, e
em segunda convocação com qualquer número de participantes. Quando exigida
votação, cada membro tem direito a um voto. O Conselho possui um conselheiro
Presidente, um Vice-presidente, um Secretário e Segundo - Secretário, eleitos pelos
pares, com mandato de dois anos sendo permitida a reeleição.
Considerando os critérios de análise Igualdade Participativa para verificação
dos processos de discussão, foram analisados os métodos para a escolha dos
representantes para o Conselho Municipal de Saúde, os discursos dos
representantes, pelos quais se dá a valorização dos processos participativos, e
ainda buscou enaltecer a intervenção dos participantes no acompanhamento e na
avaliação das políticas públicas.
Para tanto, percebeu-se que a escolha dos representantes tem origem na
indicação formal de pessoas pelas entidades e órgãos que legalmente fazem parte
do conselho. Assim, verifica-se que a presença dos conselheiros tem como
característica importante a inserção da comunidade local nos assuntos públicos, fato
que potencializa a deliberação e fortalece os laços de confiança para todos que
participam desse espaço de discussão de ideias e propostas.
Na valorização dos processos participativos, pode-se perceber que os canais
de participação são vistos como ferramentas que podem propiciar bons resultados,
como a configuração de novas políticas, mas que essa questão ainda é muito
superficial pela importância que este processo de participação tem, pois ainda
existem algumas deficiências institucionais. Constatou-se, durante as observações,
que nos discursos dos conselheiros, existe uma presença de pontos fracos para o
crescimento/fortalecimento de ações mais deliberativas. Por outro lado, verificou-se
a percepção dos representantes do poder público quanto à importância deste
espaço que pauta sua ação de maneira aberta e inclusiva. Ainda, apesar de toda
29
interação existente com a comunidade, os discursos alertam para uma dificuldade
de mobilização social e uma baixa participação da população nas reuniões.
Um ponto destacados em vários momentos por alguns representantes dos
usuários, foi de que falta uma ação mais efetiva da secretaria de saúde no apoio às
propostas da sociedade. Também se observoucerta concentração de poder por
parte dos representantes do poder público em função destes ter mais acesso à
informação e capacitação. Consequentemente, por este aspecto, existe uma baixa
interação e integração por parte dos conselheiros da sociedade civil acarretando
assim baixa participação, principalmente na concepção e elaboração dos
programas/projetos/ações de saúde.
As atividades do conselho de intervenção dos participantes no
acompanhamento e na avaliação das políticas públicas foram notadas através da
leitura das atas e observação de que os projetos são acompanhados quando é
realizada prestação de contas dos mesmos ao conselho, e que não existe um
Núcleo Técnico instituído no conselho para acompanhar desde a execução,
avaliando precocemente algumas eventualidades que poderiam ser corrigidas e, se
necessário, revitalizar o que está sendo executado. E ainda, salienta-se que não
existem espaços que operam nessa ótica, de forma a criar mecanismos para crítica
ao processo, como realização de oficinas e mesas redondas, nas quais são
discutidas as políticas, tendo como ordem a discussão dos projetos, revisão e
rediscussão dos planos se necessário.
CONCLUSÕES
O estudo procurou enfatizar os processos de discussão das políticas públicas
de saúde que são implementadas no município de São Valério do Sul-RS. O objetivo
basilar foi de relatar a experiência dos atores envolvidos nos processos de
discussões dentro do Conselho Municipal de Saúde, tendo como critério de análise a
categoria Igualdade Participativa proposta pelo Programa de Estudos em Gestão
30
Social (PEGS), vinculado à Escola Brasileira de Administração Pública e de
Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV), e de como estas práticas de
gestão social se revelam em termos de cidadania considerando a ótica deliberativa,
com vistas a ampliar e qualificar estes espaços de participação numa visão de
gestão organizacional em favor do desenvolvimento e de uma melhor qualidade de
vida.
Quanto à questão principal analisada, sobre a Igualdade Participativa, foi
possível identificar a preocupação em respeitar a paridade dos representantes, entre
a sociedade civil e governo, que estão geograficamente distribuídos, e utilizando
como critério de seleção a regionalização, participação e organização institucional.
Uma limitação pode ser considerada pois, mesmo existindo espaços de discussão,
muitas manifestações não são atendidas, o que gera frustração e desmotivação por
parte dos integrantes do conselho.
Em suma, a compreensão da gestão social por meio do critério de análise
estabelecido para o presente trabalho, frente aos indicativos que foram propostos,
revela os desafios que a municipalidade deve enfrentar para elaboração e
implementação das políticas públicas de saúde com o propósito de melhorar a
qualidade de vida das pessoas. Consecutivamente, alcançar êxito no
desenvolvimento local, isto é, o merecimento de uma atenção às discrepâncias
locais para legitimação das tomadas de decisão frente às necessidades.
E ainda, as diferenças dos discursos apontam para a necessidade de um
entendimento, de um consenso para contemplar uma ação comunicativa voltada
para o paradigma teórico-social proposto por Habermas. Destaca-se também que há
avanços nos processos de participação, uma vez que a população ainda não está
convicta dos espaços existentes e do poder que detêm, mas que de modo geral
setores historicamente excluídos de todo o processo de planejamento tradicional,
como é o caso dos indígenas, hoje estarem incluídos e consideravelmente ativos.
Então, a Igualdade Participativa no Conselho Municipal de Saúde do
município de São Valério do Sul-RS tenta se apoiar no nivelamento das
31
oportunidades de atuação efetiva nos processos de tomada de decisão, em que
qualquer cidadão ou organização, dotado de informação, tem acesso livre aos
canais de deliberação, influenciando, assim, as decisões tomadas via processo
deliberativo. Mesmo que em muitos momentos haja a incapacidade de despertar na
população o interesse e a necessária mobilização no intuito de concretização da
plena participação, dificulta o exercício. Isso porque não se verificou uma efetiva
pluralidade de opiniões no sentido da participação dos indivíduos em condições
iguais de participação, regida por um mesmo direito, possibilitando assim uma
isonomia efetiva de atuação nos processos decisórios, pois a Igualdade Participativa
é a capacidade equitativa dos diferentes participantes de interferir no processo
deliberativo.
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34
DO PATRIMONIALISMO LUSITANO AO CENTRALISMO SOCIALISTA E
IGUALITARISTA JUDAICO-CRISTÃO: MATRIZES DO ESTADO BRASILEIRO6
Sandro Luiz Bazzanella7
RESUMO: O objetivo do presente artigo é colocar em discussão, a partir de um olhar filosófico e sociológico, matrizes que compõem o Estado brasileiro em seu percurso histórico até a atualidade. A guisa de esclarecimento, não desconhecemos o extenso debate que vincula as matrizes do Estado brasileiro à tradição do liberalismo político, ou mesmo do marxismo em suas diversas variáveis, bem como de outras tendências, sejam elas republicanas, democráticas, federalistas e municipalistas. Porém, nosso intuito é perscrutar ao modo foucaultiano, a partir de perspectivas metodológicas arqueológicas e genealógicas, variáveis consideradas secundárias, ou mesmo em certa medida, ausentes nas leituras, análises e interpretações oficiais sobre as matrizes constitutivas da Razão de Estado brasileira. Mas, também de compreender aspectos deste legado histórico-conceitual na forma atual que o Estado brasileiro assume e, nesta direção o reconhecimento de certas inconsistências, paradoxos, idiossincrasias que podem nos permitir o esclarecimento de tais questões, bem como possíveis tomadas de posicionamentos diante dos desafios que se apresentam à afirmação de nossa dinâmica de desenvolvimento.
Palavras chaves: Estado. Patrimonialismo. Centralismo. Igualitarismo.
ABSTRACT: The purpose of this article is to put into discussion, from a philosophical and sociological look, arrays that comprise the Brazilian state in their evolution to the present. By way of clarification, not unaware of the extensive debate that links the headquarters of the Brazilian tradition of political liberalism, or Marxism in its many variables, as well as other trends, whether republican, democratic, federalist and municipalists. However, our intention is to scrutinize the way Foucault, from methodological perspectives archaeological and genealogical variables considered secondary, or even to some extent, absent in the readings, analysis and official interpretations on the constitutive matrices of Reason Brazilian State. But also to
6Trabalho aprovado e apresentado no I SIMPÓSIO NACIONAL SOBRE ESTADO, DESCENTRALIZAÇÃO E GESTÃO PÚBLICA, realizado na Universidade do Contestado em 19,20,21 de Junho de 2013.
7Graduado em Filosofia pela FFCLDB/RS 1989; Mestre em Educação e Cultura pela UDESC/SC em 2003; Doutor em Ciências Humanas pela UFSC/2010. Coordenador do Curso de Ciências Sociais da Universidade do Contestado. Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da UnC. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, CNPq. E-mail: [email protected]
35
understand aspects of this historical legacy and conceptual in its current form assumes that the Brazilian State and in this way the recognition of certain inconsistencies, paradoxes, idiosyncrasies that may allow us to clarify these issues, as well as possible taken before the placement challenges facing the affirmation of our dynamic development.
Keywords: State. Patrimonialism. Centralism. Egalitarianism.
INTRODUÇÃO
O pressuposto que subjaz ao posicionamento do objeto desta pesquisaimplica
no fato de que, em que pese a conquista de nossa independência como Estado em
1822 e, portanto, a possibilidade de constituir de forma autônoma nossa razão de
Estado, que em termos cronológicos, tem algo em torno de 191 anos de trajetória
constitutiva, carecemos de uma concepção de Estado, senão de uma razão de
Estado consistente, a altura da grandiosidade continental, mas, sobretudo humana,
política, cultural e econômica que compõem este país. Estas inconsistências de
nossa Razão de Estado se apresentam cotidianamente no centralismo
intervencionista, de ordem tributária, e econômica de Estado, nas distorções do
pacto federativo, no desequilíbrio, bem como na sobreposição de atribuições dos
três poderes de Estado: executivo, legislativo e judiciário, entre outras questões, que
explicitam as fraturas, senão as fragilidades da razão de Estado brasileiro.
Investigar as diversas matrizes que se entrecruzam na constituição do Estado
brasileiro em sua peculiaridade e singularidade, talvez possa nos permitir avançar na
compreensão das idiossincrasias, dos limites, bem como das potencialidades desta
razão de Estado.
Compreender neste contexto significa comprometer-se com a construção de
uma Razão de Estado, que seja dentro do possível brasileira, que responda aos
desafios, aos anseios do tempo presente em que nos encontramos como povo
circunscrito. Perquirir esta Razão de Estado pressupõe ter presente que ela é
manifestação de uma sociedade que toma a si mesmo como objeto em seus limites
36
e potencialidades e, por outro lado, que por maiores que sejam nossos esforços, o
Estado brasileiro nunca será uma obra de arte, mas em seus paradoxos e
contradições é preciso que minimamente funcione, responda a alguns dos anseios
do povo brasileiro num contexto de mundo globalizado, mundializado.
Nesta direção, como ponto de partida, e reforçando os argumentos anteriores
podemos anunciar que o Estado brasileiro é derivado da transposição e imbricação
de diversas matrizes, que conformaram e conformam suas estruturas político-
administrativas, bem como suas instituições, marcadas pelo patrimonialismo
clientelista, centralizador de herança lusitana e, de fundo igualitarista judaico-cristão
e socialista. Reconhecer, ou afiançar as bases do Estado brasileiro sobre estas
perspectivas, significa considerar, os limites e as potencialidades de nossa razão de
Estado, de seu centralismo burocrático, de sua morosidade na resolução de
problemas estruturais necessários ao desenvolvimento humano e social de sua
população, de sua desconfiança em relação à iniciativa privada, bem como dos
indivíduos que compõem seu tecido social, de sua (in)governabilidade viabilizada no
balcão de negócios que se estabelece entre o poder executivo e legislativo,
contemplando interesses político-partidários os mais díspares ideologicamente
imagináveis, entre outras questões que implicam também no poder judiciário.
Mas, se por um lado, o reconhecimento das diversas matrizes constitutivas do
Estado brasileiro pode nos permitir a compreensão da estruturação e da
operacionalização de sua razão de Estado, é preciso ousar perscrutar seus
fundamentos, com o intuito de questionar as bases do contrato social, que
justificaram e justificam este ente artificial, detentor do poder soberano sobre o
território e a população.
Pretender saber quem somos no presente implica em ter presente nossas
origens, em que circunstâncias fomos lançados na existência. No que concerne às
origens do Estado brasileiro é possível afiançar que ele não se apresenta resultante
do contrato social. O Estado não é resultante de um consenso entre indivíduos que
abrem mãos de suas liberdades, de seus interesses particulares e privados na
37
constituição de um ente artificial, que garanta os interesses da coletividade, do bem
comum. Aqui nestas terras, o Estado era patrimônio do Rei. Abdicando da Coroa, o
Rei foi substituído em seu pressuposto patrimonialista por oligarquias coronelistas,
populistas, mais autoritárias, ou menos autoritárias e mais democráticas até os dias
atuais.
Talvez, se possa dizer que um dos motivos que caracterizam a sociedade
brasileira em reconhecer as esferas de atribuições públicas e privadas, tem sua
origem na forma patrimonialista como se constituiu o Estado brasileiro. Este Estado
tinha e por muito tempo teve dono e, neste caso, ou se é amigo do dono, empregado
dele, ou então, procura alcançar alguma vantagem pessoal nas relações de
influência que pode estabelecer com o Rei, dono, ou proprietário deste Estado.
Continuamos a reproduzir socialmente e institucionalmente esta indistinção entre
interesses públicos e privados, tão caro a conformação de uma razão de Estado
eficiente e eficaz. Na perspectiva de Raimundo Faoro em sua obra “Os Donos do
Poder”:
O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o estamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo - o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência (FAORO, 2000, p. 95).
PERSPECTIVAS HEGELIANAS DE ESTADO
Nesta mesma direção, tomando como pressuposto a concepção hegeliana de
Estado como racionalidade, ou materialização do espírito objetivo, derivado da
racionalidade/vontade do espírito subjetivo que elege o Estado como o espaço por
excelência da esfera dos assuntos públicos, da política e, portanto, da eticidade é
preciso reconhecer que o Estado brasileiro em suas origens patrimonialistas e
clientelistas, não se vincula a esta tradição. Assim, encontramos na obra:
“Princípios da Filosofia do Direito” (1997) de Hegel, no parágrafo 258, a seguinte
definição:
38
O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever (HEGEL, 1997, p. 217).
Nossa “Razão de Estado” não encontra respaldo nas reflexões hegelianas,
pois isto implicaria a capacidade de um povo (espírito subjetivo) reconhecer-se a si
próprio, tomar-se como objeto, compreender-se em suas idiossincrasias, em seus
limites e possibilidades, projetando-seem suas instituições sociais e estatais (espírito
objetivo), o que não se apresentou em nossa trajetória histórica, e talvez possamos
afirmar que ainda não se apresenta de forma consistente entre nós brasileiros na
atualidade. Tal condição se expressa na dificuldade de nos vermos representados
pela classe política que ocupa as esferas do executivo, ou do legislativo. Talvez,
ainda nesta direção, possamos afirmar que reside no imaginário das representações
sociais do povo brasileiro, a ideia de que a “prefeitura” é propriedade do prefeito, de
que o Estado é propriedade do governante de plantão. De que de tais autoridades
políticas, o que se pode esperar é alcançar algum privilégio, alguma benesse
pessoal, afinal, não representam os anseios da comunidade, ou da nação, mas
apenas garantem os interesses pessoais ou de grupos de influência. Esta
perspectiva se estende ao poder judiciário, concebendo-ocomo um fim em si
mesmo, como um poder acima da lei, ou da necessidade e exigência de prestar
contas à sociedade brasileira de suas ações e atribuições. A partir destas questões
e de outras não posicionadas ou refletidas até aqui, é preciso colocar em
questionamento as bases de nossa democracia representativa.
A representatividade democrática na condução da Razão de Estado se
justifica na medida em que se constitui na compreensão e, consequentemente, na
ação dos indivíduos, tendo como fim último a afirmação e manutenção do espaço
público como lócus privilegiado da existência comunitária. Assim, uma comunidade
politicamente comprometida com o equilíbrio das demandas privadas e públicas
necessita reconhecer em seus representantes a preservação e ampliação dos
39
interesses públicos, conferindo legitimidade à representatividade democrática. É isso
que Alexis de Tocqueville nos permite compreender em suas reflexões em sua obra
capital: “A Democracia na América” (1995), expressa na seguinte passagem: “Na
América, não apenas existem instituições comunais, mas também um espírito
comunal que as sustenta e vivifica” (TOQUEVILLE, 1995, p. 78).
A TRADIÇÃO ARISTOTÉLICA E NOSSA RAZÃO DE ESTADO
Na continuidade destas reflexões sobre a constituição da Razão de Estado
brasileira, tomemos a tradição aristotélica, presente nas clássicas obras: “A política”
e, "Ética a Nicômaco”, em que o Estado é resultante da politicidade inerente à
necessidade humana de sociabilidade, conformando-se em instâncias
organizacionais desde a família, a aldeias de famílias, alcançando por fim a forma da
cidade-comunidade (polis), como conformação de um espaço público que garanta o
bem-viver, a busca da felicidade no espaço público. Diz-nos o filósofo estagirita:
“Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu
princípio, assim como toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim
aquilo que consideram um bem” (ARISTÓTELES, 2006, p.1).
Para Aristóteles o homem é um animal político. É característica da natureza
humana a sociabilidade como condição necessária a seu distanciamento do reino da
natureza e de seus imperativos biológicos e cíclicos. “Assim, o homem é um animal
cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos.”
(ARISTELES, 2006, p. 5). O ser humano deseja compreender, senão apreender a
partir de um princípio de unidade a multiplicidade de entes que se apresentam com
ele à existência e, o faz por meio de sua capacidade de observação, mas,
sobretudo, por meio da fala, da linguagem, da palavra. “Esse comércio da palavra é
o laço de toda sociedade doméstica e civil” (ARISTÓTELES, 2006, p. 5). Ou dito de
outro modo, os seres humanos negociam, comercializam a palavra como forma de
constituição do espaço público onde se reconhecem como humanos em seus
40
anseios e necessidades, entre elas a necessidade de afirmação do bem comum,
condição necessária ao alcance da felicidade. “O mesmo ocorre com os membros
da Cidade: nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros
homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto.
Assim, a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade”
(ARISTÉLES, 2006, p. 5). Sob tais perspectivas, pode-se afirmar que para
Aristóteles a política é constitutiva da dimensão ontológica do animal homem. É a
partir da ação política que os seres humanos constituem a Cidade-comunidade
como tempo e espaço que abriga a vida qualificada, a vida que se justifica na
medida em que seu fim último, seu horizonte de sentido e finalidade é o bem-viver, o
alcance da felicidade.
4. Retomando, digamos que posto que toda ação de conhecer e toda intenção deliberada estão dirigidas à consecução de algum bem, examinemos o que cumpre declararmos como sendo a meta da política, ou seja, qual o mais elevado entre todos os bens cuja obtenção poder ser realizada pela ação. Verbalmente, é-nos possível quase afirmar que a maioria esmagadora da espécie humana está de acordo no que tange a isso, pois tanto a multidão quando as pessoas refinadas a ele se referem como a felicidade e identificam o viver bem ou o dar-se bem como ser feliz (ARISTÓTELES, 2002, p. 42).
A partir dos pressupostos políticos anunciados por Aristóteles, é possível
afirmar que também não nos reconhecemos plenamente nesta tradição, enquanto
conformação de nossa Razão de Estado. A composição societária brasileira se
constituiu a partir da junção de um conjunto de povos e deetnias diversas, que foram
alocadas para estas terras com o objetivo deliberado de uma conformação
populacional, que justificava a salvaguarda de fronteiras, bem como de um
contingente populacional necessário à empresa de colonização e de seus interesses
extrativistas e produtivos. Associado a esta diversidade de povos e cosmovisões
mais ou menos idílicas e, sob outra perspectiva analítica, o historiador Sérgio
Buarque de Holanda em sua obra: “Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no
Descobrimento e Colonização do Brasil” (2000) chama atenção para outro aspecto
41
da conformação societária do Brasil colônia e, que em menor ou maior medida
talvez possamos encontrar presente no imaginário do povo brasileiro de diversas
formas e em diversos momentos até os dias atuais, em expressões tais como: “O
Brasil é o país do futuro”; “Nesta terra em se plantando tudo dá”; “Deus é brasileiro”;
“O gigante acordou”. Nesta direção, encontramos na letra do hino nacional
metáforas que expressam a exuberância e a grandiosidade destas terras
paradisíacas. Apenas a título de ilustração observemos algumas estrofes do hino:
[...] Parte I - 5ª estrofe Gigante pela própria natureza, És belo és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha esta grandeza. [...] Parte II – 6ª estrofe Deitado eternamente em berço esplêndido, Ao som do mar e à luz do céu profundo, Fulguras, ó Brasil, florão da América, Iluminado ao sol do Novo Mundo! Parte II 7ª estrofe Do que a terra, mais garrida, Teus risonhos, lindos campos têm mais flores; "Nossos bosques têm mais vida", "Nossa vida" no teu seio "mais amores".
As expressões acima citadas, bem como as passagens do hino nacional
selecionadas, evidenciam traços da constituição societária brasileira, marcada pelo
ideário de que deve haver um futuro grandioso a este país inscrito na origem do
mundo, no próprio ato da criação. A terra é farta, o jardim é generoso e abundante, o
solo é fértil e repleto de riquezas, o brasileiro é um povo alegre, cordial, generoso,
uma espécie de plena manifestação da bondade humana. Basta aguardar que em
algum momento esta terra abençoada se revelará em toda sua pujança. Alcançar
este estado paradisíaco, de plena felicidade, de ausência de miséria e injustiças
sociais, não se apresenta como obra humana e política como pressuposto
ontológico, o qual exige que os homens, através do comércio da palavra, constituam
as bases de seu modo de vida, articulem instituições que possam garantir a
42
liberdade de condições e a igualdade como ponto de partida entre os membros
desta sociedade.
Nesta visão paradisíaca, tudo está inscrito no mistério da criação e a salvação
da dor e do sofrimento, testamentada pelo criador em favor do povo eleito. Na
citação abaixo, Holanda chama atenção para aquilo que Alexis de Tocqueville em
sua obra citada anteriormente aponta, e que se apresenta como um dos diferenciais
entre a proposta de colonização lusitana que aportaram nestas terras, e a proposta
de colonização norte-americana, com seu pressuposto de constituição de uma
comunidade nacional.
[...] a demanda do Paraíso entre descobridores ou conquistadores latinos, e acentuando o papel, nesse sentido, dos sacerdotes católicos que acompanhavam aqueles homens, nota [...] como vinham eles animados pela crença em um Éden que generosamente se oferecia, e estava ‘só a espera de ser ganho’ [...], tanto que já Colombo anunciara ao seu soberano que o tinha achado quase com certeza. Em contraste com eles, os peregrinos puritanos, e depois os pioneiros do Oeste, vão buscar nas novas terras um abrigo para a Igreja verdadeira e perseguida, e uma “selva e deserto” na acepção dada a estas palavras pelas santas escrituras, que através de uma subjugação espiritual e moral, mais ainda do que pela conquista física, se há de converter no Éden ou Jardim do Senhor (HOLANDA, 2000, p. XIII).
Ainda sob tais aspectos constitutivos da conformação societária brasileira, e
consequente, conformação de sua Razão de Estado, pode-se conjecturar que se por
um lado esta diversidade étnica que constitui o “povo brasileiro” pode ser decantada
em prosa e verso como condição singular entre os demais povos, por outro lado
implica no reconhecimento da multiplicidade de cosmovisões e de experiências
políticas diversificadas que nestas terras foram lançadas, ou vieram parar. Ou seja,
é preciso reconhecer, mesmo que seja a contragosto de diversas matizes científicas,
vinculadas, sobretudo, as ciências humanas, que não conformamos um ethos
civilizatório, uma cultura que constituía uma “cosmovisão” unificada, ou partícipe de
alguns pressupostos comuns no que concerne a finalidade última do espaço público,
mesmo que se contra argumente, afirmando que temos uma língua comum, um
43
território e símbolos que nos conformam na ideia de um povo. A revelia destes
argumentos, talvez caracterizamo-nos muito mais pelos sincretismos religiosos e
culturais, que de certa forma nos permitiram viver e conviver em meio a toda esta
diversidade e, não esqueçamos que no bojo destas variáveis reside ainda o
sofisticado “mito da democracia racial”. Respeitamos todas as etnias, desde que
cada uma saiba qual o seu lugar.
Trata-se, conforme já apontou um sociólogo brasileiro, Oracy Nogueira, de um tipo de preconceito racial que considera básicas as “origens” das pessoas, e não somente a “marca” do tipo racial, como ocorre no caso brasileiro. Desse modo, o nosso preconceito seria muito mais contextualizado e sofisticado do que o norte-americano, que é direto e formal. A consequência disso, sabemosbem, é a dificuldade de combater o nosso preconceito, que em certo sentido tem, pelo fato de ser variável, enorme e vantajosa invisibilidade. Na realidade, acabamos por desenvolver o preconceito de ter preconceito, conforme disse Florestan Fernandes numa frase lapidar (DA MATTA, 1996, p. 24/25).
O ESTADO BRASILEIRO E SUA GÊNESE NO ESTADO PORTUGUÊS
Diante dos argumentos acima arrolados é possível afirmar que a conformação
societária brasileira e, consequentemente da constituição de suas representações
políticas e institucionais, vincula-se diretamente a gênese do Estado português.
Gênese esta demarcada por acordos entre a aristocracia feudal em fins do século
XII e primórdios do século XIII, que em determinado momento confere a um senhor
feudal prerrogativas patrimonialistas. Assim, se o Estado português não se enquadra
na perspectiva hegeliana e aristotélica, acima argumentadas é preciso ter presente
que também não se justifica pela via jusnaturalista do contrato social constituída nos
albores da modernidade. Tanto em Hobbes, como em Locke e Rousseau,
pensadores contratualistas, salvaguardadas suas diferenças conceituais, analíticas e
interpretativas, o Estado é o resultado de um acordo entre homens em estado de
natureza. Assim, em Hobbes o contrato social e a constituição deste ente artificial o
Estado, justifica-se como o detentor do direito a violência legitimada na manutenção
da segurança e preservação da vida dos indivíduos. Em Locke, o contrato social que
44
legitima a existência do Estado, justifica-se pela manutenção da propriedade, do
meio de produção que através da iniciativa e do trabalho dos indivíduos, lhes
permite garantir os meios de vida. Em Rousseau, o contrato social que funda o
Estado, implicava na garantia de segurança e bem estar da vida em sociedade. Para
Rousseau, isso somente seria viabilizado pelo contrato. O contrato social justificaria
a existência do Estado a partir de limites impostos pela soberania da sociedade, pela
soberania política da vontade coletiva. Portanto, a partir destas prerrogativas
contratualistas, o filósofo italiano Norberto Bobbio argumenta:
Por isso, na perspectiva que o modelo jusnaturalista institui, a partir da pluralidade originária de sujeitos individuais livres, o problema da criação de uma sociedade, ou seja, da conexão dos indivíduos, é imediatamente um problema político, resolvendo-se com a instituição da vontade soberana, única a poder superar o arbítrio (BOBBIO, 1996, p. 146).
Sob tais pressupostos, pode-se de certa forma afirmar, cientes dos riscos
implicados nesta argumentação, que o Estado português se constitui em grande
medida a revelia dos pressupostos teóricos e analíticos presentes na tradição do
pensamento político ocidental de Aristóteles à Hegel. O que não significa
desconsiderar o fato de que o Estado português é perpassado por jogos de
interesses, influências, relações de poder e disputas no controle do poder estatal.
Mas, o que efetivamente queremos argumentar, ou chamar atenção é o fato de que
o Estado português não se apresenta em sua constituição como emanação da
vontade de um povo e, isto segundo Faoro se apresenta na relação que se
estabeleceu entre o Rei e seus súditos.
Entre o rei e os súditos não há intermediários: um comanda e todos obedecem. A recalcitrância contra a palavra suprema se chamará traição, rebeldia à vontade que toma as deliberações superiores. O chefe da heterogênea hoste combatente não admite aliados e sócios: acima dele, só a Santa Sé, o papa e não o clero; abaixo dele, só há delegados sob suas ordens, súditos e subordinados (FAORO, 2000, p. 07).
★ Ibid., p. 81.
★ FD 1&7.
★ Grundrisse,p. 101.
★ Ibid.,p. 111.
★ FD 187.
★ FD 184:
★ Grundrisse,p. 111.
45
Esta condição constitutiva do Estado português implica no fato de que as
instituições que compõem a Razão de Estado português não derivam da vontade
soberana de um povo, de uma racionalidade contratual que justifica e legitima este
ente artificial o Estado. Ou dito de outro modo, não há uma sociedade portuguesa
que expresse, ou que se reconheça em sua vontade de autonomia, de soberania. As
instituições estatais representam o Estado em si mesmo, os interesses do Rei na
condução e administração de seu patrimônio, que inclui tudo aquilo que se encontra
demarcado em seu território, inclusive os súditos. “As instituições não gozam de
campo próprio de atuação, visto que estão subordinadas ao poder do príncipe,
capaz de decidir da vida e da morte, reminiscência próxima do rei-general,
competente para julgar todos os soldados” (FAORO, 2000, p. 17).
Assim, se ainda insistirmos em falar de uma Razão de Estado português, esta
desde sua gênese apresenta em sua caracterização patrimonialista e por extensão
clientelista. Ou seja, para usufruir das benesses deste Estado é preciso apresentar-
se como cliente a demandar favores privados da ordem pública. Talvez nos seja
possível afirmar que deriva deste legado lusitano a dificuldade presente até os dias
de hoje entre os cidadãos brasileiros de distinguir as especificidades da esfera
pública, das demandas privadas. Público e privado se confundem em suas
especificidades, ou de ter presente que na sociedade brasileira os interesses
públicos respondem a exigências e apropriações de ordem privada. Portanto, a
perspectiva patrimonial que justificou a existência do Estado português implica no
fato de que o Estado pertence ao Rei e, o acesso às suas fontes de recursos
significa justificar demandas privadas financiadas pelo ente público.
Estes pressupostos da razão de Estado lusitana ainda se apresentam na
extensão da máquina pública. Máquina viabilizada por um extenso estamento
burocrático-administrativo, que ao responder administrativamente aos interesses
patrimonialistas do rei e de seus clientes não concebem a si próprios como
representantes dos interesses da sociedade em sua totalidade, não se submetendo
a parâmetros avaliativos sociais de eficiência e eficácia de seus de sua ação
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administrativa. Sua ação na condução da razão de Estado responde aos interesses
particularizados do rei e, evidentemente, dos grupos privilegiados que lhe conferem
apoio político na manutenção do poder.
O Estado se incha de servidores, que engrossam o estamento, ramificado na África, Ásia e América, mas sobretudo concentrado no reino, com a multidão de ‘pensionistas’ e dependentes, fidalgos e funcionários, todos sôfregos de ordenados, tenças e favores - o rei paga tudo, abusos e roubos, infortúnios comerciais e contratos fraudados. No país, os cargos são para os homens e não os homens para os cargos (FAORO, 2000, p. 65).
Tal perspectiva governamental transformou a razão de Estado numa máquina
administrativa intervencionista que dirige e controla não apenas a dinâmica política
da sociedade portuguesa, mas, sobretudo, sua capacidade de empreendedorismo,
de inovação e criatividade no campo econômico. “O estamento, cada vez mais de
caráter burocrático, filho legítimo do Estado patrimonial, ampara a atividade que lhe
fornece os ingressos, com os quais alimenta sua nobreza e seu ócio de ostentação
[...]” (FAORO, 2000, p. 66). Quase a totalidade dos empreendimentos econômicos é
financiada pelo Estado, a partir de cálculos que implicavam na preservação e
aumento das riquezas e poses do Rei e de seus clientes preferenciais.
Na perspectiva de Faoro é este caráter patrimonialista, clientelista, associado
ao atrelamento e, controle da dinâmica política da sociedade portuguesa, bem como,
o seu excessivo intervencionismo no plano da economia, que pode explicar a apatia,
senão o definhamento do Estado português em fins do século XIX. Apesar de ter se
beneficiado extensivamente de seu poderio colonizador e explorador em terras
além-mar, na Ásia, na costa Africana e, sobretudo, na colônia brasileira ao longo dos
séculos anteriores, o Estado português definha lentamente, esvaindo suas forças até
sua falência como Estado.
Estado e comércio - geram o sistema mercantilista, próprio à expansão do aparelhamento estatal, condutor da economia e beneficiário da atividade comercial, preocupada, não raro, na ilusão monetária. Ele permitiu, justificando-a racionalmente, a política de transporte do tráfico africano, asiático e americano, que supôs, sem a fixação de fontes produtoras
47
nacionais, que o Estado seria rico se fluísse, no país, muito dinheiro, em boas e sonantes moedas. A atividade mercantil, desvinculada da agricultura e da indústria, não permitiu a acumulação de capitais no país: a prata e o ouro, depois de perturbar e subverter o reino, fugiam para as manufaturas e as cidades européias, em louca disparada. (FAORO, 2000, p. 70).
Sob a égide dos pressupostos acima arrolados é importante ressaltar que foi
inerente ao Estado português seu atraso científico. Um Estado patrimonialista,
clientelista, administrado por uma extensa máquina burocrática e jurídica,
cerceadora e controladora da dinâmica societária e política, intervencionista na
dinâmica econômica, mostrou-se incapaz, senão desinteressada no estímulo e
financiamento dos avanços científicos e tecnológicos em curso ao longo dos séculos
XVIII e XIX. O paradoxo de tal situação reside no fato de que o nascente Estado
português por volta do século XIV e XV patrocinou o avanço tecnológico que
culminou nas grandes navegações e nas descobertas de novos continentes, mas,
posteriormente abriu mão de continuar investindo em avanços científicos e
tecnológicos, caminhando lentamente para o seu definhamento e dependência
científica, cultural e econômica em relação a outros países como Inglaterra, França,
Holanda e Alemanha.
Portugal, cheio de conquistas e glórias, será, no campo do pensamento, o ‘reino cadaveroso’, o ‘reino da estupidez’: dedicado à navegação, em nada contribuiu para a ciência náutica; voltado para as minas, não se conhece nenhuma contribuição na lavra e na usinagem dos metais. Toda a vida intelectual, depois da fosforescência quinhentista, ‘ficou reduzida a comen-tários’ (FAORO, 2000, p. 71).
Mais uma vez a herança lusitana de nossa razão de Estado se apresenta em
toda sua contundência. Estamos na atualidade diante de um Estado brasileiro
centralizado, com pretensões de conduzir a dinâmica da vida nacional. Em seu
centralismo burocrático-administrativo e jurídico, desconsidera os entes federados,
especificidades regionais, a dinâmica social, político e econômica local. Consome
vultuosos recursos em programas sociais, em políticas públicas pensadas
idealmente na centralidade do poder, mas que se mostram inócuas ou limitadas,
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quando aplicadas nos rincões desde país. O Brasil idealizado na centralidade da
racionalidade político-administrativa de Estado não encontra respaldo no “Brasil real”
em sua diversidade étnico-cultural. Ademais, como herdeiros legítimos da visão de
mundo portuguesa, até a atualidade não nos convencemos, enquanto, sociedade e
Razão de Estado dela derivada, da importância estratégica de fazermos maciços
investimentos em educação, em ciência e tecnologia. Nossos índices educacionais e
científicos são a prova inconteste da ausência de compromissos com estas duas
áreas desde sempre estratégica na afirmação da autonomia e soberania de povos e
nações.
Perscrutar as heranças lusitanas de nossa razão de Estado nos permite ter
presente de que desde seus primórdios o Estado que aqui aportou não se
apresentou como o resultado da forma como um povo concebeu a si mesmo,
procurou enfrentar suas demandas societárias, conferir sentido e finalidade a esfera
da existência em suas dimensões públicas e privadas. O Estado lusitano e, por
extensão a razão de Estado brasileira guardiã destes pressupostos desenvolveu
uma soberania popular às avessas, numa relação de mando e obediência
inicialmente corroboradas pelas oligarquias estamentais beneficiárias privadas das
benesses públicas aquinhoadas pelo Estado. No desdobramento dos fatos e
acontecimentos históricos, viram-se oligarquias agrárias, coronéis e toda sorte de
lideranças políticas constituídas por poder de mando e privilégios. Mesmo tendo em
conta de que nas últimas décadas talvez tenhamos superado alguns
destesdesdobramentos históricos, convivemos ainda com uma Razão de Estado
centralizada, que em muitos aspectos parece alheia aos anseios de
representatividade de sua população, bem como administra um país imaginário de
dimensões continentais, desconsiderando suas especificidades e prerrogativas
regionais e locais.
Nesta dança, orquestrada pelo estamento, não entra o povo: quem seleciona, remove e consolida as chefias é a comunidade de domínio, num ensaio maquiavélico de captação do assentimento popular. A soberania popular funciona às avessas, numa obscura e impenetrável maquinação de
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bastidores, sem o efetivo concurso da maioria, reduzida a espectador que cala ou aplaude (FAORO, 2000, p. 104).
A RAZÃO DE ESTADO BRASILEIRA EM SUAS VARIÁVEIS JUDAICO-CRISTÃS
E SOCIALISTAS-COMUNISTAS
Associado a estes pressupostos patrimonialistas, clientelistas constitutivos de
nossa Razão Estado, encontramos variáveis judaico-cristãs. No fundamento da
cosmovisão judaico-cristã reside o pacto, o testamento firmado entre Deus e o povo
hebreu. Um só pastor e um só rebanho. O poder concentra-se no pastor, aquele que
conhece suas ovelhas. O pastor é aquele que detém o conhecimento da verdade e,
portanto, as condições de conduzi-las às melhores pastagens, de lhes conferir
segurança e salvação diante dos riscos, das contingências presentes no mundo.
Basta ter fé, acreditar, confiar no pastor para que se alcance a salvação. No rebanho
todas as ovelhas são iguais. Ovelhas de outra coloração são suspeitas, não são
dignas de confiança, ou consideração. Podem até ser considerada manifestação de
anomalias e, como tal representar riscos à totalidade do rebanho.
Sob tal perspectiva, talvez se possa levar em consideração de que aqui reside
uma das variáveis da visão messiânica de mundo, que perpassa parte do imaginário
social e político brasileiro. Afinal, junto com as naus portuguesas vieram e
desembarcaram nestas terras, desde a primeira viagem de descoberta e tomada de
posse, os legítimos guardiões da fé que deveria ser universalizada, o catolicismo
romano. Tal perspectiva de fé, advinda das entranhas do judaísmo, o cristianismo
católico traz consigo o governo da lei divina. Aos governantes terrenos se lhes
impõe as leis impostas aos reis de Israel, o povo eleito pelo Deus único e
transcendente. “O regimen real não abole o regimen divino; ao contrário,
permanece-lhe submisso. “Se não obedeceis a Javé, se vos revoltais contra suas
ordens, então a mão de Javé pesará sobre vós e vosso rei. Temor de Deus constitui
o princípio da legitimidade régia” (SENNELLART, 2006, p. 113).
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Nesta perspectiva judaico-cristã o rei encarna a figura de representante divino
no governo dos homens. Compete a ele o zelo à virtude como exemplo de conduta
de vida aos súditos, para que possam no transcorrer de suas vidas na cidade dos
homens alcançar a graça divina na cidade de Deus. Assim, o governante encarna a
figura do messias, aquele que traz e anuncia a boa nova através de palavras e
exemplos de vida, e que deve ser respeitado e obedecido, porque detém a
sabedoria necessária ao alcance da salvação. Sua sabedoria de origem messiânica
tem a capacidade de “salvar a pátria” e garantir a felicidade geral da nação, basta ter
fé, acreditar e esperar para que um dia a profecia se cumpra.
Esperamos, afinal, a esperança é um dos principais atributos cristãos,
daqueles que professam que a felicidade reside na vida além túmulo, que o
Estado/pastor resolva os problemas, as idiossincrasias e as contradições políticas,
econômicas e sociais. Sob tais pressupostos a Razão de Estado se apresenta como
uma entidade sacralizada, para além do alcance e compreensão dos seres
humanos. De forma alguma ele pode resultar da vontade e da racionalidade política
de indivíduos, que alcançam pela vida da racionalidade um consenso em torno das
formas de administração e garantias de suas vidas na cotidianidade.
Esta concepção transcendente da razão de Estado se alastra em toda sua
extensão nos poderes constitutivos do Estado. Assim, concebemos o judiciário como
guardião dos preceitos morais e de justiça, que justificam e ordenam as relações
sociais em que nos circunscrevemos. Esperamos que o poder judiciário nos dê a
tábua dos dez mandamentos. Cremos que a lei é um fim em si mesmo. Basta
legislar para que nossas contradições sociais se resolvam. Ainda nesta direção,
como bons fiéis, sempreá procura da ordem e da harmonia social, remetemos a
resolução de nossas querelas sociais ao Supremo Tribunal Federal, este ente
transcendente detentor das tábuas da lei. Esperamos, ansiamos pelas
inquestionáveis premissas de ordem e justiça advindas das diversas instâncias do
poder judiciário, mesmo que isto represente a diminuição de nossa capacidade de
alcançar e estabelecer consensos socialmente debatidos.
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Esta perspectiva judaico-cristã de nossa Razão de Estado nos remete ainda a
uma perspectiva igualitarista. Estamos sempre às voltas com infindáveis debates de
ordem legislativa, com discursos de correções de injustiças históricas no intuito de
equalizar, senão de alcançar, perspectivas igualitaristas na conformação do tecido
social. Se o pastor desconfia das ovelhas de outra coloração em meio ao rebanho,
isto significa que em nosso imaginário judaico-cristão, nossa razão de Estado
desconfia das intenções dos indivíduos. Todas as perspectivas casam muito bem
com o centralismo Estatal planificador socialista que em passado recente detinha o
conhecimento para efetivação da utopia de uma sociedade humana igualitária, justa
e fraterna. Mas, o muro caiu.
Desta forma, sob tais pressupostos, pode-se ainda argumentar que as
prerrogativas judaico-cristãs no que concerne a conformação de nossa Razão de
Estado, encontraram amparo e, se mesclaram com as ideias de fundo marxista e
socialista, que se estabeleceram entre nós nos primórdios do século XX, cuja origem
se encontra na interpretação que Marx e Engels realizam no século XIX, em torno
daluta de classes, motivada pelas contradições na relação entre capital e trabalho,
constitutivo do modo de produção capitalista. O que aproxima de forma tão intensa
estas duas cosmovisões é sua condição utópica de constituição de um mundo
diferente, melhor, de paz e harmonia entre os homens. Para o cristianismo, esta
pátria futura, de paz, alegria e, segurança se constituiria na vida além túmulo, junto
ao criador. Se o mundo terreno se apresenta como um vale de lágrimas a
recompensa está no porvir, na felicidade que se pode alcançar na vida além túmulo.
Todo o sofrimento é válido e necessário como meio de alcançar a graça de entrar na
cidade de Deus.
Certas variáveis interpretativas das ideias de Marx e Engels, que aportaram
em terras tupiniquins, sobretudo, em seu caráter panfletário e, com pretensões de
ordem revolucionária na constituição de uma nova sociedade, dirimida dos males
causados pela luta de classes, pela exploração do capital sobre o trabalho, na
distribuição igualitária dos meios de produção, na justa distribuição da riqueza,
52
pressupõem que o homem é um ser bom por natureza. Sob esta perspectiva, o ser
humano está propenso à solidariedade, ao bem, á partilha, porém, contradições
sociais, políticas e econômicas em que está inserido brutalizam sua condição
humana.
Sob tais perspectivas marxistas, repitam-se recebida entre nós em grande
medida de forma panfletária, as sociedades humanas encontram-se numa dicotomia
que implica na luta entre o bem e o mal. O mal é o modo de produção capitalista,
que em sua ânsia pelo acúmulo de mais valia, de lucro, de capital, submete à
miserabilidade homens, mulheres e crianças, cujo único modo de sobrevivência é a
venda da força de trabalho. No contraponto a esta perspectiva, o bem é
representando numa sociedade comunista, onde os meios e os bens de produção
são distribuídos de forma igualitária entre os homens, para que todos possam ter
acesso aos bens necessários à manutenção e condução de uma vida digna.
Ora, esta transição das bases de uma sociedade capitalista (cidade dos
homens), para uma sociedade comunista (cidade de Deus) quem poderá fazê-la é o
Estado socialista centralizado. Por deter a verdade das contradições da dinâmica
societária capitalista na produção de profundas desigualdades econômicas e
injustiças sociais, a Razão de Estado Socialista tem o “dever” de conduzir as classes
burguesas e trabalhadoras ao reconhecimento do caráter contraditório inerente a
toda e qualquer forma de propriedade privada. Nesta direção, o Estado socialista na
condução da marcha utópica à sociedade comunista, intérprete por excelência de
todas as contradições vinculadas aos diversos modos de produção experimentados
pela tradição de povos e culturas, pois detentor do método do materialismo histórico
e dialético tem a obrigação de conduzir os destinos do povo e da nação.
Ou seja, na gênese da matriz judaico-cristã, tanto quanto da matriz socialista-
comunista que se arraiga em nossa Razão de Estado, o que constatamos
inicialmente é uma profunda desconfiança antropológica na capacidade dos
indivíduos no uso racional de sua liberdade em alcançarem consensos, que
preservem a ordem pública, o interesse geral da comunidade, o alcance do bem
53
viver, a busca felicidade. Outra prerrogativa de ordem comum a estas duas
cosmovisões utópicas é o fato de assumirem na centralidade de suas propostas a
condução do homem á pátria futura, a felicidade na vida além-túmulo, ou a plena
realização de sua dignidade através da distribuição igualitária dos modos de
produção, bem como dos bens produzidos pela coletividade. Na matriz judaico-cristã
a salvação da cristandade se dá na medida do exercício de uma fé inabalável no
Pastor e seus imperativos salvacionistas. Na matriz de ordem socialista-comunista a
salvação se dá pela via da coletividade obediente aos ditames do dirigente, do
partido único. Em ambos os casos a Razão de Estado se apresenta em toda sua
potencialidade messiânica a conduzir os seres humanos à pátria futura, ao reino de
paz e felicidade seja no plano extraterrestre, seja no plano da materialidade terrena
em que se constituem as sociedades humanas. Talvez, possamos afirmar que em
nosso imaginário social e político encontram-se significativos traços e resquícios
destes ideários idílicos e paradisíacos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz dos argumentos até aqui arrolados neste debate, talvez possamos
considerar que nossa concepção de Estado carece de fundamento societário
consistente historicamente constituído. No bojo do processo histórico que nos trouxe
até a contemporaneidade, fomos respondendo às demandas societárias, locais,
regionais, nacionais e internacionais em curso, tendo como parâmetro para
constituição de nossa Razão de Estado a herança lusitana de outrora. Diante da
necessidade de responder aos desafios cotidianos de conferir viabilidade ao
progresso econômico e ao desenvolvimento humano nacional, regional fomos
reproduzindo com intensidades diversas, em períodos temporais distintos,
perspectivas patrimonialistas, clientelistas, burocráticas de Estado.
Estas variáveis lusitanas, que insistem em permanecer arraigadas em nossa
cultura política, na constituição de nossas instituições e, na forma como respondem
54
aos anseios e demandas de ordem nacional, podem explicar em certa medida
nossos limites de desenvolvimento humano, econômico, cultural e político. Nosso
modelo de Estado, marcado pela centralização, pelas estruturas burocráticas,
apresenta-se moroso na tomada de decisões estratégicas diante da necessidade de
defesa e potencialização dos interesses nacionais, fazendo com que os períodos de
crescimento sejam de baixa intensidade e de curta duração. Ademais, é preciso que
se diga que tais períodos de crescimento invariavelmente são feitos com a
exportação extensiva de commodities, minério de ferro, suco de laranja e outros
produtos de baixo valor agregado. Ficamos com aquela sensação de que o país do
futuro finalmente está se fazendo no presente, mas passados alguns segundos,
parece que tudo não passa de miragem, de sombras que se dissipam a primeira
mudança climática. O gigante é preguiçoso e volta a dormir, até que em algum
momento, num sobressalto qualquer volte a acordar por alguns instantes, enchendo
de esperanças as perspectivas messiânicas de seu povo.
No entrecruzamento das heranças lusitanas em nossa concepção de Estado
é preciso ter presente as premissas da matriz judaico-cristã e socialista-comunista,
que em tempos diferentes aportaram nestas terras, mas que se fundiram em uma
certa concepção de Razão de Estado que fortalece seu centralismo político e
administrativo em detrimento da liberdade e autonomia de indivíduos e comunidades
tomarem decisões pautadas em sua capacidade empreendedorismo, de inovação e,
sobretudo, na busca de consensos em âmbito local, regional. Matrizes estas que
salvaguardadas suas diferenças constitutivas e conceituais operam sob a afirmação
da igualdade entre todos os seres humanos, que exigem a inclusão de todos na
ordem societária, mesmo sabendo que a inclusão vem acompanhada de
significativas doses de exclusão. Matrizes que pela intensidade com que defendem
suas verdades coletivistas em detrimento das liberdades individuais se apresentam
ora como messiânicas, ora como salvadoras da pátria pela via da revolução e/ou de
variável similar, porém menos intensa em tempos de economia financeira global.
55
Efetivamente, no bojo destas reflexões é preciso reconhecer que urge aos
brasileiros tomarem-se como objetos de si mesmos, de se compreenderem em sua
diversificada matriz étnica e em suas diversas cosmovisões, que se entrecruzam na
conformação deste agregado de milhões de seres humanos. Tarefa de
autoconhecimento indispensável se efetivamente almejamos assumir a
responsabilidade de constituirmos uma Razão de Estado à altura dos desafios do
tempo presente, das exigências de autonomia e soberania popular. O debate em
torno das reformas estruturais do Estado brasileiro, entre elas: a reforma política,
tributária, bem como discussões em torno do pacto federativo, do excessivo poder
assumido pelo poder judiciário diante dos limites do poder legislativo, o debate em
torno do balcão de negócios promovido pelo poder executivo no afã de garantir a
“governabilidade”, evidenciam a urgência e a necessidade da sociedade brasileira
colocar em jogo, depurar sua Razão de Estado como condição de justificar suas
prerrogativas civilizatórias e, assim, ser reconhecido pelos demais povos e países.
Do contrário seremos apenas um amontoado de produtores e consumidores, cuja
importância é meramente de ordem estratégica nas articulações da economia
mundial.
REFERÊNCIAS
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56
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2004. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: Editor Victor Civita, 1973. MATTA, Roberto da. O que faz o Brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Editor Victor Civita, 1973. SENELLART, Michel. As artes de governar: Do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 2006. TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (Livro 1).
57
ESCOLA E FAMÍLIA NA PARTICIPAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL8
Rodnei Oliveira de Lima Camara9 Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner10
RESUMO: O presente artigo, fundamentado no tema supracitado, é resultado de pesquisa elaborada e efetivada junto a FAPESC (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina), portanto, objetiva a divulgação dos resultados obtidos pela referida pesquisa, bem como fomentar o debate sobre a importância da escola e família enquanto instituições sociais participantes no processo de desenvolvimento regional. A importância do referido tema se justifica na medida em que é perceptível o papel relevante desenvolvido pela escola e família na fomentação de capitais considerados importantes para o desenvolvimento regional. Nesse sentido, o presente artigo tem a finalidade de divulgar as características centrais da pesquisa realizada, levando-se em consideração o referencial teórico, a metodologia utilizada e os resultados obtidos bem como a viabilidade no prosseguimento de outras pesquisas e discussões sobre o presente tema.
Palavras Chaves: Educação. Família. Desenvolvimento.
ABSTRACT: This article, based on the above topic, is the result of research carried out and carried along FAPESC (Foundation for Research and Innovation in the State of Santa Catarina), therefore, aims to disseminate the results obtained by this research, as well as foster debate on the importance of school and family as social institutions participating in the regional development process. The importance of this subject is justified to the extent that is noticeable role developed by the school and
8Artigo referente à publicação dos resultados obtidos por meio de pesquisa financiada pela FAPESC Premio Mérito Universitário Chamada Pública 002/2008, apoiada pela UnC – Universidade do Contestado e pela Secretaria Municipal de Educação da cidade de Canoinhas SC. A referida pesquisa foi realizada na Escola de Educação Básica Maria Lovatel Pires, na cidade de Canoinhas SC.
9Acadêmico do curso de Ciências Sociais com ênfase em Desenvolvimento Regional (no período de desenvolvimento da pesquisa, atualmente é mestrando do Programa de Desenvolvimento Regional pela UnC e aluno bolsista pelo FUMDES – 2013), autor do presente artigo e organizador da pesquisa: Escola e Família como Instituições partícipes no Desenvolvimento Regional, tendo como orientador o Professor Dr. Walter Marcos KnaeselBirkner. O acadêmico é residente à Rua Três de Maio, 1.305, Centro – Canoinhas SC, CEP 89460-000, fone: 47 3622-3538, e-mail: [email protected].
10Dr. Em Ciências Sociais pela UNICAMP, professor no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional, UnC – Canoinhas – SC.
58
family in fostering capital considered important for regional development. In this sense the present article aims to disseminate the central features of the survey, taking into account the theoretical framework, the methodology used and the results obtained as well as the continued viability of other research and discussion on this topic.
Keywords: Education. Family. Development.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho está fundamentado nas informações advindas do
tratamento dos dados colhidos a partir de pesquisa realizada em 2009, tendo como
órgão financiador a FAPESC (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do
Estado de Santa Catarina). O interesse na realização da referida pesquisa se deu
ainda no período da graduação do pesquisador quando esteve em contato com as
disciplinas “Sociologia da Educação” e “Sociologia do Desenvolvimento”11. A partir
de uma revisão bibliográfica, envolvendo diversos temas relacionados às instituições
família e escola, além de referências teóricas acerca das teorias do desenvolvimento
regional, em especial as teorias que se fundamentam no Capital Social e
Endógeno12, foi possível estabelecer um conjunto de questionamentos. Entre eles, a
verificação da possível relação entre as instituições referidas (família e escola) como
atores cooperadores na fomentação, básica, de capitais endógenos, em específico
os capitais cultural, cognitivo e cívico, indispensáveis para o desenvolvimento e
como esse processo se daria no espaço escolar com a participação de toda a
comunidade envolvida. Tal preocupação teria como objetivo, por meio de
instrumentos de pesquisa, verificar o grau de participação das famílias no processo
educacional de seus filhos, e que dispositivos e estratégias a unidade escolar
(representada pelo corpo docente e administração) se vale para dinamizar esta
participação. Outro objetivo centralizou as investigações, na relação entre essas 11
Disciplinas pertencentes à grade curricular de 2007 do curso de Ciências Sociais com ênfase em Desenvolvimento Regional – UnC (Universidade do Contestado – campus Canoinhas SC).
12Principalmente autores como Robert Putnan e Sergio Boisier.
59
estratégias utilizadas pela escola, a participação das famílias no processo
educacional dos filhos e os índices educacionais oficiais, sobretudo o IDEB. A
unidade escolar, objeto da pesquisa realizada, foi a EB Maria Lovatel Pires
localizada no município de Canoinhas SC, no bairro denominado “Alto da Tijuca”,
sendo que, a mesma, pertence à rede municipal de ensino. Além dos objetivos já
citados, foi possível investigar em que medida a efetividade dos trabalhos da
Unidade Escolar foi influenciada por uma administração descentralizada, bem como,
verificar a possibilidade da existência de possíveis modelos a serem seguidos pelas
unidades escolares. Por fim, objetivou-se apresentar dados sociológicos, acerca das
possíveis contribuições, de instituições como a escola pública e a família, no
processo de desenvolvimento regional.
ESCOLA E FAMÍLIA: UMA BREVE ABORDAGEM
A educação, sem dúvida alguma, tem participado da história humana desde
as mais primitivas às mais complexas formas de sociedade, seja por meio da
educação informal ou formal institucionalizada. As diversas vertentes do
conhecimento humano reconhecem-na não só como um objeto de estudo, mas,
também, como uma instituição das mais importantes no processo de composição da
sociedade e na formação do ser humano. Autores das Ciências Sociais,
principalmente da antropologia e sociologia, reconhecem as instituições sociais,
dando destaque à educação e à família, como sendo fundamentais no processo de
“humanização” dos indivíduos, cumprindo assim, não só uma função pedagógica,
mas, também, política.
A educação e a família, sem dúvida alguma, são as mais antigas, senão as
primeiras, instituições com as quais os seres humanos têm contato, portanto,
sempre se colocaram como partícipes na construção da visão de mundo dos
indivíduos que constituíram as sociedades ao longo dos tempos.
60
Toda a educação varia sempre em função de uma ‘concepção de vida’, refletindo, em cada época, a filosofia predominante que é determinada, a seu turno, pela estrutura da sociedade. É evidente que as diferentes camadas e grupos (classes) de uma dada sociedade terão respectivamente opiniões diferentes sobre a ‘concepção de mundo’, que convém fazer adaptar ao educando e sobre o que é necessário como qualidade socialmente útil (GHIRALDELLI, 2001, p. 58).
Há que se considerar que a referida visão de mundo, necessária aos
indivíduos, como condição de se localizarem no tempo e no espaço e, por
conseguinte, potencializarem esses mesmos indivíduos como atores partícipes do
processo de desenvolvimento regional, deve, necessariamente, contemplar as
principais esferas da vida humana, a saber: a ética, estética e política. Neste
particular, o papel da escola enquanto depositária dos saberes é, no mínimo,
fundamental na participação do desenvolvimento regional, a partir da fomentação de
capitais (valores) indispensáveis nesse processo.
A escola, na medida em que concorre para a atualização das potencialidades e fixação da motivação, é, então, o mecanismo que redistribui os indivíduos. [...]. Funcionando assim, a educação escolar não terá como objetivo a eliminação das diferenças entre os homens, mas a construção de uma sociedade onde todas as posições da estrutura ocupacional, mesmos as mais elevadas, estão, disponíveis para os indivíduos de quaisquer origens, desde que adequadamente dotados e suficientemente motivados para competir por elas (CUNHA, 1980, p.21).
É perceptível a atualidade dos debates referentes ao tema abordado, na
medida em que se encontra amparo em diversos discursos de nosso tempo, quer no
âmbito acadêmico, quer em instituições nacionais e internacionais, ou nas esferas
governamentais. Um desses discursos possibilitou a origem de documentos oficiais
e relevantes, como propostas de nível mundial, para a educação do futuro, como se
vê em Edgar Morin13: “Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para
formar uma configuração que responda as nossas expectativas, nossos desejos,
13
Sociólogo Frances de origem judaico-espanhola. Pesquisador emérito do CNRS, formado em Direito, História e Geografia, adentrou na Filosofia, Sociologia e Epistemologia. Entre suas obras, “Os sete saberes necessários à educação do futuro”, ocupa lugar de destaque nas discussões sobre educação na contemporaneidade.
61
nossas interrogações cognitivas?” (MORIN, 2003). Os principais meios de
comunicação de nosso país têm prestado uma considerável relevância aos temas
voltados à educação, como se vê, por exemplo, em trecho de artigo do professor
Gaudêncio Torquato14 publicado no Jornal O Estado de São Paulo e que revela um
dado preocupante:
[...] o ensino básico atravessa a maior crise de sua história. Milhares de alunos concluem a quarta série sem saber ler nem escrever, muito menos fazer contas. [...] 33 milhões de brasileiros são capazes de ler, mas não conseguem entender o significado das palavras. São analfabetos funcionais (O Estado de São Paulo, 2008, p. A2).
A preocupação com a educação tem sido notada constantemente no
legislativo federal, como se vê em trecho do discurso proferido no Senado Federal,
por Cristóvão Buarque15 onde o mesmo ressalta:
Todas as crianças precisam ter a mesma chance. Elas não podem ser discriminadas só porque nasceram em uma cidade muito pequena ou porque os pais são pobres e vivem em uma área de periferia. Elas devem ter a chance de estudar em escolas que são iguais às melhores escolas do país. Todas as escolas devem ter o mesmo padrão. [...] seguindo um plano nacional de educação de qualidade e a escola gerenciada pela prefeitura e pela comunidade, aberta à participação dos pais, das mães e de toda a comunidade (SENADO FEDERAL, 10 ago. 2007).
Não obstante a apologia feita em relação à escola, até o momento, no tocante
a sua participação nas grandes transformações sociais – principalmente
transformações na visão de mundo e no processo de humanização –, há que se
considerar a relevância da participação da família nesse processo, contribuindo na
formação de indivíduos que poderão, seguramente, influenciar a sociedade e
comunidade local, em que estão inseridos, na busca de maior qualidade de vida
que, sem dúvida alguma, se coloca como uma, ou talvez a maior, razão para a
busca de um desenvolvimento regional.
14
Gaudêncio Torquato é jornalista e professor da USP além de consultor político. 15
Economista, educador e professor Universitário, atualmente é senador da república.
62
DESENVOLVIMENTO
Quando se discute e se disserta sobre o desenvolvimento é preciso ter a
percepção da existência de uma gama de teorias e conceitos que envolvem o
mesmo. É de concordância da grande maioria dos estudiosos, principalmente
daqueles que transitam nas ciências sociais, que o desenvolvimento como um objeto
de investigação científica tem sua origem na ciência econômica, efetivamente, entre
os clássicos que focalizavam tal discussão sobre o prisma do crescimento
econômico relegando para segundo plano, a dimensão humana da referida
discussão.
O desenvolvimento, enquanto um conceito é explorado pelas ciências sociais,
teve sua origem no pensamento econômico e, passa a ter maior destaque, como
sendo um tema específico, a partir da metade do século XX. A relação entre teorias
econômicas e desenvolvimento se confunde com a própria história das doutrinas
econômicas:
Para os economistas, historicamente, a preocupação com o desenvolvimento, na sua dimensão econômica, ou desenvolvimento econômico como costumam referir-se, começa com os pensadores fisiocratas (DALLABRIDA, 2010, p. 22)
Não obstante, os fisiocratas16, dentre eles François Quesnay (1694 – 1774),
terem sido os primeiros a discutirem o desenvolvimento em uma dimensão
econômica, é a partir dos chamados economistas clássicos, entre eles: Adam Smith,
Malthus, David Ricardo, Stuart Mill e Marx, que o desenvolvimento passa a ser
analisado, levando-se em consideração a qualidade de vida, portanto, insere-se na
discussão a dimensão humana nas teorias do desenvolvimento.
No final do século XIX surgem novos teóricos da economia, relacionando
desenvolvimento com crescimento econômico. Para Marshall (1842-1924) o
crescimento econômico era o resultado de capacidade humana e tecnologia, por
16
Fisiocratas: assim conhecidos por fundamentarem suas teorias em leis naturais.
63
outro lado, Schumpeter (1883-1950) o crescimento econômico estava ligado à
tecnologia, instituições eficientes e empreendedorismo. Outro teórico que se
destacou nas discussões sobre o crescimento econômico foi Keynes (1883-1946)
que defendia a intervenção do Estado na economia e a estabilidade das instituições.
Como um conceito explorado pela Sociologia, o desenvolvimento, tem sua
origem em uma releitura do evolucionismo de Darwin17, ou seja, o desenvolvimento
como um “novo evolucionismo” 18. No centro de tal conceito, repousa a ideia de que
as sociedades poderiam ser entendidas ou caracterizadas por suas diferenças, que
não eram de natureza, mas de etapas de desenvolvimento,
A conceituação de desenvolvimento como sendo um processo continuum,
submetido a etapas, permitiu o surgimento de classificações próprias para as
diversas nações, que a partir do período do capitalismo industrial, passam a serem
conhecidas por desenvolvidas, semidesenvolvidas e subdesenvolvidas. Um dos
grandes representantes dessa corrente teórica desenvolvimentista, sem dúvida
alguma foi Rostow (1974)19, o mesmo sugeriu que as sociedades passam por cinco
etapas distintas no processo de desenvolvimento, a saber: Sociedade tradicional
(primeira), sociedade emprocesso de transição (segunda), Sociedade em início de
desenvolvimento (terceira), sociedade em maturação (quarta) e sociedade em
produção em massa (quinta).
A interpretação desenvolvimentista sofre críticas, na medida em que a
mesma, necessariamente, deve desprezar as características históricas de cada
sociedade, o que é de fundamental importância para a sua compreensão como no
caso da Índia no século XVII.
17
Charles Darwin (Shrewsbury, 12 de Fevereiro de 1809 — Downe, Kent, 19 de Abril de 1882) foi um naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural.
18Termo utilizado pelas Ciências Sociais, principalmente no início do séc. XX, para designar uma teoria específica na Sociologia do Desenvolvimento.
19William Wilber Rostow, ex-professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e porta-voz da Casa Branca para assuntos exteriores em 1967, é autor de uma das mais importantes obras fundamentada nas teorias Desenvolvimentista.
64
Aos poucos, o dualismo começou a nortear o conceito de desenvolvimento e
de subdesenvolvimento, permitindo classificar e identificar regiões. Esse
pensamento defendido por Elias Gannagé (1969) identificava e caracterizava as
regiões “desenvolvidas” das regiões “atrasadas”, entendendo que em um mesmo
país ou região, haveria a possibilidade de existirem as duas situações.
A partir de tais conceitos, as teorias desenvolvimentistas pensadas e
fundamentadas sobre uma visão capitalista industrial, produziram termos que
passaram a identificar as regiões e nações ditas “atrasadas”, como por exemplo, os
termos: Periferia e Marginalidade. A referida teoria sofre críticas, principalmente
quando se entende que as regiões e nações, conhecidas como “atrasadas”, não
estão em tais condições porque estão passando por uma fase ou etapa, mas estão
sujeitas a situações de exclusão dos planos de desenvolvimento local e regional, o
que força tais regiões e nações, a encontrarem nas formas tradicionais, não
capitalistas, uma forma de sobrevivência.
Diante dos conceitos de desenvolvimento aqui colocados, é possível
recorrermos às possíveis contribuições das Ciências Sociais, sobretudo a
contribuição antropológica, que coloca em discussão a cultura como elemento
indispensável para um pretenso desenvolvimento.
Torna-se clara a necessidade de se colocar em discussão as dimensões do
desenvolvimento, e nesse particular alguns pesquisadores, entre eles Sergio Boisier
(1999)20 que muito contribuíram. Para Sérgio Boisier, o desenvolvimento regional
está fundamentado em capitais que devem ser construídos ou potencializados, entre
eles figuram os capitais cognitivo, cultural e cívico. O capital cognitivo não se
configura apenas nas capacitações de conhecimento científico e técnico, disponíveis
em uma sociedade, mas no conhecimento do próprio território, ou seja, uma
inteiração consciente por parte da comunidade e dos atores locais sobre a realidade
de sua região. No que se refere ao capital cultural apresenta como sendo o acervo
20
Sergio Boisier – Sociólogo chileno, membro da CEPAL, autor do livro: El desarrollo territorial a partir de la construcción de capital sinergético.
65
de tradições, mitos e crenças, linguagens, relações sociais, modos de produção e
produtos imateriais (literatura, pintura, dança, música etc.) e materiais, específicos
de uma determinada localidade ou região. No capital cívico, interpreta como sendo
um conjunto de situações que promovem um ambiente voltado a práticas de:
políticas democráticas de confiança nas instituições públicas, de preocupação
pessoal pela res pública (coisa pública), ou como se diria, pelos negócios e assuntos
públicos, uma rede de compromissos públicos. Boisier defende a hipótese de que o
desenvolvimentosustentável é fundamentado em “capitais” que devem ser
fomentados, criando assim o conceito de capital sinergético. Para o pesquisador, um
desenvolvimento sustentável só é possível mediante a fomentação de Capitais
Sinergéticos e de fatores como: recursos humanos e materiais; atores individuais,
coletivos e cooperativos identificados com os movimentos sociais regionais;
instituições; processos decisórios e cultura. A presente teoria também é sustentada
por Robert Putnam (2000)21, reconhecendo no Capital Social a “mola propulsora” do
desenvolvimento regional, conforme resultado de sua pesquisa realizada na Itália:
Muitos autores têm se referido ao conceito de capital social, atribuindo a esse fenômeno uma importância, algumas vezes, decisiva como fator propulsor do desenvolvimento. [...] No entendimento de Robert Putnam, o termo está relacionado a ‘características da organização social como confiança, normas e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas’ (BIRKNER, 2006, p. 15).
A defesa de tais ideias sugere outro conceito fundamental: o conceito de
cultura. É possível dizer que todo o processo de desenvolvimento está centrado na
dimensão cultural, ou seja, na mudança cultural coletiva, o que aponta para a ideia
de que todo esse processo passa, necessariamente por mudanças culturais,
mudanças de comportamento. Portanto, definir e entender o conceito de cultura é de
grande importância para compreendermos quais os instrumentos que podem ser
21
Robert Putnam – Cientista político que em 1996, lançou o livro - Comunidade e Democracia: a experiência na Itália Moderna, como resultado de sua pesquisa á respeito do Capital Social como condição de desenvolvimento regional.
66
pensados e utilizados para potencializar essa cultura dinamizando o próprio
processo de desenvolvimento.
A ideia de Desenvolvimento, na perspectiva do capital social, está
intimamente ligada a mudanças de comportamento dos atores de uma determinada
região ou nação. O comportamento dos indivíduos dessa região é resultado de sua
visão de mundo condicionada pela cultura local, que segundo Laraia (2001)22 é um
sistema cognitivo, simbólico, lógico, próprio e dinâmico. De acordo com Laraia, o
modelo determinista biológico e geográfico não possuilógica como sendo
determinante do comportamento humano aprendido independente da herança
genética. Nesse sentido, cada povo deve ser compreendido pelo seu próprio
paradigma cultural que define sua própria visão de mundo. A “cosmovisão” de uma
dada região ou nação é fundamental para o processo de desenvolvimento, onde
reside então a preocupação com uma mudança de comportamento dos atores
regionais para depois potencializar o processo de desenvolvimento, tais mudanças
se dão principalmente por meio da educação:
Resumindo, o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada (LARAIA, 2001 p.11).
Assim, é possível dizer que o desenvolvimento regional se dá no âmbito de
um processo cultural, de mudanças de comportamento que permitem a fomentação
do capital social em uma dada região ou nação, onde se poderá verificar a presença
de confiança, cooperação e participação política da sociedade civil organizada.
22
ROQUE LARAIA - é professor emérito da UnB. Iniciou sua carreira, como antropólogo, no Museu Nacional da UFRJ. Em 1969 transferiu-se para a UnB, onde dirigiu o Instituto de Ciências Humanas, sendo promovido a professor titular em 1982. Doutor pela USP, Membro de associações científicas do país e do exterior, presidiu a Associação Brasileira de Antropologia (1990-92) e foi eleito presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2000.
67
Kropotkin (2006)23, anarquista do século XIX defende a ideia de que, quando o
homem cria a cultura, esta é a condição de tirá-lo de uma situação de “condição
natural” ausentando-o de ser afetado pela “seleção natural”, sugerindo que o
indivíduo é capaz de exercer, por sua autonomia, mudanças consideráveis no meio
em que vive, dinamizando-o, e, por consequência o próprio desenvolvimento
regional. A realidade é mudada quando o homem é mudado, o homem é mudado
quando seu comportamento é mudado, finalmente, seu comportamento é mudado
quando sua cultura é mudada.
MATERIAL E MÉTODO
No objetivo de responder ao problema estabelecido pelo projeto em análise,
utilizou-se uma metodologia fundamentada na coleta de dados em que, os mesmos,
possibilitaram identificar na relação entre as instituições escola e família como atores
locais no processo de desenvolvimento regional, a partir da fomentação dos capitais
cognitivos, culturais e cívicos nos alunos do ensino básico. Objetivando verificar
estas possibilidades, a pesquisa se valeu de dois instrumentos de pesquisa, a saber:
uma pesquisa bibliográfica e informativa por meio do estudo do Projeto Político
Pedagógico e do último índice do IDEB24, e por meio de entrevistas fundamentadas
em três questionários, um deles voltado para a direção da escola, outro para os
professores e outro para os pais de alunos. Após coletados os dados, os mesmos
foram tabulados e representados por gráficos e tabelas permitindo mensurá-los bem
como analisá-los de forma dissertativa.
23
KROPOTKIN – Anarquista do séc. XIX, e crítico do Darwinismo Social. Após alistar-se nas forças armadas, muda-se para a Sibéria onde é despertado pelo seguinte questionamento: “Como alguém poderia sobreviver, em região tão inóspita?”. Realiza uma releitura de Darwin, que atribuía à “competição” a condição de sobrevivência, estabelecendo a “mútua cooperação” como condição de sobrevivência. Transfere, posteriormente, a idéia para as Ciências Sociais. Tais conceitos foram registrados em seu livro: Apoio Mútuo.
24Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi criado pelo INEP/MEC e busca representar a qualidade da educação a partir da observação de dois aspectos: o fluxo (progressão ao longo dos anos) e o desenvolvimento dos alunos (aprendizado).
68
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados e a discussão, em torno do objeto de pesquisa, se deram pelo
tratamento dos dados colhidos por meio dos instrumentos de pesquisa aplicados 25,
sendo que, os instrumentos de pesquisa aplicados aos pais dos alunos
contemplaram uma amostra de cinquenta famílias de uma população total de
noventa26.
Em primeiro lugar foi realizado uma análise dos últimos resultados do IDEB
em que se localizava a situação da Escola de Educação Básica Maria Lovatel Pires:
Gráfico 1 – Evolução IDEB: Maria Lovatel Pires (EMEB)
Fonte: IDEB 2011 – INEP (portalideb.com.br)
25
As referidas entrevistas foram direcionadas a três grupos, a saber: pais de alunos, professores e coordenadores da unidade escolar. A aplicação da entrevista fundamentou-se em questionário (um para cada grupo) composto de 10 (dez) questões.
26O total de famílias na unidade escolar, segundo a coordenação, é de aproximadamente 90 famílias, sendo que, na impossibilidade de alguns pais poderem conceder a entrevista, e outros não quiseram opinar, justificou-se a presente amostra como condição de oferecer dados à pesquisa.
69
Tabela 1 – Evolução IDEB: Maria Lovatel Pires (EMEB)
2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2021
Crescimento 9% ↑ 24%↑
Ideb 4.7 5.1 6.3
Meta 4.8 5.2 5.4 5.7 5.9 6.2 6.4
Fonte: IDEB 2011 – INEP (portalideb.com.br)
As informações supracitadas nas ilustrações revelam que a escola cumpriu a
meta no ritmo esperado para 2011, na mediada em que, a mesma, superou a meta
estabelecida em consideráveis porcentagens, inclusive com claras tendências de
crescimento para os próximos indicadores.
Ao serem analisados os dados referentes aos questionários aplicados aos
grupos pertencentes à unidade escolar, foi perceptível o envolvimento das famílias,
professores e coordenação no processo educacional dos alunos o que sugere ter
sido este um elemento influenciador no alcance das referidas metas estabelecidas
pelo IDEB. Os dados revelaram um interesse considerável por parte dos pais no
processo educacional dos alunos, na medida em que a maioria das famílias
entrevistadas deixou claro sua efetiva participação na escola bem como nos projetos
nela desenvolvidos. No que se refere aos professores, foi possível verificar a
efetividade dos mesmos no processo de fomentação dos capitais cívicos, cognitivos
e culturais na unidade escolar pesquisada. Outro fato importante a se considerar é o
grau de formação dos docentes. Constatou-se que a maioria possui cursos de pós-
graduação (stricto e latu senso) revelando assim a preocupação da Secretaria de
Educação Municipal com a qualidade das práticas pedagógicas. Por parte da
coordenação da escola27 foi perceptível a preocupação e interesse em se
potencializar os instrumentos políticos pedagógicos, bem como os órgãos
administrativos da unidade escolar (Assembleias Gerais, APP, Reunião de Pais e
Mestres e Reuniões Pedagógicas) no sentido de fomentar a ideia e concretização
dos capitais indispensáveis para o desenvolvimento dos alunos e instituição na
busca de suas metas.
27
A coordenação da escola é formada por três membros: Diretora de Ensino, Secretária da Escola e Orientadora Educacional (dados de 2009)
70
A pesquisa permitiu a constatação da existência de uma gama de projetos
desenvolvidos, em parceria com professores, pais, alunos e outras instituições
envolvendo a unidade escolar como mostra ilustração abaixo:
Tabela 2 – Projetos desenvolvidos pela EEB Maria Lovatel Pires
Projetos Número de alunos participantes
Clube da poesia 34
Violino 16
Projetos Número de alunos participantes
Tênis de quadra 12
Reforço escolar 30
Futebol de campo 35
Coral 30
Tênis de mesa 02
Amigos da leitura 15
Futsal 02
CIPA 12
Banheiro pedagógico Toda a comunidade escolar
Nutrição escolar Toda a comunidade escolar
Fonte: Secretaria da EEB Maria Lovatel Pires (2009)
A tabela acima revela outro dado importante no sentido de se perceber o
quanto uma escola pode ser aberta como um espaço, privilegiado e sugestivo, para
a construção e execução de projetos que objetivem contribuir na formação do
educando, do ponto de vista intelectual, social e físico. Há que se considerar, na
tabela em apreço, a grande participação do corpo discente nos referidos projetos28.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível afirmar que os resultados da pesquisa, permitiram uma leitura
satisfatória do que se pretendeu no início dos trabalhos, visto que, através dos
dados coletados, tornou-se perceptível a considerável participação das famílias no
processo pedagógico de que são alvo os alunos da EEB Maria Lovatel Pires. Os
dados pesquisados também permitiriam identificar o fomento de capitais, tidos como
28
A Escola Básica Maria Lovatel Pires possui, aproximadamente, 229 alunos matriculados sendo que, destes, 188 participam dos projetos da escola (dados de 2009).
71
fundamentais, para o desenvolvimento, na medida em que os relatórios revelaram a
importância dada às esferas cívicas, cognitivas e culturais, no dia adia do ambiente
escolar. Como resultado disso, é provável a explicação seja não só a grande
quantidade de projetos sociais, culturais e cognitivos existentes na escola, mas,
também, o reflexo nos bons índices do IDEB.
REFERENCIAS
BIRKNER, Walter Marcos Knaesel. Capital social em Santa Catarina: o caso dos fóruns de desenvolvimento regional. Blumenau: Edifurb, 2006. BOISIER, Sergio. Política económica, organizaçión social y desarrolo regional. ILPES, 1982, Santiago de Chile. ______. El desarrollo territorial a partir de la construcción de capital sinergetico. In: Revista Redes, Santa Cruz do Sul, v. 4 n. 1, p. 61-78, jan./abr. 1999. BUARQUE, Cristovam. Federalizar a educação. Disponível em: <http://www.cristovam.org.br/portal2/index.php>. Acesso em: 15 jun. 2013. CUNHA, Luiz Antonio. Educação e desenvolvimento social no Brasil. 7.ed. Rio de Janeiro. F. Alves, 1980. DALLABRIDA, Valdir Roque. Desenvolvimento Regional: por que algumas regiões se desenvolvem e outras não? 1. ed. – Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. História da educação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MORIN, Edgar. A cabeça benfeita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ______. Os sete saberes necessários para à educação do futuro. 5.ed. São Paulo: Cortez; Brasília DF: UNESCO, 2002.
72
PIOTRY, Kropotkin. O apoio mútuo. Disponível em:<http://www.scribd.com/ doc/19944850/O-Apoio-Mutuo-Piotr-Kropotkin-html>. Acesso em: 04 dez. 2010. ROSTOW, William Wilber. Etapas do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. TORQUATO, Gaudêncio. Escola pública na teia do atraso. O Estado de São Paulo, p. A2, abr. 2008.
73
VARIÁVEIS DA DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA EM SANTA
CATARINA-BR29
Walter Marcos KnaeselBirkner30 Marley VaniceDeschamps31
RESUMO: Este artigo trata de duas variáveis estatísticas relacionadas à descentralização político-administrativa do governo do estado de Santa Catarina. O propósito é testar a capacidade de cumprir dois objetivos específicos propostos por essa política governamental. O primeiro deles é o de favorecer as regiões menos dinâmicas demográfica e economicamente. O segundo é o combate ao processo de “litoralização”, neologismo dado ao processo de evasão demográfica de oeste para o leste do estado, notadamente na década de 1990, mas também na seguinte. A conclusão do artigo aponta para uma materialização parcial desses dois objetivos.
Palavras-chave: Descentralização. Litoralização. SDR.
ABSTRACT: This article deals with two statistical variables related to political and administrative decentralization of the government of Santa Catarina. The purpose is to test the ability to meet two specific objectives proposed by this government policy. The first is to encourage the less dynamic regions demographically and economically. The second is to fight the process of "littoralisation" neologism given the demographic process of evasion from west to east in the state, notably in the 1990s, but also in the following. The conclusion of the article points to a partial realization of these two goals.
Keywords: Decentralization. Littoralisation. SDR.
29
Artigo que analisa resultados parciais obtidos de Pesquisa financiada pela FAPESC – Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Santa Catarina, intitulada Experiências de Descentralização e Reforma da Gestão Pública no Brasil: um estudo comparativo entre os estados de SC, CE, MG, BA, PE e ES.
30Sociólogo, professor da Universidade do Contestado - UnC, pesquisador da FAPESC, do CNPq e do IPEA, e consultor do IPAC/IBAM-SC e do Instituto Véritas de Educação.
31Geógrafa do IPARDES-PR, professora da Universidade do Contestado – UnC e pesquisadora do IPEA.
74
RESUMEN: En este artículo se trata de dos variables estadísticas relacionadas con la descentralización política y administrativa del gobierno de Santa Catarina. El propósito es poner a prueba la capacidad de cumplir con dos objetivos específicos propuestos por esta política del gobierno. El primero es animar a las regiones menos dinámicas demográfica y económica. La segunda es la lucha contra el proceso de "litoralización" neologismo dado el proceso demográfico de la evasión de oeste a este en el estado, sobre todo en la década de 1990, sino también en el siguiente. La conclusión de este artículo apunta a una realización parcial de estos dos objetivos.
Palabras clave: La descentralización. La litoralización. SDR.
INTRODUÇÃO
A fim de situar o leitor iniciante, cabe rápida apresentação da
Descentralização político-administrativa em Santa Catarina. Ela surge em 2003, com
a criação de 29 Secretarias de Desenvolvimento Regional - SDR, por iniciativa do
governo que assumia naquele ano. Com o passar dos anos, atingem o número de
atuais 36 SDR, representando uma política governamental, criada com o propósito
geral de descentralizar o processo administrativo e político decisório do estado
catarinense.
O presente artigo parte de uma sequência de análises publicada a partir do
esforço de autores, cujo objeto tem sido o referido processo de descentralização32.
Em artigo anterior, Birkner e Tomio (2011) apresentavam uma avaliação geral do
processo, além do apontamento de três aspectos gerais, sendo: 1) pontos fortes, 2)
pontos fracos e 3) apresentação de dados estatísticos sobre investimentos
governamentais nas SDR no período de 2003 a 2008. A apresentação dos dois
primeiros aspectos foi o resultado de regularidades identificadas entre as respostas
de centenas de entrevistados e inquiridos, envolvidos com a descentralização
32
Nessa direção, considere-se o extraordinário esforço do geógrafo V. R. DALLABRIDA (2011), reunindo mais de vinte artigos sobre o tema, em que a comparação entre os casos catarinense e gaúcho é feita de maneira esclarecedora, especialmente entre as páginas 370 e 396. Ver também BIRKNER (2008), sobre estudo comparativo entre Minas Gerais, Santa Catarina e Ceará.
75
catarinense (IPAC, 2009)33. O terceiro aspecto se referiu a uma relação entre
investimentos governamentais e densidade demográfica.
No mencionado artigo, a avaliação geral do processo foi considerada positiva
pela maioria dos 432 inquiridos, notadamente pelo caráter inovador e pela
expectativa geral que a descentralização gerou em responder a demandas há muito
expressas pelas comunidades regionais. Em relação aos pontos fortes e fracos, a
descentralização teriamultiplicado o ambiente do diálogo regional, aproximado a
estrutura do governo estadual às regiões, além de ter aumentado a atenção aos
municípios menores. Por outro lado, os principais problemas seriam a falta de maior
autonomia orçamentária e financeira, além da falta de qualificação e capacitação
dos operadores e participantes da descentralização nas SDR e seus conselhos
congêneres. Por último, em relação aos investimentos nas SDR, o artigo demonstra
relação significativa entre aportes financeiros e densidade populacional – ou
eleitoral, se quisermos.
Não obstante, o artigo que apresentamos agora sugere a apreciação de duas
variáveis adicionais. A primeira delas estabelece relação de razoável coerência
entre, de um lado, os investimentos governamentais regionais e, de outro,
evasão/baixo crescimento demográfico. Normalmente esse fator demográfico
encontra-se associado à menor renda per capita e ou IDH_M baixo. Nessa direção,
aparece uma coerência parcial em relação a um dos objetivos da descentralização,
qual seja o de favorecer as regiões com evasão/baixo crescimento e
economicamente menos dinâmicas.
A segunda variável é coadjuvante da primeira. Sugere relação entre maior
investimento per capita e evasão/baixo crescimento. Para tanto, consideramos a
vigência da descentralização no período de 2003 a 2008, e comparamos os
movimentos demográficos das décadas última do século XX e primeira do século
33
A esse respeito, ver IPAC (2009), relatório de pesquisa feita com 432 integrantes das SDR e de seus respectivos Conselhos de Desenvolvimento Regional.
76
XXI. A importância disso está relacionada ao objetivo de combate à “litoralização”,
isto é, à evasão demográfica de oeste para leste, expresso pela política das SDR.
Antes de seguir, é nosso dever fazer uma advertência geral acerca da nossa
pretensão analítica e interpretativa. Ela tem limites, sendo necessário admiti-los, não
por modéstia, mas para escapar da ingenuidade intelectual que sempre nos
ameaça. Nessa direção, lembremos que o tratamento das duas variáveis que
analisamos aqui contém, por sua vez, outras variáveis, algumas das quais são
momentaneamente desconhecidas ou mesmo incomensuráveis. Isso torna a
interpretação imperfeita, não obstante ela mereça consideração ao menos parcial,
na medida em que apresenta dados empíricos e respeito à lógica.
REGIONALIZAÇÃO DOS INVESTIMENTOS E COERÊNCIA COM OS OBJETIVOS
DA DESCENTRALIZAÇÃO
Consideremos, portanto, o primeiro objetivo da descentralização catarinense,
qual seja, o de favorecer os municípios e regiões com negativo ou baixo
desempenho demográfico, condição normalmente combinada com baixos índices de
desenvolvimento, salvo exceções. No relatório produzido em 2009 (IPAC, 2009), um
dos pontos fortes da descentralização teria sido o favorecimento aos municípios
menores, a maioria dos quais caracterizados pela evasão e ou baixo crescimento.
Não obstante, duas considerações são importantes no sentido de justificar a
importância de testar este primeiro objetivo da descentralização catarinense.
Primeiramente, considere-se a “institucionalidade pactuada na Constituição Federal
de 1988, (em que) todos os municípios brasileiros tornaram-se entes federativos
dotados de autonomia política, financeira, administrativa e normativa,
independentemente da população ou qualquer outra característica da
municipalidade” (BIRKNER; TOMIO, 2011, p. 16). Em segundo lugar, trata-se de
lembrar que, “apesar dessa generalizada autonomia, pequenos municípios, devido à
incapacidade de recolher recursos fiscais suficientes e organizar uma governança
77
capacitada, são muitas vezes incapazes de exercer plenamente essa autonomia”
(BIRKNER; TOMIO, 2011, p. 16). Em outras palavras, suas condições de auto-
sustentabilidade e desenvolvimento são em geral insuficientes. No estado de Santa
Catarina, lembremos, 232 dos seus 293 municípios têm menos de 20 mil habitantes,
o que representa 79% deles (IBGE, 2010).
ANÁLISE
Pois bem, é na perspectiva do atendimento a municípios com evasão ou
baixo crescimento demográfico, além de baixos índices de desenvolvimento, que
apresentamos os dois quadros seguintes, a fim de testar a consecução do objetivo
governamental de favorecê-los. O número de 12 para compor o ranking é uma
escolha arbitrária, não obstante coincidindo com um terço do número total de
Secretarias. Nesse sentido, deve o critério ser entendido como o resultado de uma
divisão em três grupos de situação demográfica, considerando (1) um grupo extremo
na condição de evasão ou baixo crescimento, além de (2) um grupo intermediário, e
(3) o terceiro grupo, em situação inversa ao primeiro.
Tabela 1 – A ordem da relação das SDR é apresentada a partir do critério de investimento per capita das doze que mais receberam
SDR INVESTIMENTO TOTAL
PIB PER CAPITA ANO 2003
POSIÇÃO PIB 2003
INVESTIMENTO PER CAPITA [Arredondado]
01-Caçador 508,2 10.447,93 14 4.863,00
02-Maravilha 321,0 10.137,62 16 4.230,00
03-Campos Novos 171,8 10.730,13 13 3.124,00
04-Brusque 578,7 11.295,86 10 2.914,00
05-São Lourenço 161,4 11.986,83 08 2.728,00
06-Seara 132,7 2.718,00
07-Quilombo 59,4 2.647,00
08-Chapecó 565,9 14.118,52 06 2.623,00
09-Curitibanos 172,0 9.309,53 18 2.606,00
10-Ituporanga 169,2 8.589,37 23 2.540,50
11-Itajaí 1.080,0 7.887,36 27 2.515,50
12-Canoinhas 287,5 8.792,03 21 2.274,50
Fonte: Diretoria de Estatística e Cartografia/SPG
78
Tabela 2 – Ranking das doze SDR com os piores desempenhos demográficos e relação com investimento público per capita
SDR Posição em rel. à evasão e baixo
crescimento
Posição investimento per
capita Região do estado
São Lourenço do O 1 5 Oeste
Quilombo 2 7 Oeste
Palmitos 3 20 Oeste
São Miguel do O 4 14 Oeste
Dionísio Cerqueira 5 36 Oeste
Ituporanga 6 10 Centro leste
Maravilha 7 3 Oeste
Itapiranga 8 31 Oeste
Concórdia 9 22 Oeste
Canoinhas 10 12 Norte
Campos Novos 15/3 2 Oeste
Seara 16/3 6 Oeste
COEFICIENTE 13,5
Análise da Tabela 1
Considerando o ranking das doze SDR com maior investimento público per
capita, pode-se observar que sete delas aparecem na tabela 2. São elas as SDR de
Campos Novos, Maravilha, São Lourenço D’oeste, Seara, Quilombo, Ituporanga e
Canoinhas. Nessa direção, é possível identificar a relação entre evasão/baixo
crescimento com investimento governamental per capita maior. Em termos
percentuais, se poderia supor que foi de 60% a proporção do cumprimento dos
objetivos da descentralização. Poderia ser uma mera coincidência, resultante de
inúmeras variáveis, mas o fato é que sete entre as doze mais necessitadas
receberam recursos per capita maiores.
Não obstante, e na esteira da curiosidade, tentamos auferir algum nexo das
condições das outras cinco SDR. Lembremo-nos: são elas, Caçador, Brusque,
Chapecó, Curitibanos e Itajaí, cujas microrregiões não figuram no grupo demográfico
mais problemático. Portanto, essas cinco “privilegiadas” merecem observação mais
79
atenta. Nosso propósito, lembremos, é o de testar a capacidade de materialização
dos objetivos da descentralização.
Assim, vejamos caso a caso, iniciando com a SDR de Caçador, observando
que, com exceção do município homônimo-sede, que eleva o índice demográfico da
região, os outros municípios componentes dessa microrregião apresentam
crescimento populacional baixo ou negativo, normalmente combinado com baixo
IDH_M (IBGE, 2010). Inclusive, esta SDR compreende dois dos municípios com os
piores IDH_M do estado, sendo eles Calmon e Matos Costa (Ib.) Não obstante, na
década seguinte, a microrregião mostrou variação do crescimento populacional
negativa. Por extensão, cabe lembrar que esta SDR está inserida na região histórica
do Contestado. Se esse conjunto de considerações for aceitável, a preferência no
investimento per capita parece justificável. Teríamos então 66% na proporção do
cumprimento dos objetivos, ou seja, dois terços dos casos.
A segunda SDR é Brusque. Esta região não apresenta, de longe, os
problemas do grupo identificado na tabela 2 – ao contrário, estaria no outro extremo.
Mas sua SDR aparece entre as que mais receberam recursos. Não há uma
explicação aparente. Nesse caso, é necessário reconhecer os limites da análise,
tornando a interpretação geral imperfeita. Dentro desses limites, só seria possível
especular, recorrendo a suposições como a força política, a densidade demográfica
e eleitoral, a injeção de recursos em uma grande obra pública aguardada há tempos
e que tenha tido grande impacto quantitativo no montante de investimentos, nesse
período de seis anos. Ou ainda, que o montante de investimentos tivesse sido
composto por recursos emergenciais em resposta a alguma catástrofe, como foi o
caso das microrregiões de Brusque, Blumenau e Itajaí, justamente no último ano do
período analisado. São suposições sujeitas à comprovação, mas cujas informações
não estão, por hora, disponíveis. Neste caso, aparentemente não se reforça a
regularidade que buscamos.
No caso de Curitibanos, uma verificação mais apurada também é necessária.
Sua SDR é a nona colocada em investimento per capita. E, embora não apareça
80
entre as doze com maior evasão ou baixo crescimento na década de 90, o município
homônimo, tomado isoladamente, apresentou decréscimo populacional de 14,62%
nessa mesma década (SANTA CATARINA, 2008). Além disso, os municípios que a
compõe têm baixos índices de desenvolvimento, assim como a microrregião de
Caçador, que é limítrofe. Não obstante, trata-se de uma microrregião do oeste, de
perfil extrativista e madeireiro, portanto, estagnada economicamente e pertencente à
região histórica do Contestado, o que é também o caso de Caçador. Por extensão,
vale dizer que, no seu conjunto, a região do Contestado é reconhecida como a
menos dinâmica do estado e merecedora de atenção especial. Nesse caso, a
preferência no investimento per capita seria novamente justificável e estaríamos
diante de uma proporcionalidade de 75% de justificação aos maiores investimentos
per capita, em consonânciacom os objetivos da descentralização.
O caso da SDR de Chapecó também suscita questionamento. Independente
de a região ter um PIB per Capita alto e crescimento populacional nas duas últimas
décadas é preciso considerar que Chapecó é o maior centro urbano de toda região
oeste catarinense. Isoladamente é um dos municípios que mais cresce no Estado.
Por conta disso, seu capital político pode ter peso proporcional na distribuição dos
recursos estaduais. Além disso, pode haver quesitos estratégicos relacionados ao
desenvolvimento e em benefício do ente federativo como um todo, respaldando
decisões estratégicas fora dos objetivos da descentralização sem, contudo,
comprometê-los. Aliás, essa é também uma variável a ser levada em conta e de
difícil mensuração, tratando-se, se quisermos, de “razões de Estado”.
Não obstante, as mesmas razões de Estado estão sempre e claramente
presentes quando um investimento privado é anunciado e algum benefício
governamental é solicitado como contrapartida. A doação de um terreno, a
construção de um acesso, uma pavimentação ou isenção fiscal são variáveis que
fogem à lógica restrita de uma política de descentralização, quando a decisão final
da localização de um investimento privado cabe diretamente aos investidores,
preferindo ou preterindo uma região ou cidade. O fato é que isso impactará a
81
proporcionalidade da distribuição dos investimentos governamentais, causando
desigualdades que, contudo, não são sinônimos de prejuízo ou desequilíbrio de
forças políticas.
De toda maneira, muitos dos municípios de abrangência da SDR de Chapecó,
todos pequenos, apresentam decréscimo populacional, fato ofuscado pelo vigoroso
crescimento da cidade sede (IBGE, 2010). Novamente, dentro dos limites analíticos,
somos levados a reconhecer que a insuficiência leva a uma interpretação imperfeita,
e a definição sobre a justificação para o maior investimento per capita torna-se,
nestas condições, subjetiva. Na dúvida metódica, excluamos a SDR de Chapecó do
grupo mais problemático, embora reconhecendo os limites tênues que pudessem
justificar a sua inclusão no mesmo grupo, principalmente pelas condições de seus
municípios vizinhos. Se não o fizéssemos, estaríamos com uma proporcionalidade
de 85%.
Restaria o caso da SDR de Itajaí. Sua região também não faz parte do grupo
“problemático” de evasão ou baixo crescimento. Ao contrário, é provavelmente a
região com o maior crescimento demográfico do estado catarinense nos últimos
anos. Some-se a isso que, tomada isoladamente, Itajaí reflete o crescimento
econômico mais vigoroso do estado, principalmente pela sua privilegiada condição
geográfica e portuária. Mais uma vez, estamos diante da interpretação imperfeita,
diante de desconhecidas “razões de Estado”.
De toda maneira, e com toda a vulnerabilidade que lhe for imputável, nossa
análise permite sugerir uma proporcionalidade de pelo menos 75% nocumprimento
do objetivo de favorecer as SDR das regiões demograficamente e ou
economicamente menos dinâmicas. Assim, das doze SDR pertencentes a esse
grupo de regiões, nove delas teriam a sua preferência justificada, em consonância
com os objetivos da descentralização. Se esse resultado for apenas uma
coincidência, fruto da combinação anárquica de fatores aleatórios, terá sido ao
menos uma boa coincidência. Se, por outro lado, o resultado tiver sido
intencionalmente obtido, os operadores da descentralização terão demonstrado
82
razoável eficiência, enquanto o governo, na condição do agente estatal ante
múltiplos interesses da sociedade, terá demonstrado seu papel estratégico e sua
necessária, embora relativa, soberania de propósitos.
Análise da Tabela 2
Em relação à segunda tabela, o quadro analítico permite visualizar a mesma
proporcionalidade inicial encontrada na tabela 1. Assim, das doze SDR com os
maiores índices de evasão ou baixo crescimento demográfico, sete delas aparecem
no grupo de melhor investimento per capita. Resta tentar entender por que as outras
cinco SDR não estão nesse grupo. Tratemos logo dos três primeiros casos. Sãoas
SDR de Dionísio Cerqueira, São Miguel do Oeste e Palmitos. O caso mais extremo e
paradoxal é o da SDR de Dionísio Cerqueira, quinta microrregião com maior índice
de evasão e última em investimento governamental per capita. Não há razão
aparente para essa condição, como também nos escapa alguma hipótese mais
crível. Não é muito diferente o caso da SDR de Palmitos. A região aparece com o
terceiro maior índice de evasão demográfica na década de noventa e é a vigésima
em recebimento de investimento per capita. Também não há explicação ou hipótese
aparente. Por extensão, aparece o caso menos extremo de São Miguel do Oeste,
que apresenta problemas de evasão e tem o 14º índice de investimento
governamental per capita. Não há, portanto, razões aparentes para esta incoerência
em relação aos propósitos da descentralização. Poderíamos apenas lançar
hipóteses frágeis como conflitos e disputas políticas que produzissem
distanciamento entre essas SDR e o governo estadual. Seria, de toda maneira, uma
infeliz coincidência, visto que as três microrregiões formam uma extensão territorial
em que a primeira é vizinha da segunda e esta da terceira, chegando até a fronteira
com a Argentina, onde Dionísio Cerqueira tem um posto alfandegário, fato que
também não parece analiticamente relevante. Do ponto de vista estatístico,
estaríamos inicialmente diante da mesma proporcionalidade no atendimento às
83
microrregiões menos dinâmicas, ou seja, 60% das regiões demograficamente menos
dinâmicas tiveram maior investimento per capita.
Restariam ainda dois casos a serem interpretados. São os casos de
Concórdia e Itapiranga, que figuram entre as microrregiões de baixo crescimento
demográfico na década de noventa e não estão entre as primeiras doze em
investimento per capita. Aqui aparece novamente o encontro entre baixo
crescimento demográfico com alto PIB per capita e alto IDH_M. Como não temos
informações sobre a média do IDH_M regional, consideremos os municípios sede.
No caso de Concórdia, seu IDH é alto (0,840) e seu PIB per capita é simplesmente o
primeiro do estado. O caso de Itapiranga vai na mesma direção. Seu IDH é alto
(0,832) e, embora não conste o PIB per capita, é preciso dizer que a sua
microrregião compõe o menor índice de analfabetismo no Brasil (INEP, 2010). A
falta de mais dados não deve nos impedir de reconhecer que não se trata, nem
longinquamente, de uma microrregião pobre, seja pela quase inexistência de
analfabetismo, pelo baixo índice de desemprego (IBGE, 2010), seja por outras
razões que ficam evidentes em visita in loco. Nos dois casos, de todo modo, houve
retomada do crescimento demográfico na década seguinte, como em quase todas
as regiões catarinenses. Nessa direção, se a tabela 2 fosse reorganizada para
mostrar o ranking de PIB per capita e IDH_M, seguramente Concórdia ficaria em
primeiro lugar e provavelmente Itapiranga ficaria em segundo. Até mesmo numa lista
geral, as duas estariam muito bem colocadas. Portanto, essa composição PIB per
capita e IDH altos poderia muito bem justificar a ausência dessas duas SDR entre as
doze primeiras da tabela 1, que se refere a investimento per capita.
Enfim, analisadas as tabelas 1 e 2, podemos afirmar que na maioria dos
casos percebe-se uma combinação de evasão ou baixo crescimento, somados a
índices de desenvolvimento baixo, com maior proporcionalidade de investimento
governamental per capita. Assim, os objetivos específicos de priorizar municípios
que combinam problemas demográficos com baixos índices de desenvolvimento, e
combater a “litoralização”, estariam razoavelmente contemplados. Desse modo,
84
nossa análise da tabela 1sugere uma proporcionalidade de 75% no atendimento do
primeiro objetivo. Para chegar a esse percentual, lembremos, inserimos
arbitrariamente as SDR de Caçador e Curitibanos, limítrofes entre si, na condição
das mais necessitadas. É um critério naturalmente questionável, contudo coerente.
Primeiramente, porque essas microrregiões, sendo do oeste do estado,
apresentaram perda no crescimento e na variação populacional na segunda década
analisada. Em segundo, fazem parte da problemática região histórica do
Contestado. Para melhor ideia, pelos baixos índices de desenvolvimento, o
Contestado é a única região catarinense contemplada no Programa Territórios da
Cidadania, do governo federal.
O fato é que, no geral, a maioria das regiões mais necessitadas segundo o
critério de evasão/baixo crescimento/PIB per capita/IDH_M baixos foi priorizada em
termos de investimento per capita. Não se pode dizer que regiões ricas ou fortes
politicamente como Florianópolis, Joinvile, Jaraguá do Sul, Videira, Joaçaba, Timbó,
Criciúma e Tubarão tenham sido privilegiadas, porque os números não mostram
isso. Se for mero resultado do acaso, não terá qualquer valor interpretativo para o
processo de descentralização. Mas se isso for o resultado de decisão governamental
no sentido do cumprimento dos desígnios do processo, então terá boa utilidade na
análise dessa política governamental.
Análise das tabelas 3 e 4, complementar à tabela 1:
Testemos agora o segundo objetivo, cuja análise nos sugere a segunda
variável interpretativa. Lembremos que o segundo objetivo aqui considerado é o de
combate ao fenômeno da “litoralização”. Comparamos aqui as tabelas 3 e 4.
85
Tabela 3 – Representativa da Variação Populacional das SDR’s Litorâneas
SDR Litorâneas Censo
1991 Total
Censo 2000 Total
Variação 2000/1991(%)
Contagem 2007
Estimativa 2008
Variação 2008/2000
(%)
SDR-Araranguá 138.569 160.349 15,7 168.498 174.574 8,9
SDR-Criciúma 298.470 344.778 15,5 371.972 381.154 10,6
SDR-Tubarão 133.024 152.208 14,4 160.527 165.882 9,0
SDR-Braço do Norte 43.478 55.680 28,1 61.032 63.483 14,0
SDR-Laguna 106.683 115.760 8,5 121.314 125.478 8,4
SDR-Grande Florianópolis 546185 724.272 32,6 830.011 848.305 17,1
SDR-Brusque 125.650 153.149 21,9 189.080 198.602 29,7
SDR-Blumenau 266.410 330.349 24,0 370.661 377.213 14,2
SDR-Itajaí 270.203 394.137 45,9 478.277 501.958 27,4
SDR-Jaraguá do Sul 122.772 167.503 36,4 199.216 208.754 24,6
SDR-Joinville 418751 530.503 26,7 599.148 609.694 14,9
Fonte: Secretaria de estatística e cartografia as SPG/SC
Tabela 4 – Representativa da Variação Populacional das SDR’s – Interior
SDR's - Interior do Estado Censo
1991 Total
Censo 2000 Total
Variação 2000/1991
(%)
Contagem 2007
Estimativa 2008
Variação 2008/2000
(%)
SDR-São Lourenço d'Oeste 56.522 45.084 -20,2 45.052 46.442 3,0
SDR-Quilombo 26.596 22.744 -14,5 21.875 22.444 -1,3
SDR-Palmitos 71.062 63.479 -10,7 65.372 67.586 6,5
SDR-São Miguel d'Oeste 71.704 65.170 -9,1 65.083 67.074 2,9
SDR-Dionísio Cerqueira 54.625 50.576 -7,4 50.346 51.854 2,5
SDR-Ituporanga 64.251 61.483 -4,3 62.931 65.020 5,8
SDR-Maravilha 68796 69.484 1,0 73.228 75.881 9,2
SDR-Itapiranga 34.619 35.029 1,2 36.436 37.707 7,6
SDR-Concórdia 86.597 89.939 3,9 92.559 95.686 6,4
SDR-Canoinhas 117.983 122.794 4,1 126.403 130.656 6,4
SDR-São Joaquim 47.681 50.075 5,0 51.903 53.697 7,2
SDR-Ibirama 60.741 64.014 5,4 69.351 72.057 12,6
SDR-Lages 223.082 237.201 6,3 239.443 247.041 4,1
SDR-Xanxerê 123.218 133.483 8,3 137.583 142.254 6,6
SDR-Seara 44.011 47.953 9,0 47.410 48.820 1,8
SDR-Campos Novos 49513 54.071 9,2 53.597 55.070 1,8
SDR-Rio do Sul 76.313 84.491 10,7 92.463 96.163 13,8
SDR-Joaçaba 105031 116.411 10,8 113.489 116.771 0,3
SDR-Mafra 186.976 208.976 11,8 222.111 230.351 10,2
SDR-Curitibanos 54845 61.559 12,2 63.809 66.012 7,2
SDR-Videira 83.623 95.973 14,8 100.936 104.572 9,0
SDR-Taió 44.850 53.738 19,8 55.605 57.514 7,0
SDR-Timbó 89.521 107.958 20,6 121.366 126.523 17,2
SDR-Caçador 79.196 96.205 21,5 100.914 104.523 8,6
SDR-Chapecó 150443 189.782 26,1 207.486 215.772 13,7
Fonte: Secretaria de estatística e cartografia as SPG/SC
86
Análise
A comparação entre as tabelas acima mostra, respectivamente, as
movimentações demográficas das regiões litorâneas e do interior nas décadas de
noventa e seguinte. A percepção mais imediata nessa comparação nos revela
primeiramente que houve um significativo movimento de “litoralização” na década de
noventa. É notável o enfraquecimento demográfico do interior, notadamente das
regiões mais a oeste do estado, enquanto as regiões litorâneas cresceram
significativamente. Na sequência, é possível perceber que esse processo foi
significativamente reduzido na década seguinte. Repare-se que na tabela 3, das
onze SDR litorâneas, somente uma demonstrou crescimento na variação
populacional da década de noventa para a seguinte. Já na tabela 4, relativa às SDR
do interior do estado, o que se percebe é que das 25 microrregiões, mais da metade
registrou crescimento na variação populacional em relação à década anterior. Nessa
perspectiva, é possível observar que a “litoralização” desenfreada da década de
noventa se conteve na década seguinte, ou foi contida.
A segunda variável, portanto, sugere uma relação hipotética entre a vigência
da política de descentralização e o estancamento do processo de “litoralização”. Os
agentes governamentais perceberam essa relação e, a partir do ano de 2009, o
governo tratou de demonstrá-la como resultado das ações coordenadas do processo
de descentralização. Isto é, associou o estancamento da “litoralização” diretamente
à política de descentralização do governo. Através das reuniões dos Conselhos de
Desenvolvimento Regional – CDR, vinculados a cada SDR, o governo tratou de
demonstrar a sociedade os investimentos anualmente realizados e vinculá-los ao
crescimento econômico regionalmente mais equilibrado. Às regiões com evasão ou
baixo crescimento na década de noventa, tratou de vincular os investimentos como
fator causal do processo de estancamento da “litoralização”.
Todavia, conquanto o governo tenha sido enfático e categórico em apresentar
essa relação como prova de eficiência do processo de descentralização, trata-se de
87
uma hipótese muito difícil de ser comprovada, dado o grau de complexidade que
uma demonstração mais ampla e rigorosa requereria. Mais crível é que
provavelmente a política de descentralização tem apenas uma parcela de
responsabilidade sobre isso e talvez menor do que um conjunto de outras variáveis.
A principal variável, igualmente de dificílima mensuração, pode simplesmente ter
sido o crescimento econômico brasileiro no período, associado a políticas públicas
que aumentaram durante esse mesmo período, inclusive com a significativa política
de transferência de rendas da União. Estudos econômicos sobre os impactos
regionais dessa variável também não parecem à disposição. Nesse sentido, é de
difícil comprovação mais criteriosa essa relação sugerida de maneira publicitária
pelo governo, para atestar sua eficiência.
Seja como for, independente das dificuldades de mensurar o impacto que a
descentralização teve no combate à “litoralização”, é possível perceber que, por
coincidência ou intenção, os investimentos per capita favoreceram as regiões nas
quais o efeito da evasão ou baixo crescimento esteve presente. Nesse sentido, vale
uma observação adicional sobre a tabela 1. Das doze SDR com maior investimento
governamental per capita, oito estão no oeste catarinense; uma está no planalto
norte catarinense e faz divisa com o oeste, fazendo parte inclusive da região
histórica do Contestado; e a décima fica localizada no centro do mapa catarinense.
Essas dez microrregiões têm dois aspectos correspondentes entre si, além de oito
serem da região oeste, onde o efeito da “litoralização” foi mais drástico. O primeiro é
que todas têm base econômica significativamente apoiada na agricultura ou no
extrativismo, em menor proporção. O segundo aspecto que une as dez é que todas
apresentam problemas de variação demográfica ora negativos ora de baixo
crescimento na década de noventa, quando não decresceram. A exceção é a SDR
de Chapecó, pelo vigor da cidade sede, mas em detrimento de cidades do entorno.
Portanto, reafirma-se a regularidade no sentido de priorizar investimentos em
microrregiões que sofreram com o processo de “litoralização”. Se considerarmos
simplesmente que oito SDR são do Oeste, uma é de região limítrofe e faz parte do
88
Contestado (caso da SDR de Canoinhas) e que a SDR de Ituporanga teve
significativa evasão na década de noventa, poderíamos admitir que houve uma
proporcionalidade de investimentos relacionados diretamente ao combate à
“litoralização” da ordem de 85%.
CONCLUSÃO
A quantidade de variáveis explicativas para uma distribuição do investimento
público torna difícil a sua verificação. Seria desejável utilizar um IDH regional, como
melhor critério de análise, o que também vale para a relação PIB per capita, dados
não diretamente disponíveis. Há de se considerar ainda que certos investimentos
públicos podem tornar desproporcional o investimento per capita realizado num
período curto como o que se tem à disposição para a nossa análise. Para melhor
compreensão, é necessário admitir que entre os critérios de distribuição dos
recursos públicos se inserem variáveis como o jogo de forças políticas, fatores
emergenciais, a densidade eleitoral de cada região, uma representação parlamentar
que pode unir ou dividir certas microrregiões em desacordo com a divisão
geopolítica das SDR, entre outros fatores.
Não obstante, ao verificar as tabelas contidas neste artigo, podemos inferir
uma relação parcial e potencial entre investimento público per capita e evasão
demográfica ou baixo crescimento populacional, frequentemente somados a IDH_M
e renda per capita menor. A constatação deste problema real na década de noventa
no estado de Santa Catarina fez surgir o neologismo “litoralização”. O que, não
obstante, constatamos foi o recuo do problema na década subsequente, tendo sido
exatamente essa correlação que o governo estadual associou ao processo de
descentralização, sugerindo uma relação direta e intencional a fim de justificar sua
política.
Críticos ao processo de descentralização em Santa Catarina não tem faltado.
E a maior parte das críticas não é desprovida de sentido. O que varia é a disposição
89
dos analistas em compreender o sentido histórico e inovador desse processo,
faltando por vezes a compreensão sobre o tempo de amadurecimento de um
processo que esbarra em resistências conservadoras. Alguns são os que
desacreditam o processo pela “falta de participação social”, o que é polêmico e
discutível, na medida em que a ampla participação social não garante eficiência. Na
mesma direção, há os que denunciam o caráter demagógico-eleitoreiro, além do
aspecto meramente fisiológico da descentralização catarinense. Essas críticas, entre
outras que existem, merecem atenção e logo serão motivo de novas análises. Na
mesma importância estão as críticas quanto à incapacidade de a descentralização
atacar as desigualdades regionais. Nesse aspecto em particular, sobre o qual nos
deteremos em futuro breve, cremos que a análise aqui feita sugere um contraponto.
E o faz na medida em que pudemos verificar, e demonstrar estatisticamente, alguma
coerência entre o objetivo geral de atacar os desequilíbrios inter-regionais através de
investimentos públicos per capita mais altos em regiões menos dinâmicas. O desafio
é tornar a análise mais complexa, munidos de dados, para verificar se estamos
tratando de uma relação evidente, ou o acaso gerou apenas uma correlação
formidável.
REFERÊNCIAS
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90
______. Gestão territorial e desenvolvimento: descentralização, estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimento, capacidades estatais e escalar espaciais da ação política. In: ______. Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político administrativa.... Rio: Garamond, 2011. FILLIPPIM, E.; HACK, K. M.; ROSSETTO, A. M. Participação cívica no processo de descentralização do desenvolvimento regional: a atuação dos CDR em SC. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo demográfico, 2010. Brasília, IBGE, 2010. INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISA EDUCACIONAL ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Censo escolar. Brasília: INEP, 2010. INSTITUTO DE PESQUISA, ASSESSORIA E CONSULTORIA DE BLUMENAU (IPAC). Avaliação do desempenho institucional das SDR. Canoinhas, Universidade do Contestado, 2009. ROVER, Oscar J.; MUSSOI, Eros Marion. A reinvenção da relação estado–sociedade através da gestão pública descentralizada: uma análise da descentralização política em Santa Catarina, Brasil. In: DALLABRIDA. Valdir Roque (Org.) Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político administrativa.... Rio: Garamond, 2011. SANTA CATARINA. Governo do Estado. Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de SC. Diretoria de Estatística e Cartografia/SPG, Florianópolis, 2008. SIEBERT, Claudia. Desenvolvimento regional em Santa Catarina: reflexões, tendências e perspectivas. Blumenau, Furb, 2001.
91
O DIREITO À ACESSIBILIDADE: UM DIREITO POSTULADO NA CARTA MAGNA
BRASILEIRA
Terezinha de Fátima Juraczky Scziminski34 Sandro Luiz Bazzanella35
RESUMO: Este artigo propõe refletir a questão do excesso de regulação do Estado e a não efetivação dessa regulação em relação aos direitos humanos, mais especificamente, sobre a acessibilidade das pessoas que possuem algum tipo de limitação. Neste debate é preciso reconhecer que acessibilidade não significa apenas permitir que pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida participem de atividades que incluem o uso de produtos, serviços e informação, mas a inclusão e extensão do uso destes por todas as minorias presentes em uma determinada população visando sua adaptação e locomoção eliminando as barreiras que impedem a realização de sua cidadania e dando a condição de acesso a qualidade de vida.
Palavras-Chave: Acessibilidade. Direitos Humanos. Inaplicabilidade.
ABSTRACT: This article proposes to reflect the issue of excessive state regulation and not that effective regulation in relation to human rights, more specifically, on the accessibility of people who have some sort of limitation. In this debate it is necessary to recognize that accessibility means not only allow people with disabilities or reduced mobility to participate in activities that include the use of products, services and information, but the inclusion and extent of their use by all minorities in a given population aimed at adapting and locomotion eliminating the barriers that impede the realization of their citizenship and giving access condition the quality of life.
Keywords: Accessibility. Human Rights. Not applicable.
34
Pedagoga, Bacharel em Direito e Acadêmica do curso de Ciência da Religião – Universidade do Contestado – UnC, Canoinhas E-mail: [email protected] fone: 47 99352923
35Filósofo. Coordenador do Curso de Ciências Sociais e docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Email: [email protected]
92
INTRODUÇÃO
Desde a Antiguidade clássica, filósofos e juristas têm se dedicado a uma
reflexão profunda sobre Direitos Humanos. Aristóteles na Grécia Antrina por volta de
375 a.C enfatizava que os princípios de equidade são permanentes e imutáveis, em
relação a espécie humana.
Portanto, desde os primórdios já se observava manifestações de
desqualificação da vida que se manifesta num ciclo perverso, desdobrando-se em
relações sociais, jurídicas e políticas marcadas pela fragilidade quando trata dos
sujeitos de direitos, em âmbito individual e coletivo. Portanto, há um longo tempo
que se registra a sutil consciência de nossa civilização de que os princípios que
regem a humanidade transcendem fronteiras e limitações tanto espaciais como
temporais, de modo que puderam também ser interpretadas pelos juristas e filósofos
dos séculos XVII e XVIII como a expressão de direitos naturais universais, condição
à própria natureza humana.
Os direitos naturais e universais, são protegidos no artigo 3º da Constituição
Federativa do Brasil de 1988, quando elege como objetivos fundamentais a
erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e
regionais, e a supressão de todas as formas de desigualdade. Neste contexto,
intrinsecamente estão incluídos os direitos das minorias, como as pessoas com
necessidades especiais, sejam elas deficientes, idosos, gestantes ou crianças.
O reconhecimento de direitos humanos, bem como a positivação dos direitos
fundamentais foi possível através do desenvolvimento de uma consciência histórica.
Ou seja, os direitos não surgiram todos de uma vez, mas foram sendo descobertos,
declarados e afirmados em determinados contexto sociais, políticos, culturais e
econômicos favoráveis a tal avanço. E issoconforme as próprias transformações da
dinâmica civilizatória no transcurso do tempo histórico.
O jurista Antônio Carlos Wolkmer (2003, p. 25) argumenta que o modelo
clássico jurídico, liberal e individualista que se apresenta em nossos dias tem sido
93
pouco eficaz para recepcionar e instrumentalizar as demandas sociais, portadoras
de “novos” direitos referentes a dimensões individuais e coletivas.
Os chamados novos direitos objetivam assegurar a todos garantias antes não
reconhecidas, dentro da indispensável convivência social, necessárias à
sobrevivência da sociedade organizada. Como os direitos referentes à dimensão
individual que são os direitos fundamentais da pessoa humana, aqueles direitos que
reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos
indivíduos diante dos demais membros da sociedade. E na dimensão dos direitos
coletivos podemos citar o Direito do Consumidor que diz respeito à coletividade
atinge um campo específico e com princípios próprios decorreu de promulgação de
mandamento constitucional.
Como bem argumenta o autor acima, o modelo que aí se encontra tem sido
pouco eficaz, se instrumentaliza através de legislação, mas não se efetiva na
prática. Ou seja, não se respeita o cumprimento da lei pela grande maioria da
população, nem mesmo pelo poder público, que no cuidado com a cidade, ou na
execução de obras públicas desconsidera não raras vezes os grupos minoritários
com deficiências, idosos e demais pessoas, com algum tipo de limitação, seja
permanente ou temporário e que necessitam de acessibilidade. Com o passar dos
tempos foi se construindo, positivando, judicializando uma infinidade de leis e
legislações, cuja pretensão é proteger esses grupos vulneráveis que enfrentam
limitações de acessibilidade e por conseqüência todo tipo de desigualdades.
Se observarmos com atenção, constaremos que é regulado especificamente
nas legislações o acesso igualitário a serviços de saúde, emprego, educação, e/ou
participação política. Devido à sua condição de deficiência, existem legislações
específicas, regulatórias dos direitos, protegendo os cidadãos que estão sujeitos a
violações da sua dignidade e que de certa forma não se apresenta cotidianamente
na realidade.
Diante deste quadro, o atual movimento de inclusão das minorias, no que
concerne à acessibilidade, implica em uma visão ampla, isto é, cultural, política,
94
econômica e social, a qual procura demonstrar de forma inequívoca, que sem a
inclusão das minorias e de grupos vulneráveis não há que se falar em continuidade
de uma ordem constitucional justa, muito menos em dignidade da pessoa humana,
fundamento da Constituição da República Federativa do Brasil.
LEGISLAÇÃO: ACESSIBILIDADE
Sob tais pressupostos e perspectivas, para garantir os direitos de
acessibilidade foram criadas leis, decretos, portarias e, ainda, as Convenções
Nacionais e Internacionais. Toda esta legislação tem por objetivo garantir a
igualdade e a justiça, regulando as atividades da vida cotidiana no sentido de facilitar
e permitir que portadores das diversas deficiências sintam-se incluídos neste modelo
de sociedade em que estamos circunscritos na contemporaneidade.
Após a entrada em vigor da Convenção sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência das Nações Unidas (CDPD) (2009), a deficiência é cada vez mais
considerada uma questão de direitos humanos, e o reconhecimento cada vez mais
evidente de que pessoas com deficiência experimentam piores resultados
socioeconômicos e pobreza do que as pessoas não deficientes36.
A afirmação de direitos aos portadores de algum tipo de deficiência física é
um processo em contínuo movimento, pois à medida que a humanidade avança,
outros direitos devem ser garantidos e outras tantas violações desses direitos
precisam ser coibidas. Nesse contexto, ressalta Bobbio (1992, p. 05)
Do ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos emcertas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.
36
Relatório Mundial sobre as deficiências.
95
Ao longo do tempo, como argumenta Bobbio, a sociedade começou a
perceber a necessidade de proteção de alguns direitos inerentes aos seres
humanos, compreendendo que sem a proteção destes direitos, jamais haveria uma
sociedade, justa, que pudesse perdurar ao longo dos anos. A partir daí procurou-se
judicializar os direitos à acessibilidade, garantindo no “papel” em lei, a mais ampla e
irrestrita imposição de direitos.
Nesse raciocínio, pode-se citar o Decreto 5296/2004 que regulamenta as Leis
10.048, de 8 de novembro de 2000, e dá prioridade ao atendimento às pessoas
especificadas na Lei nº 10.098 , de 19 de dezembro de 2000, quegarante
aacessibilidade,descrevendo e relacionando as condição para utilização, com
segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos
urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e
meios de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com
mobilidade reduzida.
O que se vê na atualidade, são rampas construídas precariamente nos locais
públicos atendendo a obrigatoriedade física que uma legislação propõe, sem o
devido reconhecimento da sociedade, ou a sensibilidade de um olhar solidário para
as pessoas com necessidades especiais. Mas, também se veem ações propositivas
nesta direção, a construções de novos prédios com a acessibilidade, os meios de
transporte públicos, especialistas na área educacional, saúde, cultura, esporte, lazer,
entre outros.
O que a sociedade deveria já ter reconhecido, é que os bens culturais
construídos historicamente pela humanidade ao longo de séculos e milênios devem
estar a disposição sem exceção da possibilidade das pessoasusufruírem de tais
bens, e pelo uso da razão fazer valer o direito e a justiça, sem ter que o Estado
regular essas situações mais ínfimas da cotidianidade, em que se move a vida de
milhões de seres humanos.
Conforme comenta o advogado e membro do Movimento Nacional de Direitos
Humanos e, também conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
96
Adolescente (Conanda), Ariel de Castro Alves, a inclusão ainda é um grande desafio
no Brasil, que enfrenta a falta de programas, de tratamento especializado e políticas
públicas para o setor. Existem instituições que visam pura e simplesmente o
acolhimento das crianças com deficiência, mas existem poucas instituições e
serviços que trabalhem para a inclusão e desenvolvimento da autonomia dessas
crianças.
DISCUSSÃO FILOSÓFICA
Nessa perspectiva, o filosofo italiano, Giorgio Agamben (2009), argumenta
que de certa forma a máquina judiciária conduz toda esfera da vida humana, em leis
ou regras, isto é, regula todos os detalhes das relações, sejam elas pessoais ou de
ordem societária, e com isso, produz diariamente leis, num processo vertiginoso de
criação leis, muitas vezes sem a devida efetividade, multiplicando os mecanismos de
controle e vigilância sobre os indivíduos, retirando-lhes a capacidade de alcançarem
consenso pelo uso da capacidade ético-comunicativa.
Isso não significa se contrapor às leis, mas conforme Agamben, reconhecer
os limites do Estado Democrático de Direito. Tal percepção implica em reconhecer
que o excesso de leis também permite de certa forma um estado de exceção. Ou
seja, de existência do ordenamento jurídico, mas de seu descumprimento por parte
dos cidadãos e do próprio Estado.
Para o professor e filósofo Dr. Sandro Luiz Bazzanella (2011) o enfrentamento
da dessacralização da lei, do direito, da justiça que constituem as estruturas
políticas, administrativas e jurídicas que controlam, normatizam nossas vidas na
cotidianidade é contraditória a ordem. Os seres humanos ao exigirem as garantias
de segurança, abrem mão de suas liberdades, tornando-se objeto dos mais variados
dispositivos societários e, sobretudo, da ambiguidade constitutiva da lei e da justiça.
Sustenta ainda o filósofo Giorgio Agamben, não é uma reforma no judiciário,
nem a reforma do modelo de Estado que vai resolver este paradoxo do estado de
97
exceção, isso tudo já foi tentado no Ocidente e resultou nos Campos de
Concentração. Sob tal perspectiva o que nos foi possível reconhecer é que quanto
maior a quantidade de regulação, determinando as relações humanas, mais são
criadas contradições e paradoxos. Ainda nesta direção, argumenta o filósofo italiano
que é necessário o “reconhecimento de um direito que vem”.
É possível perceber a contradição nas formalidades das leis, descrita ou
refletida pelo filósofo. Tal contradição se deve pela quantidade de leis que regulam a
vida dos cidadãos, e no caso coloca em jogo neste estudo, o direito das pessoas
consideradas com necessidades especiais é quase impossível aos cidadãos
fazerem valer seus direitos, seja por falta de conhecimento, seja pela quantidade, ou
até mesmo pela falta de liberdade de resolver os próprios problemas. Podemos citar
a legislação que determinou que os governos municipais, estaduais e federal
assumissem o compromisso de finalizar em 2009 os projetos de adaptações dos
espaços públicos para atender a demanda requerente, conforme a legislação
vigente, mas o que se observa na prática é um desrespeito com esse grupo de
pessoas que necessitam de acessibilidade.
CONSIDERAÇÕES
A questão fundamental quando se trata da igualdade é a emancipação da
cidadania, o reconhecimento é peça fundamental para que a igualdade garantida
pela Constituição não seja apenas formal, mas real e efetiva. Ou seja, por mais que
haja um ordenamento jurídico que garanta os direitos dos indivíduos e dos cidadãos,
esse ordenamento não confere a garantia de sua efetivação.
A garantia da efetivação do direito, passa pela compreensão da sociedade,
pelo uso da razão, pelo saber, pela educação e não simplesmente pelo
reconhecimento de que existe uma lei. Quer dizer, uma lei não é um fim em si
mesma, mas emanação de demandas sociais circunscritas em determinado contexto
e, como tal é o meio para alcance e afirmação da cidadania, dos direitos civis e
98
políticos que podem permitir ao cidadão a participação no seio de sua comunidade
política.
Uma proposta sugestiva seria o diálogo entre os pares, na comunidade, na
sociedade, em que se reconheça o humano e suas necessidades, principalmente
quando se trata das minorias, como é o caso da acessibilidade onde todos possam
usufruir com dignidade, de todos os bens, sejam eles de ordem educacional,
cultural, social, política e/ou econômica, fundada no reconhecimento, pautada nas
exigências de uma sociedade que clama por tal proteção, sem a necessidade da
intervenção do Estado.
O professor e filósofo Dr. Sandro Luiz Bazzanella37 destaca que o ser
humano, na medida em que se percebe como um ser em si mesmo, integrante de
um cosmos, de uma ordem que ultrapassa em suas limitadas condições, posiciona-
se na perspectiva de conferir um sentido à existência, uma finalidade que, se não o
acomoda definitivamente em suas dúvidas mais atrozes e dilacerantes, pelo menos
justifica parte de seus esforços em manter-se vivo, interagir com outros seres
humanos na busca do bem viver.
Nessa perspectiva, a dimensão política passa a justificar-se no cuidado com a
vida do indivíduo, no reconhecimento do cuidado com a espécie humana. Sendo
assim, os direitos humanos deveriam consensualmente estar acima dos direitos do
Estado. Seria de certa forma uma maneira de não regular tudo pelo Estado a partir
de sua máquina jurídica. Ou seja, como no dizer de Agamben, não precisamos de
alguém que dite, não é necessário um líder, isso já foi feito pelo Ocidente e o
resultado é esse que estamos vendo, uma estrutura jurídica operando no vazio da
exceção. Por isso Agamben sugere que um direito que vem – vem da dimensão da
capacidade dos seres humanos de dialogar entre si, de resolverem na cotidianidade
de suas vidas os problemas, as diferenças, sem a necessidade de regulamentar
todas as esferas da vida humana.
37
Congresso Internacional Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades. Dr Sandro Luiz Bazzanella. Niteroi RJ: Aninter –SH/ PPGSD, 03 a 06 de setembro de 2012, ISSN 2316- 266X.
99
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2012. BAZZANELLA, Sandro Luiz; ASSMANN Selvino Jose. A vida como potência a partir de Nitzsche e Agamben. São Paulo: LiberArs, 2013. BOBBIO, Norberto. Teoria política e direitos humanos. Revista de Filosofia, v. 19, n. 25, p. 361-372, jul./dez. 2007. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: jul. 2013. WOLKMER, Carlos Antonio; LEITE, José Rubens Morato. Os “Novos” direitos no Brasil. UFSC, 2009.
100
FATORES INTERNOS E EXTERNOS NA EVASÃO ESCOLAR NO ENSINO MÉDIO
NOTURNO DO BRASIL
Sônia Maria Federovicz38 Yasushi Yamasaki39
Josiane Liebl Miranda40 Argos Gumbowsky41
Luis Paulo Gomes Mascarenhas42
RESUMO: O presente estudo investigou os fatores internos e externos da evasão escolar do ensino médio noturno no Brasil. Para isso, realizou-se revisão bibliográfica de publicações nacionais nas bases de dados SciELO e Google Acadêmico. Ao analisar os artigos, das mais diferentes regiões brasileiras, foram evidenciados os mesmos fatores internos e externos, bem como, que a evasão escolar é decorrente dos fatores econômicos, políticos, culturais e sociais e geram na sociedade atual amplas desigualdades e exclusões.
Palavras chave: Evasão escolar. Ensino médio. Ensino noturno.
38
Mestranda em Desenvolvimento Regional, da Universidade do Contestado. Bolsista FUMDES, Graduada em Geografia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, Especialista em Fundamentos da Educação e Metodologia nas Séries Iniciais e Administração e Supervisão Escolar pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, Estatutária da Prefeitura Municipal de União da Vitória. E-mail: [email protected]. Telefone (42) 3523 1152.
39Mestrando em Desenvolvimento Regional, da Universidade do Contestado. Licenciado em Artes Visuais Universidade do Contestado UnC. Licenciado em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Especialista em Arte Educação pela Faculdades Integradas Jacarepaguá. E-mail: [email protected].
40Mestranda em Desenvolvimento Regional, da Universidade do Contestado. Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Santa Catarina, Especialista em Planejamento Estratégico e Gestão de Pessoas pela Universidade do Contestado (UnC/Mafra) e em Gestão de Bibliotecas Escolares na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]
41Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (2003), Professor titular da Universidade do Contestado. E-mail: [email protected]
42Doutor em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal do Paraná, Professor titular da Universidade do Contestado Campus Canoinhas. E-mail: [email protected]
101
ABSTRACT: The present study investigated the internal and external factors of truancy school night in Brazil. For this, we carried out a literature review of publications in national databases SciELO and Google Scholar. When review in articles, from different Brazilian regions, were shown the same internal and external factors as well, that the dropout is due to the economic, political, cultural and socialgeneratelargeinequalitiesin our societyand exclusions.
Key words: School evasion. Secondary school. Night school
INTRODUÇÃO
As políticas públicas educacionais brasileiras vêmhá algum tempo
apresentado o discurso de que houve a democratização do ensino público, ofertando
vagas para todos. No entanto, a problematização da evasão escolar é grande e
afeta todas as modalidades de ensino, principalmente nas regiões de maior
concentração de pobreza e desigualdade social, como no Norte e Nordeste.
Os dados disponíveis no censo escolar do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Anísio Teixeira (INEP/MEC), trazem informações generalizadas sobre os
números da evasão escolar no ensino médio, portanto não esclarece, qual é a taxa
efetiva da evasão escolar no ensino médio noturno. Os artigos pesquisados
confirmam através de trabalhos publicados, o expressivo número de alunos
evadidos do ensino médio noturno.
Desconsidera-se muitas vezes o contexto social e as oportunidades
desiguais, este estudo teve como objetivo mapear as situações que levam à evasão
escolar, que segundo Sousa et al. (2009, p 27):
[...] os estudos que analisam a evasão escolar apontam duas diferentes abordagens, a primeira das quais explica a situação com base nos fatores externos à escola, enquanto, a segunda se pauta nos fatores internos da instituição escolar [...].
102
O estudo focando os fatores externos e internos torna mais fácil identificar as
principais consequências que levam o aluno do ensino médio noturno a evasão
escolar. Os autores pesquisadosabordam em seus estudos como argumento inicial
que, embora os cursos diurnos e noturnos tenham características pedagógicas
diferentes, eles possuem a proposta curricular organizada e efetivada como se
fossem idênticos. Isto induz a uma profunda reflexão: O ensino médio noturno deve
ser oferecido de forma similar ou idêntica ao ensino diurno? Ou devem-se levar em
consideração as particularidades de sua clientela e seus interesses?
Compreende-se que mapear os fatores internos e externos que levam o aluno
do ensino médio à evasão escolar, é extremamente importante para que seja
possível conhecer o objeto de estudo dentro sua realidade. É imprescindível
adentrar a essa realidade, aprender a vê-la, reconhecê-la como fator historicamente
determinado, e assim, tentar então compreender e dar sentido à realidade social
pesquisada.
Alguns estudos identificam um perfil diferenciado dos alunos do ensino médio
noturno, conforme podemos perceber no estudo realizado por Gonçalves etal. (2003,
p.7):
Observamos que 74% dos alunos afirmaram que estão em busca do que possibilitará oportunidades individuais, coletivas e profissionais. O aluno mudou, se antes ele queria apenas um diploma, hoje, ele quer o conhecimento que lhes dê acesso à universidade ou à carreira militar. Dos 250 alunos-respondentes, 185 já perceberam a importância, pessoal profissional, de se ter acesso ao conhecimento científico necessário para a organização e desenvolvimento autônomo. Acreditam os alunos que, se continuarem estudando, poderão alcançar um futuro melhor.
Pesquisas partem do pressuposto sobre o papel da escola como transmissora
de conhecimentos, Gonçalves et al. (2003, p.4) destaca os estudos de Bourdieu e
Passaron sobre a teoria da violência simbólica – a arbitrariedade da ação
pedagógica ao impor conteúdos previamente selecionados. Em contraposição ao
engessamento produzido pelo currículo imposto, Pacheco citado por Gonçalves et
al. (2003): reforça o argumento da construção da autonomia curricular dentro da
103
própria escola, oportunizando-se situações curriculares pouco estruturadas que
possam permitir aos alunos refletirem sobre suas experiências de vida, através de
projetos flexíveis, fundamentados nos princípios de uma educação democrática
MÉTODOS
A pesquisa ação se deu através de artigos publicados em revistas eletrônicas
educacionais e censos educacionais, que evidenciaram a questão problematizada:
quais são os fatores externos e internos na evasão escolar no ensino médio no
Brasil.
Os artigos analisados nos apresentaram uma amostragem não universal, pois
foram baseados em análises de estudos locais de pesquisa qualitativa.
De acordo com o censo escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Anísio Teixeira (INEP/MEC), em 2010 o Brasil apresentou aproximadamente um
total de 8.357.675 matrículas no ensino médio, destes 10,3% (860.841) alunos
abandonaram os bancos escolares, e 12,5% (1.044.710) reprovaram.
A metodologia utilizada foi uma revisão bibliográfica de publicações nacionais
nas bases de dados SciELO e Google Acadêmico.
Foram aplicados como fatores de exclusão: Ensino Fundamental e
Graduação, e como fatores de inclusão: Evasão escolar; Ensino médio e Ensino
noturno. A partir dos fatores de exclusão e inclusão foram selecionados 12 artigos.
RESULTADOS
Os artigos analisados discutem o fato do ensino médio noturno não
apresentar uma identidade própria. De acordo com Rocha (2010), os cursos são
igualados aos diurnos quanto ao currículo. Torna-se essencial levar em
consideração que as características peculiares dos alunos, que geralmente são
trabalhadores de classes populares e quase não recebem incentivos dos familiares
104
em dar continuidade aos estudos; os professores, geralmente estão no terceiro turno
de trabalho diário e apresentam uma grande desmotivação; além dos conteúdos não
serem interessantes aos alunos e terem pouca relação entre a teoria e o mundo do
trabalho e das práticas sociais, esses são alguns dos fatores que reforçam a evasão
escolar no ensino médio noturno.
O quadro a seguir, indica as questões fundamentais deste estudo de revisão
bibliográfica, e que segundo Silva (2010, p.3):
Hoje não se sabe a quem culpar especificamente pela evasão escolar, uma vez que nesse contexto surgem inúmeros atores envolvidos direta e indiretamente. A evasão escolar assola não somente a região nordeste do Brasil, mas todo o território nacional.
Quadro 1 – Síntese dos dados
Autor/Ano Amostra Instrumento Local Conclusão
NERI, 2008. Universal. População entre 15 e 17 anos.
Apêndices estatísticos. 2004a 2008
São Paulo; Rio de Janeiro; Belo Horizonte; Porto Alegre; Recife e Salvador.
Falta de oferta educacional de inclusão; Necessidade de trabalho;
MORAES, 2006 436 Estudo de Caso. Pinhão – Pr. Políticas Públicas; Fatores sociais.
CHIEPPE, 2012
265 Depoimentos e Discussões.
Colatina – ES. Falta de identidade; Políticas Públicas; Fatores sociais.
SOUSA etal, 2011
23 Entrevistas. Maracanaú CE. Currículo; Infraestrutura; Valorização profissional.
KLEIN, 2006 Universal. Censos Escolares.
Regiões brasileiras.
Políticas Públicas Educacionais.
NEUBAUER, 2011
1.324 Entrevistas; Questionários Observações
Acre; Ceará; Paraná e São Paulo.
Políticas Públicas; Organização da Escola e Ensino e Práticas Pedagógicas.
SILVA, 2011 40 Questionários Observações e Análises de documentos.
Bananeiras – PB. Falta de interesse; Falta de estímulos e estrutura física.
BRAGA, 2008 36 Entrevistas. Campo Largo PR. Necessidade de Trabalho; Problemas familiares e sociais e políticas educacionais.
POMPEU; SOUSA, 2011
1015 Análise de documentos e entrevistas.
São José - SC Horário de trabalho; Desmotivação pessoal e problemas familiares.
105
2008 a 2010.
ROCHA, 2010 61 Questionários Análise de dados.
Porto Alegre RS
Fatores sociais e familiares e políticas educacionais.
GONÇALVES; PASSOS; PASSOS, 2005
275 Encontros, conversas informais, levantamentos de informações e questionários.
Baixada Fluminense - RJ
Políticas Educacionais; despreparo dos docentes; currículo; indisciplina, falta de interesse e frequência irregular dos alunos.
SANTOS; LUZ; FROTA, 2011.
140 Entrevistas e questionários.
Araranguá - CS Necessidade de trabalho; escassez de investimentos públicos e de recursos tecnológicos; turmas com elevado número de alunos; baixa qualificação dos professores; ausência de debates e aulas interativas.
Os artigos analisados, nas mais diferentes regiões brasileiras, evidenciam os
mesmos fatores internos e externos, bem como o fato deque a evasão escolar é
decorrente dos fatores econômicos, políticos, culturais e sociais e geram na
sociedade atual ampla desigualdades e exclusões.
ABORDAGEM AOS FATORES EXTERNOS
Os fatores externos apontados como principais consequências da evasão
escolar segundo Neri (2008, p. 57), “a combinação da demanda agregada ao
trabalho, filhos de mães sem instrução ou de pais que perdem o emprego”. A
oportunidade de emprego associada com a necessidade da busca do sustento
próprio e da família torna-se uma combinação perigosa, para o precoce abandono
escolar nos períodos diurnos, justificando a busca desses alunos pela matrícula no
ensino médio noturno. Outro fator são as sucessivas reprovações durante o ensino
fundamental, o que ocasiona o fator distorção idade série, o aluno se matricula no
106
ensino médio noturno, na tentativa de conclusão do ensino básico, pois acredita que
a escola, ainda seja a oportunidade de igualdade e formas de não-exclusão.
Assim, com uma exaustiva carga diária de trabalho de oito horas ou mais de
jornada, as distâncias do local de trabalho até a escola ou dificuldade de acesso e
de transporte aparecem como o principal fator externo, os alunos chegam até a
escola atrasados, desmotivados, com fome e cansados. Dentro dessas condições
não se torna difícil a compreensão do porquêde muitos desistirem de seus estudos.
Os alunos frequentadores do ensino médio noturno são em sua grande
maioria profissionais que desempenham atividades ao setor terciário: balconistas,
atendentes, manicures, padeiros, pedreiros, mecânicos, empregadas domésticas,
babás, motoristas, funcionários do setor publico e ou privado de limpeza geral,
funcionários de supermercados entre outros.
A questão familiar é apontada como a falta de apoio ou incentivo da família;
gravidez precoce, filhos pequenos, casamento e desentendimentos por ciúmes dos
companheiros e a falta de dinheiro para prover as necessidades básicas do lar,
acabam que por desmotivar os alunos a frequentar a escola.
Vale ressaltar que os estudos evidenciaram que alguns familiares valorizam e
incentivam de alguma forma a volta aos estudos dos seus filhos, esposas e esposos,
pois acreditam no estudo como uma forma de conseguir uma melhor condição de
vida, crescimento pessoal e a conquista de um emprego melhor.
Mas é nas famílias com maior dificuldade econômica que não há motivação
para dar continuidade aos estudos, pois a essas famílias a necessidade pela
sobrevivência obriga o trabalho e não o direito aos estudos.
Representadas por esta classe social, que não é a minoria da sociedade
brasileira, podemos observar um fenômeno essencialmente histórico e social, que
imprime um novo eixo de reflexão acerca das políticas públicas, a de um Estado que
ainda não se fez Nação.
A problemática da violência aparece em proporção menor, mas não menos
importante, por ser uma situação difícil de resolver, na maioria das vezes acontece
107
fora da escola, como a venda de drogas e bebidas alcoólicas, o que provoca medo
nos alunos de frequentar a escola no período noturno. A droga é um fator social, que
precisa de atenção, e não depende apenas do esforço da escola, mas sim de ações
dos órgãos públicos para resolver o problema. Sabemos de algumas ações de
políticas públicas como a criação da patrulha escolar em alguns estados, mas
acabam que por serem ações isoladas, bem como a proibição da venda de bebidas
alcoólicas em áreas próximas as escolas, mas há a falta de fiscalização.
As questões acima apresentadas levam à reflexão de que é preciso
urgentemente rever o contexto histórico, social e cultural, dos alunos frequentadores
do ensino médio noturno, e de que forma as ações das políticas públicas estão
cumprindo seu papel frente a esta realidade.
ABORDAGENS AOS FATORES INTERNOS
Ao expressar a ideia de que a escola é responsável pelo sucesso ou fracasso
dos alunos, principalmente aos pertencentes às classes mais pobres e com maior
grau de exclusão, procura-se explicar teoricamente o caráter reprodutor da
instituição educacional compreendida como Aparelho Ideológico de Estado:
[...] a evasão escolar está ligada diretamente à questão do fracasso escolar, constatando-se que: Este constitui um dos mais graves problemas sociais do Brasil. Nisso se explica que a evasão estaria como uma consequência, sendo o produto de um produto histórico amplo, que engendra o funcionamento da sociedade brasileira (PATTO, 1997 apud MORAES, 2006, p. 9).
Os fatores internos identificados foram: a falta de flexibilidade do currículo,
processo de avaliação, dificuldade em disciplinas e conteúdos específicos,
despreparo e desmotivação dos professores, ausência de ações democráticas de
gestão, falta de investimentos financeiros, e tecnológicos, acessibilidade aos alunos
portadores de alguma deficiência.
108
O currículo do ensino médio noturno não apresenta projetos específicos que
venham de encontro com as expectativas dos alunos, são conteúdos pouco
significativos e sem aplicabilidade para os alunos trabalhadores, não considera a
realidade vivenciada no seu cotidiano, e a prática pedagógica está dissociada das
expectativas buscadas pelos alunos. Há falta de um redirecionamento do currículo,
de forma mais atrativa, enxuta e com objetivos mais destinados a formação
profissional dos alunos, com vistas à diversificação, valorizando a
interdisciplinaridade, oportunizando as atividades culturais, artísticas e sociais, além
de promover pesquisas voltadas aos interesses dos alunos. Segundo Gonçalves et
al. (2003, p. 10),
As propostas curriculares deveriam considerar a realidade, os interesses pessoais e profissionais, os sonhos e ideais dos alunos, não querendo com isso oferecer um curso de menor qualidade, mas sim um ensino mais adequado à realidade, às necessidades e aos interesses da clientela do ensino médio noturno.
Os processos avaliativos que não levam em consideração os esforços
individuais e a bagagem cultural dos alunos, as notas baixas atribuídas pelos
professores, durante o processo de avaliação, repercutem diretamente na motivação
e desestímulo aos alunos. A falta de autonomia e as medidas de controle
institucional acabam por limitar as instituições na construção de sua identidade
social, o que impede a criação de mecanismos próprios de avaliação adequada a
sua clientela educacional.
Professores pouco preparados ou com pouco domínioem algumas disciplinas,
a insegurança ao transmitir os conteúdos aos alunos, a falta de criatividade e seu
desinteresse em tornar as aulas mais atrativas e interessantes e com atividades
interativas, a relação professor aluno, estes fatores associados às dificuldades dos
alunos na compreensão desses conteúdos, criam mecanismos facilitadores para
notas baixas e faltas excessivas em determinadas disciplinas, tornando-se campo
fértil para a evasão escolar.
109
Seria de se estranhar se não fossem levantadas as questões pertinentes às
condições de trabalho do professor, a políticas públicas educacionais. Não
apresentam um programa específico à formação do professor do ensino médio
noturno, a ausência da capacitação para a melhoria do ensino/aprendizagem, a
redução do conteúdo a ser trabalhado, a terceira jornada e excessivo trabalho dos
professores. De acordo com Rocha (2010), os cursos noturnos necessitam de
professores mais dispostos e preparados que possam ajudar o aluno do ensino
médio noturno na construção de conhecimentos úteis ao seu cotidiano.
Muitas instituições de ensino iniciam seu ano letivo, com salas de aula com
elevado número de alunos, já prevendo a evasão escolar. Isso acaba de
sobrecarregar os professores no início do ano letivo, e também contribui para a
indisciplina por parte dos alunos, desmotivando e desgastando o professor.
Muitos professores precisam percorrer longas distâncias entre uma escola e
outra, desânimo, desmotivação, falta de reconhecimento da sociedade e do poder
público, escassez de tempo para preparar suas aulas e para seu estudo, e
principalmente os baixos salários, são variáveis que contribuem de forma muito
significativa ao quadro da evasão escolar.
Estamos inseridos em uma sociedade democrática, porém ainda é perceptível
a falta de ações que consolidem as práticas de gestão democrática dentro das
instituições escolares. Os alunos frequentadores do ensino médio noturno, em sua
maioria, apresentam maturidade pessoal para intervir, discutir, apontar, analisar e
desenvolver ações que com intuito de crescimento e de melhoria a escola, mas
muitas vezes não é oportunizada essa participação. É preciso que os gestores
revisem suas ações dentro dessa proposta, as políticas públicas educacionais
precisam instrumentalizar esses gestores, para que se possam consolidar a
democrática dentro do contexto escolar.
Há falta de investimento nas estruturas físicas e materiais que vão desde
ampliações e reformas, investimento tecnológicos, culturais, contratação de mais
profissionais para atuarem dentro da escola, que visem atender não somente as
110
necessidades dos alunos trabalhadores do ensino médio, que permitam não
somente o ingresso, mas também a permanência desses alunos e de alunos
portadores de necessidades especiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da análise do cenário da educação nacional, foi possível identificar
mais uma variante da problemática educacional brasileira, que se faz presente nos
dias atuais. A qual se pode afirmar pesa sobre o ensino médio noturno, uma das
causas da expansão sem qualidade do ensino superior.
Os problemas basilares sobre os fatores externos e internos da evasão
escolar no ensino médio foram identificados e apresentados, eles existem em todos
os estados brasileiros, se apresentam de forma similar, mas com características
especificas, mas são unânimes ao sinalizar que os problemas não são resolvidos,
porém ajeitados, transferidos ou ainda mascarados.
A dialógica da pesquisa indica que muita coisa precisa mudar na educação
brasileira, principalmente no que se diz respeito às políticas públicas. Ao procurar a
culpa nos professores, nos alunos ou ainda na gestão escolar, é tirar de foco a
questão, os conflitos e contradições acerca dos possíveis culpados, deixa de lado o
principal objetivo da educação, que é oferecer um ensino de qualidade e significativo
para a vida de todos os envolvidos no processo educacional. Ou seja, uma
educação que tenha vistas a elevar-se à condição de um melhor núcleo pedagógico
e cultural, de transformação social.
Trabalhar com conflitos que existem e se fazem presentes dentro do cotidiano
das escolas, não é tarefa fácil e nem tranquila. Mas ao realizar os enfrentamentos
que se manifestam, através dos apontamentos das fragilidades e pontos mais
vulneráveis pelos envolvidos no sistema, de forma consciente de suas obrigações e
baseados no respeito ao próximo e ao coletivo, é decisivo, pois indica a existência
de um trabalho a ser feito, educação não é sinônimo de consenso.
111
Centrar a discussão na questão para que se evidenciem as causas, sejam
elas do meio familiar, do sistema social, educacional ou cultural, e ir além, apontar
caminhos e soluções para que as políticas públicas educacionais consigam alcançar
o objetivo da garantia do acesso, inclusão e da permanência dos alunos do ensino
médio noturno. Isso dentro de uma proposta de ensino com qualidade e com as
especificidades de conteúdos, ao atendimento desses alunos, com condições
necessárias para que professores possam desempenhar seu trabalho com
qualidade e competência de forma valorizada e respeitada por toda a sociedade.
Aevasão no ensino médio no Brasilainda está longe de ser resolvida. Os
fatores externos (trabalho, desigualdade social, a relação familiar) e internos (ações
pedagógicas e de gestão escolar), estão presentes no cotidiano desses alunos, eisto
acaba por estimular a desistência dos estudos ou levá-los a reprovação.
Os índices apontaram um grande porcentual de matrículas no ensino médio
noturno, o que reafirma que a maioria desses alunos por necessidade de sustento
pessoal ou familiar, ou devido à distorção idade/série, consequências de
reprovações ou evasões em anos anteriores, buscam este turno para concluírem
seus estudos.
Para análise do fenômeno evasão escolar é preciso compreender os motivos
em sua totalidade, portanto, o contexto social, as relações familiares e culturais, as
políticas públicas e todos os demais fatores devem ser considerados, pois todos
trazem implicações ao tema estudado.
Ao afirmar que a escola tem o papel fundamental de garantir um ensino de
qualidade a todos os seus alunos e possibilitar o acesso ao saber sistematizado, e
com isso a garantia de uma possível transformação social, adotou-se uma visão
crítica. É preciso considerar a análise dos motivos da evasão escolar no ensino
médio noturno, onde todas as abordagens apontadas devam ser consideradas, não
cabendo culpar o aluno, a família ou o professor’; é preciso considerar os
condicionantes sociais, econômicos, culturais, políticos e pedagógicos implícitos à
questão.
112
Portanto, quando se busca identificar e apontar as fragilidades do sistema
educacional brasileiro, procura-se também criar estratégias de ações educacionais
que visem o fortalecimento do desenvolvimento de uma região com vistas à melhoria
da qualidade de vida e equidade social mínima da população.
REFERENCIAS
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113
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114
A DISTRIBUIÇÃO DAS RECEITAS PÚBLICAS E O CENTRALISMO DO
GOVERNO FEDERAL E ESTADUAL CATARINENSE
Giovane José Maiorki43 Patricia Jacobs44
Sandro Luiz Bazzanella45
RESUMO: O modelo de estado brasileiro, se é que podemos assim chamar de modelo brasileiro, tem grande influência da colonização Portuguesa. Este modelo centralizado, no qual os recursos são em sua grande maioria centralizados pelo governo federal e posteriormente repassados aos estados, pode ser entendido como uma herança do Estado Português, onde os recursos da colônia eram enviados para a coroa portuguesa. Fruto deste modelo a Constituição Confederativa do Brasil, reconhece certas autonomias dos estados. Porém, esta autonomia não é total, principalmente em relação aos recursos financeiros advindos da arrecadação dos impostos estaduais sobre bens, serviços, ou patrimônio realizados, ou existentes nos estados, o que já se apresentava na época do Brasil colônia com as capitanias hereditárias e, depois quando estas reverteram ao estado português com a cobrança de impostos em favor da coroa. O artigo se fundamenta no argumento de uma nova forma de redistribuição das receitas públicas, de forma mais específica o ICMS no estado de Santa Catarina.
Palavras Chave: Centralismo. Receitas Públicas. Estado.
ABSTRACT: The model of the Brazilian state, if we mays call Brazilian model has great influence of Portuguese colonization. This centralized model in which resources are mostly centralized federal government and subsequently transferred to the states, can be understood as a legacy of the Portuguese State, where the resources of the colony were sent to the Portuguese crown. Result of this model to Confederate Constitution of Brazil, recognizes certain autonomy of states. However, this autonomyis not absolute, especially in relation to financial resources arising from the collection of state taxes on goods, services, or assets held, or in the states, which already had at the time of colonial Brazil with the hereditary captaincies and then
43
Mestrando em Desenvolvimento Regional e graduado em Ciências Contábeis pela Universidade do Contestado.
44Mestranda em Desenvolvimento Regional e graduada em Ciências Contábeis pela Universidade do Contestado.
45Dr. em Ciências Humanas – UFSC. Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado. Coordenador do Curso de Ciências Sociais. Líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – Cnpq.
115
when they reverted to the Portuguese state with the collection of taxes on behalf of the crown. The article is based on the argument of a new form of redistribution of government revenues, more specifically the ICMS in the state of Santa Catarina.
Key words: Centralism; Public Revenues; State.
INTRODUÇÃO
Precisamos recorrer à história para que possamos entender elementos
constitutivos do Estado brasileiro presente em nossos dias. O processo de
colonização do Brasil se deu por povos europeus, com a predominância de Portugal,
sendo estes, mais interessados em retirar do solo brasileiro as suas riquezas e
escravizar, por meio do escambo, o povo aqui existente. Neste modelo de
colonização extrativistados recursos naturais, a coroa portuguesa não estava
preocupada em desenvolver a sua colônia, centrando todas as decisões na coroa
portuguesa.
No início da colonização brasileira, a coroa portuguesa dividiu o território
brasileiro a partir da linha imaginária do tratado de Tordesilhas, em capitanias
hereditárias, sendo que se compunha de dois institutos, o público e o patrimonial.
Mas a partir da nomeação do Fidalgo Tomé de Souza, passou por um processo de
reversão das capitanias, retornando à coroa do poder patrimonial sobre tais
territórios, que foi recuperado pela compra e, em alguns casos, pela renúncia dos
proprietários. Este processo demorou, e a última capitania a ser revertida aos
domínios patrimonialistas da Coroa portuguesa se consolidou no final no século
XVIII.
O modelo de estado absolutista centralizador da coroa portuguesa, busca na
reversão das capitanias, o retorno do controle dos negócios e exploração das minas
pelo monarca, sendo que os recursos eram transferidos para Portugal.
Estemovimento da remessa de riquezas para a coroa portuguesa pode ser
considerado o início de um modelo governamental centralizado na esfera máxima do
116
poder, presente até os dias de hoje, articulado em torno da arrecadação de grande
parte dos tributos pelo governo federal e, posteriormente a sua distribuição aos
estados e municípios.
A ORGANIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
A organização político administrativa da República Federativa do Brasil,
segundo o artigo 18 da nossa Constituição, compreende a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, que segundo o mesmo artigo, são autônomos,
desde que respeitadas as atribuições e limites da constituição. Um primeiro enfoque
sobre o centralismo pode ser observado no artigo 25, a expressão Estados
Federados e no parágrafo primeiro deste, onde estabelece as competências de cada
estado em organizar-se, desde que não lhes seja vedada pela constituição. Neste
modelo de divisão política territorial, Estado é a conformação de uma região de
abrangência territorial, a qual é subdivida em unidades menores que formam então
os municípios. O advento de ser “Estado federado” e, considerando os limites
fixados pela constituição Federal, demonstra que ao estado não lhe é permitido
outra forma de gestão, senão aquele estabelecido pelo Governo Federal, seja em
termos de suas atividades, ou de como irá dispor os recursos arrecadados com os
impostos, seja este de competência Municipal, Estadual, ou Federal.
Partindo deste argumento de estado centralizado nas decisões quanto à
estrutura e quanto à arrecadação e distribuição das receitas públicas, evidencia o
modelo de estado em que estamos inseridos e as dificuldades em promover
reformas que possam favorecer ao desenvolvimento de certas regiões que devido às
dimensões continentais de nosso território tem necessidades diferentes e realidades
socioeconômicas discrepantes.
117
A REPARTIÇÃO DAS RECEITAS TRIBUTÁRIAS
A repartição das receitas tributárias entre a União, os estados e os municípios
está previsto nos artigos 157, 158 e 159 da nossa Constituição de 1988, que
segundo Pêgas (2011, p. 6):
[...] trouxe profundas e importantes modificações para o sistema tributário nacional, principalmente por parte dos municípios. Houve na época uma exagerada comemoração, principalmente por parte dos municípios, com a chamada carta de alforria definida na Carta Magna, que iria desafogar os minguados orçamentos municipais, com o redirecionamento de relevante parcela dos tributos arrecadados pela união e pelos estados para as administrações municipais, via transferência constitucional.
A arrecadação e responsabilidade dos principais tributos estão distribuídas
segundo Pegâs (2011), da seguinte forma:
a) União: Imposto de Renda (IR), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto sobre Importação (II), Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), Imposto Territorial Rural (ITR), Imposto sobre Exportação (IE), Programa de Integração Social (PIS), Programa de formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), e o ainda não regulamentado Imposto sobre grandes Fortunas (IGF);
b) Estados: Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto de Transmissão de bens e Direitos (ITD) e, Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA);
c) Municípios: Imposto sobre Serviços (ISS), Imposto sobre a Transição de bens Intervivos (ITBI) e o Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU).
No quadro a seguir estão demonstrados, com base na Constituição Federal e
demais normas, a distribuição dos recursos advindos das receitas tributárias em
relação aos principais tributos arrecadados pela União, Estados e Municípios. Dos
valores que o estado recebe da União, em relação ao IPI e IR, este deve repassar
25% (vinte e cinco por cento) deste valor, aos municípios.
Outro ponto que merece especial atenção diz respeito ao ICMS que o estado
arrecada, ele distribui aos municípios 25% (vinte e cinco por cento). Sendo que esta
distribuição é realizada de forma que 75% (setenta e cinco por cento) ficam no
118
município onde foi gerada a operação e 25% (vinte e cinco por cento) são
distribuídos conforme lei estadual específica.
Quadro 1- Distribuição das receitas tributárias dos principais tributos
Tributos União Estados Municípios Fpe46
Fpex47
ITR 50% 50%
IR 52% 21,5% 23,5% 3%
IPI 42% 21,5% 23,5% 3% 10%
CIDE 71% 29%
II 100%
IOF 100%
IOF- Ouro (ativo Financeiro) 50% 50%
IE 100%
PIS 100%
COFINS 100%
CSLL 100%
IPVA 50% 50%
ICMS 75% 25%
ITD 100%
ISS 100%
ITBI 100%
IPTU 100%
Fonte: Pegas (2011, adaptado).
Vemos então no quadro acima, que existe uma maior concentração das
receitas dos impostos na União em relação aos estados e posteriormente do estado
em relação aos municípios, evidenciando o modelo centralizado na arrecadação dos
tributos pela união sobre os estados e municípios.
O ESTADO DE SANTA CATARINA E A DISTRIBUIÇÃO DAS RECEITAS DOS
IMPOSTOS
O Estado de Santa Catarina, objeto deste estudo, sobre a concentração das
receitas dos impostos pela União em detrimento aos estados e dos Estados em
relação aos municípios, possui uma área territorial de 95.703,54 km², com uma
população segundo o senso de 2010 de 6.248.436 habitantes, distribuídos em seus
46
FPE- é destinado aos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste 47
FPEx – (Fundo de Participação de Exportação)
119
293 municípios. O estado de Santa Catarina faz divisa ao norte com o Estado do
Paraná, ao Sul com o Rio Grande do Sul e ao Oeste com a Argentina.
Figura 1 – Mapa do Estado de Santa Catarina
Fonte: Portal Brasil
O Produto Interno Bruto de Santa Catarina, segundo dados do IBGE, no ano
de 2009 foi de R$ 129.806 bilhões, representando 4% (quatro por cento) do BIP
brasileiro e estando em 8º lugar na classificação dos estados brasileiros. De acordo
com o Portal Brasil, o PIB catarinense está assim distribuído: 13,6% atividades
agropecuária, 52,5% atividade industrial e 33,9% oriundos dos serviços.
Dentre os municípios catarinenses, segundo dados do IBGE de 2009, os 10
principais municípios representam 48% (quarenta e oito por cento) do BIP do estado,
e em ordem de valores são: Joinvile, Itajaí, Florianópolis, Blumenau, Jaraguá do Sul,
Chapecó, São José, São Francisco do Sul, Criciúma e Brusque.
Ao analisarmos a distribuição dos recursos repassados pelo Estado de Santa
Catarina aos municípios, considerando neste repasse o acumulado de janeiro a
120
agosto de 2012 dos valores da participação quanto ao ICMS, IPI e IPVA, verificamos
uma concentração de 48% (quarenta e oito por cento) entre os 20 maiores
municípios. Esta consulta esta disponível a todos os catarinenses através do portal
da transparência do estado de Santa Catarina.
A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS CONFORME AS ASSOCIAÇÕES DE
MUNICÍPIOS
O Estado de Santa Catarina está dividido politicamente em municípios e no
aspecto de gestão e governo, nas Secretarias de Desenvolvimento Regional e ainda
em associação de municípios. Neste estudo tomou-se por base a divisão do estado
em relação a suas associações de municípios, para que seja possível identificar a
distribuição dos recursos de acordo com um recorte territorial e sendo assim
possível verificar as semelhanças de suas realidades sociais e econômicas.
A distribuição de recursos do ICMS, IPI e IPVA por associação dos
municípios catarinenses, com base no acumulado de janeiro a agosto de 2012,
apresenta os resultados apresentados na tabela abaixo, apresentando o valor
repassado e a sua classificação quanto ao recebimento do recurso de forma
decrescente.
Quadro 2 – Repasses as associação dos municípios de ICMS, IPI e IPVA período de janeiro a agosto de 2012
ASSOCIAÇÃO DE MUNICÍPIO TOTAL REPASSADO (R$) CLASSIFICAÇÃO
AMUNESC 279.348.775,37 1º
GRANFPOLIS 273.181.094,54 2º
AMMVI 269.814.851,76 3º
AMFRI 210.126.126,37 4º
AMVALI 137.319.520,13 5º
AMREC 120.489.289,25 6º
AMOSC 117.872.882,78 7º
AMAVI 115.971.377,20 8º
AMUREL 106.635.032,99 9º
AMAUC 97.788.421,02 10º
121
AMURES 94.185.903,86 11º
AMARP 91.740.802,22 12º
AMMOC 75.709.311,47 13º
AMAI 72.109.755,58 14º
AMEOSC 71.057.478,54 15º
AMPLANORTE 69.043.359,56 16º
AMESC 57.162.235,47 17º
AMERIOS 47.078.075,35 18º
AMPLASC 32.051.081,74 19º
AMNOROESTE 21.825.034,70 20º
TOTAL 2.360.510.409,90
Fonte: Portal da Transparência (2012, adaptado)
Trazendo estes dados para uma realidade mais próxima, ou seja, o planalto
norte catarinense, e dentre os municípios que compõe a região da Amplanorte,
temos a seguinte distribuição dos recursos recebidos do estado.
Quadro 3- Repasses aos municípios da Amplanorte do ICMS, IPI e IPVA de janeiro a agosto de 2012.
Município Total Repasse Classificação
MAFRA 16.673.757,50 28º
CANOINHAS 14.249.850,46 32º
TRÊS BARRAS 7.897.182,10 58º
PAPANDUVA 6.721.369,45 72º
ITAIÓPOLIS 6.448.612,27 77º
PORTO UNIÃO 5.769.216,06 85º
IRINEÓPOLIS 3.650.949,81 137º
MAJOR VIEIRA 2.978.022,22 156º
MONTE CASTELO 2.424.367,35 189º
BELA VISTA DO TOLDO 2.230.032,34 207º
Fonte: Portal da Transparência (2012, adaptado)
A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS E OS INDICADORES DE POBREZA DOS
MUNICÍPIOS CATARINENSES
Quando comparamos os valores distribuídos aos municípios, com o
percentual de pobreza dos municípios no ano de 2000, verificamos que é
inversamente proporcional, ou seja, os municípios mais pobres são os que recebem
122
menores recursos. Desta forma a situação tende a se manter, pois estes estão
dependendo apenas de fatores endógenos destas regiões para seu
desenvolvimento.
Conforme podemos ver no quadro abaixo com os50 municípios catarinenses
com maior índice de pobreza conforme dados do portal da transparência temos o
seguinte quadro:
Tabela 1 – Comparativo dos Repasses aos municípios do ICMS, IPI e IPVA até de janeiro a agosto de 2012 e percentual de pobreza.
(Continua)
MUNICÍPIOS % de
pobres ASSOCIAÇÃO
Total dos Repasses
% PIB
Classif. Repasse
Classif. Pobreza
Entre Rios 65,76 AMAI 1.516.170,91 0% 277 1
Calmon 57,5 AMARP 1.861.236,04 0% 240 2
Cerro Negro 54,83 AMURES 1.374.746,77 0% 292 3
Timbó Grande 53,45 AMARP 2.344.517,59 0% 200 4
Ipuaçu 53,35 AMAI 4.777.423,93 0% 100 5
Bela Vista do Toldo 53,12 AMPLANORTE 2.230.032,34 0% 207 6
Bandeirante 50,13 AMEOSC 1.515.335,88 0% 278 7
Santa Terezinha 49,26 AMAVI 2.634.227,97 0% 175 8
Lebon Régis 49,22 AMARP 2.514.091,17 0% 182 9
São José do Cerrito 47,96 AMURES 1.897.839,31 0% 237 10
Abelardo Luz 47,67 AMAI 7.293.879,30 0% 62 11
Brunópolis 47,53 AMPLASC 1.838.874,25 0% 242 12
Passos Maia 47,26 AMAI 2.311.090,13 0% 201 13
Rio Rufino 46,67 AMURES 1.326.572,68 0% 293 14
Anita Garibaldi 45,44 AMURES 3.214.153,54 0% 150 15
Dionísio Cerqueira 44,52 AMEOSC 3.570.484,08 0% 142 16
Major Vieira 44,52 AMPLANORTE 2.978.022,22 0% 156 17
Campo Erê 44,51 AMNOROESTE 3.562.943,08 0% 143 18
Saltinho 43,85 AMERIOS 1.657.794,68 0% 263 19
Bom Jardim da Serra 43,4 AMURES 1.770.236,02 0% 250 20
Campo Belo do Sul 43,29 AMURES 2.611.468,11 0% 176 21
Tigrinhos 43,23 AMERIOS 1.547.167,31 0% 273 22
Matos Costa 43,15 AMARP 1.377.723,98 0% 291 23
Guatambu 42,95 AMOSC 3.772.275,99 0% 132 24
Ponte Alta 42,66 AMURES 1.977.947,58 0% 227 25
Monte Castelo 42,16 AMPLANORTE 2.424.367,35 0% 189 26
Jupiá 41,95 AMNOROESTE 1.498.285,77 0% 283 27
123
(Conclusão...)
São Miguel da Boa Vista 41,92 AMERIOS 1.473.038,83 0% 284 28
Palma Sola 41,74 AMEOSC 3.056.495,02 0% 154 29
Bocaina do Sul 41,45 AMURES 1.825.975,83 0% 247 30
Capão Alto 41,39 AMURES 1.901.226,67 0% 236 31
Frei Rogério 41,19 AMARP 1.608.935,97 0% 269 32
São Bernardino 41,19 AMNOROESTE 1.530.188,90 0% 275 33
Galvão 40,54 AMNOROESTE 1.901.474,69 0% 235 34
Abdon Batista 40,38 AMPLASC 1.501.873,93 0% 281 35
Arvoredo 40,13 AMAUC 2.848.467,92 0% 161 36
Romelândia 40,06 AMERIOS 1.967.578,42 0% 229 37
Sul Brasil 39,81 AMOSC 1.663.852,81 0% 262 38
Celso Ramos 39,57 AMPLASC 1.441.617,22 0% 287 39
Bom Jesus 39,55 AMAI 1.984.925,70 0% 226 40
Papanduva 39,33 AMPLANORTE 6.721.369,45 0% 72 41
Ponte Serrada 39,32 AMAI 3.788.119,05 0% 131 42
Monte Carlo 38,61 AMPLASC 2.536.437,50 0% 180 43
Ponte Alta do Norte 38,59 AMARP 2.168.054,73 0% 211 44
Santa Terezinha do Progresso 38,53
AMERIOS 1.448.316,88 0% 285 45
Três Barras 38,41 AMPLANORTE 7.897.182,10 0% 58 46
Flor do Sertão 37,95 AMERIOS 1.696.977,81 0% 259 47
Santiago do Sul 37,59 AMOSC 1.444.756,15 0% 286 48
Anchieta 37,24 AMEOSC 2.284.834,18 0% 203 49
Belmonte 36,06 AMEOSC 1.706.685,45 0% 257 50
Fonte: Portal da Transparência (2012, adaptado)
A REDISTRIBUIÇÃO DO ICMS E O DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Estes números nos permitem compreender que é difícil melhorar estes
indicadores humanos e sociais sem que aja uma maior intervenção do Estado
nestas regiões. Estes municípios dependem de um governo com influência
keynesiana, o qual em sua argumentação defendeu a intervençãodo Estado na
economia de forma a regular o mercado e potencializar ações de desenvolvimento.
Segundo Dallabrida (2011, p. 41):
A grande crise do capitalismo de 1930 trouxe certa descrença nos princípios da livre concorrência o que traz à tona algumas concepções teóricas que
124
passam a defender a necessidade de intervenção exógena no mercado, com o propósito de manter o crescimento e a oferta de emprego. Foi o que propôs para a superação da crise da época. O princípio que sustentava sua defesa era de que o ciclo econômico não é autorregulador com pensavam os economistas clássicos e neoclássicos, uma vez que é determinado pelo que ele chamou de ‘espírito animal’ dos empresários. É por esse motivo, e pela ineficiência do sistema capitalista em empregar todos que querem trabalhar, que Keynes defendeu a intervenção do Estado na Economia.
Desta forma, caso o valor a ser distribuído aos municípios tomasse por base
inversa do Índice de Desenvolvimento Humano dos municípios (IDHM), estaríamos
fazendo uma distribuição mais equitativa, a qual possibilitaria uma melhor
distribuição das riquezas geradas em nosso estado, mesmo que aos olhos dos
municípios de maior arrecadação pareça injusto. Devemos considerar que a alíquota
nas vendas realizadas para os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste prevê
uma alíquota de 7% e de 12% para os demais estados, o que significa
reconhecertratamento diferenciado aos estados considerados mais pobres e nas
operações dentro do nosso estado uma alíquota de 17%.
Segundo Pêgas (2011, p. 191):
O Senado Federal possui competência exclusiva para determinar alíquotas interestaduais de ICMS. Esta competência é exercida através de Resolução expedida pelo próprio Senado. [...] b) Quando o destinatário for contribuinte do imposto, as seguintes alíquotas serão utilizadas:7% (sete por cento) – Utilizada nas operações e/ou prestações promovidas por estabelecimentos localizados nas Regiões Sul e Sudeste, com destino a estabelecimentos localizados nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, inclusive no Estado do Espírito Santo, que para este fim, faz parte da Região Nordeste. 12% (doze por cento) – Utilizada para os demais casos [...].
Ainda sobre o ICMS, do valor arrecadado, 20% é retido pelo estado a ser
distribuído aos municípios como recursos para o Fundo de Desenvolvimento da
Educação Básica (FUNDEB), este repasse é proporcional ao número de alunos
matriculados em cada município, sendo que, estes valores são acrescidos aos
municípios como os recursos que o Estado recebe da União.
Desta forma, uma situação de distribuição de recursos proporcional ao
número de alunos, que independe do valor do tributo gerado em cada município, e
125
sim do número de crianças na escola. Assim, poderia ser retida uma parte do ICMS
e distribui-lo aos municípios, considerando o IDHM o, que favoreceria a uma
distribuição de renda aos municípios com menor número de comércio e indústria.
Ressalta-se aqui o argumento de que com mais recursos no município em
programas de transferência de renda às comunidades carentes, favoreceria o
aumento do consumo e a uma maior arrecadação de impostos sobre o consumo.
Temos em nosso estado uma situação em que o desenvolvimento de uma
região mais pobre somente poderá ocorrer se houver investimentos públicos para
poder criar as condições para a região gerar riquezas e desenvolver-se em um
determinado espaço de tempo. Este modelo de transferência de renda é algo que o
Brasil experimentou nos últimos anos, programas estes que conseguiram fazer o
desenvolvimento de regiões muito pobres, como é o caso do sertão nordestino, que
passou a ter condições de fazer circular dinheiro no comércio local com a compra de
gêneros de primeira necessidade. Temos então um círculo virtuoso, capaz de gerar
mais empregos e renda onde existe pouca circulação de dinheiro.
A REDISTRIBUIÇÃO DO ICMS‘O ICMS SOCIAL’
Neste artigo colocamos em jogo uma forma de distribuição dos recursos do
ICMS do estado de Santa Catarina que denominados de ‘ICMS SOCIAL’. Segundo
dados do relatório de gestão do estado de Santa Catarina disponibilizado no Portal
da Transparência do Estado pela Secretaria da Fazenda, apresenta uma
arrecadação de R$ 8,191 Bilhões no período de janeiro a agosto do corrente. Deste
valor 25% (vinte e cinco por cento) são repassados aos municípios, sendo que
destes 75% (setenta e cinco por cento) são repassados aos municípios onde a
arrecadação foi gerada e 25% (vinte e cinco por cento) a critério do governo
estadual através de lei específica. Com base nestes dados a distribuição seria a
seguinte:
126
Tabela 2 – Distribuição do ICMS de janeiro a agosto de 2012
Valor do Estado 75%
Valor Município 18,75%
Valor Município conforme critério estadual 6,25%
Total
R$ 6.143 bilhões R$ 1.536 bilhões R$ 512 milhões R$ 8.191 bilhões Fonte: Relatório de gestão do Estado de Santa Catarina (2012, adaptado)
Caso fosse adotada uma retenção e distribuição de 5% da receita de ICMS do
estado de Santa Catarina que é distribuída aos municípios, teríamos um valor de R$
76.790 milhões a ser distribuído aos municípios com menor IDHM, com base nos
dados do PNUD, Atlas do Desenvolvimento Humano. Poderíamos ter em nosso
estado o que poderia ser chamado de “ICMS Social”, capaz de levar
desenvolvimento às mais longínquas regiões de nosso estado, pois em muitas
regiões temos apenas agricultura de subsistência e o extrativismo vegetal.
Para este cálculo de indicador de repasse do “ICMS Social”, foi utilizada como
metodologia a somatória total dos percentuais de pobreza e dividido o percentual de
cada município por este total, como exemplo: o município de “Entre Rios”, tem um
percentual de pobreza de 65,76 dividido pela somatória dos 293 municípios que é
igual a 6.984,20, chegamos a um índice de 0,00942, que deverá ser multiplicado
pelo valor retido do ICMS de R$ 76.790 milhões, resultando assim o “ICMS Social” a
ser repassado a este município.
Desta forma, com base no relatório de gestão de agosto de 2012, disponível
no portal da transparência do Estado, o qual evidencia as transferências aos
municípios conforme o artigo 133 em seu parágrafo 5º da constituição do Estado,
apresenta um total repassado de ICMS R$ 1.946 bilhões, sendo descontado deste
valor os 5% que representa o ICMS, gerado pelos municípios conforme demonstra a
tabela 3, teríamos a seguinte distribuição aos 25 municípios com menor IDHM:
127
Tabela 3 – Distribuição do “ICMS Social” de janeiro até agosto de 2012
MUNICÍPIOS
ICMS Até o mês
(R$) % de
Pobres
Total Até o mês
IPVA/IPI/ ICMS (R$) Índice
Retenção
5% ICMS (R$)
ICMS Social (R$)
Total (R$)
ENTRE RIOS 1.444.712 65,76 1.516.171 0,009416 56.983 723.025 2.182.213
Calmon 1.776.371 57,50 1.861.236 0,008233 70.065 632.207 2.423.379
Cerro Negro 1.305.127 54,83 1.374.747 0,007851 51.478 602.851 1.926.120
Timbó Grande 2.161.908 53,45 2.344.518 0,007653 85.271 587.678 2.846.924
Ipuaçu 4.547.322 53,35 4.777.424 0,007639 179.358 586.578 5.184.644
Bela Vista do Toldo 2.029.526 53,12 2.230.032 0,007606 80.050 584.049 2.734.032
Bandeirante 1.439.211 50,13 1.515.336 0,007178 56.766 551.175 2.009.744
Santa Terezinha 2.374.916 49,26 2.634.228 0,007053 93.673 541.609 3.082.164
Lebon Régis 2.192.993 49,22 2.514.091 0,007047 86.497 541.169 2.968.763
São José do Cerrito 1.699.492 47,96 1.897.839 0,006867 67.032 527.316 2.358.123
Abelardo Luz 6.508.538 47,67 7.293.879 0,006825 256.713 524.127 7.561.293
Brunópolis 1.742.014 47,53 1.838.874 0,006805 68.710 522.588 2.292.753
Passos Maia 2.182.247 47,26 2.311.090 0,006767 86.073 519.619 2.744.636
Rio Rufino 1.253.399 46,67 1.326.573 0,006682 49.437 513.132 1.790.268
Anita Garibaldi 2.931.831 45,44 3.214.154 0,006506 115.639 499.609 3.598.123
Dionísio Cerqueira 2.964.977 44,52 3.570.484 0,006374 116.946 489.493 3.943.031
Major Vieira 2.692.015 44,52 2.978.022 0,006374 106.180 489.493 3.361.335
Campo Erê 3.105.431 44,51 3.562.943 0,006373 122.486 489.383 3.929.840
Saltinho 1.554.678 43,85 1.657.795 0,006278 61.320 482.127 2.078.601
Bom Jardim da Serra 1.629.358 43,4 1.770.236 0,006214 64.266 477.179 2.183.149
Campo Belo do Sul 2.411.494 43,29 2.611.468 0,006198 95.116 475.969 2.992.322
Tigrinhos 1.479.403 43,23 1.547.167 0,00619 58.351 475.310 1.964.126
Matos Costa 1.313.517 43,15 1.377.724 0,006178 51.808 474.430 1.800.346
Guatambu 3.561.034 42,95 3.772.276 0,00615 140.456 472.231 4.104.051
Ponte Alta 1.819.386 42,66 1.977.948 0,006108 71.761 469.043 2.375.229
Fonte: PNUD e SEF (2012, adaptado)
Desta forma, evidencia-se que a distribuição dos recursos é realizada de
acordo com critérios estabelecidos pela constituição Federal e do Estado, tendo em
relação à distribuição dos recursos advindo da arrecadação dos impostos, gerar
cada vez mais desigualdades entre as regiões do estado. Ao adotar como
moderador da distribuição o percentual de pobreza estamos trabalhando sobre dois
aspectos que assim podem ser apresentados.
128
Primeiro, regiões mais pobres possuem um menor número de indústrias e um
comércio com menor arrecadação de ICMS, e que por sua vez possuem um menor
número de veículos automotores, assim, com poucas possibilidades de ampliar a
sua arrecadação de impostos, o que seria reparado com o repasse do “ICMS social”.
Segundo, regiões mais ricas com melhor IDHM tendem a crescer mais e a ser
mais representativas no cenário político estadual, tendo em vista que com menor
índice de pobreza seus problemas sociais aliados à fome, menores carentes,
desemprego, podem ser melhor geridos pelo governo municipal, uma vez que este
pode dispor de uma rede de atendimento com um número maior de profissionais, o
que não acontece nos demais municípios.
O modelo de estado centralizado que constatamos historicamente em relação
ao governo federal e estadual, não contribui para o desenvolvimento dos municípios,
o que evidencia um governo centralizado e com a distribuição de recursos baseado
em normas que não estão contribuindo para o desenvolvimento regional. Faoro
(1997, p. 165), descreve a organização do estado português que destrói todas as
formas de autoridade local, retirando aqueles que resistem ao domínio, impondo a
obediência passiva ou o silêncio como uma organização política e administrativa
centralizada e autoritária:
[...] O Estado não é sentido como o protetor dos interesses da população, o defensor das atividades dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário. Ninguém com ele colaborará, - salvo os buscadores de benefícios escusos e de cargos públicos, infamados como adesistas a uma potência estrangeira.
Existe por parte do estado, sobretudo de Santa Catarina, a intenção da
descentralização através das SDR, que buscam desenvolver as suas regiões,
carreando para cada uma os recursos disponíveis no tesouro do estado. Esta
descentralização pode e deve avançar deste que num primeiro momento venhamos
a ter uma maior atuação do estado na geração de emprego e renda, capaz de
129
desenvolver economicamente as regiões. Dallabrida (2011, p. 40) reafirma a ideia de
estado centralizado:
[...] O sistema político elitista e a persistência do autoritarismo, tanto nos regimes democráticos e muito mais nos governos ditatoriais, foram os responsáveis pela preservação de um Estado centralista e autoritário, muitas vezes sob a forma de manutenção de uma política local nas mãos de poderosos caudilhos regionais.
O desenvolvimento de uma região não pode ser visto apenas sobre o aspecto
econômico, pois outros fatores são importantes, como a cultura, a educação, entre
outros. Mas, a falta de recursos e perspectivas econômicas melhores, poderá gerar
a busca das pessoas que residem nestas regiões, por melhores empregos e
qualidade de vida, assim retirando destes municípios os poucos recursos humanos,
ou melhor, definindo, recursos intangíveis, que poderão criar novas alternativas de
desenvolvimento para a região.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A distribuição de receitas públicas sejam estas decorrentes da arrecadação
dos impostos ou de outras receitas pode ser entendido como o principal vetor do
desenvolvimento regional, ou capaz de gerar cada vez mais subdesenvolvimento.
No estudo apresentado verificamos que a distribuição do ICMS, no modelo atual, faz
com que regiões menos industrializadas recebam cada vez menos recursos e por
outro lado região com maior desenvolvimento industrial tende a receber mais
recursos.
A busca pelo desenvolvimento de uma região está ligada a vários fatores,
dentre estes podemos citar o estoque de recursos humanos, culturais, naturais, mas
não podemos deixar de lado a capacidade desta região em produzir e gerar riquezas
econômicas, que servirão como alavanca propulsora do desenvolvimento.
130
E neste contexto de dar impulso no desenvolvimento temos a figura do
Estado, que fará investimento em infra-estrura e por que não dizer em financiar
pesquisas com o objetivo de identificar os recursos desta região, de forma que
possa ser transformado em ativos e assim serem capazes de ser a mola propulsora
do desenvolvimento.
Mas por outro lado, se mantida esta forma distribuição que vai transferir cada
vez mais recursos às regiões mais desenvolvidas, não haverá possibilidade de
existir desenvolvimento de forma equilibrada. Temos então que rediscutir e repensar
o modelo administrativo brasileiro, mas não apenas com o argumento da
descentralização, como é o caso de Santa Catarina, onde houve uma
descentralização administrativa, porém sem que houvesse nos mesmos moldes,
uma descentralização dos recursos e de poder.
Constatamos um modelo centralizado de distribuição de recursos, que busca
atender aos interesses do Estado, e não podemos dizer que seja este o interesse do
povo. Este fato não é novo, pois parafraseando Raymundo Faoro, no Estado
brasileiro primeiro veio o Estado e depois veio o povo, assim não temos um Estado
que não nasceu da vontade de seu povo, e sim, um Estado que se legitimou
juridicamente conformando um povo, que entre outras variáveis se caracteriza pela
sobreposição de povos e culturas importados de além mar. para Faoro (1997, p.
165),
Essa organização administrativa e política, que assim se constitui, não é, então, como a da sociedade americana, uma criação consciente dos indivíduos. Não emana da própria sociedade. Dela não surge como uma transformação do seu tempo e no espaço. É uma espécie de carapaça disforme, vinda de fora, importada. Vasta complexa, pesada, não está, pela enormidade da sua massa, em correspondência com a rarefação e o tamanho da população, que subordina.
Nesta perspectiva, para nos apresentarmos como uma matriz civilizatória de
fato, frente a outros povos e países há muito que fazer, sobretudo, compreender a
forma como se constituíram nossas instituições para justificar o modelo de Estado
131
brasileiro, patrimonialista, clientelista, burocraticamente centralizado atuante em
nossos dias.
REFERÊNCIAS
ANGHER, Anne Joyce (Org.). Código Comercial, Código Tributário, Constituição Federal -5. ed. São Paulo: Rideel, 2005.
DALLABRIDA, Valdir Roque (Org.). Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político-administrativa, estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimento e capacidades estatais. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
______. Desenvolvimento regional: por que algumas regiões se desenvolvem e outras não? 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2010. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 12 ed. São Paulo: Globo, 1997. IBGE. Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA). Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/protabl.asp?c=21&z=p&o=35&i=P>. Acesso em: 14 out. 2012. PÊGAS, Paulo Henrique. Manual de Contabilidade Tributária: análise dos impactos tributários das leis nº 11.638/07, 11.941/09 e dos pronunciamentos emitidos pelo CPC – 7. ed.- Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. PORTAL BRASIL, Disponível em: <http://www.portalbrasil.net/estados_sc.htm>. Acesso em: 14 out. 2012. SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Fazenda (SEF). Disponível em: <http://sef.sc.gov.br/relatorios/diat/estat%C3%ADsticas-e-indicadores-munic%C3%ADpios>. Acesso em: 30 set. 2012. ______. ______. Disponível em:<http://sef.sc.gov.br/relatorios>. Acesso em: 30 set. 2012.
132
O PLANEJAMENTO URBANO DE MUNICÍPIOS COM BASE NO PLANO
DIRETOR48
Rógis Juarez Bernardy49
INTRODUÇÃO
Há poucas décadas que os municípios brasileiros adquiriram autonomia
administrativa, o que canalizou aos mesmos uma série de atribuições legais no
campo social, na educação, na saúde, no desenvolvimento econômico, na
infraestrutura, no meio ambiente e no planejamento e na organização do próprio
território.
Os aspectos sócios espaciais dos munícipes são fortemente influenciados
pela capacidade que os atores locais possuem em criar pactos entre os diferentes
segmentos representativos, como o poder executivo municipal, as entidades
representativas da sociedade civil, as organizações não governamentais e os
próprios cidadãos de forma coletiva ou individualizada.
Um instrumento legal relevante para o processo de planejamento territorial é
representado pelas oportunidades geradas pela Lei nº. 10.257/01, denominada
Estatuto da Cidade (2001). Esta Lei regulamentou os artigos 182 e 183 da
Constituição Federal (1988) e possibilita, através do plano diretor, a aplicações de
instrumentos que contribuem para a efetiva qualificação do desenvolvimento,
inclusive de pequenos municípios (como aqueles com até 20 mil habitantes).
Neste contexto, este paper teve como objetivo realizar uma análise teórica da
viabilidade da aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade relacionada à
48
Este paper se baseia em discussões teóricas originalmente publicadas em artigo na Revista Desenvolvimento em Questão - ano 11 - n. 22 - jan./abr. 2013 p. 4 – 34, da UNIJUÍ. 49
Doutor em Cadastro Técnico Multifinalitário e Gestão Territorial (UFSC) e Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. Mestrado Profissional em Administração. Chapecó (SC). [email protected]. Palestra proferida no I Simpósio Nacional sobre Estado, Descentralização e Gestão Pública, promovido pelo Mestrado em Desenvolvimento Regional – da Universidade do Contestado – UNC em 2013
133
indução do desenvolvimento urbano, considerando a realidade de pequenos
municípios. Embora estes municípios não sejam contemplados no Estatuto da
Cidade, possuem possibilidades de regulamentação e aplicação de instrumentos
que podem auxiliar significativamente no desenvolvimento de seus territórios.
A aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade se constitui elemento
catalizador do desenvolvimento no âmbito urbano de pequenos municípios, pois,
está vinculado à otimização dos investimentos públicos, como na economia urbana,
no ordenamento do solo, nas parcerias entre poder executivo, investidores,
empreendedores e sociedade, além de abertura para a canalização de recursos
externos, com base na organização interna do território.
CONTEXTUALIZAÇÃO TÊMPORO-ESPACIAL DO FENÕMENO URBANO
Um marco na ascendência dos municípios, em nível de Brasil, foi a
Constituição Federal (1946), que nos Art. 28, determinou novas funções aos
municípios brasileiros, como as eleições de Prefeitos e Vereadores; a administração
própria e autônoma; a instituição de sistemas própriosde cobrança de impostos; a
instituição de sistemas de planejamentoe de gestão próprios; a instituição de
Legislações específicas, entre outras.
Quanto à gestão dos municípios, a partir da segunda metade do século XX,
com o crescimento das cidades, determinada pelo crescimento vegetativo e pela
mobilidade populacional rural e intra-urbana, surgiram novas demandas no Brasil, no
campo de infraestrutura, de localização de novas áreas para a urbanização, de
serviços públicos de atendimento básico à população, de moradia e outros. No
âmbito legal, embora já existissem formações urbanas desde o princípio do
processo colonizatório, no primeiro quartel do século XX (1938):
[...] as cidades foram todas transformadas em sedes municipais, independente de suas características estruturais e funcionais, através do Decreto Lei 311, de 1938. Este transformava a sede de freguesia, a vila em
134
cidade, portanto, existe uma recente evolução legal deste fenômeno no Brasil (VEIGA, 2008, p. 71).
Neste sentido, a cidade passou a ser o espaço de abrigo para a instituição do
núcleo municipal, sendo que entre os critérios definidos para a autonomia dos
municípios estava existência de um “núcleo urbano” como espaço adequado para a
instalação de “administração própria”, entre outros critérios, assegurando à condição
de autonomia aos municípios, conforme contemplado no Artigo 28, da Constituição
dos Estados Unidos do Brasil (BRASIL, 1946).
Para Lefebvre (2002) a evolução urbana “[...] é ao mesmo tempo espacial e
temporal: espacial porque o processo de estende no espaço que ele modifica e
temporal, uma vez que se desenvolve no tempo”, sendo que esta caracterização
conformou uma rede urbana brasileira centrada em poucas cidades de grande e
médio porte e muitas cidades de pequeno porte (IBGE, 2010).
Este processo fez com que as cidades tivessem determinadas
especificidades, no caso do estado de Santa Catarina foram construídas sob o
prisma de uma gênese de ocupação no litoral; a não integração econômica
(ausência quase que completa de atividades industriais); a formação urbana
rarefeita e tardia (segunda metade do século XX), configurada na relação com as
atividades não urbanas (o excedente de produção do espaço rural teve forte
conotação na formação de novas cidades), principalmente na região serrana e oeste
do Estado.
No contexto da formação têmporo-espacial urbana catarinense que inclusive
se caracteriza como incompleta pela ausência de cidades de grande porte, (a maior
cidade é Joinville, com 515.288 habitantes – IBGE, 2011), para o padrão brasileiro
se evidencia uma urbanização periférica ao contexto da rede urbana nacional.
Em Santa Catarina a criação de novos municípios, por desmembramento,
implicou na delimitação de novas áreas urbanas, sendo que as formas de
planejamento destes municípios não antecedem o uso do solo urbano, tampouco
rurais. Santa Catarina possui 79,18% dos seus municípios com até 20 mil habitantes
135
(IBGE, 2010). Nestes locais “o tecido urbano prolifera, expande e corrói os resíduos
da vida agrária [...] não apenas em relação ao domínio edificado, cristalizado e
visível, mas, no conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o
espaço rural” (LEFEBVRE, 2002, p. 17).
No Brasil, as cidades se multiplicam sem aóptica do planejamento e foram
influenciadas pela acentuada industrialização concentrada, mobilidade de pessoas
do espaço rural, grande crescimento vegetativo, diversificação das atividades
econômicas, ampliação dos serviços públicos e sistema educacional que se voltou
às cidades, entre outros
Neste caso, existe a necessidade de considerar um planejamento com base
na realidade territorial do município que considere as suas especificidades próprias.
Reconhece-se que o planejamento brasileiro é recente, parcial, incompleto e urbano,
em termos de ordenamento territorial, pois, praticamente não se manifesta no
espaço rural, onde o uso do solo se processa de forma muito mais empírica,
baseado na experiência de quem modela e transforma o uso do solo, por atividades
econômicas.
Quando se aborda a diferenciação do fenômeno urbano em uma região,
deve-se considerar que as demandas dos pequenos municípios não são idênticas às
demandas dos municípios de porte médio (acima de cem mil habitantes – IBGE,
2000), inclusive as mesmas não devem servir de referência para a implantação de
infraestrutura em cidades pequenas. Entre os desafios de planejar uma pequena
cidade está a necessidade de desvincular das implementações de cidades de porte
médio, pois, na atualidade “as cidades estão cada dia mais padronizadas e
uniformizadas” (JEUDY, 2005, p. 12).
Neste sentido, observa-se que os diferentes grupos sociais tendem a se
concentrar cada vez mais em diferentes locais (sítios) de uma cidade – locais de
exclusividade. O padrão mais conhecido de segregação é o centro e a periferia,
reproduzido inclusive em pequenos municípios, em função do confinamento
fundiário, do valordo uso do solo urbano (VILLAÇA, 2001). Como exemplo, cita-se
136
as zonas especiais de interesse social (ZEIS) via financiamento oficial, para
excluídos da moradia urbana, que são confinados em espaço periférico,
representando, também um mecanismo de exclusão e estratificação espacial e
social urbana que gera e intensifica a hierarquia interna urbana.
INSTRUMENTOS LEGAIS DO PLANEJAMENTO URBANO E MUNICIPAL
Inicialmente, no âmbito do estado nacional, as cidades tinham funções mais
“homogêneas”, principalmente vinculadas à moradia, em seus processos iniciais de
formação. Entretanto, conforme aumentou o contingente populacional, existem
tendências de maior diversificação de atividades econômicas que extrapolam o setor
comercial e se dinamiza, também, na indústria e serviços (neste caso, poderiam ser
acrescentadas as atividades informais).
Esta característica (diversificação das atividades econômicas) aliada a uma
expressiva mobilidade populacional do rural e o próprio crescimento vegetativo,
gerou expectativas de maior contemplação das políticas de desenvolvimento urbano,
previstas na Constituição Federal (1988), que ficaram centradas apenas no Capítulo
II, nos Artigos 182 e 183 (BRASIL, 1988).
Esta política de desenvolvimento urbana ressalta que será [...] executada pelo
poder público municipal, [...] tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (BRASIL, 1988)
e ressalta que o plano diretor será o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana. No caso, para os pequenos municípios,
parcela significativa dos mesmos (neste caso se utiliza o recorte demográfico de 20
mil habitantes) possui forte processo de redução populacional, conforme pode ser
atestado pelos dados censitários (IBGE, 2000 e 2010).
A Constituição Federal (1988) incluiu o conceito da “função social da
propriedade” e remeteu aos municípios, mediante lei específica, para as áreas
identificadas no plano diretor, “exigir, [...] do proprietário do solo urbano não
137
edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento”.
Portanto, a aplicação deste mecanismo legal, depende da instituição de um
planejamento, que seja aplicável no âmbito municipal.
No ano de 2001, após uma insatisfação com a pouca inserção das políticas
de desenvolvimento urbano, contempladas na Constituição Federal (1988) e o forte
apelo dos movimentos sociais, principalmente vinculados à reivindicação da moradia
urbana, o Congresso Nacional aprovou a lei denominada de Estatuto da Cidade
(LEI, 10.257, 2001; OLIVEIRA e CARVALHO, 2001; ROSSBACH, 2010 e
MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2006). Esta Lei instrumentaliza os municípios para
garantir o pleno desenvolvimento das “funções sociais da cidade e da propriedade
urbana” e representa um expressivo avanço em termos legais, embora ainda não
seja integralmente aplicada, na atualidade. Os instrumentos do Estatuto da Cidade
que se aplicam aos municípios, através do plano diretor, são de três modalidades:
indução do desenvolvimento; regularização fundiária e de democratização da gestão
urbana (ESTATUTO DA CIDADE, 2001).
O Estatuto da Cidade se instrumentaliza nos municípios através do plano
diretor municipal, sendo que se constitui como o principal mecanismo de
planejamento, embora não seja obrigatório para todos os municípios (uma
característica é que deve possuir mais de 20 mil habitantes). O Estatuto da Cidade
aborda as seguintes características do plano diretor: deve englobar todo o território
municipal (não apenas urbano); deverá garantir a participação social em seu
processo de elaboração, através de reuniões comunitárias e audiências públicas;
deverá ser revisto a cada dez anos, portanto, não é uma política de governo
(ESTATUTO DA CIDADE, 2001; OLIVEIRA; CARVALHO, 2001; ROSSBACH, 2010).
Neste sentido, para Souza (2005) o objetivo essencial do planejamento é
permitir que a propriedade garanta a sua função social e de forma sistemática
refletiria no cumprimento da função social da cidade, com a efetiva incorporação dos
instrumentos do Estatuto da Cidade.
138
Nos pequenos municípios, entre os mecanismos legais mais difundidos está a
Lei Orgânica Municipal, que comumente versa de forma muito simplificada e
superficial sobre o planejamento urbano e municipal. Em uma segunda escala seria
fundamental que os pequenos municípios tivessem um plano diretor, uma vez que
permitiria a existência de uma série de leis complementares e vinculadas, como o
código de posturas, de edificações, do sistema viário, do meio ambiente e outros.
Desta forma, o gestor público teria uma série de mecanismos legais para a tomada
de decisão, no que diz respeito ao planejamento municipal, entretanto, esta
sistemática não é difundida em pequenos municípios brasileiros (SILVA, 2008).
O desenvolvimento de um plano diretor no município não deve apenas
considerar as contemplações legais do Estatuto da Cidade, que limita para os
municípios acima de 20 mil habitantes, contudo, em função da necessidade de
contribuir para a equalização dos investimentos públicos e para a melhoria da
qualidade de vida da população. Desta forma, o enquadramento legal desta
modalidade de planejamento, poderia ser vinculado à Constituição Federal (1988)
(Artigos 182 e 183) e as respectivas Constituições estaduais.
O PLANO DIRETOR COM INSTRUMENTO DO DESENVOLVIMENTO MUNICIPAL
A abordagem do planejamento municipal não é tarefa simples, seja para uma
única área do conhecimento, seja para grupos sociais restritos que possuem uma
condição privilegiada quanto ao “mantenimento” de uma visão técnica-política sobre
o território municipal: exige a efetiva participação da sociedade. Por um lado, esta
participação fica parcialmente limitada pelo não rompimento de problemas
estruturais vinculados à incompreensão integral da dinâmica de um município. Por
outro, existe uma importante contribuição da sociedade pelo fato de conhecer
empiricamente os detalhes de sua realidade local, fator que pode contribuir para os
processos de planejamento.
139
A preocupação com o ordenamento das atividades econômicas, como o
princípio para o mantenimento das populações em seus locais de origens e a
dinâmica urbana, ou seja, como a cidade se organiza, permitindo que a população
tenha uma progressiva qualidade de vida, é uma das pautas mais importantes nos
processos de cristalização dos planos diretores, na atualidade.
O plano diretor tem um papel fundamental no exercício da cidadania, uma vez
que representa uma excelente oportunidade para o cidadão participar e fiscalizar,
conjuntamente com as instituições e o Poder executivo municipal (instituição de
conselho gestor), propiciando uma maior qualidade de vida, para os munícipes do
espaço rural e urbano. Em conformidade com Cullingwort (1997) devem-se
considerar elementos básicos em um processo de planejamento urbano e municipal:
a) reflexão orientada para o futuro; b) escolha entre alternativas otimizadas de
desenvolvimento; c) considerações de limites, restrições e potencialidades; d)
possibilidades de diferentes cursos de ações, os quais dependem de condições e
circunstâncias variáveis; e) preocupação com a resolução de conflitos de interesses.
O plano diretor é essencial para o uso adequado do solo no município, em
especial a previsão de crescimento urbano vertical ou horizontal, o desenvolvimento
econômico, as redes de infraestrutura e de serviços públicos, as limitações
urbanísticas para as edificações, a preservação ambiental, a habitação de interesse
social, a regularização fundiária e a gestão democrática e participativa. O plano
diretor é uma lei complementar da maior importância, pois estabelece as diretrizes e
as orientações a serem cumpridas para o desenvolvimento planejado do município,
portanto, se constitui como uma política municipal e não de governo (BERNARDY;
ZUANAZZI; MONTEIRO, 2008; SILVA, 2008).
Na atualidade, o planejamento de um município através do plano diretor, se
caracteriza por três esferas: a técnica, a legal e a política. A técnica está relacionada
às informações locais que servem de base para a prospecção territorial; a jurídica
diz respeito à análise de todas as condicionantes e características legais, em
diferentes esferas; a política diz respeito à mobilização comunitária, a participação
140
dos gestores públicos, das entidades representativas (como exemplo no núcleo
gestor) e da sociedade, tanto no processo de elaboração quanto de fiscalização na
aplicação do plano diretor. As dimensões técnica e política constituem os pilares do
planejamento e da gestão do desenvolvimento.
Uma condição essencial para o planejamento da cidade considerando seu
conteúdo político está vinculada à descentralização das decisões relativas à
transformação do espaço urbano, que permite ampliar o espaço de decisão local, a
participação do indivíduo na construção de seu cotidiano (PEREIRA, 2008).
A percepção sobre a necessidade de implantação de um plano diretor é do
gestor executivo municipal (prefeito), conjuntamente com a sociedade organizada
(entidades representativas) e cidadãos individuais. Esta percepção se dá quando as
leis municipais (quando existem) que oferecem suporte para o planejamento não
respondem mais pelas demandas atuais dos municípios, seja na implantação de
infraestrutura, de empreendimentos econômicos, expansão e verticalização urbana,
implantação de equipamentos comunitários e outros (BERNARDY; ZUANAZZI;
MONTEIRO, 2008).
Um fator essencial para a efetividade de um plano diretor diz respeito ao seu
processo de elaboração, uma vez que necessita ser embasado na realidade local,
sem a transferência de modelos padronizados de outros locais. Deve ser focado em
temáticas que irão aportar para o desenvolvimento de projetos e investimentos que
se convertam em melhoria na qualidade de vida da população (não atenda apenas
interesses de grupos hegemônicos).
As variáveis estratégicas contidas em um plano diretor devem ser utilizadas
integralmente para a captação de recursos externos (público ou privado), para os
investimentos em diferentes áreas nos municípios, portanto, o plano diretor se torna
a ferramenta principal, catalisadora de investimentos nos municípios. Desta forma,
tem uma função primordial na equalização dos investimentos públicos, pois, na
atualidade, as cidades possuem custos fixos elevados, principalmente pela baixa
141
densidade demográfica e pela retenção fundiária urbana (formação de áreas vazias
e subutilizadas) (BERNARDY; ZUANAZZI; MONTEIRO, 2008).
Entre as características desejáveis de um plano diretor, que se constitui como
um instrumento de indução do desenvolvimento urbano e municipal e deve estar
atrelada à flexibilidade (indução do desenvolvimento); a miscigenação de usos do
solo, evitando à monofuncionalidade; a infraestrutura, como definidora dos usos
urbanos; a preservação ambiental; a otimização da mobilidade e da acessibilidade; a
habitação de interesse social; os usos adequados dos vazios e a continuidade
urbana. Todas estas características estão em conformidade com a aplicação dos
instrumentos do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), conjuntamente com a gestão
democrática e participativa.
Após todo o processo de elaboração de um plano diretor, existe a
necessidade dos trâmites legais, para a aprovação na Câmara de Vereadores. Após
a sanção do Executivo municipal, deve-se instituir um Conselho municipal do plano
diretor, com entidades representativas, que possui a função de auxiliar na tomada de
decisão por ocasião de sua aplicação em período de até dez anos, com as
respectivas revisões periódicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre as demais características do tema desta pesquisa, salienta-se a difusão
de conhecimentos acerca da necessidade das ações dos gestores públicos
municipais estarem centradas em informações técnicas e legais que possibilita que
as cidades tenham características adequadas, em função dos investimentos
necessários, que permita uma qualidade de vida aos munícipes.
Salienta-se que o instrumento estratégico para a aplicação dos mecanismos
do Estatuto da Cidade nos municípios é o plano diretor, sendo que para cumprir esta
função, tem de ser desenvolvido com base na realidade territorial local,
142
especialmente com a identificação das áreas aptas a sofrerem as interferências dos
instrumentos do Estatuto da Cidade, em função de suas potencialidades específicas.
De imediato, a aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade,
proporciona vantagens competitivas aos pequenos municípios: diminuição dos
custos de implantação e manutenção de infraestrutura urbana, parceria entre público
e privado, cumprimento das funções social da propriedade, abertura para
financiamentos externos e consequente melhoria na qualidade de vida dos
munícipes.
Especificamente para os pequenos municípios (até 20 mil habitantes), pode
gerar um circuito de desenvolvimento equalizado, com base em unidades
administrativas difundidas sobre nos territórios, representando um ciclo contrário de
investimentos que se estruturam com maior vantagem, na atualidade, em municípios
de maior porte.
Desta forma, a atuação do poder executivo municipal, com base no plano
diretor, se vincula ao desenvolvimento local, pela atuação de investimentos não
apenas canalizados em funções básicas, entretanto, em estratégias de
desenvolvimento que contribua para a fixação da população em seus locais de
origem, com maior qualidade de vida.
A aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, contemplados no plano
diretor constituído com base na realidade municipal, modifica a tomada de decisões
pautadas eminentemente em critérios pessoais e personalistas que dificultam o
desenvolvimento de municípios de forma mais equitativa.
REFERÊNCIAS
BERNARDY, R. J.; ZUANAZZI, J.; MONTEIRO R. R. Território, planejamento e gestão: um estudo do Oeste Catarinense a partir da região da AMOSC. Chapecó (SC): Palotti, 2008.
143
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144
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145
A PRÁTICA DA AGROECOLOGIA NO ASSENTAMENTO MIMO, MUNICÍPIO DE
IRIENÓPOLIS (SC)
Eduardo Lando Bernardo50 Jairo Marchesan51
RESUMO: O presente artigo é resultado de uma visita técnica da VIII Turma do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado – UnC, Campus de Canoinhas (SC), da Disciplina de “Desenvolvimento Rural” ao Assentamento Mimo52, localizado no município de Irienópolis (SC). O Assentamento é resultado de uma ocupação por integrantes do MST no ano de 2004. Atualmente, há 11 famílias estabelecidas em uma área de 71,5 hectares, distribuídas igualitariamente em 6,5 hectares por família assentada. A maioria das famílias rurais trabalha na forma cooperativada. A referida visita possibilitou conhecer e analisar as práticas agroecológicas desenvolvidas no assentamento. Percebeu-se que a agroecologia é uma relação social com o ambiente, caracterizada principalmente por utilizar pequenas áreas de terra, mão de obra familiar e possuir respeito e interação harmoniosa com os bens naturais. Assim, concluiu-se que as questões ambientais e a prática da agroecologia no assentamento poderão mobilizar e incentivar outras iniciativas socioambientais e contribuir para a produção de alimentos saudáveis e ao desenvolvimento regional.
Palavras chave: Agroecologia, Assentamento, Sustentabilidade.
INTRODUÇÃO
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é denominado
como um movimento social camponês autônomo, cujo objetivo coletivo é a luta pelo
direito e dignidade no uso da terra, bem como a busca da reforma agrária e das
necessárias transformações sociais do País. O movimento iniciou-se na década de
50
Biólogo, Bolsista do Programa de Bolsas do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior – FUMDES e Discente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Universidade do Contestado – UnC, Canoinhas – SC. E-mail: [email protected]. Fone: +55 (49) 99257313
51Dr. em Geografia e Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Universidade do Contestado – UnC, Canoinhas – SC. E-mail: [email protected]. Fone: +55 (49) 99943678
52Em homenagem ao educador Manoel Alves Ribeiro, conhecido por Mimo, um idealizador da educação no campo e para o campo, bem como um precursor das escolas itinerantes nos assentamentos.
146
80 no município de Cascavel (PR), onde centenas de trabalhadores rurais, tais como
posseiros, atingidos por barragens, migrantes, pequenos agricultores, entre outros,
uniram-se para defender as pequenas e médias unidades de produção agrícola
(MST, 2013).
Devido a esses ideais e às dificuldades de sobrevivência no espaço rural
brasileiro geraram-se crescentes conflitos, contrários ao “modelo” de agricultura
proposto e imposto no país, caracterizado, principalmente, pelas grandes
propriedades, controle da produção agrícola por conglomerados agroindustriais,
mecanização agrícola e uso intensivo de agroquímicos. Com isso, o movimento
iniciou a construção de uma estrutura organizativa e propositiva com representação
em todas as esferas da sociedade, especialmente do campo, propondo relações
mais harmoniosas com o meio ambiente e de cooperação humana. E mais: tornou-
se o maior e o mais importante movimento popular do país, destacando-se pela
disciplina, dedicação e comprometimento com as questões agrárias, bem como com
a aproximação dos princípios e concepções da agricultura sustentável.
Através da agroecologia53, o MST reorientou o enfoque adotado nos
assentamentos rurais. Iniciou um processo de transição, até atingir mudanças
significativas na relação de trabalho e produção nas propriedades rurais. Além dessa
perspectiva, a agroecologia adentrou a esfera política como forma de contestação
ao modelo agroexportador representado pelas multinacionais (de insumos químicos
e de pesquisa em biotecnologia e transgênicos) e pelo agronegócio (BORGES,
2010).
Em parceria com entidades ambientais e educacionais, o MST busca
aumentar os conhecimentos sobre a realidade ambiental e, sobretudo, desenvolver
programas conjuntos de sensibilização para a necessidade de práticas ecológicas
que atendam à legislação ambiental brasileira, de preservação dos recursos naturais
53
É a ciência ou a disciplina que apresenta uma série de princípios, conceitos e metodologias para estudar, analisar, dirigir, desenhar e avaliar agroecossistemas, com propósito de permitir a implantação e o desenvolvimento de estilos de agricultura com maiores níveis de sustentabilidade (ALTIERI, 1995).
147
e produção de tecnologias agropecuárias e sejam menos agressivas ao meio
ambiente (OLIVEIRA, 2008).
CARACTERIZAÇÃO DO ASSENTAMENTO
Os agricultores assentados relataram as dificuldades encontradas na primeira
etapa do assentamento devido à falta de infraestrutura básica, como moradia,
energia elétrica, água, comunicação, transporte, entre outros problemas. Além disso,
a situação ecológica da área, que esteve submetida por mais de 40 anos à
predominância de reflorestamento arbóreo exótico (pínus), comprometeu
severamente as práticas agrícolas desenvolvidas nos primeiros anos do
assentamento.
Porém, com o passar do tempo e principalmente pela articulação social dos
assentados e com a colaboração e assistência técnica prestada por várias entidades
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, Empresa de
Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina - EPAGRI, Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA, Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC, Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC, Universidade do
Contestado - UnC, Cooperativa de Produção Agropecuária Dolcimar Luis Brunetto -
COOPERDOTCHI e Prefeitura Municipal de Irineópolis (SC), entre outras),
desenvolveu-se um rearranjo das atividades agrícolas na área, dinamizando a
economia, a qual se baseou na diversificação das atividades e na produção e
comercialização dos produtos agroecológicos.
A proposta tornou-se realidade no assentamento e mostra-se como
alternativa cooperativista em busca de um novo “modelo de desenvolvimento".
Nesse sentido, a coordenadora e agricultora54 do assentamento Mimo relatou com
orgulho as práticas adotadas no assentamento e a importância do meio ambiente e
das práticas agroecológicas.
54
Entrevista concedida por uma das líderes do Assentamento Mimo no dia 22 de março de 2013.
148
[...] A maior riqueza que temos aqui, dentro do assentamento, é o respeito com o meio ambiente, é um ensinamento que temos aqui, e principalmente receber sempre pessoas, como professores e alunos nos dão força para utilização da agroecologia [...].
Além do mais, segundo a entrevistada, a orientação é de que os assentados
exercitem os conhecimentos antropológicos tradicionais da agricultura, porém,
gradativamente incorporem e adaptem os novos processos tecnológicos
agroecológicos.
COOPERATIVISMO, FORMAS DE PRODUÇÃO E PRODUTOS
Para o Movimento (MST), a cooperação é uma virtude e também uma
ferramenta muito importante nas relações entre os assentados. Tal concepção
teórica e prática permite socializar o uso dos recursos disponíveis e aumentar a
produtividade, possibilitando a inserção no mercado com competitividade ampliada
(BORGES, 2010).
O manejo adequado do solo, preservação das florestas, fontes de água,
produção de compostos e fertilizantes ecológicos e a produção e difusão de
sementes crioulas são as bases e exemplos de ações e de produções aplicadas no
assentamento. Ou seja, tais concepções teóricas e práticas pautam a perspectiva
agroecológica.
[...] A agroecologia surge como um enfoque novo ao desenvolvimento agrícola mais sensível às complexidades das agriculturas locais, ao ampliar os objetivos e critérios agrícolas para abarcar propriedades de sustentabilidade, segurança alimentar, estabilidade biológica, conservação dos recursos e equidade junto ao objetivo de uma maior produção (ALTIERI, 1995).
No caso específico do assentamento Mimo, a forma de produção é
agroecológica. A mesma segue os modelos da consorciação e rotação de culturas,
que tem por objetivo um maior rendimento agrícola e cuidado com os recursos
naturais. A consorciação é o manejo adequado de vegetais compatíveis e capazes
149
de preservar a biodiversidade local, ajudando a limitar os surtos de pragas. Além
disso, contribui para a diversidade e dispersão de predadores naturais,
desenvolvendo o controle biológico natural.
As culturas agrícolas consorciadas são desenvolvidas no assentamento
partindo do princípio de uma cultura principal e de outras associadas e favoráveis a
esta. Um exemplo é a produção de alface (Figura 01 - A), consorciada com as
produções de couve, couve-flor, beterraba, repolho, entre outras. A rotação e o
manejo destes vegetais são precedentemente favoráveis às produções de alho,
batata, cebolinha e cebola. Além dessas produções, são cultivados milho, feijão,
abóbora, tomate, pepino, alecrim, hortelã, ervilha, salsa, manjericão, espinafre,
rabanete, pimenta, laranja, pêssego, banana, melancia, entre outros produtos
hortifrutigranjeiros.
Na produção animal, destacam-se a criação de suínos através do sistema
confinado em cama sobreposta (Figura 01 - C). Isto é, são criados em leitos de
palha e/ou maravalha, onde os dejetos produzidos sofrem um processo de
decomposição “in situ”, reduzindo assim os investimentos em edificações,
minimizando significativamente os impactos ambientais diretos, além de promover o
conforto e bem-estar animal. Consequentemente, ocorre a geração dos compostos
orgânicos produzidos através da compostagem do ciclo produtivo.
Conforme a Figura 1 – B, a criação de aves (galinha) é realizada em ambiente
semiaberto e protegido, oferecendo proteção contra os predadores. Esse sistema,
disposto sob um sombreamento vegetal, ameniza os impactos das variações de
temperatura, contribuindo para o conforto ambiental dos animais e diminuindo os
níveis de estresse.
150
Figura 01 - A: Cultura de vegetais em consorciação. B: Criação de aves em regime semiaberto. C: Criação de suínos em sistema de cama sobreposta. D: Leito de compostagem para produção de compostos orgânicos (biofertilizantes).
Segundo Veras (2005), as práticas agroecológicas resultam culturalmente da
racionalidade produtiva camponesa, pois se constroem sobre o conhecimento
agrícola tradicional, combinando aspectos culturais com elementos da ciência
agrícola moderna. As técnicas são apropriáveis e ecologicamente corretas,
permitindo a incorporação de novos elementos às práticas tradicionais de manejo
dos recursos naturais da unidade de produção e a elevação da produtividade
agrícola.
As práticas agroecológicas desenvolvidas no assentamento foram
impulsionadas através do Planapo (Plano Nacional de Agroecologia e Produção
Orgânica) através do Decreto nº. 7.794/2012, que representa o marco zero de uma
A B
C D
151
importante política para o setor. Representou um grande avanço e incentivo ao
desenvolvimento da atividade agroecológica, bem como em relação ao crédito rural.
O caráter científico e tecnológico da agroecologia demonstra a possibilidade
de percorrer um caminho diferente da produção agrícola convencional, capaz de
incorporar dimensões econômicas, políticas, sociais, ambientais e culturais,
alavancando um novo processo de condução da agricultura para novos patamares
de bases ecológicas sustentáveis (VERAS, 2005).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assentamento visitado integra e mantém laços com o movimento social
nacional (MST). As atividades agregam conservação ambiental, principalmente
através da produção agroecológica, busca da dignidade humana e apoio às lutas
agrárias dos trabalhadores rurais.
Percebeu-se que a agroecologia, como matriz de produção, estimula
estratégias de organização local, construindo certa identidade coletiva e
conquistando a simpatia de novos consumidores. Tal modelo agrícola promove
ações de rotação de culturas, abandono no uso de agroquímicos, preconização do
bem-estar animal, produção de biofertilizantes e absorção de técnicas e/ou práticas
modernas sustentáveis na agricultura.
Os produtos agrícolas (hortifrutigranjeiros) produzidos no referido
assentamento são consumidos primeiramente pelos assentados e os excedentes
são comercializados para os Programas de Alimentação Escolar regional. Outra
parcela é comercializada na sociedade regional através das feiras livres.
Dessa forma, conclui-se que as questões ambientais e a prática da
agroecologia no assentamento são capazes de mobilizar e incentivar outras formas
de ações socioambientais. Por fim, recomenda-se assistir aos documentários Sonho
de Rose (1987) e Terra de Rose (2001), da diretora e produtora brasileira Tetê
Morais, que apresentam a luta pela terra e a emergência do MST no país.
152
REFERÊNCIAS
ALTIERI, M. A. Agroecology: The Science of Sustainable Agriculture. Westview Press. Second Edition. Boulder - CO, 1995. BORGES, J. L. A. Crise do Produtivíssimo e a Transição Agroecológica no Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST. Anais do VIII Congresso Latino-Americano de Sociologia Rural. Porto de Galinhas (PE), 2010. MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 22 maio 2013. OLIVEIRA, J. C. A. Meio ambiente e educação ambiental no MST: Representações Sociais no Assentamento 10 de Abril no Município do Crato-Ceará. Tese de Doutorado. Curso de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Ceará – UFC, Ceará – CE, 2008. VERAS, M. M. Agroecologia em Assentamento dos MST no Rio Grande do Sul: entre as virtudes do discurso e os desafios da prática. Dissertação (Mestrado em Agrossistemas). Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis – SC, 2005.