Download - Alexandre Morais - redução maioridade penal
ÍND
ICE
0201
INTRODUÇÃOBREVE DESCRITIVO DOS ARTIGOS
PREFÁCIOCRIANÇA E ADOLECENTE. PRIORIDADE ABSOLUTA,DE FATO E DE DIREITO.
03SUAS OBRAS TÊM QUE CONTINUAR.CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA E LUIZ FERNANDOMENDES DE ALMEIDA
04A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇASE ADOLESCENTES NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DA ANCED.MARGARIDA MARQUES
05QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOS E ECA, 18 ANOS DEPOIS.ALEXANDRE MORAIS DA ROSAE ANA CHRISTINA BRITO LOPES
06DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI:AS ALGEMAS E OS SONHOS.SERGIO VERANI
07O 60º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃOUNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS.VANESSA OLIVEIRA BATISTA
0820 DE NOVEMBRO: ALÉM DE ZUMBI,TEMOS UM OUTRO A COMEMORAR.RICARDO DE PAIVA E SOUZA
09SITUAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL DE HOJE:INSEGURANÇA SOCIAL. POBREZA, DESIGUALDADES E TERRITORIALIDADE.WANDERLINO NOGUEIRA NETO
10NÃO-CRIMINALIZAÇÃO & IMPUNIDADE.SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS.WANDERLINO NOGUEIRA NETO
1118 ANOS DO ECA; 19 ANOS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA; 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO; 20 ANOS DO CEDECA-DOM LUCIANO MENDES; 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.LIGIA COSTA LEITE
12OS 120 ANOS DA ABOLIÇÃODA ESCRAVIDÃO.GILDA ALVES BATISTA
13DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃOE NUTRIÇÃO SUSTENTÁVEL.LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBAS
14A DEMOCRACIA NOORÇAMENTO PÚBLICOTHIAGO MARQUES
15A PRODUÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS PERIGOSOS: A QUEM INTERESSA?CECÍLIA M. B. COIMBRAMARIA LÍVIA DO NASCIMENTO
16PROMESSASQUEBRADAS.IRENE KHAN
17UM ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE ESTÃONAS RUAS – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL.MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNES
18A REFORMA DAS PRISÕES, A LEI DO VENTRE LIVREE A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO DO “MENOR ABANDONADO”.ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES
19BREVES NOTAS SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADEDA MEDIDA DE INTERNAÇÃO.RAFAEL CAETANO BORGES
PREF
ÁCI
O Criança e adolescente. Prioridade absoluta, de fato e de direito.
Esta publicação resulta do esforço em socializar refl exões sobre os direitos humanos de todas e todos, e de uma
tentativa de sistematização que permita questionar, confrontar a nossa própria prática, superando o ativismo.
É igualmente um “diálogo entre saberes: uma articulação criadora entre o saber cotidiano e os conhecimentos
teóricos, que se alimentam mutuamente”.1
No ano de 2007, companheiras e companheiros atuantes em diversas áreas de conhecimento contribuíram com
preciosas refl exões sobre as consequências perigosas de uma eventual redução da maioridade penal no Brasil.
Essa adesão possibilitou o lançamento da publicação intitulada “A redução da maioridade penal vai resolver
o problema da violência?”
Neste ano de 2009 celebram-se os 16 anos da Conferência de Viena (1993), os 21 anos da Constituição da
República, os 61 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), os 41 anos da ratifi cação brasileira
à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), os 19 anos
do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), 20 anos da Convenção Internacional pelos Direitos das Crianças
(1989), dentre outros aniversários, como os 121 anos da dita abolição da escravidão (1988).
Em 2009 comemoramos também os 15 anos da ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa da
Criança e do Adolescente, os 25 anos da Associação Benefi cente São Martinho (1984) e os 21 anos do CEDECA
D. Luciano Mendes de Almeida (1988).
Estas são conquistas signifi cativas no contexto da luta pela efetivação dos direitos humanos, pois são marcos que
simbolizam admiráveis avanços na compreensão da necessidade do respeito à dignidade do ser humano.
Do ponto de vista legal, o sistema de garantias avançou muito, porém ainda resta um grande abismo entre
o disposto pela norma e a realidade concreta experimentada por milhares de crianças e adolescentes.
Persiste arraigada no imaginário social uma ideia distorcida sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes,
sendo comum a reprodução de jargões do tipo: “lá vem o pessoal do direitos humanos”, “crianças e adolescentes
só têm direitos, não têm deveres”, “criança agora pode fazer tudo, o estatuto permite”, ou “depois do estatuto,
os pais e professores perderam o controle sobre as crianças”, “o estatuto é uma lei de primeiro mundo” e ainda,
“direitos humanos só defende bandido” ou “direitos humanos para humanos direitos”.
Lembramos também do fenômeno da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais e das constantes
represálias e ameaças que os defensores de direitos humanos ainda sofrem em seu cotidiano.
Ao senso comum, o termo “direitos humanos” parece representar “um lugar”, “um grupo de pessoas”, “o pessoal
dos direitos humanos”, que só aparece em situações muito restritas e que não é reconhecido como parte integrante
da sociedade e da prática cotidiana de luta pela garantia da dignidade da vida.
Todas e todos são titulares dos direitos humanos e, portanto, responsáveis por sua promoção. Os exemplos
de atuação nesse sentido são inúmeros: o médico no atendimento humanitário ao paciente, os agentes de
segurança pública no cumprimento estrito da lei e na relação com as comunidades, a professora na relação
respeitosa com seus alunos e colegas, as organizações sociais, pastorais, grupos de proteção do meio ambiente
e do desenvolvimento sustentável, o poder público na elaboração dos orçamentos e políticas públicas, pais
na relação afetuosa com seus fi lhos e as próprias crianças e adolescentes ao vivenciarem experiências concretas
de respeito aos direitos humanos.
Com esse espírito, renovamos nosso convite aos parceiros e parceiras, e a aceitação foi imediata. As refl exões
feitas por articulistas de diversas áreas do conhecimento apresentadas nesta publicação perpassam as mais
diversas vertentes dos direitos humanos.
“A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres
humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso
ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um
mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.”
(Hannah Arendt)
1 HOLLIDAY, Oscar Jara. Para Sistematizar Experiências. P.44
BREVE APRESENTAÇÃODOS ARTIGOS.
Iniciamos a publicação com o artigo “Suas Obras têm que continuar” produzido por Celina Mendes de Almeida
com a colaboração de Luiz Fernando Mendes de Almeida, sobrinha-neta e irmão de Dom Luciano Mendes
de Almeida, relatando a obra construída pelo bispo ao longo de uma vida de desprendimento material, dedicada
às crianças mais necessitadas e desassistidas.
O exemplo de vida de D. Luciano Mendes de Almeida continua sendo uma importante inspiração para o nosso
trabalho, principalmente nos momentos de desânimo diante das grandes difi culdades enfrentadas na área social.
Numa contextualização sob os aspectos e dimensões estruturais de resistência à defesa de direitos humanos
predominante na nossa sociedade, representação social da infância e da adolescência, e o papel do Estado Brasileiro,
Margarida Marques contribui com importantes considerações sobre os 15 anos de atuação e consolidação da
Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED, como referência de coalizão
pela defesa jurídicosocial de crianças e adolescentes em nível nacional, regional e internacional.
“Quase de Verdade” é um artigo de Alexandre da Rosa e Ana Christina Lopes que aborda os avanços
e desafi os do Estatuto da Criança e do Adolescente, marcado pelo princípio da prioridade absoluta, que
apesar de ser constitucional, ainda é sistematicamente desrespeitado em todas as regiões brasileiras,
especialmente devido a difi culdade que os atores jurídicos ainda têm para compreender o grande giro
na cultura dos direitos humanos representado pelo ECA.
“Pensar os direitos humanos no século XXI signifi ca pensar as formas de luta contra o Capital, contra a produção
dos seus valores ideológicos e da sua organização social, que limitam e restringem a própria vida”, é dentro dessa
lógica que Sérgio Verani, com muita lucidez e sensibilidade compartilha uma lição de justiça vivenciada na sua
infância e nos relata a análise de Machado de Assis sobre a lei de 28 de setembro de 1871, apelidada de Lei do
Ventre Livre. Por fi m, apresenta um exemplo da prática judicial do século XXI. Entre “as algemas e os sonhos”,
Verani nos proporciona refl exões políticas sobre o compromisso do Estado com a concretização das políticas
públicas e sobre as difi culdades na efetivação dos direitos humanos.
Na sequência, Vanessa Oliveira aborda as etapas históricas dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Parte da etapa de elaboração do documento, passando pela fase da Convenção Internacional e por
fi m, trata da fase ainda não concluída: a criação de instrumentos adequados para assegurar a observância dos
direitos e o respeito a dignidade humana.
Ricardo de Paiva e Souza nos apresenta importantes refl exões sobre a Convenção sobre os Direitos da Criança
(CDC), adotada por unanimidade pelas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, documento que enuncia um
amplo conjunto de direitos fundamentais – os direitos civis e políticos, e também os direitos econômicos, sociais
e culturais – de todas as crianças, bem como as respectivas disposições para que sejam aplicados.
A CDC não é apenas uma declaração de princípios gerais; quando ratifi cada, representa um vínculo jurídico para os
Estados que a ela aderem, os quais devem adequar às normas de Direito interno às da Convenção, para a promoção e
proteção efi caz dos direitos e liberdades nela consagrados. Este tratado internacional é um importante instrumento legal
devido ao seu caráter universal e também pelo fato de ter sido ratifi cado pela quase totalidade dos Estados do mundo.
Wanderlino Nogueira Neto nos contempla com dois artigos inéditos. No primeiro, aborda as possibilidades
da sociedade civil organizada em promover análises da situação da infância e adolescência no Brasil, a fi m de
aperfeiçoar a elaboração, coordenação e execução de políticas públicas garantidoras dos direitos humanos e do
acesso à justiça. O texto apresenta dados de fontes ofi ciais e de organizações sociais brasileiras e internacionais. Por
fi m, trata do conceito de “coesão social”, com foco no sentido de pertencimento e de valorização da identidade.
No artigo “Não-criminalização & Impunidade. Sistema de Garantia de Direitos Humanos”, apresentado durante
o III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o autor apresenta importantes
e atuais refl exões sobre a promoção e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos de crianças e/ou adolescentes.
Reconhece os direitos sexuais como direitos fundamentais do ser humano, como preliminar a ser assegurada
e a criminalização (ou não) do explorado sexual, com uma das possíveis respostas do Estado à violação dos
direitos sexuais de crianças e adolescentes.
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Com uma refi nada análise, Lígia Leite reconhece que apesar do Brasil ser signatário de diversos marcos legais nacionais e internacionais,
não há muito que se comemorar, uma vez que chegamos em 2009 “sem ver os resultados globais de inclusão de toda a população brasileira
em um projeto de nação e de futuro.” Lígia resgata a trajetória das políticas públicas sociais para a infância no Brasil com seus avanços
e retrocessos. No texto marcado por críticas, destaca que “o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso,
já que o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida sócioeducacional iniciada com a LDB em 1961 e com 50 anos
de atraso das Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”.
Com o texto “os 120 anos da Abolição da Escravidão” Gilda Alves Batista contribui com a refl exão sobre o sentido desse fato, analisando
dois conceitos importantes, que marcam a história dos afrobrasileiros: raça e democracia racial. Fundamentando-se em renomados
autores, compara as relações raciais de outros países com o Brasil.
O artigo de Leonardo Ribas é sobre o “direito humano à alimentação e nutrição sustentável” que, para o autor, é a base dos direitos
humanos e da cidadania. Leonardo aponta que “a solução para o problema da fome e da exclusão social passa por uma nova ordem social,
econômica e política que tenha como objetivo estratégico atingir o desenvolvimento sustentável.” O autor ressalta ainda a necessidade
de mecanismos que garantam o controle da cidadania sobre o Estado e da participação popular, pois sem estas os governos difi cilmente
escaparão da prisão da burocracia e dos laços da corrupção.
Nessa conjuntura, Thiago Marques contribui com considerações sobre “A Democracia no Orçamento Público”, cujo cerne está em buscar
o planejamento que satisfaça as prioridades estabelecidas pelas políticas públicas de acordo com as disponibilidades de recursos.
No artigo “A produção de crianças e jovens perigosos: a quem interessa?”, as psicólogas Cecília Coimbra e Maria Lívia do Nascimento
apresentam algumas produções de subjetividade, ocorridas em especial no Brasil do séc. XX, que tem caracterizado a população infanto-
juvenil subalternizada como perigosa, violenta, criminosa e não humana. São também analisados alguns efeitos de práticas que associam
essas características à pobreza.
“Promessas Quebradas” é uma introdução ao Relatório Anual da Anistia Internacional de 2008. O documento cita casos de violações
decorrentes da ação e omissão das grandes potências ao longo dos últimos 60 anos. Também são abordados os exemplos de liderança
construtiva de algumas nações, os desafi os para alcançar as Metas de Desenvolvimento do Milênio e a movimentação popular no sentido
de exigir a renovação do compromisso dos líderes com a defesa e promoção dos direitos humanos em nível global.
“Um encontro com crianças e adolescentes que estão na rua” é a exposição de Monica de Alkmim sobre sua experiência como pedagoga
diante da dura realidade de meninos e meninas que vivem nas ruas do Rio de Janeiro. Para a autora, a sociedade não deve achar natural a
moradia nas ruas; a existência de crianças vivendo nessa situação não é um momento histórico ou um problema específi co de uma classe
social ou econômica, uma vez que as “conseqüências de uma sociedade que tem como base a desigualdade e a dominação de um ser
humano por outro seu igual vividas diariamente pelo povo brasileiro.”
No texto “A reforma das prisões, a Lei do Ventre Livre e a emergência da questão do ‘menor abandonado”, Esther Arantes partilha
refl exões sobre a história das políticas para a infância no Brasil. O trabalho de intensa pesquisa, desenvolvido por Esther nos últimos
20 anos, ajuda a entender como o processo histórico do dito ‘sistema de proteção da infância’ deixou marcas profundas na infância
empobrecida brasileira, gerando refl exos em futuras gerações.
O texto destaca a necessidade de uma refl exão profunda sobre a “proteção integral” prevista na Convenção dos Direitos da Criança (ONU,
1989), incorporada na Constituição Federal e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cujos princípios básicos reconhecem
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e prioridades absolutas.
No instigante artigo “Breves notas sobre a inconstitucionalidade da medida de internação” Rafael Caetano Borges apresenta uma análise
crítica da permanente afronta ao texto constitucional no tocante à realização plena dos direitos da criança e do adolescente, dentre os quais
a inimputabilidade e todos os desdobramentos dela advindos – notadamente a proibição de submetê-los a penas privativas de liberdade.
O texto refl ete a contradição entre as fi nalidades pedagógicas e a privação de liberdade (internação) previstas no E.C.A., juntamente
com elementos colhidos do dia a dia da realidade nacional. O autor exemplifi ca por meio dos relatórios de violações de direitos humanos
produzidos pela Human Rights Watch e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em parceria com o Conselho Federal de Psicologia (CFP),
que demonstram a desumanização dos adolescentes encarcerados, retratando absoluto desprezo do Estado brasileiro pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente, e o resultado da total ausência de políticas públicas nesta área.
EQUIPE CEDECA - CENTRO DE DEFESADOM LUCIANO MENDES DE ALMEIDA.
8
Desde o falecimento do meu tio Luciano, há dois anos, passei
a ouvir muitas pessoas relatarem em vários testemunhos como ele
era uma pessoa santa.
Nós da família tínhamos o privilégio de conviver mais de perto
com ele, e constatarmos como ele era realmente uma pessoa
maravilhosa. Foram muitas as suas realizações, mas só aos poucos
fui entendendo porque ele era realmente especial. Infelizmente, só
fui conhecer algumas das inúmeras obras que ele cuidava, ou foi
a fonte de inspiração, depois de seu falecimento.
Quando era pequena lembro que fui uma vez a Mariana para visitá-lo
com meus pais, depois só retornei por ocasião do seu velório.
Nesta última visita a emoção foi muito forte, pois a cidade inteira
pranteava aquele que para eles era um santo, e eu me sensibilizei
com todas essas manifestações.
Recentemente, numa visita ao Centro de Defesa
dos Direitos da Criança e do Adolescente
- CEDECA, descobri por acaso que essa
organização possui o nome do meu tio Luciano
Mendes de Almeida. Esse centro é um braço
da obra São Martinho fundada pelos padres
carmelitas e completou vinte anos em novembro
de 2008.
Meu tio Luciano, que era arcebispo de Mariana,
foi secretário geral da CNBB por oito anos
e depois presidente por mais oito anos. No início de seu secretariado
na CNBB, foi responsável pela criação da pastoral do menor, que
era uma das suas principais metas. A criança pobre e desnutrida
era uma de suas grandes preocupações. Foi o responsável pela
criação de inúmeras obras de apoio à criança e ao adolescente,
não só escolares e profi ssionalizantes, mas também abrigos para
acolher meninos e meninas que iam chegando nesses centros
e ali encontravam o que lhes faltava e muitas vezes nunca
tinham recebido.
Lembro do meu tio dizendo que vários nunca tinham visto uma
escova de dente, pois não tinham alguém que lhes dessem
noções de higiene, carinho ou atenção – pequenos detalhes que
só conheceram quando tomaram contato com essa instituição.
Dom Luciano tinha uma expressão no olhar e um sorriso quando
estava no meio desses meninos que transmitia, além da segurança,
o amor que em muitos casos era desconhecido desses menores.
A semente plantada por ele, fruto da Pastoral do Menor, cresceu
e em muitos lugares já é uma árvore frondosa. Em Mariana, sede
de seu arcebispado, uma de suas obras se chama justamente
“A Figueira”. Ele nos explicava que tinha esse nome porque é
uma árvore com muitos galhos, cada um sendo uma ramifi cação
dessa assistência ao menor. A Figueira se dedica prioritariamente
àqueles que têm defi ciências físicas, principalmente locomotoras.
Durante o espaço de tempo que fi cam na Figueira, além de
alimentação recebem acompanhamento de monitores, assistentes
sociais e em alguns casos de médicos que procuram melhorar o
dia a dia deles, chegando a reverter a doença de que são vítimas
por falta de atendimento adequado. O custeio para manutenção
dessa obra, e de outras que ele fundou em Mariana, são obtidas
por doações resultantes de visitas que meu tio fazia àqueles
que ele sabia que podiam ajudar, e com a conscientização dos
paroquianos de Mariana e dos outros municípios abrangidos por
sua arquidiocese.
Hoje tenho notícias de que essas obras continuam, mas sofrem
com a falta de auxílio fi nanceiro essencial
para manter acesa a chama de esperança
dessas ações tão importantes para
a erradicação da miséria e da fome que
impedem o bem comum, tão necessário
à justiça social do nosso Brasil.
Nunca vou me esquecer das suas últimas
palavras, que pronunciou meu avô, antes
de ser sedado no hospital: “Não abandone
meus pobres”. Acho que isso demonstra
claramente como sua vida foi marcada
por uma entrega total e absoluta aos mais necessitados e um
desprendimento material que, espero, sirvam de exemplo e
possam atingir cada vez mais pessoas, inspirando os outros
a olharem mais para as crianças que necessitam principalmente
do amor e carinho de todos nós. O CEDECA e outras obras
são uma prova real da dedicação do meu tio Luciano para com
os pobres e os desassistidos.
Lamento só ter visitado essa obra depois que meu tio faleceu.
Meu convívio com ele não foi tão grande como eu gostaria, pois
os poucos momentos em que nós podíamos estar juntos eram
na ocasião do Natal ou quando ele vinha para celebrar algum ato
religioso. Hoje ele não está mais entre nós e as ocasiões em que
pude usufruir de sua companhia fi carão na minha lembrança e irão
nortear a minha vida familiar e profi ssional.
SUAS OBRAS TÊM QUE CONTINUAR.
* CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDASobrinha-neta de D. Luciano Mendes de Almeida
** LUIZ FERNANDO MENDES DE ALMEIDAIrmão de D. Luciano Mendes de Almeida
CELINA BEATRIZ MENDES DE ALMEIDA*LUIZ FERNANDO MENDES DE ALMEIDA**
“Dom Luciano tinhauma expressão no olhare um sorriso quando estava no meio desses meninos que transmitia, além da segurança,o amor que em muitos casos era desconhecido desses adolecentes.”
9
Introdução
Este artigo traz uma refl exão sobre os 14 anos da Anced - Associação
Nacional dos Centros de Defesa, posto na perspectiva do que
signifi ca ser uma organização de direitos humanos. Em absoluto,
aprofunda questões conceituais ou históricas, vivenciadas ao longo
desses 14 anos, simplesmente porque a articulista se reconhece
entre os mais novos na história desta organização e por saber que
a riqueza da sua experiência, formada por homens e mulheres
espalhados por este país, é mais profunda, mais complexa e mais
diversa do que seria capaz de traduzir aqui.
O que se pretendeu foi oferecer uma refl exão sobre os 14 anos
da Anced, inserida nos debates sobre os 18 anos do Estatuto da
Criança e do Adolescente, dos 20 anos da Constituição Federal
de 1988 e dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, situando-a nesta trajetória.
Considerando que toda essa riqueza foi possível
pela capacidade que a Anced tem encontrado,
ao logo desses anos, de conciliar a tarefa de
ser uma articulação acional e impulsionar
as ações locais desenvolvidas por cada Centro
de Defesa fi liado.
Fundada em 1994, a Anced reunia, em 2008,
trinta e seis Centros de Defesa fi liados. Sua
fundação dá continuidade a uma articulação
anterior, denominada Rede Nacional de Centros de Defesa, a
rede de Centros de Defesa, com o objetivo de fazer avançar na
organicidade e na atuação local e nacional.
Ao completar 14 anos, a Anced vem consolidando suas
refl exões/elaborações, tanto em relação ao seu papel como
ator político com um papel específi co a ser desempenhado,
qual seja o de uma organização de defesa jurídicosocial
de direitos infantojuvenis de expressão nacional, como também
o de ser um espaço de articulação de Centros de Defesa
espalhados por todo o país. Em qualquer desses papéis,
a Anced se reconhece como parte do movimento de infância.
A melhor maneira de falar da Anced é situando essa caminhada
nos processos que foram desenvolvidos nos últimos anos de luta
pela efetivação dos direitos humanos, pois não há como descolar
sua história desse processo.
1. Um rápido olhar acerca do contexto da luta por direitos
humanos no Brasil
No momento em que Anced se constituiu como associação
nacional, nós contávamos com quatro anos de aprovação do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, comemoramos
18 anos do ECA. Falar desta organização implica reconhecê-la
parte desta história.
A mudança do paradigma jurídicopolítico que reconhece crianças
como sujeitos de direitos é fruto de um amplo processo de luta
social dos anos 70/80, no qual as próprias crianças e adolescentes
fi zeram-se movimento. No Brasil, este movimento, que foi
internacional, coincidiu com nossa redemocratização e resultou
na adoção da CDC - Convenção Internacional dos Direitos das
Crianças e dos Adolescentes.
Apesar dos avanços, fruto da luta realizada pelos movimentos
sociais, da mobilização e da pressão política, não podemos
deixar de reconhecer que os últimos anos têm sido um tempo
de resistência e afi rmação das conquistas,
marcado pelo esforço coletivo de fazer valer
na prática aquilo que fomos capazes de impor
como marco legal, e inclusive tornou-se
referência em outros países. É por isso que,
mais do que contar sobre os 14 anos de
existência da Anced, é necessário traçar esta
trajetória respaldada por uma refl exão do
que representa a luta em defesa de direitos
humanos no Brasil, mais precisamente do
que signifi ca a luta em defesa de direitos
humanos de crianças e adolescentes.
Ao fazermos esta contextualização, levamos em conta os seguintes
aspectos/dimensões:
1. As razões estruturais e históricas de resistência à luta em defesa
de direitos humanos;
2. A representação social da infância e da adolescência,
predominante na nossa sociedade;
3. O desafi o de atuação no plano institucional;
4. O papel do Estado brasileiro, não necessariamente nesta
ordem.
Não podemos descolar a análise da nossa construção histórica,
pois somos um país formado a partir de uma história de opressão
e resistência, de conquista e escravização da população nativa
quase dizimada e da população africana trafi cada. Esta realidade
vai marcar as relações de poder em nosso país. E esse poder
baseia-se no lugar que se ocupa na sociedade, marcado pela
relação colonizados x colonizadores, senhores x escravos, patrões
x empregados, ricos x pobres.
Isso marca nossa realidade atual. A pobreza no país, embora tenha
A LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS EADOLESCENTES NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DA ANCED.
MARGARIDA MARQUES*
“Ao completar 14 anos, a Anced vem consolidando suas refl exões/elaborações, tanto em relação ao seu papel como ator político com um papel específi co a ser desempenhado, qual seja o de uma organização de defesa jurídicosocial de direitos infantojuvenis de expressão nacional, como também o de ser um espaço de articulação de Centros de Defesa espalhados por todo o país.”
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se reduzido nos últimos dez anos, continua a afetar com muito mais
intensidade as crianças e os adolescentes. Consideram-se pobres,
para fi ns da presente análise, as pessoas que viviam com rendimento
mensal familiar de até ½ salário mínimo per capita. Em 2007,
a PNAD revelou que 30% dos brasileiros viviam com esse patamar
de rendimentos. No caso das crianças e adolescentes de 0 a
17 anos de idade, a proporção de pobres era bem mais alta,
46%. Chama mais atenção ainda o percentual de 19,6% que
vivia com rendimento mensal familiar de até � de salário mínimo.
Em contrapartida, apenas 1,7% desse segmento da população
vivia com rendimento mensal familiar de mais de cinco salários
mínimos.
A distribuição da riqueza no Brasil caracteriza-se por extremas
desigualdades regionais, que também se refl etem na situação
das crianças e adolescentes. O Nordeste é a região que
reconhecidamente apresenta o maior percentual de pessoas
pobres (51,6% da população total). Quando se destaca apenas
a população jovem da região (de 0 a 17 anos de idade),
o percentual de pobres é maior ainda (68,1%). Destes, 36,9%
viviam com somente até ¼ de salário mínimo de rendimento
mensal familiar. Entre as crianças menores de 6 anos de idade, do
Nordeste, o percentual das que viviam com até � de salário mínimo
de rendimento mensal familiar é ainda mais expressivo: 39,3%.
Os dados da PNAD 2007 mostram que, quanto mais nova
a criança, maior a probabilidade de estar em situação mais
vulnerável qualquer que seja a região do país (Síntese de Indicadores
Sociais 2008, IBGE).
Já no debate sobre direitos, esta relação torna-se mais marcante,
a ponto de pôr em questão que alguns setores da sociedade
sequer tenham algum direito e da ausência/violação de direitos ser
naturalizada. Essa ausência de direitos, alicerçada pela ausência
de Estado, forma um Brasil à parte, um Brasil informal, um Brasil
que não conta e que não pode ser levado em conta.
Como na história não há linearidade, por mais que tenhamos
avançado na luta social, ainda não superamos todos esses
arquétipos e eles são retomados dia a dia, quando enfrentamos
as violações de direitos. Porque no Brasil, em princípio, a lei não
tem a força que tem em outras culturas. Gerando os simbolismos,
como por exemplo: “lei não é para os pobres”, “Cadeia não é para
os ricos”, “No Brasil, a lei existe para não ser cumprida”. Marilena
Chauí nos dá uma indicação da complexidade da nossa formação
histórica quando analisa os obstáculos à democracia brasileira.
Buscando nossa formação histórica a partir desses elementos,
ela aponta:
“Estamos, portanto, diante de duas séries de obstáculos à
democracia social, no Brasil: aquela decorrente da estrutura
autoritária da sociedade brasileira – que bloqueia a participação e
a criação de direitos – e aquela decorrente das novas ideologias
– que reforçam a despolitização provocada, de um lado, pela
fragmentação e dispersão das classes populares (sob os efeitos
da economia neoliberal sobre a divisão e organização sociais
do trabalho) e, de outro, pelo encolhimento do espaço público
e alargamento do espaço privado pela ação das três ideologias
contemporâneas, que reforma a ação privatizadora do Estado
neoliberal.” (Marilena Chauí – Considerações sobre a democracia
e alguns dos obstáculos à sua concretização).
A análise do papel desempenhado pelo Estado brasileiro é outro
aspecto importante a ser analisado. Este, ao longo da história,
esteve a serviço dos projetos das elites, em detrimento da efetivação
de direitos das maiorias sociais que, por sua vez, são as que
pagam o maior preço das consequências dos projetos econômicos
desenvolvidos. Exemplo disso é a atual crise do capitalismo
de dimensões econômica, social e ambiental. A preocupação
central do Estado é a de socorrer as instituições fi nanceiras.
Neste contexto de violência estrutural e negação de dignidade,
a representação da infância brasileira transita desde a completa
invisibilidade dos primeiros séculos da colonização, passando
pelas ideologias higienistas, menoristas, à resistência criativa dos
movimentos sociais de meninos e meninas na década de 80, que
inaugura um novo paradigma quanto aos direitos de crianças
e adolescentes e seu reconhecimento como atores sociais, sujeitos
de direitos. Neste novo paradigma, a sociedade adultocêntrica
é questionada e avançamos em garantias legais de direitos para
esse segmento social
Entretanto, estes avanços não signifi caram a superação das
representações socialmente construídas sobre a infância
e adolescência, em particular da infância e adolescência pobre,
e esta representação tem consequência sobre a política pública
e sobre a defesa de direitos humanos deste segmento. Ainda
convive, na sociedade, o olhar do passado, profundamente
impregnado, nas falas, nos gestos, no descaso da sociedade
e do Estado com a efetivação de seus direitos e com a condição
de silêncio e invisibilidade que a nossa história e cultura impôs
a crianças e adolescentes.
Nesse espaço, não poderemos fazer uma refl exão mais demorada
sobre o tema, mas é importante que tenhamos em conta que
a história da criança e do adolescente brasileiro foi construída
em uma sociedade adultocêntrica, patriarcal, escravista, onde
estão presentes as questões étnico-raciais, de gênero e classe
social e onde se construíram representações que posteriormente
geraram inter-relação entre conceitos, tais como: adolescência
e delinquência, pobreza e criminalidade, criança e tutela, políticas
públicas e repressão.
É certo que essas representações incluem hoje os interesses de
uma sociedade baseada na mercadoria e, portanto, no consumo,
e nesta condição crianças e adolescentes são alvo prioritário.
Lidamos, portanto, com uma contradição entre as representações
socialmente construídas da infância e adolescência e o novo
paradigma. Ângela Pinheiro nos aponta que “a representação social
inovadora da criança e do adolescente como sujeito de direito,
afi rmadas no texto da CF/88 parece estar em rota de coalizão com
marcas históricas arraigadas da cultura política brasileira, e que
a repressão, fundada no autoritarismo e na dominação, tem lugar
especial no trato público e no pensamento social concernentes
à criança e ao adolescente” (Criança e do Adolescente: Porque
o abismo entre a lei e a realidade).
Ao invés de superarmos a violência contra criança e adolescente,
vemos crescer as violações, seja porque a perspectiva de poder
11
adulto crianças se mantêm, alimentando o silêncio e a invisibilidade,
seja por conta das desigualdades sociais que afetam, sobretudo,
as crianças e adolescentes, tornando-os mais vulneráveis
e constituindo novos campos de violação de direitos, tais como
a comunicação de massa, a indústria cultural, a publicidade,
a criminalização...
Um elemento fi nal, neste breve cenário, diz respeito aos novos
espaços de atuação dos movimentos sociais. Além de novos
debates, a década de 1980 nos trouxe aprendizados que foram
sistematizados em propostas de construção de novos espaços de
intervenção, introduzindo o debate sobre controle social, cogestão,
participação paritária entre sociedade e poder público, espaços
defi nidores de políticas. Foram criados os conselhos de direitos,
fundos da infância e adolescência, realizadas conferências, entre
outras novas possibilidades de atuação.
Hoje, faz-se necessária uma avaliação do que tem representado
para o movimento esse nível de atuação mais institucionalizado,
repensando em que medida ele tem representado participação
real e em que medida tem funcionado como regulador ou
legitimador do Estado. São questões não tão novas, mas que
precisamos enfrentar e que também incluem o movimento
de direitos humanos.
2. A situação da infância e adolescência e o papel das
organizações de direitos humanos
A prioridade absoluta, defi nida tanto na CF/88 (art. 227) quanto no
Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 04), não tem garantido
a implementação de políticas públicas que revertam o quadro de
desigualdade e violações de direitos, colocando-se, junto com
o enfrentamento dos problemas estruturais, uma prioridade de
intervenção.
A Anced, no ano de 2007, por ocasião do Dia de Discussão Geral
da Comissão dos Direitos da Criança da ONU, quando foi discutido
o investimento na infância e adolescência, apresentou uma análise
das conseqüências desse modelo de desenvolvimento e da
falta de investimento desse modelo econômico para a infância
brasileira: somando-se os investimentos em 2006 nas áreas de
saúde, assistência social, trabalho, educação, cultura, direitos da
cidadania, habitação, saneamento, organização agrária e gestão
ambiental, calcula-se o montante de aproximadamente R$ 108
bilhões, ou seja, somando o gasto com todas essas áreas sociais,
ela representa somente 40% do gasto total com a dívida pública.
(segundo documento apresentado pela Anced para debate geral
com a ONU, em 2007).
Já em documento recente de análise da PLOA (Projeto de Lei
Orçamentária) para 2009, do Governo Federal, o Inesc confi rma
esta perspectiva quando aponta que tem havido uma redução dos
investimentos na área social: “O PLOA 2009 propõe a redução
do crédito orçamentário dos programas de combate ao trabalho
infantil (Peti) e exploração sexual de crianças e adolescentes”.
O programa de erradicação do trabalho infantil tem 348,7 milhões
como previsão para 2009, o que representa uma redução de
8,62% se comparado ao crédito orçamentário que o Peti recebeu
do congresso em 2008.
Esses elementos, que demonstram o quanto o discurso não
tem se confi rmado pela prática, revelam o longo caminho a ser
percorrido pelo movimento de infância. Em outras palavras:
como país, não temos desenvolvido políticas de enfrentamento
a questões estruturais.
A infância e adolescência brasileira, sobretudo a que está
entre a população mais pobre, tem sofrido mais fortemente as
conseqüências deste modelo. O trabalho infantil não foi erradicado,
pelo contrário, aumenta e conta com a naturalização e aceitação
junto à sociedade.
O número de adolescentes que atualmente encontram-se em
regime de internação é de 15 mil em todo o país, revelando que
o encarceramento tem sido a medida mais utilizada para lidar com
o adolescente em confl ito com a lei, indicando a incapacidade
da sociedade, da família e do poder público em lidar com esta
problemática. Deste modo, transformam os adolescentes nos
culpados pela violência e utilizam-se deste argumento para
o recrudescimento do discurso e de propostas favoráveis
à redução da idade penal e à ampliação de medidas repressoras
e institucionalizadoras de modo geral.
A violência contra criança e adolescente somente toma visibilidade
quando adquire interesse e dimensão midiática. Na prática, segue
sendo silenciosa, cotidiana e, na maioria das vezes, solitária.
Dá-se no plano doméstico e institucional.
3. Uma experiência: a Anced
É dentro deste cenário que a Anced se constitui e vem se fi rmando
como uma associação nacional, reunindo diferentes experiências.
Nesta condição híbrida, sendo uma associação e, ao mesmo
tempo, uma coalizão, a Anced lida com o desafi o de ser um
espaço de articulação, mas também de debates e de elaboração
teórica. De desenvolvimento de experiências locais, algumas
bastante inéditas, e expressão nacional e internacional, de um
conceito de atuação como uma organização de direitos humanos
de crianças e adolescentes. É associação de Centros de Defesa,
mas é também movimento social.
O plano trienal 2004-2006 trazia na sua apresentação a seguinte
síntese sobre a criação da Anced: “Com essa institucionalização
passou-se a contar com uma nova instância de abrangência
nacional de intervenção que, sem substituir a atuação de
cada um dos Centros em seus respectivos locais, os fortalece
e potencializa. A existência da Anced viabiliza também, do ponto
de vista estratégico, as representações desses Centros junto aos
demais atores nacionais de proteção e defesa de direitos.” (plano
trienal 2004-2006).
É no convívio e a partir dessa complexidade interna que a Anced
vem, ao longo destes 14 anos, agregando sua contribuição ao
movimento de infância. Entre essas contribuições, podemos citar
as discussões que viriam a se constituir posteriormente na idéia
do Sistema de Garantia de Direitos. Sobre esta construção teórica,
nos fala Margarita Bosh: “Com a fundação da Anced, em 1994,
se cristaliza, dissemina e divulga a refl exão iniciada à época da
Rede Nacional dos Centros de Defesa sobre a necessidade e o
12
formato de um ‘Sistema de Garantia de Direitos’ que contemple
três eixos fundamentais: Promoção, Defesa e Controle Social, e o
mesmo passa a ser objeto de estudo, capacitação e estratégia dos
Centros de Defesa e de outros atores sociais e governamentais.”
Naquele momento, estavam em discussão as instâncias que
deveriam ser responsáveis pela garantia dos direitos. Fazia-
se necessário desenvolver ações governamentais e não-
governamentais para a efetiva implementação desses direitos, seja
mediante o reordenamento de algumas instâncias governamentais
e não-governamentais, seja pela criação de outras.
A fundação da Anced veio, pois, fortalecer esse debate e contribuir
para o avanço na elaboração de uma proposta de Sistema de
Garantia de Direitos que contemplasse os três eixos fundamentais:
promoção, defesa e controle social dos direitos de crianças
e adolescentes.
Qual o papel de uma organização de defesa dos direitos infanto-
juvenis? Qual a abrangência da defesa de direitos humanos e como
vincular nossa prática de defesa à construção de uma ruptura
societária? À medida que a Anced levanta estes questionamentos
para si, tem também procurado avançar na elaboração de refl exões
que possam ser incorporadas à sua prática e ao movimento de
infância.
Essas questões dilemáticas têm acompanhando a Anced/Centros
de Defesa e têm servido como ponto de partida para as defi nições
orientadoras de sua ação/intervenção. É claro que 18 anos depois
da aprovação do ECA e 14 anos depois da criação da Anced, ainda
seguimos buscando respostas a estes e outros questionamentos.
Entre eles, está a necessidade de uma avaliação de nossa
intervenção no plano institucional, como já indicado anteriormente
neste artigo.
As estratégias de ação e debate
Entre as estratégias desenvolvidas pela Anced, na sua atuação e no
sentido de aprofundar os debates em torno de questões-chaves,
podemos destacar a criação de grupos de trabalho temáticos,
os GTs, nomeadamente o GT de enfrentamento à violência
sexual, o GT de combate à impunidade, o GT Ato Infracional,
o GT Orçamento Criança e o GT de monitoramento da Convenção
dos Direitos da Criança. Também tem procurado criar espaços
alternativos de troca de experiências entre os Centros. Outra
contribuição da Anced foi a construção do relatório alternativo da
sociedade civil sobre a implementação da Convenção Internacional
dos Direitos da Criança, em 2004. Em 2008, o relatório estava
outra vez em construção, em diálogo com importantes segmentos
da sociedade civil organizada, com destaque para participação de
crianças e adolescentes que, neste relatório, serão agregados de
forma efetiva e não colocados apenas como grupos focais.
Alicerçado nas experiências desenvolvidas pelos Centros de
Defesa, o debate sobre justiça juvenil aponta confl itos e buscas
comuns. O posicionamento apresentado pela Anced no encontro
do DNI (Defensa de Los Niños Internacional), em novembro
de 2007, procura ser uma referência para este debate quando
afi rma que “deve-se lutar pela minimização do direito penal e pela
ampliação da aplicação dos direitos humanos como fundamento
em normalização internacional e constitucional”.
E ainda: “A opção prática dos direitos humanos. Fazer cumprir
estes instrumentos é o ponto de certeza que se tem na Anced.”
É nesse espírito que se deu a participação da Anced na audiência
regional da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos, que discutiu a situação de adolescente
em privação de liberdade no Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina
e Chile. A Anced tem priorizado a participação em articulações
nacionais e internacionais, onde possa ser uma voz de denúncia
e debate da situação da infância. Sendo assim, a Anced fi liou-
se ao DCI/DNI em 2006, tornando-se sessão Brasil desta
organização internacional. Ao mesmo tempo, tem participado
em outros espaços de debate e articulação como, por exemplo,
a Redlamyc (Red latinoamericana e Caribenha dos direitos
de crianças e adolescente).
Alguns temas têm tido prioridade de intervenção da Anced,
refl etindo por sua vez a atuação dos Centros de Defesa, como
por exemplo, violência sexual contra crianças e adolescentes,
erradicação do trabalho infantil, monitoramento do orçamento
público, violência contra criança e adolescente.
A relação entre o local e o nacional fortalece a ação da Anced,
ao mesmo tempo em que possibilita a troca, o intercâmbio e o
aprendizado, não somente entre os Centros de Defesa, mas entre
diferentes atores nacionais e internacionais.
É, portanto, embasada na refl exão deste contexto de luta dos
direitos humanos no Brasil e na situação da infância, que a Anced
se posiciona na sociedade, referendando este posicionamento na
carta pública aprovada na sua última assembléia nacional: “Assim,
reafi rmamos nosso compromisso com o projeto éticopolítico
de uma sociedade justa, democrática e sustentável, pelo que
continuaremos a fazer do engajamento militante, da postura crítica
e independente frente a todos os governos e da proteção jurídico-
social de direitos humanos nossas ferramentas de projeção de um
mundo de homens e mulheres iguais em todas as suas gerações.”
(Assembléia Nacional da Anced – junho de 2008)
13
Fontes consultadas:
Chauí, Marilena – Considerações sobre a democracia e alguns
obstáculos à sua concretização
Pinheiro, Ângela – Crianças e adolescente no Brasil – Porque o
abismo entre lei e realidade. Editora UFC
Orçamento, direitos e desigualdades – Um olhar sobre a proposta
orçamentária 2009 –
Inesc- Outubro 2008
Documentos da Anced:
- Refl exões sobre as práticas da defesa jurídico-social por entidades
da sociedade civil – centros de defesa – Texto produzido por
Margarita Bosh
- Justiça juvenil: A visão da Anced sobre seus conceitos e práticas
em uma perspectiva dos direitos humanos. São Paulo. 2007
- Plano Trienal 2008-2010
- Plano trienal 2004-2006
- Orçamento e participação: uma contribuição brasileira –
Documento apresentado pela Anced ao Dia de discussão geral
da ONU-2007
* MARGARIDA MARQUESGraduada em Comunicação Social, especialista em Arte e Educação, faz parteda Coordenação Colegiada da Anced e da Coordenação do Cedeca - Ceará.
14
Dois mil e oito foi fadado a grandes comemorações voltadas para os
direitos humanitários: primeiro os 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos da ONU, depois os 20 anos da Constituição
da Republica que, de tão comprometida com os direitos
fundamentais, fi cou conhecida como Constituição Cidadã. Mas
o grande destaque comemorativo para os “heróis da resistência”2
, sem sombra de dúvidas, é o mais que emblemático “aniversário
dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente”.
É possível dizer que, nos três documentos comemorados, é tudo
“quase de verdade”... Mas aqui cabe-nos apenas refl etir sobre os
dezoito anos do Estatuto e daí a propriedade do uso do título de
história infantojuvenil de Clarice sobre o cachorro Ulisses, que late
uma “história que até parece de mentira e até parece de verdade”.
Foi a inspiração para falar do que no mundo real acontece com
o aniversário do Estatuto que, ao ser lido e colocado em confronto
com a realidade, também parece ora de mentira
ora de verdade, talvez situado no meio termo de
realidades singulares neste imenso país, muito
decorrente de decisões individuais de aplicação
efetiva do ECA.
Após grande luta pela redemocratização do País,
eleita a Assembléia Nacional Constituinte, foi
conquistado o artigo 227 da CR, fruto de grande
mobilização social de segmentos diversos
da sociedade envolvida e preocupada em
transformar as vidas de crianças e adolescentes.
Talvez, nenhum dos princípios seja mais “quase de verdade”.
O objetivo do Poder Legislativo era de que fosse possível reverter
a dívida histórica com um atendimento marcado pela caridade e
assistencialismo em detrimento da promoção de direitos humanos
para a infância e juventude, que fazia com que o público infanto-
juvenil fosse alvo da atenção apenas no viés abandono-delinquência,
objeto de ações repressivas e controladoras em sua maioria.
A urgente transformação de crianças e adolescentes em sujeitos
(e não mais objetos) de direito, tinha que ter uma força tal que
impedisse o esquecimento pelo mundo adulto das necessidades
básicas e fundamentais de pessoas em desenvolvimento, e foi
escolhida a expressão que pudesse destacar a importância
das providências z serem urgentemente praticadas: “prioridade
absoluta” para as ações pertinentes à garantia e defesa dos
direitos fundamentais elencados constitucionalmente: dois anos
após, ratifi ca-se o artigo constitucional na Lei 8069/90 – Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Alessandro Baratta (1998)3 anteviu a luta que seria travada: a reforma
legal teria força sufi ciente para mudar a cultura? Seria possível
trocar a lógica perversa da prática das políticas de repressão e
emergenciais pelas políticas públicas básicas? O que temos hoje?
Hoje, com toda segurança, podemos afi rmar que ele teve
discernimento e clarividência sufi cientes para prever o grande
desafi o de concretizar a transmutação de crianças e adolescentes
de objetos em sujeitos. Transformar as políticas públicas
de emergenciais e repressivas em básicas, com ênfase no
desenvolvimento de programas voltados para as necessidades
comuns ao público-alvo, porque sabia que as prénoções que
antecipam o sentido eram (e continuam, ainda) permeadas por um
totalitarismo antidemocrático decorrente da “ignorância funcional”
dos atores jurídicos, especialmente magistrados e promotores de
justiça, os quais não conseguem compreender o giro copernicano
avivado pelo ECA e a cultura dos Direitos Humanos.
E, de novo, a pergunta: o que temos hoje?
Em todos os segmentos da sociedade,
indícios de vivermos uma “ilegalidade ofi cial”,
diante da inobservância das leis: a prioridade
absoluta, apesar de princípio constitucional,
toma o perfi l de “fi cção jurídica”, bem como
muitos dos direitos humanos de crianças
e adolescentes inscritos no ordenamento
jurídico especial, transformando esta
área do direito em um verdadeiro
“conto de fadas” que, parafraseando o
famoso conto infantil, poderia se chamar
“O ECA no País das Maravilhas”. Esta poderia ser uma das
traduções do que se passa, embora o “Quase verdade” de Clarice
forneça um signifi cante mais adequado ao que pretendemos ou,
ainda, muitos outros títulos de histórias infanto-juvenis, no Direito
do Sítio do Pica-Pau Amarelo...
Quando refl etimos sobre os avanços e desafi os do Estatuto,
marcado pelo princípio constitucional da prioridade absoluta, não
devemos deixar de lado a dimensão do problema ao se fazer um
balanço e perceber que avanços existiram, mas que ainda estão
aquém, graças à violação ao princípio, que é nacional, e não regional,
estadual ou municipal, mas direcionador da Democracia!
Mais uma vez, pensemos: o que temos hoje, em maior ou menor
escala, em grande parte dos Municípios e Estados brasileiros?
- A não observância do artigo 4º do ECA, alíneas “d” e “e” não sendo priorizadas pelas políticas públicas na área e recursos nos orçamentos;
- Uma proliferação de ONGs para tentar diminuir o abismo entre o que a política de atendimento prevê como direito a
ser efetivado e o que temos como políticas públicas;
QUASE DE VERDADE: DIREITOS HUMANOSE ECA, 18 ANOS DEPOIS.1
1 O Título “Quase de Verdade” foi inspirado no livro de literatura infanto-juvenil de Clarice Lispector, autora muito admirada pelos autores deste texto que, assim, ao mesmo tempo que usam tomam emprestado o título para desenvolver o tema por possibilitar provocar uma refl exão crítica por parte dos leitores, ainda possibilita uma justa homenagem à autora que tanto admiram e de quem são leitores vorazes.
2 Expressão escolhida para tentar defi nir aqueles que se dedicam a lutar pelos direitos humanos, apesar das críticas sempre sofridas que os rotulam, muitas vezes, como meros “defensores de bandidos”.3 Criminólogo italiano, já falecido, considerado o grande ícone da Criminologia Crítica.
ALEXANDRE MORAIS DA ROSA*ANA CHRISTINA BRITO LOPES**
“Quando refl etimos sobre os avanços e desafi os do Estatuto, marcado pelo princípio constitucional da prioridade absoluta, não devemos deixar de lado a dimensão do problema ao se fazer um balanço e perceber que avanços existiram, mas que ainda estão aquém, graças à violação ao princípio, que é nacional, e não regional, estadual ou municipal, mas direcionador da Democracia!”
15
4 Baratta, Alessandro. In Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998, pg.20
- Adolescentes envolvidos com a prática de atos infracionais
ainda em delegacias para adultos, ou em unidades
de internação inadequadas e contrárias aos preceitos
indicados pelos estudiosos com maior probabilidade
de mudar a orientação deles para uma vida consoante
às condutas socialmente aceitáveis;
- Difi culdade em ter acesso à Justiça graças à inexistência de
Defensoria Pública em alguns Estados e, assim, à Defesa
Técnica obrigatória a que têm direito quando envolvidos,
por exemplo, com a prática de um ato infracional;
- Conselhos Tutelares que, muitas vezes, independente
da região em que se encontram, estão longe do que foi
idealizado pelo ECA. Conselheiros despreparados para
cumprir com a difícil missão de zelar pelos direitos de
crianças e adolescentes simplesmente porque, em alguns
casos, nem sequer leram o Estatuto antes de se elegerem
e não podem garantir o que desconhecem;
- Processo de eleição de Conselheiros Tutelares (quando
existem) completamente “viciado” pelas mesmas mazelas
das eleições para cargos políticos de vereadores, prefeitos,
deputados... (ex.: compra de votos);
- Conselhos de Direitos que ainda não têm clareza sobre
quais são suas reais atribuições: controlar ações em todos
os níveis e deliberar políticas públicas para a infância
e juventude e, ainda, incorrendo no perigo de inverter
a lógica do que é prioridade absoluta por ações, tais como:
. Plenárias e Comissões que se transformam em
“reunião de adultos” defendendo seus interesses
institucionais ou dos órgãos que representam (se
governamentais), fi cando em último plano a vez
e voz dos sujeitos que deram causa a todos estarem
ali reunidos quinzenal ou mensalmente;
. Conferências (Municipais, Estaduais e Nacional) que
roubam os olhares e a atenção de todos durante
o ano de suas realizações, com disputas acirradas
e muita discussão sobre os que poderão participar
das mesmas. Os temas escolhidos para serem
debatidos, exaustivamente, muitas vezes não
revertem nas políticas públicas que deveriam ser
deliberadas, com base nas sínteses registradas nos
Anais das Conferências pelos Conselhos;
. Uma sociedade que, muitas vezes, “desorganizada”
e desarticulada por interesses “confusos”, diversos
dos que deveriam nortear as ações dos Conselheiros,
desperdiça a conquista da mesma sociedade civil,
quando mobilizada e organizada, em participar da
deliberação de políticas públicas pelos Conselhos de
Direitos e adiando a vitória destes espaços contra-
hegemônicos vitais para a transformação e efetivação
dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
- Um universo de explorações, muitas vezes iniciada pelas
mãos dos familiares (prática histórica e mundial), com
viés mercantilista, seja da mão-de-obra, seja do corpo
da criança e do adolescente. Crianças e adolescentes
transformados em mercadoria de troca ou objeto de lucro
(prostituição infantil, meninos vendidos como jogadores
de futebol para o exterior, trabalho no lixo, nos canaviais,
no tráfi co etc.);
- Universidades cujos cursos de graduação em Direito não
contemplam em suas grades curriculares a obrigatoriedade
do ensino do direito da criança e do adolescente, muitas
vezes, nem como opção livre e acarretando, como
conseqüências:
a) Futuros operadores de direito que se transformarão
em profi ssionais de carreira pública, como
promotores, defensores públicos e juízes, que irão
operar o sistema de garantia de direitos sem sequer
conhecerem o texto básico legal (Estatuto), que não
é o sufi ciente para trabalhar com as questões do
universo infanto-juvenil, que exige conhecimentos
interdisciplinares (psicologia, pedagogia, medicina,
serviço social...);
b) Baixa capacidade de compreensão do ECA
por magistrados e promotores, reiterando-se
o espetáculo das derrapagens totalitárias, de gente
que confunde proteção integral com sua opinião
pessoal e tranforma o ECA num instrumento de
opressão, especialmente porque assiste a “banda
passar falando coisas de amor” e se acovarda diante
de um Poder Público que se omite reiteradamente;
c) Despreparo técnico de advogados para trabalhar
na defesa da parcela mais vulnerável da sociedade,
afastando a concretização da ampla defesa
e difi cultando o sucesso na garantia do direito
a ser defendido. Temos centenas de advogados nas
áreas cível, família, tributária, penal, trabalhista, mas
um número ínfi mo de profi ssionais que conhecem
e podem advogar no âmbito infanto-juvenil, com
todas as especifi cidades nos seus procedimentos
e que, quando resolvem atuar, acabam colocando
em risco a defesa adequada daqueles por quem
estão atuando.
Este novo direito apresenta uma grande demanda de profi ssionais
que possam operacionalizar e tirar do papel as conquistas da
reforma legislativa. A Constituição da República de 1988, 20 anos
atrás, ordenou que todos fossem responsáveis pelos direitos
fundamentais de crianças e adolescentes: a família, a sociedade
e o Estado. Não se pode tolerar, assim, gente que rasteja no
campo da infância e juventude, negando-se a cumprir o caráter
emancipatório do ECA.
É hora de nova mobilização social, a exemplo do ocorrido na
década de 80. Que 2008 seja um marco: a retomada, não mais
para conquistar uma lei preponderantemente comprometida
com os direitos humanos, mas pela efetivação desta, como já
disse Norberto Bobbio. Alessandro Baratta, do alto do seu olhar
visionário, indicou a difícil luta para a concretização do projeto
de uma sociedade mais igualitária e mais justa necessária para
a aplicação do novo direito da infância e da adolescência: “(...)
o caminho hoje no Brasil e em todo o mundo do capitalismo real
é o das lutas pacífi cas e tenazes, para se assegurar e impor que
a Constituição e a lei sejam aplicadas em todas as áreas. Revolução
social signifi ca sinergia de todas as lutas pela defesa e plena
realização dos direitos sancionados pelas leis, pelas constituições,
pelas convenções internacionais, (...) Hoje, utopia concreta
é a legalidade constitucional (...)”4
16
Dez anos já haviam sido transcorridos da promulgação da
Constituição da República à época em que ele escreveu estas
palavras. Agora, vinte anos depois, é possível dizer, com toda
segurança: ter a melhor lei nacional para crianças e adolescentes,
ter uma Carta Magna que ordena a prioridade absoluta para
a garantia e efetivação destes direitos, não é (foi) uma condição
sufi ciente em todos estes anos para transformar a realidade,
embora necessária.
No mundo do “faz-de-conta”, até utopia é diferente: o desejo
é de alcançar a legalidade material que só foi alcançada até certo
ponto. Há que se admitir que, felizmente, nem tudo se perdeu.
Muitas conquistas existiram com base na lei predominantemente
comprometida com a garantia dos direitos humanos de crianças
e adolescentes, graças a um pequeno, porém perseverante,
número de guerreiros pró-direitos de crianças e adolescentes.
O que nos move a continuar na luta e, por exemplo, escrever este
artigo, é o desejo de termos uma sociedade na qual tenhamos
leis que, quando lidas para os que ainda as desconhecem,
não provoquem comentários jocosos e piadas quanto à sua
veracidade.
Queremos uma sociedade na qual o “faz-de-conta”, o “lúdico”,
exista só nas brincadeiras e na literatura infantil, como a de
Clarice, mas que, em especial, no que diz respeito ao consagrado
e festejado “princípio da prioridade absoluta” – no que concerne
à preferência na formulação e na execução das políticas sociais
públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude – seja tudo
de “verdade verdadeira”. Se para a consagrada autora, a verdade
só é como tal no mundo de quem gosta de inventar, sejamos
mais criativos que os que vêm sendo vitoriosos na arte de criar
estratégias para continuar perpetuando o status quo de objetos,
característico de crianças e adolescentes no Código de Menores,
que insiste em se manter em vigor em vários aspectos, mesmo
18 anos depois de ter sido revogado, principalmente na cabeça de
gente com uma cultura jurídica mofada! Sem contar os “menoristas
enrustidos”...
“Inventemos” mais e mais maneiras de criar mecanismos para
superar a criatividade inspirada em uma lógica perversa dos que
inventam para perpetuar a cultura de desprezo e exploração dos
mais frágeis e vulneráveis. Talvez, com Clarice, possamos entender
o caráter e a função de uma “quase verdade” na construção da
cidadania infanto-juvenil, porque desde 1988 nem todos viveram
felizes para sempre...
*ALEXANDRE MORAIS DA ROSAJuiz de Direito da Infância e Juventude de Joinville (SC), Doutor em Direito (UFPR)e Professor do Programa de Mestrado/Doutorado da UNIVALI-SC.
**ANA CHRISTINA BRITO LOPESSecretária da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, Mestre em Ciências Penais,Professora da PUCPR e Coordenadora do Curso de EspecializaçãoPanorama Interdisciplinar do Direito da Criança e do Adolescente da PUCPR.
17
No ano de 2008 registraram-se algumas datas signifi cativas
para a garantia dos Direitos Humanos: 120 anos da Abolição da
Escravatura, 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente,
20 anos da Constituição Federal, 60 anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos.
Entretanto, o início deste jovem século XXI caracteriza-se,
globalizadamente, por uma aprofundada concentração privada
das riquezas, por uma intensifi cação da segregação social, pela
fragmentação dos interesses públicos/coletivos e dos movimentos
comunitários, por uma exacerbação da desigualdade social e do
sofrimento humano.
O Capital, hegemônico e soberano, conseguiu,
nesta sua fase histórica, desenvolver, como
nunca antes, o seu incontrolável impulso para
a morte e para a destruição do humano.
Pensar os Direitos Humanos no século XXI
signifi ca pensar as formas de luta contra
o Capital, contra a produção dos seus valores
ideológicos e da sua organização social, que
limitam e restringem a própria vida.
A História ajuda a pensar.
Criança, fi z o curso primário no Grupo Escolar Ribeiro de Almeida,
em Nova Friburgo. As crianças da cidade, todas as crianças – as
pobres, as menos pobres, as fi lhas dos operários das fábricas, as
fi lhas da classe média e da burguesia –, todas as crianças estudavam
no Grupo Escolar, escola pública de alta qualidade (minha mãe era
professora do Grupo e meu pai era Promotor de Justiça da cidade).
Criava-se um vínculo social entre as diferentes crianças – estudavam
juntas, brincavam juntas, jogavam futebol na rua. Estabelecia-se
uma forte ligação comunitária e afetiva.
Pensar os Direitos Humanos é também pensar a memória, não
deixar que o esquecimento prevaleça. Por isso, lembro-me de
duas professoras do Grupo Escolar.
Dona Maria José Braga era um grande exemplo de competência,
de seriedade, de dignidade, de respeito por todas as pessoas.
Comentava-se, porém, quase cochichando, que ela e o marido...
eram comunistas...
Naquela época, início dos anos 50, o comunismo era considerado
o “mal do século”, comunista comia criancinha, era um ser bárbaro
e desumano.
Mas o exemplo humano da professora Maria José me intrigava,
ela era a contestação viva daquela fraudulenta propaganda
anticomunista. E comecei a pensar e a descobrir como as belas
mentiras eram inventadas pela ideologia do Capital. Se Dona Maria
José era uma pessoa assim, integralmente humana, o comunismo,
então, não podia ser identifi cado como alguma coisa desumana,
cruel e desprezível, muito pelo contrário.
A outra professora lembrada é Dona Arésia Winiwarter, Diretora do
Grupo Escolar.
Era um dia de jogos esportivos, eu participava do campeonato de
corrida, e cheguei em primeiro lugar junto
com outro menino, negro e pobre, da minha
sala. O prêmio seria um estojo, daqueles de
madeira, puxava-se a tampa e havia vários
espaços separados, para lápis, borracha,
apontador etc.
A Diretora anunciou que faria um sorteio,
colocou dois papeizinhos numa sacolinha
e sorteou o nome do menino negro e pobre.
Fiquei um pouco desolado, desconfi ei do
sorteio, e Dona Arésia veio me consolar:
não fi ca triste não, você já tem um estojo bonito, eu sorteei o seu
amigo porque ele não tem nenhum e nem pode comprar...
A minha primeira sensação foi sentir-me injustiçado com o sorteio
dirigido. Hoje, acho que Dona Arésia, Diretora da escola pública,
deu uma grande lição de Justiça. A Diretora era o Estado intervindo
para favorecer o mais desfavorecido, era o reconhecimento de
que o menino negro e pobre poderia ter o direito e a alegria de
ganhar um estojo, premiado pelo seu mérito.
Não éramos, eu e meu amigo, iguais perante a lei naquele momento;
ele tinha mais direito ao estojo do que eu. O desempate seria pelo
acaso do sorteio. E a Diretora, intervindo no acaso, tornou-o justo
e humanizado.
A lição de Dona Arésia produz também uma séria refl exão política,
sobre o compromisso do Estado com a concretização das políticas
públicas. Cada vez mais, obediente ao projeto político neoliberal,
o Estado afasta-se e ausenta-se da sua responsabilidade
pelas políticas públicas, delegando e repassando esse dever
constitucional aos setores privados.
DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI:AS ALGEMAS E OS SONHOS.
SERGIO VERANI*
“Lutar pelos Direitos Humanos é,
também, exigir que o Estado não se
privatize, transformando o próprio serviço
público em mais uma mercadoria;
lutar pelos Direitos Humanos é, também,
exigir que o Estado exerça o seu
compromisso constitucional para
a garantia da cidadania, da dignidade
da pessoa humana, da erradicação
da pobreza, da marginalização
e das desigualdades sociais.”
“Segue-se a segunda etapa, a invenção de nova vida – o apenas
a construção da nova realidade social na qual nossos sonhos utópicos
serão realizados, mas a (re)construção desses próprios sonhos.”
(Slavoj Zizek)
18
A coisa pública vai deixando de ser pública, torna-se uma coisa
privada.
Lutar pelos Direitos Humanos é, também, exigir que o Estado não
se privatize, transformando o próprio serviço público em mais uma
mercadoria; lutar pelos Direitos Humanos é, também, exigir que
o Estado exerça o seu compromisso constitucional para a garantia
da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da erradicação da
pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais.
O Estado não pode tornar-se um mero espectador do acaso, mas
deve intervir no acaso, como fez Dona Arésia, para a construção
dos Direitos Humanos.
Uma lembrança histórica, a respeito da Abolição da Escravatura,
ajuda a compreender a necessidade dessa intervenção no acaso
e nas relações privadas.
O historiador Sidney Chalhoub, no seu livro “Machado de Assis,
Historiador” (Companhia das Letras S.P., 2007) – 2008 também
foi a data dos 100 anos da morte de Machado –, faz uma longa
pesquisa sobre “Escravidão e Cidadania: a experiência histórica
de 1871”. Trata-se de uma análise sobre a lei de 28 de setembro
de 1871, apelidada Lei do Ventre Livre.
Chalhoub mostra que, durante a discussão do projeto de lei:
“O debate, portanto, consistia em saber se o poder
público deveria ou não intervir no domínio privado dos
senhores sobre seus escravos.”
Uma corrente sustentava que “o Estado tinha de submeter
o poder privado dos senhores ao domínio da lei; não havia
alternativa para obter a emancipação dos escravos.” De outro
lado, o pensamento mais conservador “recusava-se a debater
a questão da emancipação; ao invés disso, parecia empenhado
em aperfeiçoar a escravidão, em torná-la mais ‘humana’, como
se dizia”. Era “a fi na fl or da resistência escravocrata”: “o partido
conservador sempre esteve convencido da necessidade de deixar
que o problema da emancipação se resolvesse por si, por uma
transformação lenta e pela revolução social dos costumes”.
A escravidão, segundo os conservadores, seria naturalmente
extinta, com a evolução do desenvolvimento social, desnecessária
a intervenção do Estado na relação privada/doméstica entre os
senhores e seus escravos...
Sidney Chalhoub observa que Machado de Assis, no conto
“Mariana”:
“Parece sugerir que não havia saída para o problema
da escravidão por dentro das relações instituídas entre
senhores e escravos. A mensagem inescapável do
conto é a necessidade de o poder público submeter
o poder privado dos senhores ao domínio da lei. Era
preciso intervir nas relações entre senhores e escravos
e promover a superação da instituição da escravidão,
enfrentando decididamente os interesses sociais e
econômicos que ainda a sustentavam.”
Ao mesmo tempo, Chalhoub analisa os pareceres do funcionário
público Machado de Assis, à época chefe da seção do Ministério
da Agricultura encarregada de acompanhar a aplicação da Lei do
Ventre Livre.
O regulamento da lei determinava que “os escravos que não forem
dados à matrícula por culpa ou omissão dos senhores serão
considerados libertos, salvo aos mesmos senhores o meio de
provar, em ação ordinária, o domínio que têm sobre eles, e não ter
havido culpa ou omissão sua na falta da matrícula.”
Surgiram divergências quanto ao cabimento, ou não, da
apelação “ex offi cio”, nas hipóteses de decisões contrárias à
liberdade. E o funcionário público Machado de Assis orientava
o seu parecer sempre no sentido de garantir a liberdade:
“Outrossim, convém não esquecer o espírito da
lei. Cautelosa, equitativa, correta, em relação à
propriedade dos senhores, ela é, não obstante, uma
lei de liberdade, cujo interesse ampara em todas as
partes e disposições. É ocioso apontar o que está no
ânimo de quantos a tem folheado; desde o direito e
facilidades da alforria até a disposição máxima, sua
alma e fundamento, a Lei de 28 de Setembro quis,
primeiro de tudo, proclamar, promover e resguardar
o interesse da liberdade. Sendo este o espírito da
lei, é para mim manifesto que num caso como o do
art. 19 do regulamento, em que, como fi cou dito, o
objeto superior e essencial é a liberdade do escravo,
não podia o legislador consentir que esta perecesse
sem aplicar em seu favor a preciosa garantia indicada
no art. 7º da lei”. (refere-se ao recurso ex offi cio).
Este parecer é de 21 de julho de 1876.
Conclui Sidney Chalhoub:
“Machado de Assis foi de longe o autor do parecer mais
politizado e incisivo da série. Seu discurso lembra os de
advogados abolicionistas que encontrei tantas vezes
nas ações de liberdade estudadas para a elaboração
de Visões da liberdade.”
Lembre-se que Machado de Assis não tinha formação jurídica,
era um escritor, mas sabia compreender “o espírito da lei”, sabia
que “a Lei de 28 de Setembro quis, primeiro de tudo, proclamar,
promover e resguardar o interesse da liberdade”.
Um retorno, agora, à prática judicial do século XXI.
Alguns juízes das Varas da Infância e Juventude fazem uma
interpretação violadora dos princípios e normas do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Aplica-se a medida de internação ao ato infracional análogo ao
crime do art. 33, da lei 11.343/06 – tráfi co de entorpecentes –,
com a injurídica justifi cativa de que há “violência e grave ameaça
à sociedade inerentes ao tráfi co”. E, para “proteger o adolescente
infrator, estimulando-o a abandonar a prática de atos infracionais”,
é preciso afastá-lo “do convívio que lhe é prejudicial”, impondo-se
19
“a conscientização através da imposição de limites mais rígidos”.
Estas são expressões de uma sentença da Vara da Infância e
Juventude de São Gonçalo, aplicando ao adolescente Diego, de
15 anos, a internação, “sendo inefi ciente a aplicação de qualquer
outra medida sócio-educativa”,
Na audiência de julgamento, realizada em 03.09.08, a Defensora
Pública requer que “sejam retiradas as algemas do adolescente,
diante do entendimento do S.T.F., em 07.08.08, de que o uso de
algemas só deve ser adotado em casos excepcionalíssimos”.
A Juíza decide:
“Derradeiramente quanto a alegação defensiva em
relação a manutenção de algemas nos representados,
vale esclarecer que cabe ao Magistrado com equilíbrio
e bom senso, caso a caso, verifi car se reputa
necessário ou não a manutenção das mesmas para
regularidade do julgamento, não havendo que se falar
em violação do princípio da presunção de inocência
ou que tal circunstância possa infl uenciar na sentença,
tratando-se inclusive, de norma de segurança diante
da possibilidade do risco de fuga, já que os agentes
do DEGASE não possuem armas e neste ato, há
presença de familiares e ausência de qualquer policial
militar. Diante do exposto, mantenho o uso de algemas
durante as audiências neste juízo.”
No Habeas Corpus 6990/08, julgado em 13.11.08, a 5ª Câmara
Criminal do TJRJ concedeu a ordem para que o Paciente
permaneça em liberdade assistida até o julgamento do recurso
de apelação.
Mas o adolescente Diego já cumprira internação desde o dia 20
de julho, ainda algemado na audiência.
E já existia a Súmula Vinculante nº 11, do Supremo Tribunal
Federal:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência
e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade
física própria ou alheia, por parte do preso ou de
terceiros, justifi cada a excepcionalidade por escrito,
sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal
do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão
ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da
responsabilidade civil do Estado.”
Os juízes podiam, de vez em quando, ler Machado de Assis, e tentar
aprender a garantir a liberdade, e não a repressão desmedida.
As conquistas históricas este ano registradas não se esgotam em
si mesmas.
O fi lósofo Slavoj Zizek, na apresentação de “MAO – sobre a
prática e a contradição” (Zahar, 2008, tradução de José Maurício
Gradel), insiste na necessidade da invenção de uma nova vida
como sonho revolucionário: “não apenas a construção da nova
realidade social na qual nossos sonhos utópicos de emancipação
serão realizados, mas a reconstrução desses próprios sonhos”;
e reinventar seus próprios modos de sonhar, mudar os próprios
sonhos, para que os sonhos não permaneçam estagnados, para
não regressar à velha realidade.
Para não nos tornarmos testemunhas do próprio fracasso em
livrar-se do passado.
São tantos os passados que não passaram, são tantos os
passados que permanecem no presente, a impedir a efetivação
dos Direitos Humanos.
Muitas ainda são as algemas, nas suas várias formas.
Muitos ainda precisam ser os sonhos.
*SÉRGIO VERANIDesembargador Presidente da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, Professor da UERJ e Presidente do Fórum Permanentedos Direitos Humanos da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
20
Em função da comemoração dos 60 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos em 10 de dezembro de 2008,
minha intenção é “rascunhar” sobre o histórico deste importante
instrumento jurídico, que teve início na sessão de 16 de fevereiro
de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em
que fi cou decidido que uma Comissão de Direitos Humanos, a ser
criada, deveria desenvolver seus trabalhos em três etapas.
Na primeira etapa, a Comissão deveria elaborar uma declaração
de direitos humanos, atendendo ao disposto no artigo 55 da Carta
das Nações Unidas. Na segunda, deveria produzir um documento
que vinculasse mais que uma “mera declaração”, ou seja, deveria
fazer uma convenção ou tratado internacional. Por fi m, a Comissão
se encarregaria de criar instrumentos adequados para assegurar
o respeito aos direitos humanos, tratando dos “casos de violação”.
Em 18 de junho de 1947 fi cou pronto o projeto de
uma Declaração Universal de Direitos Humanos,
aprovada em 10 de dezembro de 1948. Esse texto
era fruto dos trabalhos da Comissão Consultiva dos
Direitos Humanos, criada em Paris em 1947 pelo
governo francês, sob proposta de René Cassin.
Presidida por este último, essa comissão, da qual
viria a nascer a Comissão Nacional Consultiva dos
Direitos Humanos, era essencialmente composta
de juristas e diplomatas, estando encarregada de
preparar as instruções destinadas à delegação
francesa nas Nações Unidas, a qual era dirigida
pelo mesmo René Cassin.
Natural, portanto, que a Declaração retomasse os ideais da
Revolução Francesa, sendo considerada o símbolo da formação,
no nível universal, dos valores supremos da igualdade, da
liberdade, da fraternidade entre os homens, exatamente como
redigido em seu artigo I. Transformar esses ideais em direitos seria
missão progressiva no âmbito nacional, resultado de um esforço
sistemático de educação em direitos humanos.
Membro do Conselho de Estado da França, Cassin era considerado
um “utopista pragmático” e, ao assumir a missão de participar da
redação da Declaração, acrescentava a essa tarefa não apenas suas
qualidades como jurista1, mas também sua prática como defensor de
direitos humanos, já que, desde a ascensão do nazismo e fascismo
na Europa, escrevera diversos ensaios acerca da necessidade de
construção da paz e de proteção aos direitos humanos.
Ao chegar a Nova Iorque, em 1946, representando a França na
Comissão de Direitos Humanos, presidida por Eleanor Roosevelt,
esta o saudou como militante apaixonado e “criador do direito”,
pedindo-lhe que assumisse a vice-presidência da Comissão
e redigisse, com assessoria da Secretaria das Nações Unidas,
um anteprojeto de Declaração. Foi então elaborado um texto com
45 artigos, apresentado à Comissão em junho de 1947, que serviu
de base para a discussão, até que se adotou a versão defi nitiva.
Surpreendentemente, ao se comparar o texto fi nal com o esboço
original, o primeiro é, em muito aspectos, mais audacioso que
o último, especialmente quando trata da universalidade dos direitos
humanos. Sente-se especialmente a infl uência da França e de
René Cassin, autor da referência a “direitos diretamente universais”,
que só podem ser garantidos por uma instância supranacional.
Seu maior legado, porém, foi fazer com que se admitisse que os
direitos econômicos, sociais e culturais deveriam ser considerados
direitos fundamentais, ligados de forma indissolúvel aos direitos
civis e políticos.
Assim como Cassin, Eleanor Rossevelt
infl uenciou imensamente a redação da
Declaração Universal. Extremamente culta,
a primeira dama dos Estados Unidos
conseguiu introduzir princípios em favor da
igualdade de gênero durante os trabalhos,
além de dar ao texto poder concreto
e clareza, devido ao seu espírito de síntese
e senso das realidades.
A ideia de que a Declaração se intitulasse
“Universal” foi de Cassin, que insistiu
por substituir a palavra original “Internacional”. Sua intenção
era associar a Declaração ao conceito fundador da Carta das
Nações Unidas, que se iniciava com a frase: “Nós, Povos das
Nações Unidas...”, redação posteriormente rechaçada pelos
países no início da Guerra Fria, que temiam perder sua soberania
com tal afi rmação2.
O ponto mais discutido da Declaração era a sensibilidade dos
países membros da ONU diante da não ingerência em assuntos
internos, base do sistema das Nações Unidas. O problema
é que não se podia, ao mesmo tempo, falar em universalidade
de direitos humanos e deixar sua proteção sob a tutela de
países soberanos que, a exemplo a Alemanha nazista, poderiam
a qualquer momento, fazer o que bem entendessem.
Criada em meio ao assombro do fi nal da 2ª Grande Guerra, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora aprovada
por unanimidade (mas com a abstenção dos países comunistas
– União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia,
Polônia e Iugoslávia – e da Arábia Saudita e África do Sul) não
convencia a todos os membros da ONU.
O 60º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSALDE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS.
VANESSA OLIVEIRA BATISTA*
“O ponto mais discutido da Declaração
era a sensibilidade dos países membros
da ONU diante da não ingerência em
assuntos internos, base do sistema das
Nações Unidas. O problema é que não
se podia, ao mesmo tempo, falar em
universalidade de direitos humanos e
deixar sua proteção sob a tutela de países
soberanos que, a exemplo a Alemanha
nazista, poderiam a qualquer momento,
fazer o que bem entendessem.”
1 Ele fora o mentor da lei sobre os direitos à reparação para as vítimas da Primeira Guerra Mundial e, em 1940, o redator dos Acordos Churchill-de Gaulle, que deviam dar uma base jurídica e internacional à França livre.2 Para detalhes históricos conferir AGI, Marc, René Cassin, père de la Déclaration universelle des droits de l’Homme, Perrin, Paris, 1998.
21
A Declaração Universal é, tecnicamente, uma recomendação
da Assembléia Geral das Nações Unidas aos seus membros,
conforme o artigo 10 da Carta da ONU. De fato, o jurista Hans
Kelsen, mais conhecido dos estudantes de Direito por sua obra na
área de fi losofi a jurídica, se manifestou sobre o projeto de 1947. Ele
trata da natureza jurídica da Declaração, dizendo que o pretendido
não é codifi car o Direito Internacional, e sim formular normas
jurídicas dotadas de força vinculante no âmbito internacional. Ele
considerava que, ao adotar uma Declaração Universal de Direitos
Humanos, a Assembléia Geral poderia tão somente recomendar
aos Estados membros da ONU a observância dos princípios nela
contidos, reconhecendo tanto a legalidade da norma internacional,
como a força condutora dos direitos consagrados no texto.
Kelsen esclarece que os princípios de direito internacional podem
– e devem – ser formulados apenas em termos de deveres. Ele
discordava da Comissão, afi rmando que os deveres precedem
os direitos, sendo a concepção formulada pelos redatores da
Declaração falaciosa, posto que fundada no Direito Natural3.
Diante desta posição, parte da doutrina sustenta que o documento
não tem força vinculante. Tal entendimento, no entanto, peca
pelo formalismo, pois atualmente se reconhece, por toda parte,
que a vigência dos direitos humanos é independente de sua
declaração em constituições, leis e tratados internacionais, pelo
fato de que são exigíveis diante do respeito à dignidade humana,
exigível com o consentimento ou não dos poderes estabelecidos.
Embora a doutrina jurídica contemporânea distinga os direitos
fundamentais como aqueles consagrados pelos Estados em
regras constitucionais escritas, reconhece-se, igualmente, que
o direito internacional é, além dos tratados e convenções, formado
também pelos costumes internacionais e princípios gerais do
direito, como declarado no Estatuto da Corte Internacional de
Justiça (art. 38). Em suma, a Declaração de 1948 defi ne direitos
que correspondem, na sua integralidade, aos costumes e princípios
jurídicos internacionais, que são exigências básicas do respeito
à dignidade humana.
Apenas em 1966, porém, foram aprovados os pactos sobre direitos
civis e políticos, e sobre direitos econômicos, sociais e culturais,
previstos na segunda etapa. Neste interstício foram aprovadas
várias outras convenções sobre direitos humanos. Infelizmente,
a terceira etapa, em que deveriam ser criados os mecanismos
para assegurar a observância dos direitos, ainda não foi concluída.
O que há neste âmbito é a possibilidade de instauração de um
processo de reclamações junto ao Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas, criado em 2006, em substituição à Comissão
de Direitos Humanos, além do Tribunal Penal Internacional, criado
para julgar casos de genocído e crimes contra a Humanidade em
1998, que entrou em vigor em julho de 2002.
No discurso de encaminhamento à votação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, na Assembléia Plenário da ONU,
em Paris, em 10 de dezembro de 1948, Austregésilo de Athayde,
representante da Delegação do Brasil, afi rmou que não estávamos
diante de um documento sem defeitos, mas que “a perfeição não
está sempre ao alcance dos homens e é de nossa natureza que
tudo o que é humano seja igualmente perfectível”4.
A Declaração Universal é o ápice de um processo ético, iniciado com
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução
Francesa. É um documento que levou ao reconhecimento da
igualdade como essência do ser humano, fundamental para
o respeito à dignidade humana, fonte de todos os valores, sem
distinção de raça, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional
ou social, ou qualquer outra diferença (artigo II). A parcela de
humanidade contida na Declaração se constitui na verdadeira
universalidade do texto das Nações Unidas5.
3 KELSEN, Hans. The draft declaration on rights and duties of States, The Americana Journal of International Law, v.44; n. 259 (1950).4 Austregésilo de Athayde, discurso na ONU em 1948, na ocasião da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em : www.DHnet/athayde.htm/discurso
5 Para mais detalhes sobre o impacto da DUDH, conferir COMPARATO, Fábio K., A Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948, disponível em www.dhnet.org
*VANESSA OLIVEIRA BATISTAMestre e Doutora em Direito, Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
22
Sessenta e cinco anos. Esse foi o tempo para que quase todas
as nações do mundo entendessem que os Estados deveriam ser
os principais garantidores dos direitos das crianças.
Em 1989, consolidava-se uma discussão que teve seu início nas
primeiras duas décadas do século 20, quando a Organização
Internacional do Trabalho adota convenções que buscavam
erradicar ou regulamentar o trabalho infantil. Pouco tempo depois,
em 1924, é a vez da Liga das Nações – que mais tarde daria
lugar à Organização das Nações Unidas – adotar a Declaração de
Genebra dos Direitos da Criança. Declaração esta que originaria
a Declaração Universal dos Direitos da Criança, promulgada
pela ONU em 1954, a qual, por sua vez, foi o embrião da atual
Convenção Sobre os Direitos da Criança - CDC, adotada e aberta
para assinatura e ratifi cação dos Estados Partes no dia 20 de
novembro daquele ano de 1989.
Os 65 anos aqui citados representam
exatamente o tempo entre a adoção da
Declaração de Genebra e a da Convenção
das Nações Unidas. Um tempo de maturação
de idéias. O tempo necessário para que
se entendesse a criança não como um
objeto de direito que deveria receber uma
proteção especial, mas, sim, como um
sujeito de direitos, de fato – permitam-me o
trocadilho. Um tempo para consolidar lutas
e abrir novas frentes de batalha.
Longe de dar a certeza da garantia de todos os direitos da
criança, a CDC abriu espaços para que pessoas, organizações,
e até mesmo governos, pudessem ter um mecanismo de mediação
e/ou negociação o qual permitisse assegurar uma condição
mínima de vida para as crianças enquanto cidadãs, em seus
países e também fora deles.
Sobre esse aspecto, permito-me citar dois procuradores do
Estado de São Paulo que assim se pronunciam sobre a CDC:
“Em meio a confl itos regionais e mundiais, frutos de
disputas políticas, religiosas e econômicas, na maioria
das vezes travadas por interesses de grupos restritos,
emerge a esperança e a luta de inúmeros cidadãos,
em todo o mundo, pela busca de uma vida mais
harmônica aos povos da Terra.
Esta luta política e ideológica pela humanidade
enseja a criação de instrumentos jurídicos nacionais
e internacionais de proteção dos Direitos Humanos
e, dentre estes, aqueles dirigidos à proteção da
infância e da juventude (...).
A Convenção sobre os Direitos da Criança representa
um passo adiante na história da humanidade,
assim como a inscrição dos direitos fundamentais
na Constituição brasileira e o Estatuto da Criança
e do Adolescente representam um grande avanço
do sistema jurídico nacional.” (ALBERNAZ JUNIOR
e FERREIRA, s/d)
Mas não foi fácil chegar a acordos. A idéia de uma convenção que
enaltecesse a necessidade de garantia dos direitos das crianças
surgiu em 1978, tendo sido apresentada pela Polônia. 1979
seria o ano internacional da Criança e pretendia-se que naquele
ano a CDC estivesse terminada e promulgada. No entanto,
foram 10 anos para que fi nalmente o documento fosse adotado
e ofi cialmente aberto para as ratifi cações. Vale lembrar que até
os dias de hoje nem todos os países, Estados
Partes das Nações Unidas, ratifi caram a
Convenção. Estados Unidos da América e
Somália ainda não reconhecem a CDC.
Um dos problemas apontados para a demora
era a alegação de que o documento
apresentado pela Polônia tratava-se de uma
mera reformulação dos direitos já defendidos
na Declaração de 1959. Era preciso, então,
ir mais além. Ampliar a gama de direitos
e defi ni-los de maneira que não
restassem dúvidas. Outrossim, era preciso criar um órgão
que pudesse zelar pelo cumprimento dos compromissos
acordados entre os Estados Partes, elaborando recomendações
baseadas em relatórios ofi ciais de cada governo e também
da sociedade civil.
Assim, hoje temos uma Convenção composta por um Preâmbulo
e 54 artigos. Nela se estabelece o Comitê dos Direitos da Criança,
“a fi m de examinar os progressos realizados no cumprimento das
obrigações contraídas pelos Estados Partes” (CDC, art. 43).
“O Comitê dos Direitos da Criança, como a maior
parte dos Comitês semelhantes, estará constituído
por especialistas escolhidos pela capacidade pessoal
pelos Estados Partes na Convenção. Diferentemente
de outros comitês, o dos Direitos da Criança não possui
competência alguma para conhecer de denúncias
de casos específi cos de violações dos direitos
reconhecidos pela Convenção. A função essencial do
Comitê consiste na análise dos relatórios dos Estados
Partes sobre ‘as medidas que tenham adotado com
vistas a tornar efetivos os direitos reconhecidos na
20 DE NOVEMBRO: ALÉM DE ZUMBI,TEMOS UM OUTRO A COMEMORAR.
RICARDO DE PAIVA E SOUZA*
“Com a criação do Estatuto, entretanto,
a CDC perde espaço político e jurídico
no Brasil. Poucas são as organizações
brasileiras que se dizem trabalhar pelos
direitos das crianças que conhecem
a Convenção de fato, que estão
familiarizadas com seus princípios
e sabem como seus mecanismos
de monitoramento funcionam. E se
perguntamos o porquê, a resposta
é sempre: “temos o estatuto”.”
23
convenção e sobre os progressos alcançados no
desempenho desses direitos’ (art. 44), assim como
as circunstâncias e as difi culdades, caso existam,
que afetem o grau de cumprimento» das obrigações
consagradas na Convenção.” (O’DONNELL, s/d)
Para garantir a efi cácia do Comitê, os Estados Partes se
comprometem a apresentar um relatório sobre o cumprimento de
suas obrigações para com as crianças a cada cinco anos, sendo
que o primeiro relatório deveria ter sido entregue dois anos após
a promulgação ou ratifi cação da CDC.
Infelizmente, o compromisso dos Estados Partes nem sempre
se traduz em respostas concretas. Brasil, por exemplo, só
apresentou até hoje um relatório ofi cial e um paralelo. O segundo
está em vias de apresentação e ainda devemos outros três.
Os princípios
A CDC abrange uma ampla gama de direitos. O Comitê dos Direitos
da Criança, entretanto, identifi cou quatro desses direitos como
sendo princípios gerais que devem ser levados em conta para
a aplicação de qualquer artigo da CDC, e em quaisquer situações
que envolvam crianças. Preferi aqui reproduzir o conteúdo de um
manual da Aliança Internacional Save the Children, cuja fundadora,
Eglantyne Jebb, foi a autora da Declaração de Genebra, de 1924.
Esses princípios gerais são:
Não discriminação (artigo 2)
1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os
direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que
se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma,
independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou
representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social,
fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.
O princípio por trás disso é o de que todos os direitos valem
para todas as crianças, sem exceção. O próprio Estado tem
a obrigação de pôr em prática os meios para garantir que as
crianças sejam protegidas de qualquer forma de discriminação
e devem empreender ações afi rmativas para promover tais direitos.
O interesse superior da criança (artigo 3)
1. Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições
públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em
conta o interesse superior da criança.
O princípio do agir para o “interesse superior da criança” diz respeito
a qualquer processo decisório que envolva meninos ou meninas,
incluindo a movimentação e a alocação de recursos. O “interesse
superior da criança” normalmente não é a única preocupação
quando são tomadas decisões que afetam as crianças, mas
eles devem estar entre os primeiros aspectos a serem levados
em consideração, e devem ter um peso grande – primacialmente
- em relação aos interesses dos adultos. É fundamental que
aqueles que estejam encarregados de tomar decisões levem
em consideração os anseios e a visão de mundo da criança no
momento de determinar quais seriam os interesses das mesmas.
Direitos à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento (artigo 6)
1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito inerente
à vida.
2. Os Estados Partes asseguram na máxima medida possível
a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.
Esse artigo estabelece o princípio de que as crianças têm direito
à vida, e afi rma que toda criança tem direitos aos bens e condições
que permitirão que ela desenvolva ao máximo seu potencial
e desempenhe seu papel numa sociedade pacífi ca e tolerante.
O direito de ser ouvida (artigo 12)1
1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de
discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre
as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em
consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade
e maturidade.
Meninas e meninos têm o direito de serem ouvidos com relação
a todas as decisões que lhes digam respeito, e o artigo 12 atribui
essa obrigação aos governos para garantir que as opiniões de
meninas e meninos sejam solicitadas e consideradas. Esse artigo
faz parte de uma gama mais ampla de “direitos à participação” da
criança, que normalmente são defi nidos nos artigos 12, juntamente
com os artigos: 13 (liberdade de expressão); 14 (liberdade de
pensamento, consciência e religião); 15 (liberdade de associação);
16 (proteção da vida privada); 17 (informação apropriada).
Na CDC, as crianças são reconhecidas como atores sociais, tanto
em relação ao seu próprio desenvolvimento, como em relação
ao desenvolvimento da sociedade em que vivem.
Protocolos Falcultativos
São dois os Protocolos Facultativos que complementam a CDC
e ambos foram adotados em 2000. Eles tratam de:
1. Envolvimento de crianças em confl itos armados
Este Protocolo em seus primeiros artigos diz:
Artigo 1°
Os Estados Partes devem adotar todas as medidas possíveis para
assegurar que os membros das suas forças armadas que não atingiram
a idade de 18 anos não participam diretamente nas hostilidades.
Artigo 2°
Os Estados Partes devem assegurar que as pessoas que não
atingiram a idade de 18 anos não são alvo de um recrutamento
obrigatório nas suas forças armadas.
A intenção é manter as crianças – na defi nição da CDC, todos
com menos de 18 anos – fora da condição de agente armado em
qualquer confl ito armado.
2. Venda de criança, prostituição e pornografi a infantis
Assim começam os preâmbulos deste protocolo: Considerando
1 Também apresentado como Princípio da Participação
24
que, para melhor realizar os objetivos da Convenção sobre
os Direitos da Criança e a aplicação das suas disposições,
especialmente dos artigos 1º, 11º, 21 º, 32 º, 33 º, 34 º, 35 º e 36 º,
seria adequado alargar as medidas que os Estados Partes devem
adotar a fi m de garantir a proteção da criança contra a venda de
crianças, prostituição e pornografi a infantis.
E assim está redatado seu primeiro artigo: Os Estados Partes
deverão proibir a venda de crianças, a prostituição infantil
e a pornografi a infantil, conforme disposto no presente Protocolo.
A implementação da CDC
Os Estados que ratifi caram a CDC devem obrigação legal
à mesma, e assumiram o compromisso de tomar todas as
medidas legais, orçamentárias, administrativas, entre outras, a fi m
de implementá-la, o que inclui disponibilizar o máximo de recursos.
Alguns Estados, porém, fi zeram reservas e/ou declarações
relacionadas ao modo como a CDC deve ser interpretada ou
à não-aplicação de alguns artigos. Essas reservas e declarações
não devem entrar em confl ito com o espírito da CDC. O Comitê
insiste que os Estados as retirem2.
É preciso entender que os Estados são os principais responsáveis
pela garantia dos direitos na CDC. O Estado tem a responsabilidade
de criar legislação, conjunto de políticas e de fornecer recursos,
de forma a garantir que os direitos da criança sejam exercidos.
A CDC considera pais, famílias e comunidades como os principais
responsáveis pelo cuidado das crianças, protetores e guias –
eles têm responsabilidades para com as crianças e, por vezes,
a legislação nacional transforma essas responsabilidades em
obrigações legais e morais. A comunidade internacional tem
obrigações relacionadas ao apoio a Estados através da cooperação
e da ajuda internacional como e quando solicitadas.
E no Brasil ...
Ratifi cada no Brasil em 24 de setembro de 1990, a CDC é – como
deveria ser – a base para o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nossa lei nacional que tem como função garantir os direitos
de nossas crianças.
Com a criação do Estatuto, entretanto, a CDC perde espaço
político e jurídico no Brasil. Poucas são as organizações brasileiras
que se dizem trabalhar pelos direitos das crianças que conhecem
a Convenção de fato, que estão familiarizadas com seus princípios
e sabem como seus mecanismos de monitoramento funcionam.
E se perguntamos o porquê, a resposta é sempre: “temos
o estatuto”.
O que às vezes se esquece é que o próprio Estatuto necessita
de proteção. Sem a Convenção o Estatuto estaria à mercê
dos arroubos e interesses políticos. A Convenção dá o suporte
internacional e fornece as estratégias de controle social que
necessitamos para cobrar de nossos poderes constituídos
o compromisso acordado globalmente entre 192 dos 194 países
que integram as Nações Unidas.
O Brasil ratifi cou a CDC e todos os protocolos facultativos a ela e,
portanto, tem o dever de cumpri-los. O Estatuto sem a CDC não
seria ruim, mas estaria mais vulnerável.
Referências Bibliográfi cas
- ALBERNAZ JUNIOR, Victor Hugo e FERREIRA, Paulo Roberto
Vaz. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível na
Internet no endereço http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/
bibliotecavirtual/direitos/tratado11.htm. Acesso em 25/10/2008
- O’DONNELL, Daniel. La convención sobre los derechos del
niño: estructura y contenido. Disponível na Internet no endereço
http://www.iin.oea.org/sim/cad/sim/pdf/mod1/Texto%202.pdf.
Acesso em 23/10/2008
- ALIANÇA SAVE THE CHILDREN. Programação baseada nos
direitos da criança: como enfocar os direitos na programação
– manual para os membros da Aliança Internacional Save the
Children. Save the Children Suécia: 2ª edição, Lima, 2005
2 Uma lista das reserves e declarações (e de algumas objeções às mesmas) pode ser encontrada em: http://www.unhchr.ch/html/menu2/6/crc/treaties/declare-crc.htm
*PAULO RICARDO DE PAIVA E SOUZAPernambucano, Sociólogo, Mestre em Comunicação, Doutorando em Psicossociologia,
Assessor Regional do Programa para América Latina e Caribe de Save The Children Suécianos temas de Violência Armada e Emergências.
25
1 Constituição federal – art.204, II2 E os demais conselhos paritários de formulação de políticas setoriais e controle externo, nos seus específi cos campos de atuação..
3 Nos termos da Resolução 113 do CONANDA, enquanto dimensão da garantia dos direitos humanos4 E igual tempo da ratifi cação da Convenção pelos Direitos da Criança pelo Brasil e 20 anos de promulgação da Constituição Federal, ambas normas de hierarquia superior ao Estatuto citado.
5 E os conselhos homólogos setoriais, no seu âmbito específi co da operacionalização de determinada política pública (saúde, assistência social, educação etc.)6 Como, por exemplo, fazem com regularidade e competência o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, em nível mundial e nacional e a Fundação ABRINQ, em nível municipal.
RESUMO: Com o presente texto, pretendeu-se testar as
possibilidades da sociedade civil organizada em promover análises
da situação da infância e adolescência no Brasil. Pretendeu-se
comprovar que análises desse tipo servem para embasar
diagnósticos imprescindíveis ao aperfeiçoamento da formulação,
coordenação e execução de políticas públicas e do acesso à Justiça.
Tais análises igualmente são preciosas igualmente para a elaboração
de relatórios de monitoramento e avaliação das ações públicas,
garantidoras de direitos humanos, exatamente no momento em
que uma ampla coalizão de expressões organizativas da sociedade
civil brasileira – capitaneada pela Associação Nacional dos Centros
de Defesa da Criança e do Adolescente (Seção Brasil da Defensa
de los Niños Internacional) / ANCED-DNI - elabora o chamado
“relatório alternativo” a ser apresentado ao Comitê dos Direitos da
Criança (ONU), em Genebra, após a apresentação de novo relatório
do Estado brasileiro, de responsabilidade do seu Governo.
No texto, para essa análise, foram coletados
e analisados dados a respeito da situação
nacional, tanto a partir de fontes ofi ciais (PNUD,
OEI, IBGE, IPEA, INEP/MEC, por exemplo),
quanto a partir de levantamentos, pesquisas e
estudos mais localizados, de responsabilidade
de organizações sociais (Relatório sobre o
Programa Prefeito Amigo da Criança 2005-
08 / Fundação ABRINQ, por exemplo). Como
parâmetros para a avaliação dessa realidade
social e políticoinstitucional, no texto foram
eleitos alguns instrumentos normativos internacionais para esse
fi m: a Constituição Federal, a Convenção sobre os Direitos da
Criança, o Estatuto da Criança e do Adolescente, os Comentários,
Orientações & Recomendações do Comitê dos Direitos da Criança
do ACDH- ONU ao Governo do Brasil. E também, para esse mesmo
fi m, foram eleitos alguns documentos de instâncias públicas
não-institucionais como o Fórum Ibero-Americano de ONG pela
Infância (REDLAMYC e DNI). Ao fi nal, na tentativa de se construir
um determinado cenário mais favorável, para a promoção dos
direitos humanos de todos os cidadãos (e especialmente do
segmento infanto-adolescente), aqui se desenvolve, como
estratégico, o conceito de “coesão social” (CEPAL), com seu foco
no sentido de pertença e de valorização da identidade.
Palavras-chaves: Análise de situação. Controle sócioinstitucional.
Insegurança social. Pobreza. Desigualdades. Parâmetros para
a avaliação. Normativa de promoção e proteção de direitos
humanos. Coesão Social.
Análises de situação e controle das ações públicas
O sentido mais radical e a missão última da atuação das organizações
representativas da população1 e dos conselhos dos direitos da criança
e do adolescente2 estão no controle externo sobre as ações públicas.
Mais precisamente, seu papel no acompanhamento, monitoramento
e avaliação das ações públicas, em favor da promoção dos direitos
humanos3 da infância e da adolescência e em oposição a todas as
formas discriminatórias, exploratórias e violentas contra esses direitos.
No exercício dessa função de controle, mesmo dezoito anos depois
da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente4, os conselhos
dos direitos da criança e do adolescente5 ainda têm muito a dizer...
e pouco dizem, ainda! Desviam-se, muitas vezes, pelo país afora, do
seu cerne, quando se trata da realização dos direitos do seu público-
destinatário. Contudo, não apenas os conselhos citados têm essa
legitimidade social, política e jurídica para exercer a função de controle
externo. Esse é igualmente o papel essencial da sociedade civil
organizada, a ser exercido por uma ampla gama de atores sociais.
As expressões organizativas da sociedade, no
país, nos tempos atuais – em face da sua crise
de identidade e dos seus agravados problemas
de sobrevivência fi nanceira – muitas vezes têm
colocado como secundário esse seu papel de
controle externo social difuso sobre as ações
do Estado, caindo numa armadilha que as
fazem parceiras do fracasso do Estado-Mínimo
neo-liberal e dependentes do Governo.
É preciso se devolver aos movimentos sociais
e à suas expressões organizativas seu
papel de controle, fomentando o trabalho de acompanhamento,
monitoramento, avaliação e de proposição. No caso da Associação
Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente
– Seção Brasil da “Defensa de Niños Internacional” – ANCED/
DNI, constata-se que há um reconhecido esforço no sentido do
fortalecimento dessa linha técnica e política, enquanto organização
da sociedade civil, mostrando que, além dos mecanismos de
controle interno institucional do Estado (controladorias, auditorias,
corregedorias, ouvidorias, ministério público, parlamento, tribunais
de contas etc. etc.), as organizações sociais podem e devem
instituir mecanismos próprios e autônomos (mas, sinérgicos) de
controle externo das ações públicas. E para tanto não podem
prescindir de bem elaboradas análises da situação da infância/
adolescência no Brasil6, embasadoras disso tudo.
A moldura do contexto nacional, na qual se deve inserir
a paisagem da situação da infância/adolescência
Para que se possa melhor entender a situação da criança e do
adolescente, em nível nacional, é preciso partir-se dos dados
e informações, agregados e somados, referentes ao Brasil, como
um todo. Para isso, deve-se buscar compor uma moldura, uma
SITUAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL DE HOJE: INSEGURANÇA SOCIAL, POBREZA, DESIGUALDADES E TERRITORIALIDADE.
WANDERLINO NOGUEIRA NETO*
“No exercício dessa função de
controle, mesmo dezoito anos depois
da vigência do Estatuto da Criança e
do Adolescente4, os conselhos dos
direitos da criança e do adolescente
ainda têm muito a dizer... e pouco
dizem, ainda! Desviam-se, muitas
vezes, pelo país afora, do seu cerne,
quando se trata da realização dos
direitos do seu público-destinatário.”
26
visão totalizante, na qual se buscassem paradigmas de comparação
com o coletado em nível local, através de levantamentos outros
com dados desagregados. E, nessa totalização da análise, alguns
fatores e tendências nacionais surgem de maneira bem clara,
ajudando a melhor se entender os dados municipais, que deve
ser nosso foco primordial, pois no território estão as crianças, os
adolescentes e suas famílias, em concreto. Nessa visita aos dados
e informações totalizados, dois fatores tendenciais se destacam:
a pobreza e as desigualdades de todos os tipos (econômicas,
políticas, sócias e jurídicas), a marcarem o contexto social
e político-institucional brasileiro com o estigma da “insegurança
social” (CASTEL7 / ZAMORA8). Como sinal emblemático de que
o combate à pobreza e às desigualdades deve ser a tônica para
o enfrentamento prioritário para o Estado brasileiro, em seus três
níveis e, em especial, no nível municipal – não foi à toa que o Comitê
para os Direitos da Criança do Alto Comissariado para os Direitos
Humanos (ONU / Genebra)9 “tomou nota com preocupação”,
como um fator que muito prejudica a implementação da CDC no
Brasil em níveis desejáveis, a ocorrência dessas desigualdades,
em seu documento de orientações e recomendações ao Governo
do Brasil, em outubro de 2004, solicitando imediatas providências
no prazo de quatro anos: (...) Item 12. “O comitê toma nota, com
extrema preocupação, das dramáticas desigualdades baseadas
em raça, classe social, gênero e localidade geográfi ca que
difi cultam signifi cativamente o progresso para a realização plena
dos direitos consagrados na Convenção” (grifei).
Pobreza e desigualdade, como focos para a análise
de situação
Tanto no tocante às ações das políticas públicas minimamente nas
áreas da saúde, educação, assistência social, segurança pública,
dos direitos humanos e do planejamento, quanto no tocante às
ações para acesso à Justiça, os processos de levantamento
e análise de dados e informações passam a ter mais sentido
e mais efetividade se colocamos todos eles confrontados com
específi cos dados e informações a respeito dos altos níveis de
desigualdade social, econômica, cultural e jurídica, que marcam
essas ações públicas de garantia de direitos10 infanto-adolescentes
e ao escandaloso desrespeito à diversidade e à pluralidade, no
Brasil. Quadro esse que se desvela com mais clareza, quando se
analisa a situação das políticas públicas e do acesso à Justiça no
âmbito do território dos municípios, isto é, num espaço político
mais próximo de quem depende dessas ações públicas, de quem
mais sofre pela ausência de ações do Poder Público ou pela falta
de efi ciência, efi cácia e efetividade na operacionalização dessas
ações públicas.
Com mais de 183 milhões de pessoas, o Brasil é o quinto país mais
populoso do mundo e a 10ª economia. Mas, igualmente, é um dos
países mais desiguais da Terra, ocupando a 92ª distribuição do PIB per
capita e a 69ª posição no ranking do IDH - Índice de Desenvolvimento
Humano. Dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) informam que o País é o 10º mais desigual numa
lista com 126 países e territórios, à frente apenas de Colômbia, Bolívia,
Haiti e cinco países da África Subsaariana11 . Além disso, em apenas
oito países os 10% mais ricos da população se apropriam de uma
fatia da renda nacional maior que a dos ricos brasileiros. No Brasil,
eles fi cam com 45,8% da renda, menos que no Chile (47%), Colômbia
(46,9), Haiti (47,7), Lesoto (48,3%), Botsuana (56,6%), Suazilândia
(50,2%), Namíbia (64,5%) e República Centro-Africana (47,7%). Os
pobres brasileiros detêm apenas 0,8% da renda, fatia superior à dos
pobres de Colômbia, El Salvador e Botsuana (0,7%), Paraguai (0,6%),
e Namíbia, Serra Leoa e Lesoto (0,5%). A comparação entre os 20%
mais ricos e os 20% mais pobres mostra que, no Brasil, a fatia da
renda obtida pelo quinto mais rico da população (62,1%) é quase 24
vezes maior do que a fatia de renda do quinto mais pobre (2,6%).
Pobreza
Preliminarmente, é de se reconhecer que a pobreza é o maior sinal
dessa desigualdade, dessa falta de equidade. Ela é a primeira
grande violação de direitos fundamentais e o maior filtro
obstaculizador para o acesso com sucesso às políticas públicas
e à Justiça, nos municípios, principalmente, vez que os mecanismos
de proteção social em todas as políticas sociais básicas, na ponta
do atendimento público, são incapazes de garantir direitos aos
milhões de crianças e famílias em situação de vulnerabilidade
econômica. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografi a
e Estatística - IBGE, em quase metade (48,9%) das famílias
brasileiras há crianças e adolescentes com até 14 anos de idade.
Basta assinalar que o percentual de famílias consideradas pobres
(com rendimento mensal per capita de até � salário mínimo)
é de 25,1% em relação ao total das famílias no País, mas chega
a 40,4% entre as famílias com crianças de 0 a 14 anos. Quando
se consideram apenas as famílias com crianças na faixa de 0 a 6
anos, o percentual é ainda mais alto: 45,4%”12 , ou seja, as famílias
com fi lhos nesta faixa etária são mais pobres.
Desigualdades por localidade geográfi ca
Contudo, além da pobreza, a desigualdade tem outras dimensões,
outras condicionantes e limitações para a ação pública. De nada
adianta falar-se em redução da mortalidade infantil, da evasão
escolar no país, se não se dissecar esses dados para se constatar
que essa redução ocorre por exemplo em níveis maiores em
municípios da Região Sul, que os dados referentes ao aumento da
mortalidade por morte violenta (homicídio, por exemplo) referem-
se muito mais a municípios da Região Nordeste e que a Região
Norte tem os piores índices no implemento das políticas públicas
e no acesso à Justiça. A desigualdade tem diferentes dimensões
regionais, geográfi cas. Os dados abaixo demonstram a enorme
diferença entre as cinco macro-regiões brasileiras (Norte, Nordeste,
Sul, Sudeste e Centro-Oeste). Como exemplo, tome-se a diferença
do percentual de famílias com crianças e adolescentes de até
14 anos que vivem em situação de pobreza no Sul (26,5%) e no
Nordeste (63,1%), ou seja, além de ser nacionalmente desigual,
o Brasil tem disparidades regionais que chegam a quase 40 pontos
percentuais.
Localização geográfi ca Até ½ SM Mais de ½ a 1 Mais de 5
Brasil (geral) 40,4 28,6 2,2
Norte 49,3 27,6 1,1
Nordeste 63,1 20,6 1,0
Sudeste 28,1 32,7 3,0
Sul 26,5 32,2 2,5
Centro Oeste 34,4 32,2 3,2
7 CASTEL, R. (1998) As metamorfoses da questão social uma crônica do salário. Petrópolis. Vozes.8 ZAMORA, M.H. (2005) A lógica, os embates e os segredos: uma experiência de curso de capacitação com educadores in Para além das grades de ferro – elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio de Janeiro. Edições PUC-RJ e Loyola.9 Criado nos termos do art. 43 da CDC10 Garantia de direitos = promoção e defesa (proteção) de direitos e controle dessa garantia de direitos – Resolução 113-CONANDA.11 Relatório de 2006 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 12 Síntese de Indicadores Sociais 2007. IBGE. Rio de Janeiro. 2007
27
Desigualdade e outros fatores
A mesma coisa se diga que a exploração e a violência têm raça/
cor e etnia no Brasil, atingindo de maneira massiva e sistemática
a população indígena e afro-descendente. E mais, igualmente, assim
atingindo os defi cientes, o segmento LGBTT, crianças, adolescentes
e jovens, idosos e mulheres. Essas são varáveis importantíssimas na
análise desses dados e informações, igualmente. Ai de quem nasce
pobre, ribeirinho amazônico, mulher, adolescente, afro-descendente,
lésbica, defi ciente físico, por exemplo, nos municípios deste Brasil.
A desigualdade tem como condicionante o fator cor/raça. Em 2005,
o Relatório de Desenvolvimento Humano do Brasil (PNUD) focou
as desigualdades étnico-raciais. De acordo com este documento,
“se brancos e negros formassem um país à parte, a distância entre
eles seria de 61 posições”. A população branca teria IDH alto (0,814)
e fi caria na 44ª posição no ranking mundial – semelhante à da Costa
Rica e superior à da Croácia. Já a população negra (pretos e pardos)
teria IDH médio (0,703) e fi caria em 105º lugar, equivalente ao de El
Salvador e pior que o do Paraguai”13. No Brasil, a despesa média
mensal familiar das famílias onde a pessoa de referência se declarou
branca (R$2.262,24) chega a quase o dobro das que se declararam
negras (cerca de R$1.230,00), em uma inconteste demonstração
da inter-seccionalidade de raça e classe social14. Ao todo são
9,5 milhões de crianças de até três anos fora das creches
e 2,2 milhões entre quatro e seis anos que não estão na pré-escola;
do total de crianças de quatro a seis anos fora da escola 58%
são negras, o que corresponde a 1,3 milhão de crianças.
Desigualdades e saúde pública: mortalidade infantil
No cômputo geral, consegue-se fazer uma avaliação positiva da
situação geral da infância e adolescência no país, demonstrando que
está havendo uma redução signifi cativa da mortalidade infantil no
Brasil: “A observação sobre os números de municípios cujos dados
puderam ser aproveitados para a produção de indicadores neste
eixo reforça a difi culdade de extrairmos resultados conclusivos. No
entanto, foi possível verifi car que números signifi cativos de municípios
apresentaram evolução bastante favorável de alguns indicadores,
como uma redução média da mortalidade infantil de 20%, como
resultado do desenvolvimento de um conjunto relativamente
amplo de iniciativas, e obtiveram também redução na mortalidade
entre crianças e adolescentes de 10 a 19 anos. A maioria destes
municípios aplicou bem mais do que o percentual mínimo de 15%
de seus recursos próprios em saúde, revelando coerência na
destinação de recursos para viabilizarem as ações priorizadas neste
eixo” (Relatório do Programa Prefeito Amigo da Criança – Gestão
2005/08 – Fundação Abrinq). Todavia, as mesmas disparidades por
localidade geográfi ca (regionais) são facilmente encontradas em outro
indicador – mortalidade infantil para cada mil nascidos vivos. Apesar
das reduções signifi cativas conquistadas nos últimos cinquenta anos,
o Brasil ainda mantém desigualdades internas muito relevantes entre
suas regiões com diferenças de 20 pontos entre Sul e Nordeste.15
Mortalidade Infantil Por mil nascidos vivos - %o
Brasil (geral) 25,1
Norte 25,8
Nordeste 36,9
Sudeste 18,3
Sul 16,7
Centro Oeste 19,5
E mesmo os dados coletados, dentre 535 municípios com dados
coletados na implementação do Programa Prefeito Amigo da
Criança citado, reforçam essa visão de que especialmente as
desigualdades por localidade geográfi ca (regionais) distorcem
as avaliações totalizantes sobre a situação da mortalidade infantil
no Brasil: “A mortalidade infantil média dos 445 municípios que
responderam, nos três anos, foi de 15,1 óbitos por mil nascidos
vivos. A Coluna 2 mostra que não há uma diferença acentuada na
mortalidade infantil, segundo os grupos de municípios divididos
por porte. Estas médias variam mais quando desagregamos
os grupos pelas cinco regiões. Observa-se que os municípios
de porte MP da Região Norte apresentaram a menor taxa média,
de 9,1 óbitos por mil nascidos vivos; é preciso ressaltar que este
valor refere-se aos dados de apenas três municípios. O grupo
de municípios Médios do Nordeste apresentou a maior taxa média,
ou seja, de 20,6” (...) “O mesmo quadro apresenta, percentualmente,
a queda média da mortalidade infantil observada entre os anos
2005 e 2007. No conjunto, os municípios que enviaram o Mapa
II apresentaram uma redução da mortalidade infantil de 16,8
(óbitos por mil Nascidos Vivos) para 13,5. Portanto, uma redução
média bastante signifi cativa, de 19,6%. Mas, observa-se uma
variação acentuada entre os grupos de municípios divididos pelas
regiões, posto que três destes grupos apresentaram aumento da
mortalidade infantil no período. É preciso também muita cautela
na análise da evolução da mortalidade infantil, principalmente em
municípios de pequeno porte, podendo ocorrer variações não
diretamente dependentes dos serviços públicos” (...). (grifei).16
Desigualdade e educação (1): creches e pré-escolas
Registra o seguinte, o relatório do PPAC 2005-2008, sobre
o atendimento educacional a crianças e adolescentes nos
535 municípios (Mapa II) que forneceram dados a respeito:
“(...) na observação dos dados do PPAC sobre essa última
gestão municipal, percebe-se que ainda existem grandes défi cits
na atenção aos direitos de educação da população, sobretudo
no que diz respeito à educação infantil. Apesar de alguns
municípios terem obtidos resultados signifi cativos na cobertura
e nas condições de educação, a maioria dos governos realizou
uma gestão educacional muito modesta e de pouco impacto na
realidade do ensino público. Verifi ca-se isso no comportamento
dos municípios, de acordo com as médias dos grupos por região
(...), onde a evolução 2005 a 2007 foi pequena ou negativa. Além
disso, registre-se a quantidade considerável de municípios que
apresentaram mapas do PPAC sem informação para diversas
perguntas ou com informações muito distorcidas em relação
à realidade do município, como, por exemplo, um número de
crianças atendidas em determinado nível de ensino muito acima
do total de pessoas residentes e pertencentes àquela faixa etária.
(...)”. Todavia, quando se examina a situação nacional, levantada
em outras fontes, o quadro da desigualdade por localidade
geográfi ca se torna mais nítido. Para tanto, veja-se a situação na
área específi ca da educação infantil, onde, a partir da expansão
do ensino fundamental para nove anos (2006), a educação infantil
passou a atender crianças de zero a seis anos incompletos. Pelos
dados do MEC-INEP, verifi ca-se que a falta de acesso neste
nível educacional é um grande problema, no país, visto que dos
“23 milhões de meninos e meninas nessa faixa etária, menos da
metade frequenta creche e/ou pré-escola; dos 11 milhões de
13 Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005 — Racismo, pobreza e violência. PNUD Brasil. 2005. Brasília14 Os dados ofi ciais, recolhidos nas pesquisas do IBGE, adotam o conceito de auto-declaração, ou seja, o/a entrevistado/a declara se considera ser branco, preto ou pardo.
15 A tabela abaixo tomou como base os dados da Síntese de Indicadores Sociais 2007 (IBGE), elaborada a partir de dados de 200616 Relatório PPAC – 2005-2008 – pag.13
28
crianças com menos de três anos, apenas 15,5% frequentam creches,
ao passo que 76%, aproximadamente sete milhões de crianças entre
quatro a seis anos estão matriculadas na pré-escola”. O quadro abaixo
da “evolução das matrículas em creches” registra quão desigual, em
termos de localidade geográfi ca (Regiões), ainda é o atendimento
desse direito social à educação nessa faixa etária: por exemplo, as
Regiões Norte e Centro-Oeste, como em outros quadros sempre
aparece como abaixo de todas as demais.
Regiões 2000 2002 2003 2005
Total Menos Total Menos Total Menos Total
de 4 anos de 4 anos de 4 anos
Brasil 916.864 549.048 1.152.511 712.301 1.237.558 755.371 1.414.343
Norte 47.026 23.501 57.881 27.886 60.431 28.358 67.392
Nordeste 239.800 120.136 302.381 157.798 310.645 161.219 342.954
Sudeste 418.304 273.162 507.937 340.852 571.351 370.147 658.816
Sul 156.539 98.367 213.105 142.184 221.922 149.974 247.447
Centro
Oeste 55.195 33.882 71.207 43.581 73.209 45.673 87.734
Fonte: MEC/INEP
O quadro seguinte sobre a evolução nas matrículas em pré-escolas
também refl ete a mesma situação de desigualdade por localidade
geográfi ca (Regiões):
Regiões 2000 2001 2002 2003 2005
Brasil 4.421.332 4.818.803 4.977.847 5.155.676 5.790.670
Norte 307.947 363.086 382.891 404.299 510.846
Nordeste 1.320.845 1.471.615 1.484.643 1.521.141 1.905.089
Sudeste 1.981.774 2.127.265 2.238.130 2.326.865 2.389.099
Sul 567.402 587.897 597.808 617.018 645.949
Centro Oeste 243.364 268.940 274.375 286.353 339.707
Fonte: MEC/INEP
Outro dado importante, colhido dos registros do MEP/INEP,
mostra como a evolução das matrículas em creches e pré-
escolas: “(...) entre 2005 e 2006, no que se refere à oferta de
vagas da educação infantil (com cerca de sete milhões de alunos),
foi registrado crescimento negativo de 2,6%” (...) no entanto,
as matrículas em creche, que em 2006 foram na ordem de
1,4 milhões, cresceram 1% em relação ao ano de 2005 (...), já
na pré-escola, com aproximadamente 5,6 milhões de matrículas,
houve um decréscimo de 3,5% em relação ao ano anterior, pela
migração dos alunos de seis anos para o primeiro ano do ensino
fundamental com a nova lei de expansão deste para nove anos”.
Todavia, o grande problema em relação ao acesso à educação
infantil está na natureza das instituições que oferecem este
serviço, que mostra o abandono da máquina estatal de relação
a esse tipo de equipamento, jogando para a esfera pública não-
governamental ou mesmo privada esse tipo de serviço, fazendo
com que os segmentos subalternizados da nossa população sinta
mais essa ausência do Estado-Governo. De acordo com os dados
do MEC/INEP, em 2004 “as creches particulares, comunitárias,
confessionais e fi lantrópicas correspondiam a quase metade
do total; na pré-escola, as instituições privadas correspondiam
à minoria de 25,8% ; até 2004 a rede pública atendia apenas
26,8% do total de crianças de zero a seis anos no país; somado
à rede privada, o percentual subia para 37,7%, até três anos, a
oferta abrangia apenas 11,7%, com apenas 6,1% estão na rede
pública”. Pelo que se observa mais dos dados do MEC/INEP,
a oferta de vagas em creche encontra-se, basicamente, em
escolas públicas municipais. Em 2006, “o sistema municipal de
ensino respondeu por 62,9% das matrículas e o sistema privado,
por 35,8%, ao passo que em 2005 esses percentuais eram de
60,9% e 37,8%, respectivamente” (Censo Escolar 2006 – MEC/
INEP). Mas esse descompasso entre creches públicas e privadas
mais se acentua, outra vez, em determinadas Regiões, onde essa
ausência do Estado é mais nítida que em outras, confi rmando
a tese de que as desigualdades por localidade geográfi ca são
condicionantes no desenvolvimento de políticas públicas, como se
pretende destacar no presente texto de análise. O quadro abaixo
isso revela o quanto sufi ciente:
Regiões 2000 2001 2003 2005
Público Privado Público Privado Público Privado Público Privado
Brasil 3.332.173 1.089.159 3.594.896 1.223.907 3.837.092 1.318.584 4.277.350 1.513.320
Norte 251.977 55.970 293.332 69.754 336.781 67.518 421.140 89.706
Nordeste 944.081 376.764 1.053.518 418.097 1.070.579 450.562 1.349543 555.546
Sudeste 1.535.257 446.517 1.629.623 497.642 1.773.145 553.720 1.790042 599.037
Sul 439.156 128.246 445.167 142.730 467.266 149.752 489.315 156.634
Centro Oeste 161.702 81.662 173.256 95.684 189.321 97.032 227.310 112.397
Fonte: MEC/INEP
Aprofundando-se mais a análise da situação da educação,
no país, emblematicamente com a análise da situação específi ca
da educação infantil, observa-se que o fator localidade geográfi ca
também é relevante, pois existe uma dicotomia entre as áreas
urbanas e rurais. Segundo o MEC/INEP: (...) “nas urbanas, 40%
das crianças de até seis anos freqüentam estabelecimentos de
ensino, ao passo que nas rurais este percentual é reduzido para
27%.” (...) “em 2006 das quase 35 mil creches funcionando no
Brasil, trinta mil encontravam-se nas áreas urbanas”. E quando
se analisam os dados nacionais sobre educação infantil, a partir
do indicador referente à pobreza (como forma mais aguda de
desigualdade como sustentado atrás neste texto), ela se sobreleva
de relação à aqui chamada desigualdade por localidade geográfi ca
e aprofunda essa desigualdade por Regiões e por área urbana
ou rural. Os dados nacionais (MEC/INEP) mostram que mesmo
com a expansão de matrículas na educação infantil, a demanda
continua latente e crescente, principalmente para os segmentos
mais pobres da população, justamente os que mais se benefi ciariam
do acesso à escola: (...) “a taxa de atendimento escolar na faixa
etária de zero a seis anos para famílias com renda per capita
acima de cinco salários mínimos é quase três vezes maior do
que para aquelas famílias sem qualquer rendimento; o resultado
desse processo é que nas classes mais ricas as crianças chegam
à 1ª série do ensino fundamental com uma já longa experiência
de escolarização, ao passo que nos segmentos mais pobres
esse será, muitas vezes, o primeiro contato da criança com
o mundo escolar”.
Desigualdade e educação (2): ensino fundamental
O relatório do PPAC (2005-2008) faz o seguinte registro sobre
a implementação da reforma no ensino fundamental, nos
municípios (os que deram conta do Mapa II): “Os municípios,
os estados e o Distrito Federal têm até 2010 para cumprirem
as diretrizes estabelecidas pela Lei 11.274/2006. Essa lei altera artigos
da LDB/1996, defi nindo o ensino fundamental com duração
29
de 09 anos, com ingresso obrigatório de crianças a partir dos
6 anos de idade. Frente a essa determinação legal, nota-se que
um percentual elevado de municípios participantes do PPAC já
está adequado nessa nova estrutura do ensino fundamental.
Destacam-se os municípios de grande porte (G1) em todas
as regiões, com exceção do Sudeste. Além disso, as regiões Sul
e Centro-Oeste estão com, no mínimo, 90% de seus municípios
já adaptados no ensino de 9 anos. Por outro lado, o menor
percentual é apresentado pelos municípios de médio porte (M) da
região Norte, com menos da metade (43%) dos participantes do
PPAC já atuando com o ensino fundamental de 9 anos de duração”.
Ao mesmo tempo, em nível nacional, nos termos dos dados
totalizados e constantes dos relatórios do MEC/INEP, hoje temos
“uma taxa de matrícula de 98% do total de crianças brasileiras
na educação fundamental”; mas dados recentes afi rmam que
“a oferta ainda é insufi ciente para garantir a universalização do
ensino obrigatório no país e dois terços das crianças de 7 a 14
anos fora da escola são negras”. Além disso, nas regiões Norte
e Nordeste “apenas 38% das crianças terminam a educação
fundamental, ao passo que nas regiões mais desenvolvidas, no
Sul e Sudeste, esta taxa é de 70%.” – afi rmação essa que confi rma
a tese aqui sustentada de que as desigualdades regionais (fator
localidade geográfi ca) são marcantes na análise e avaliação dos
dados e informações sobre ensino fundamental, no Brasil, sem
discrepância, pois com os dados desagregados da amostra
dos 535 municípios que preencheram o Mapa II do relatório do
PPAC (gestão 2005-2008). Por fi m, prosseguindo nessa análise
comparativa entre os dados nacionais totalizados (fonte MEC/
INEP) e os dados desagregados municipais (fonte relatório 2005-
2008 PPAC), é mais de se registrar a infl uência das desigualdades
regionais ou por localidade geográfi ca no caso das evasões
escolares. Segundo o INEP, “cerca de 16% dos jovens que
terminam o ensino fundamental deixam de ingressar no ensino
médio; dos 60% que ingressam, apenas 47% o fazem antes dos
17 anos e menos da metade dos jovens do ensino médio concluirá
a educação básica antes de atingir a maioridade, quando muitos
deixam a escola para ingressar no mercado de trabalho”. Todavia,
a taxa de conclusão do ensino médio – segundo a mesma fonte
– “dobrou nas últimas décadas de 20% para mais de 40%”. Por
sua vez, a taxa de escolarização do ensino médio para jovens de
15 a 17 anos está em 46,2%. Informa mais o INEP que entre 2004
e 2005 observa-se que no ensino médio houve uma pequena
queda de 0,7 pontos percentuais relativos à taxa de abandono;
contudo, os dados gerais da mesma fonte revelaram um aumento
de 1,1 ponto percentual no índice de reprovação, que passou de
10,4% (2004) para 11,5% (2005). É interessante ressaltar o fato
de que, contrariando a ideia de que maior reprovação pode levar
ao maior abandono, os dados relativos ao ensino médio revelam
que “as regiões que apresentam as menores taxas de reprovação,
Norte (8,7%) e Nordeste (9%), correspondem aos maiores índices
de abandono: 20,8% e 21,1%”.
Desigualdade e violência
Outro resultado da combinação da desigualdade com a pobreza
é a violência. Mesmo reconhecendo-se que esses fatores não
são as únicas explicações para a violência massiva e sistemática
que acontece no Brasil, não se pode deixar de considerar tal
combinação como um alavancador dos índices de violência que
afl igem a população, causando a morte de milhares de pessoas
anualmente. De acordo com o Mapa da Violência 200617,
“é possível observar que, com uma taxa global de 27 homicídios
por 100 mil habitantes no ano 2004, o Brasil ainda se localiza
entre os países com as maiores taxas de homicídios entre os
84 países do mundo que o Whosis/OMS disponibilizou com as
correspondentes informações. Embora as taxas do Brasil sejam
menores que as da Colômbia e semelhantes às da Venezuela
e da Rússia, ainda assim continuam sendo extremamente elevadas
no contexto internacional.” De acordo com o Mapa da Violência
2006, “a taxa de homicídio da população negra é bem superior
à da população bran¬ca. Se na população branca a taxa em 2004
foi de 18,3 homicídios em 100 mil bran¬cos, na população negra
é de 31,7 em 100 mil negros. Isso signifi ca que a população negra
teve 73,1% de vítimas de homicídio a mais do que a população
branca. (...) Se no conjunto da população a vitimização de negros
já é severa, entre os jo¬vens o problema agrava-se ainda mais:
os índices de vitimização elevam-se para 85,3%. Isto é, a taxa de
homicídios dos jovens negros (64,7 em 100 mil) é 85,3% superior
à taxa dos jovens brancos (34,9 em 100 mil).” O mesmo estudo
confi rma que a violência tem um traço marcadamente de gênero,
pois “só 7,9% das vítimas dos homicídios acontecidos no país
durante o ano de 2004 pertencem ao sexo feminino. Entre os
jovens, essa proporção é ainda menor: 6,3%. E essas proporções
vêm se mantendo constantes nos últimos anos.” Registre-se,
contudo, que o problema é concentrado nas áreas periféricas
urbanas. Enquanto a taxa de homicídios de jovens no Brasil
chegou a 51,7 para cada 100mil habitantes no ano de 2004, em
Recife/PE este índice chegou aos estratosféricos 223,6, fazendo
daquela cidade a capital com o maior índice de homicídios de
jovens do Brasil18.
Desigualdade e confl ito com a lei
Mais uma conseqüência dessa combinação entre desigualdade
e pobreza, resultando em exclusão social, é o aumento do
encarceramento de adolescentes pobres, moradores das periferias
urbanas, quando da prática de atos infracionais: 57% dos atos
infracionais cometidos por estes adolescentes foram contra
o patrimônio, demonstrando que a pobreza e a desigualdade têm
alimentado o envolvimento destes adolescentes com tais atos.
O direito à defesa é, sem dúvida, um dos direitos mais violados dos
adolescentes em confl ito com a lei. Registros diversos dão conta
que muitos estão privados de liberdade sem nunca terem tido
acesso a um defensor, o que contraria os tratados internacionais de
direitos humanos, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança
e do Adolescente. Pode-se concluir facilmente que os adolescentes
em confl ito com a lei, na sua ampla maioria pobres, não tendo
acesso nem condições de defesa, são submetidos a toda sorte de
arbitrariedades nos Sistema Nacional de Segurança Pública e no
Sistema de Justiça. Vale ressaltar o grande número de violações
(torturas, tratamento cruel, negligência e morte) registradas no
sistema de internação de adolescentes em confl ito com a lei
penal, muitas das quais já levadas ao Sistema Interamericano
de Proteção de Direitos Humanos, o que justifi ca, portanto, que
os investimentos nesta área são mais que urgentes. De acordo
com dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, o número de adolescentes em privação
de liberdade aumentou 325% entre 1996 e 2006. Contudo,
17 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2006 – Os jovens do Brasil. OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura. Brasília. 200618 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2006 – Os jovens do Brasil. OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura. Brasília. 2006
30
segundo o Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, publicado
em 2006 pelo Ministério da Justiça, em média, menos de 40% das
comarcas do país contam com o atendimento da população por
defensores públicos. Além disso, apenas 56% das Defensorias
Públicas mantêm plantões regulares nas unidades de internação
de adolescentes privados de liberdade19.
Desigualdades e orçamentação pública
No tocante aos dados sobre execução orçamentária dos Governos
Municipais colhidos através do Mapa II do PPAC, verifi ca-se que
“as informações sobre os gastos com saúde dos municípios foram
pouco aproveitadas, na medida em que em muitos casos foram
bastante diferentes dos dados informados ao SIOPS (Sistema de
Informações do Ministério da Saúde)” (...) “menos da metade dos
municípios que informaram ao PPAC sobre os gastos de 2007
tiveram dados próximos aos informados para o SIOPS” (..) “onze
municípios informaram apenas ao PPAC e não o SIOPS.(...)”.
O Quadro mostra os gastos médios com saúde em 2007, em Reais
(R$) por habitante, por grupo de municípios. Como referência,
informa-se que o gasto total com saúde atingiu R$ 268,00
enquanto o gasto médio com recursos próprios foi de R$ 168,00
por habitante. Dito isto, pode-se observar que os municípios
do grupo PP, de menor porte populacional, apresentam as médias
mais altas. Depois do grupo PP, os municípios do grupo G1, que em
sua maioria têm serviços de referência para os demais municípios
de suas regiões e/ou estados, apresentam os maiores gastos em
cada região. Lembra-se que o grupo G1 do Norte é composto por
apenas um município. É importante também observar que estamos
apresentando valores médios, mas que existem vários municípios
com gastos muito acima da média, como Madre de Deus (BA), com
gastos em saúde com recursos próprios de R$ 943,00, e Cubatão
(SP) com R$ 743,00. No extremo oposto, temos municípios como
Ilhéus (BA), com gastos por habitante com recursos próprios de
R$ 30,00, ou Bragança (PA) com R$ 34,00. Por sua vez, um elemento
importantíssimo, a mais, para a análise das diversas dimensões
das desigualdades, em nível nacional, é a execução orçamentária
do Governo Federal em relação à infância e adolescência, aqui
tomada como exemplo. Nesse campo, certas desigualdades outras
produzem discriminações e distorções políticas, que infl uenciam
essa execução orçamentária. Quando se trata, por exemplo,
do atendimento aos adolescentes em confl ito com a lei,
o preconceito de relação à pretensa marginalidade desse público
faz com que se justifi que a baixa prioridade dada a ele pelas
políticas públicas e o baixo nível de destinação de recursos para
esse atendimento – na linha do dito tradicional que propõe “serviço
marginal para público marginal”. O chamado perfi l do adolescente
em confl ito com a lei revela esse forte conteúdo seletivista, classista
e racista do sistema de responsabilização socioeducativa, no país,
na prática do dia-a-dia: pretos, pobres, semi-analfabetos etc. Essa
distorção se refl ete no modo como as políticas públicas tratam
a infracionalidade em si, o adolescente autor de ato infracional
e a execução das medidas socioeducativas (sanção). Uma situação
jurídica, meramente adjetiva, é tratada como situação social,
mais substantiva. Em verdade, o ato infracional, praticado por um
adolescente, só existe como conduta formalmente em confl ito
com a lei e a ser constituída pela via judicial de uma sentença de
um juiz, obedecido um determinado procedimento-processual.
Contudo, esse ato/conduta é classifi cado pelas políticas públicas,
em certos momentos, como uma situação de risco social,
que existe como conduta materialmente de exclusão social
e diagnosticada pela via administrativa de um encaminhamento
sócio-assistencial). Como exemplo desse tratamento discriminatório
na execução orçamentária, dados sistematizados pelo INESC20,
em outubro de 2007, revelaram que alguns programas estratégicos
para o atendimento ao adolescente autor de ato infracional
(socioeducandos) estavam com baixíssima execução. Vale ressaltar,
por exemplo, o grande número de violações (torturas, tratamento
cruel, negligência e morte) registradas no sistema de internação
de adolescentes em confl ito com a lei, muitas das quais já levadas
ao Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos,
o que justifi ca, portanto, que os investimentos nesta área são mais
que urgentes. Consta do citado estudo do INESC o seguinte: “(...)
o Programa de Atendimento Socioeducativo do Adolescente em
Confl ito com a Lei (SINASE), cuja dotação é de R$24 milhões teve
até setembro de 2007 uma execução não muito superior a 5,22%,
ou seja, R$1,28 milhão”.
O baixo nível de garantia do direito à participação de crianças
e adolescentes, como sinal emblemático de desigualdade
Aqui está o calcanhar de Aquiles na situação da infância
e adolescência (e juventude) no Brasil: o baixíssimo nível de
participação desse segmento nas políticas públicas no Brasil. A
garantia dessa participação como um direito fundamental e não
meramente como estratégia, como tática, como metodologia – como
insistimos em fazer no Brasil. Vislumbra-se apenas, aqui e ali, novas
possibilidades de se promover o desenvolvimento de um necessário
processo estratégico de empoderamento (empowerment) do próprio
publico infanto-adolescente (ainda muito pouco aprofundado no
Brasil, em comparação com outros países), para que eles participem,
mais e mais, proativamente e não reativamente, de estratégias de
mobilização social, de advocay e de monitoramento & avaliação.
O envolvimento do público infanto-adolescente no Brasil ainda é muito
tímido e exige um aprofundamento maior dessas possibilidades de
criação/aplicação de táticas e metodologias novas, que garantam tal
participação proativa21 de crianças e adolescentes no levantamento,
análise e avaliação de dados e informações. Esse pormenor da falta de
metodologias para empoderamento (e não meramente capacitações
e treinamentos!) de crianças e adolescentes, especialmente dos
jovens-adolescentes de 16 a 18 anos, no país, decorre muito do
quadro de desrespeito à diversidade e à pluralidade em nosso meio,
refl etindo o quadro de desigualdades (geração, gênero, raça-cor, etnia
etc.). Na verdade, essa “participação de crianças e adolescentes”,
entre nós, é vista muito mais como uma tática específi ca no bojo
de diversas estratégias de ação, ou apenas como metodologia
em determinadas atividades/serviços ou projetos/programas. Essa
participação é pouco vista como um direito fundamental, em si,
reconhecido pelos instrumentos normativos de garantia de direitos
humanos. Essas distorções na realização do direito à participação
de crianças e adolescentes decorre também muito da falta de
tradição de trabalho nessa linha, ou seja, da falta de maior ousadia
e radicalidade, nesse sentido, da legislação infraconstitucional
brasileira (no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente22), da
incipiência e dos desvios de concepção e execução de muitas das
experiências dos chamados projetos de “protagonismo juvenil” em
desenvolvimento no país, fatores todos a merecerem críticas também
do Comitê dos Direitos da Criança da ONU (Genebra).
19 II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Ministério da Justiça. Brasília. 200620 INESC – Instituto de Estudos Sócio-Econômicos – organização não-governamental – dados consultados no sítio web em 15/11/200721 CDC - “direito de ser ouvido e de ter sua opinião considerada”22 As normas-regras do Estatuto citado e de outras normas legais infra-constitucionais (Código Civil, Códigos de Processo Penal e Processo Civil etc.) não se adequaram de maneira sufi ciente ás normas-principiológicas hierarquicamente superiores da Constituição Federal e da Convenção sobre os Direitos da Criança.
31
A normativa jurídica contrastando com a situação
O Brasil tem um marco normativo baseado no reconhecimento
da prevalência da dignidade humana, da liberdade, da igualdade
e da pluralidade – da prevalência dos Direitos Humanos. Mas, ele
é marcado por essa analisada acima fratura social que afasta regiões
geográfi cas, classes sociais, homens e mulheres, brancos e negros,
crianças, adolescentes e adultos (incluídos os jovens e idosos).
Apesar de ter ratifi cado todos os tratados internacionais de Direitos
Humanos, não consegue estabelecer políticas e recursos públicos
e assegurar o acesso democrático à Justiça como mecanismos
capazes de realizar os direitos por ele mesmo reconhecidos,
particularmente no âmbito do território dos municípios, em todo
o país. Desse modo só se pode falar realmente em efi ciência, efi cácia
e efetividade no desenvolvimento equânime de políticas públicas e no
acesso democrático à Justiça se isso resultar em redução nos níveis
de pobreza e de desigualdade e em aumento dos níveis de coesão
social (bem menos exclusão e muito mais pertencimento social)23.
Por melhores que sejam as cifras, de modo geral, se os dados
e informações correspondentes não resistirem a uma desagregação
para se verifi car em que medida os mais-desiguais se benefi ciam
ou não desses incrementos, com ações afi rmativas em seu favor,
verdadeiras discriminações positivas – no caso sob análise aqui,
privilégios legítimos e legais em favor da infância e adolescência;
fazendo com que seu superior interesse prevaleça acima de tudo
e todos, priorizando em termos absolutos esse seu atendimento
público, com resultados reais para o aumento dos níveis de coesão
social no país a partir preferencialmente dos municípios.
O controle sócioinstitucional das ações públicas de
promoção e defesa (proteção) de direitos
Para que se consiga frutos aproveitáveis desse choque
aparente entre realidade social e normativa, entre o “Brasil-Real”
e o “Brasil-Legal”, um sistema de controle das ações públicas
necessita ser implementado, onde se faça um acompanhamento,
monitoramento, avaliação e correção dessas ações, diminuindo
os níveis de fraturas entre os dois “Brasis”. Está no controle
social exercido diretamente pela sociedade civil organizada
e no controle institucional exercido principalmente pelos
conselhos dos direitos da criança e do adolescente e mais pelo
Parlamento, pelo Ministério Público, pelos tribunais de contas,
pelas corregedorias, auditorias, controladorias etc.
Exemplo de parâmetros para o controle das ações públicas:
as normas do Comitê da ONU para os Direitos da Criança,
por exemplo
Em nível internacional, a Convenção sobre os Direitos da
Criança, a exemplo de outros tratados internacionais de direitos
humanos, trouxe em seus artigos 43 e seguintes, os mecanismos
e procedimentos para o controle de sua efetivação jurídica
e implementação político-institucional. Criou um comitê, a princípio
formado com 10 membros e, a partir de 2003, com 18 membros,
“especialistas de reconhecida integridade moral e competência
nas áreas cobertas pela Convenção” (art.43, 2). Cabe ao Comitê
dos Direitos da Criança “examinar os progressos realizados
no cumprimento das obrigações contraídas pelos Estados partes
da Convenção” (art.43,1), o que é feito pelo exame periódico dos
relatórios ofi ciais e contribuições de agências especializadas em
direitos humanos. Após este exame, o Comitê faz considerações
e recomendações aos Estados Partes. Além disso, o Comitê
desempenha seu papel de controle da efetivação e implementação
da Convenção, realizando anualmente discussões gerais sobre
temas conjunturalmente relevantes e aprovando comentários
gerais. Os relatórios iniciais devem ser apresentados pelo Estado
Parte após dois anos da ratifi cação e, a partir de então, de cinco
em cinco anos. O Brasil deveria ter apresentado seu relatório
inicial em 1992, pois ratifi cou a Convenção em 1990. O segundo
relatório em 1997, o terceiro em 2002 e o quarto em 2007
Infelizmente, o Estado brasileiro permaneceu inadimplente com
este compromisso até 2003, data de envio do primeiro relatório.
Da mesma forma, os relatórios dos protocolos opcionais também
já deveriam ter sido enviados seguindo-se a norma do art.44 da
Convenção. Para facilitar o exame e debate sobre os relatórios,
o Comitê aprovou disposições gerais a serem seguidas pelos
Estados Partes na elaboração de relatórios, agrupando os temas
tratados pela Convenção24: Nos anos de 2003 e 2004, várias
organizações coligadas da sociedade civil brasileira, no exercício
de suas atribuições previstas na CDC e nos Regulamentos do
Comitê, decidiram apresentar um “relatório alternativo” sobre
a efetivação/implementação da Convenção em nosso país.
Ao fi nal do seu processo de monitoramento, o Comitê editou
seus “Comentários e Recomendações fi nais.” A partir daí cabia
à sociedade civil organizada no Brasil, em especial (incluindo-
se privilegiadamente aí a ANCED, como liderança da Coalizão
Brasil de ONGs para o Comitê de Genebra), continuar a difundir
os instrumentos internacionais de direitos humanos relativos
à infância, consolidar a utilização de seus mecanismos e fi scalizar
a implementação dos citados “comentários e recomendações”
do Comitê ao nosso país, reunindo informações para um possível
segundo relatório alternativo e para elaboração de inúmeros outros
relatórios de análise da situação, de planifi cação, de agendamento
e pactuação. Quando se promove a utilização, como parâmetro
avaliativo e planifi cador, desse documento especifi co do Comitê
para os Direitos da Criança das Nações Unidas, não se trata
de preferir utilizar exclusivamente um instrumento ou outro:
Constituição Federal, Convenção sobre os Direitos da Criança
ou Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao contrário, todos
os instrumentos normativos são complementares e devem ser
utilizados, inclusive este emanado do Comitê. Imprescindível é
que os princípios explicitados por estes instrumentos normativos
todos sejam efetivados, tomados em conta em nossos trabalhos
de análise e planejamento, por exemplo. ROSENO explica,
a respeito: “O fundamento do direito não é o instrumento
normativo, mas o conteúdo de justiça que deve estar contido na
norma, seja ela nacional ou internacional. Por isso, defendemos
a complementaridade e articulação entre os sistemas nacional,
regional e internacional de proteção dos direitos humanos. Mais
importante que a norma é a prevalência do princípio da dignidade
do ser humano criança que deve estar reconhecido na norma”25 .
Outros parâmetros para o controle das ações públicas:
compromissos políticos de instâncias públicas não-
institucionais
Os participantes do IV Fórum Ibero-Americano de ONG pela
Infância, representando as organizações não governamentais
23 Ver adiante item III – “Parâmetros (...)”24 Esse tipo de classifi cação é de muita importância na elaboração de relatórios outros sobre garantia de direitos da criança e do adolescente, no Brasil e deveria ser levada em conta, nem que seja em caráter suplementar: a) Medidas gerais
de implementação (arts. 4º, 42 e 44.6); (b) Defi nição de criança (art. 1º); (c) Princípios gerais (arts. 2º, 3º, 6º e 12); (d) Direitos Civis e liberdades (arts. 7º, 8º, 13-7 e 37a); (e) Ambiente familiar e cuidado alternativo (arts. 5º, 18.1, 18.2, 9º, 10, 27.4, 20, 21, 11, 19, 39 e 25); (f) Saúde básica e bem-estar (arts. 6º.2, 23, 24, 26, 18.3, 27.1, 27.2 e 27.3); (g) Educação, lazer e cultura (arts. 28, 29 e 31); (h) Medidas especiais de proteção.
25 ROSENO, Renato in “Introdução ao Relatório Alternativo da Coligação da Sociedade Civil Brasileira ao Comitê para os Direitos da Criança”. 2005. São Paulo. Edição ANCED
32
dos países ibero-americanos (incluindo-se mais a Espanha
e Portugal), preliminarmente, reconheceram em maio de 2007, em
Villarica, Chile, que as políticas públicas em favor da infância e da
adolescência, formuladas e executadas em seus países, deveriam
ser fi rmadas em “processos de planejamento participativo
e democrático, a meio e longo prazo, para permitir a consolidação
de processos sociais estáveis e duradouros, em matéria de garantia
permanente de direitos de crianças e adolescentes, a partir de
uma perspectiva integral”. Isso supõe – segundo a declaração
fi nal – mais uma reforma estrutural e funcional da institucionalidade
pública dentro dos Estados e uma gestão de resultados e de
impactos, centrada na pessoa da criança e do adolescente, como
sujeitos de direitos, tendo a busca da “coesão social”, como escopo
fi nal. Levando-se em conta o que consta desse documento do
IV Fórum Ibero-Americano, pode-se construir alguns indicadores
que permitam garantir maior efi ciência e efi cácia e igualmente
maior efetividade, para o enfrentamento da exclusão, da pobreza
e das desigualdades, através do desenvolvimento equânime de
políticas públicas e do acesso democrático à Justiça, em nosso
país, a partir dos seus municípios. Os compromissos assumidos
na declaração fi nal desse Fórum devem ser considerados quando
da elaboração de agendas, pactos, compromissos entre nós no
Brasil, especialmente as expressões organizativas da sociedade civil
que fi rmamos esse documento ibero-americano. Do documento
fi nal desse evento foram destacados os seguintes pontos que
se transformam em parâmetros para a análise da situação social
e político-institucional, neste texto registrada e comentada,
e para a construção de compromissos no sentido do enfretamento
da pobreza, da desigualdade e da exclusão que dessa análise
emerge e no sentido de elevação dos níveis de inclusão e de
pertencimento social (coesão social):
A) Marco normativo predominante – O documento
inicialmente chama a nossa atenção, de modo particular,
para a necessidade de se garantir mais centralidade na
Convenção sobre os Direitos da Criança e não apenas no
Estatuto da Criança e do Adolescente26, considerando-se
que no Brasil, por força da Emenda Constitucional nº 45,
esse tratado internacional, depois de ratifi cado, passou
a ter status de norma constitucional, hierarquicamente
superior a normas infraconstitucionais27. Nesse ponto
se chama mais a atenção para o caráter principiológico
de certas normas da CDC, a permitir que os gestores
públicos e os julgadores interpretem, por exemplo,
todas as normas-regras do Estatuto citado e de outras
leis ordinárias (LOAS, LOS, LDB etc.), a partir dessas
normas-princípios da CDC, tendo-as como chaves
hermenêuticas, como, por exemplo, os princípios da
integralidade do desenvolvimento, da não-discriminação,
do superior interesse, da proteção especial em casos de
violações de direitos.
B) Investimentos públicos – Comprometeram-se todas
as ONGs ibero-americanas, nessa declaração fi nal,
em priorizar a discussão e a luta pelo crescimento das
inversões públicas em favor da infância e adolescência,
fazendo a devida conexão entre política econômica
e políticas sociais, vez que não se poderá ter boas políticas
sociais sem políticas econômicas mais justas
C) Processos e espaços públicos de participação
democrática & em especial de participação proativa
de crianças e adolescentes: Insta-se nesse documento,
a todos nós no Brasil, no sentido da valorização de
espaços participativos, como os nossos conselhos dos
direitos da criança e do adolescente. Todavia acrescenta-
se, além do mais, compromissos de envolvermos,
nesses processos e espaços públicos participativos
e permanentes, crianças e adolescentes, coisa que
no Brasil temos difi culdades em fazê-lo.
D) Municipalização – Há um compromisso outro em favor
da municipalização das políticas públicas: isto é, (...)
“ se deben crear políticas públicas locales que acerquen
más el Estado a los espacios de la vida cotidiana de los
niños, las niñas y los adolescentes”.
E) Sistema Nacional de Garantia de Direitos – Os
participantes do IV Fórum constataram a necessidade de se
reconhecer a existência em nossos países de um sistema
de garantia de direitos em favor de crianças e adolescentes,
fortalecendo-o, dotando-o de mecanismos orçamentários
e jurídicos para garantir sua efetividade em favor do seu
público-destinatário, sem se esquecer de se contemplar
nesse compromisso o papel do Sistema Judicial: (...) “que
realicen las reformas presupuestarias y jurídicas necesarias
para dotar a los Sistemas Nacionales de Protección de
los Derechos de los mecanismos necesarios para que
los mismos puedan ser demandados por niñas, niños
y adolescentes. En este sentido es necesario adecuar
los procedimientos judiciales y administrativos para que
niñas, niños y adolescentes vulnerados en sus derechos,
al igual que sus familiares o testigos, tengan un mejor
acceso a la justicia (...)”.
F) Dados e informações – Assumiu-se, também, para
toda a Ibero-América, o compromisso de criarmos um
sistema de gerenciamento de dados e informações mais
aperfeiçoado e com capacidade de desagregações
necessárias, a respeito da infância e adolescência e que
permita o monitoramento e a exigibilidade de direitos.
Coesão social
A situação da infância e adolescência no Brasil está marcada por
profundas fraturas provocadas pela insegurança social, isto é, pela
pobreza e pelas desigualdades várias (com destaque aqui para
a desigualdade por localidade geográfi ca). A normativa internacional
e nacional nos aponta para a necessidade de atendermos
necessidades e desejos desse público, no marco dos Direitos
Humanos, fazendo prevalecer os princípios gerais dos Direitos
Fundamentais. E por sua vez, o fortalecimento do controle social
e institucional sobre essas ações aqui se elegeu como mecanismo
privilegiado para garantir a defl agração de um processo de
transformação social dessa situação de iniquidade, a partir desses
paradigmas emancipatórios dos Direitos Humanos. Mas qual
nossa meta, nosso horizonte, nossa utopia histórica e verossímil?
Dir-se-ia aqui: a busca da coesão social em níveis crescentes!
O conceito de “coesão social”28 surge ante a necessidade de
se encarar os sérios problemas que, apesar de alguns avanços
alcançados nos últimos anos, ainda perduram na América Latina,
no Brasil: altos níveis de pobreza e uma extrema desigualdade,
que resultam nas diversas formas de discriminações, abandonos,
explorações, violências e exclusão social (em “insegurança
26 Enquanto “normativa nacional de adequação à CDC”.27 ECA, LOAS, LOS, LDB etc.28 CEPAL
33
social”), como se viu atrás neste texto. Pobreza e desigualdade
que atingem ainda mais agudamente os segmentos da população
que foram reduzidos a “minorias políticas”, isto é, os mais atingidos
por esses diversos processos de opressão de responsabilidade
dos grupos hegemônicos dominantes (sócio-político-econômico-
jurídico-culturais). Os atores sociais que poderiam ser chamados
a construir espaços e mecanismos de interação positiva e de
superação dessa situação de pobreza e desigualdade não contam
com espaços e mecanismos de cooperação e de comunicação,
baseados em princípios éticos que não dão sustentação a esse
quadro de iniquidade, de pobreza e desigualdade. As razões
desses desencontros são múltiplas, mas se destaca entre elas
o débil nível de coesão social, vez que o problema transcende
à mera satisfação de necessidades materiais. Para superar isso,
há que se reconhecer a relevância dos valores democráticos
no desenvolvimento de políticas públicas que fortaleçam essa
coesão social e no acesso à Justiça igualmente fortalecendo
a coesão social. Mas além dessa relevância ética em razão da
equidade, isso também é relevante para testemunhar a solidez
do Estado Democrático de Direito, da ordem social democrática
e da governabilidade. A coesão social é mais um desejo político,
uma utopia a se realizar no futuro a partir de esforços no presente,
fortemente condicionadora do desenvolvimento humano
sustentado, como um seu elemento obstaculizador ou facilitador.
Trata-se de criar sinergias positivas entre crescimento econômico
e equidade social, através da promoção e defesa (proteção) de
direitos fundamentais e do fortalecimento de uma democracia real,
inclusiva e participativa. Assim sendo, necessário se torna celebrar
um verdadeiro compromisso de coesão social, entre gestores
e outros agentes públicos que integram os atores sociais do sistema
de garantia dos direitos da infância e adolescência (especialmente,
os que atuam em nível municipal), o que permitiria construir
uma agenda mínima em torno desse objetivo, disponibilizando
os recursos econômicos, políticos e institucionais viáveis,
ao máximo de seus esforços.
*WANDERLINO NOGUEIRA NETOProcurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado da Bahia e membro do Grupo Temático de Monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED / Seção Brasil da Red de Defensa de los Niños y Niñas Internacional - DNI), pelo CEDECA Interlagos (SP). Foi Procurador Geral de Justiça e Diretor Geral do Tribunal de Justiça da Bahia, Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal da Bahia – UFBA, Secretário Nacionaldo Fórum DCA, Presidente da Associação do Ministério Público da Bahia e Consultor Especial para o UNICEF(Brasil, Angola, Cabo Verde e Paraguai).
34
Nota: O presente texto foi apresentado no III Congresso Mundial
contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado no Rio de
Janeiro, em novembro de 2008, promovido pelo Unicef, Childhood
(Fundação WCF – Suécia), ECPAT, Comitê dos Direitos da Criança
da ONU, NGO Group for the CDC e Governo Brasileiro. Essa fala do
Autor integrou o Painel 2 sobre “Marco Legal e Responsabilização”
e versava sobre esse enfoque específi co da “impunidade, não-
criminalização e sistema de garantia de direitos humanos”, como
programado. Igualmente, foi apresentado no mesmo período no
I Congresso Brasileiro contra a Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes, realizado simultaneamente.
SÍNTESE: O reconhecimento dos direitos sexuais, como
direitos fundamentais da pessoa humana, como preliminar a
ser assegurada. A criminalização (ou não) do explorador sexual,
como uma das possíveis respostas do Estado à violação dos
direitos sexuais de crianças e adolescentes. A
impunidade como tendência, na realidade atual
– uma questão estrutural e/ou conjuntural?
Deslegitimação do Direito Penal, nos tempos
atuais. Novas alternativas. A responsabilidade
do Estado, de modo sistêmico, pela promoção
& proteção de direitos humanos da criança
e do adolescente, incluindo-se os seus direitos
sexuais. A institucionalização de um sistema
de garantia de direitos humanos infanto-
adolescente, na América Latina (exemplos do
Brasil e do Paraguai), como alternativa na busca
de novas alternativas.
Contexto: direitos sexuais como direitos fundamentais da
pessoa humana
Para o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos,
fundados na dignidade de sua condição humana, todos os
homens e todas as mulheres e cada um deles e delas devem
ser tratados com respeito a sua liberdade, a sua autonomia
e a sua autodeterminação, para que possam exercer o seu direito
de desfrutar de uma vida sexual plena, que seja satisfatória,
saudável, segura, sem discriminações, sem coerção e sem
violência. Para tanto, todos os recursos científi cos, políticos
e jurídicos, no âmbito público e privado, devem ser garantidos
e disponibilizados para que todos os homens e todas as mulheres
efetivamente exercitem seus direitos sexuais e reprodutivos.
Por sua vez, o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos
implica no reconhecimento e na garantia minimamente dos
seguintes direitos:
• O direito à igualdade e a uma vida livre de toda forma de
discriminação, inclusive no que diz respeito à vida sexual
e reprodutiva, para que a todas as mulheres e todos os
homens seja garantida a necessária e efi caz proteção em
face de qualquer violência, abuso ou exploração sexual,
tortura ou intolerância por orientação sexual;
• O direito à informação e à educação, incluindo informação
sobre sexualidade que promova a liberdade de decisão
e igualdade de gênero, garanta o acesso à informação
completa sobre os benefícios, riscos e efetividade de
todos os métodos de regulação da fertilidade e prevenção
de doenças, possibilitando, assim, decisões com base em
um consentimento livre e informado;
• O direito à liberdade de pensamento, para que homens
e mulheres não sejam submetidos a interpretações
restritivas de ideologias religiosas, crenças, fi losofi as
e costumes, instrumentalizadas para controlar
a sexualidade, para estabelecer pauta de
conduta moral no âmbito da sexualidade
e para limitar o exercício de quaisquer direitos
nas áreas da saúde sexual e reprodutiva;
• O direito à privacidade, para que
todos os serviços de atenção à
saúde sexual e reprodutiva garantam
a confi dencialidade.
Pelo que se observa na raiz de tudo que se
possa dizer e fazer, para todos e para todas, deve estar a questão
da dignidade humana, da liberdade e do direito. Necessita-se do
reconhecimento e garantia de direitos sexuais que pressuponham
a pluralidade e a diversidade, levando nosso discurso teórico
e nossa prática a passarem pela questão preliminar da “tolerância
e respeito” com a diversidade e com a liberdade, de cada um.
Necessita-se, pois de um Direito emancipador e não meramente
regulador. Em resumo, a sexualidade humana pressupõe liberdade,
diversidade, respeito e tolerância. E a livre expressão dessa
sexualidade deve ser reconhecida e garantida como um direito
fundamental, da pessoa humana - indisponível e exigível.
Mas, que tem essa questão da sexualidade de todas as cidadãs
e de todos os cidadãos com este evento, já que nosso enfoque
neste III Congresso Mundial se concentra sobre crianças
e adolescentes? A pergunta tem realmente sentido, vez que, em
nossas refl exões e ações, tradicionalmente o reconhecimento dos
direitos sexuais de crianças e adolescentes discrepa de certa forma
de tudo isso dito até agora; como se aquilo apresentado atrás só
valesse para os direitos sexuais dos adultos. Enquanto isso os
direitos sexuais de crianças e adolescentes continuam marcados
pela excepcionalidade e pela ideia de tutela e dominação, não
NÃO-CRIMINALIZAÇÃO & IMPUNIDADE. SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS HUMANOS.i
WANDERLINO NOGUEIRA NETO*
“Necessita-se, pois de um Direito emancipador e não meramente regulador. Em resumo, a sexualidade humana pressupõe liberdade, diversidade, respeito e tolerância. E a livre expressão dessa sexualidade deve ser reconhecida e garantida como um direito fundamental, da pessoa humana - indisponível e exigível.”
i O presente texto foi apresentado no III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças, realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 2008, promovido pelo UNICEF, Childhood (Fundação WCF – Suécia), ECPAT, Comitê dos Direitos da Criança da ONU, NGO Group for the CDC e Governo Brasileiro. Essa fala do Autor integrou o Painel 2 sobre “Marco Legal e Responsabilização” e versava sobre esse enfoque específi co da “impunidade, não-criminalização e sistema de garantia de direitos humanos”, como programado. Igualmente, foi apresentado no mesmo período no I Congresso Brasileiro contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado simultaneamente.
35
lhes reconhecendo os adultos medianamente, esses seus
direitos sexuais, como Direitos Humanos que são. Essa condição
de ser-histórico, de sujeito de direitos, não tem tido efeitos práticos
no campo da sexualidade, onde as discussões e intervenções
públicas ainda continuam hegemonicamente adultocêntricas.
Com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
crianças e adolescentes tiveram explicitada sua condição de titulares
dos direitos enunciados naquela Convenção e explicitada mais
a obrigação dos Estados-Partes de assegurarem a aplicação desses
direitos a cada criança e adolescente, sujeitos a sua jurisdição (CDC-
art. 2-1). Nesses termos, são cidadãos livres como os adultos, mas
com o exercício dessas liberdades condicionado a certos fatores
e condições, isto é, com sua capacidade do exercício de quaisquer
dos seus direitos, limitados estritamente pela lei. A CDC, por exemplo,
reconhece o direito de livre expressão de opiniões de crianças
e adolescentes e a consequente obrigação dos Estados-Partes de
levarem em consideração essa opinião; mas condiciona o exercício
desse direito de participação a sua “capacidade de formular seus
próprios juízos” e ao seu grau de “maturidade” (art.12-1 – CDC).
Assim, a proteção integral a esse direito à sexualidade de crianças
e adolescentes deve ser considerada como uma proteção ao
seu direito à vida, competindo aos Estados-Partes assegurarem
ao máximo a “sobrevivência e o desenvolvimento da criança”
(CDC – art.6 -1-2) e adotarem medidas apropriadas para “protegê-
las contra todas as formas de abuso e exploração sexual” (CDC
– art.34 – 1). Considerando-se assim que os direitos sexuais de
crianças e adolescentes têm o seu exercício limitado pelo seu grau
de desenvolvimento bio-psico-social, há que se colocar, mesmo
assim, essa sexualidade como um direito e regulá-la de maneira
emancipatória e não meramente repressora. Isso porque a criança
e o adolescente, para efeito da garantia dos seus direitos
fundamentais, não deixam de serem cidadãos. Para se assegurar
a liberdade de consentir, no campo sexual, de qualquer criança
ou adolescente (no campo das variadas expressões possíveis de sua
sexualidade, para além da restrita genitalidade), o Estado e o Direito
devem proteger esses cidadãos dos “vícios de consentimentos”,
isto é, das formas violentas, fraudulentas, enganosas, indutoras
e exploratórias de consecução do seu consentimento, por
outrem. As expressões diversifi cadas da sexualidade da criança
e do adolescente, que teimamos em reduzir a uma mera sexualidade
genital, só podem ter limites na norma jurídica, no Direito.
E nunca limitadas pelo arbítrio do magistrado e do gestor público,
por exemplo, e pelos nossos preconceitos morais e sociais,
religiosos, culturais.
Essa intervenção estatal nesse campo da sexualidade só será legítima
– ética e socialmente – para garantia do direito correspondente,
para sua proteção de relação a abusos contra o direito e para a
responsabilização dos violadores, abusadores e exploradores. Em
favor, pois, da sua liberdade e da sua dignidade, da sua vida e da
sua saúde: nunca em prol dos “bons costumes”, da “moral pública”,
como estúpida e anacronicamente prevê a legislação penal de vários
países (inclusive a brasileira, em reforma), contrariando os novos
paradigmas ético-jurídicos, que garantem a igualdade de direitos de
mulheres, crianças e adolescentes – as maiores vítimas dessa visão
machista, adultocêntrica e conservadora da legislação penal, que
impera em boa parte dos nossos países.
Em resumo, os marcos legais nacionais, no Mundo, a respeito
dos direitos sexuais infanto-adolescentes, particularmente no
campo da legislação penal, deverão merecer uma profunda e
ampla revisão, sempre que se colocar a proteção legal dos
direitos sexuais de crianças e adolescentes e o combate contra as
diversas formas de abusos e explorações sexuais, na perspectiva
dos Direitos Humanos, como posto na normativa internacional
vigente à qual esses marcos legais nacionais deverão
urgentemente se adequar de maneira verdadeiramente radical,
sem reservas que atinjam os princípios básicos dessa normativa
internacional. E em decorrência disso, é preciso que se faça
com que o superior interesse de crianças e adolescentes
prevaleça sempre, considerando-se, porém, o respeito e
a consideração a sua opinião, no grau de sua maturidade,
como balizador da defi nição desse superior interesse, pois
não deve fi car ao arbítrio das agências públicas e dos seus
agentes defi nirem o que corresponde ou não a esse interesse
maior da criança e do adolescente, sem que se garanta esse
direito à participação ativa de crianças e adolescentes. Não
foi à toa, que na Reunião Preparatória para o III Congresso
Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescente,
realizada em Buenos Aires, crianças, adolescentes e jovens ali
reunidos assim declaram: “Nosotros, adolescentes y jóvenes
de América Latina – basados en las necesidades e inquietudes
de todos los adolescentes y jóvenes de América Latina en
cuanto a su escaza participación dentro de los procesos en
contra de la explotación sexual comercial de niños, niñas y
adolescentes – declaramos que (….)”. E aí eles fi zeram um
precioso reconhecimento: “Entienda-se la participación activa
y efectiva de niños, niñas, adolescentes y jóvenes, generadora
de impacto y cambios, como un derecho fundamental que
nos compete a todos y en defensa de los derechos
fundamentales de niños, niñas, adolescentes y jóvenes y en
especial el derecho a la protección ante la explotación
sexual comercial, hemos coincidido en afi rmar los siguientes
puntos como claves para el desarrollo por un cambio
efectivo y real (..)”
É preciso que se faça uma mudança estratégica na ordem das
nossas duas táticas e metodologias de atuação tradicional:
• Preliminarmente, importante se torna promover direitos
sexuais, na forma do que foi dito até agora, isso signifi ca
que em primeiro lugar privilegiemos práticas e discursos
justifi cadores mais afi rmativos;
• Consequentemente, se torna importante proteger esses
direitos sexuais e defendê-los contra todas as formas
de negação, de violação ou ameaça a esses direitos
sexuais e, com um discurso. uma prática de redução
de dano, complementando esse anterior discurso
e prática positivos, necessário se torna que combatamos
toda a sorte de violências, explorações, discriminações,
negligências, opressão.
Estrategicamente isso tem muito sentido, pois recoloca
no centro das nossas atenções a própria criança, o próprio
adolescente, enquanto pessoa e titular de direitos humanos,
em favor de quem se quer combater as formas diversas
de exploração sexual e não tanto o agressor sexual, em
caráter individual.
36
A criminalização como uma das possíveis respostas do
estado à violação dos direitos sexuais. A impunidade funcional
e a estrutural
Mas aqui, neste enfoque, se vai tratar inicialmente das possibilidades
de enfrentamento dessas inúmeras formas de violações dos
direitos sexuais infanto-adolescente e dos obstáculos que surgem
nesse processo. Especialmente aqui irá focar-se num desses
obstáculos: a chamada impunidade dos agressores sexuais ou,
mais especifi camente ainda, dos exploradores sexuais e clientes,
no seu processo de responsabilização, através da criminalização
deles pelo Estado. Em outro painel neste Congresso Mundial,
a promoção dos direitos sexuais através das políticas públicas
terá seu devido espaço. Apontada a impunidade no processo de
criminalização como um sério desafi o a ser enfrentados por todos
nós, o Mundo necessita construir estratégias para vencer esse
obstáculo que nos desafi a e esboçar saídas tais como:
A) Abertura de um leque maior de campos e níveis de
responsabilização desses agressores sexuais, para além da
responsabilização pela criminalização, sem prejuízo desta;
B) Colocação da responsabilização individual desses
agressores sexuais, no campo maior da responsabilização
ampliada estatal e social (accountability);
C) Inserção dessas duas formas de responsabilização sócio-
estatal e individual, dentro de um sistema integrador
de normativas e mecanismos de garantia de direitos
humanos.
A partir disso, enfrentemos essa questão da responsabilização, da
criminalização e da impunidade, conhecendo melhor a situação
posta de relação à garantia dos Direitos Humanos de crianças
e adolescentes:
A) Em primeiro lugar, a expressão tão usada de
“responsabilização de abusadores e exploradores
sexuais”, no sentido restrito de sua criminalização-
penalização, deve merecer uma revisitação do seu
conceito e da sua aplicação, para se colocar a expressão
“responsabilização”, ampla e primeiramente no seu
sentido próprio, no campo do Direito Internacional dos
Direitos Humanos: ou seja, o Estado igualmente precisa
ser responsabilizado (“accountability/responsibility”),
tanto pela promoção dos direitos sexuais de crianças
e adolescentes através de políticas públicas intersetoriais
realmente efetivas, quanto pela proteção legal desses
direitos, através do sancionamento (amplo!), dos
abusadores e exploradores sexuais. O Estado é chamado
a dar uma resposta, (“answerability”) à qual está obrigado
e pela qual é responsável, diante da ordem interna
e mundial, diante das situações de explorações sexuais.
E se obriga mais a cobrar, derivadamente, respostas dos
agressores sexuais e a responsabilizá-los, por sua vez.
O Estado precisa ser chamado a se responsabilizar pela
garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes
e a combater todas as formas de violações desses direitos.
É chamado a reconhecer suas obrigações e ele se expõe,
se arrisca a sofrer sancionamentos morais, econômicos,
políticos – desde o mero “envergonhamento público”
diante da comunidade internacional (e comunidade
nacional, por que não!?), com a leitura dos relatórios,
onde sejam apontados por algumas formas de violações
de direitos sexuais ou diretamente ou de acumpliciamento
com outras formas sem suas providências devidas. Até
outras sanções, restrições, embargos, mais gravosos.
B) A partir dessa sua originária e preliminar responsabilização,
o Estado criminaliza-penaliza esses agressores sexuais,
como uma das formas derivadas de responsabilização
jurídica possível dos referidos agressores sexuais, através
de suas agências judiciais e policiais. Contudo, há que
se reconhecer que essa criminalização-penalização do
agressor sexual (explorador/cliente) não é a única resposta
do Estado ao “ato injusto” desse agressor sexual. E talvez
nem sempre a mais efetiva, efi caz e efi ciente, diante da cada
vez mais desmascarada “deslegitimação do direito penal”,
por sua manifesta seletividade classista, racista, machista
etc. E por sua baixa efetividade, de relação à prevenção e
repressão ao crime, as estatísticas mostram o baixo poder
intimidatório da sanção penal, no mundo moderno.
Quando da Consulta Nacional Preparatória para o III Congresso
Mundial contra a Exploração de Crianças e Adolescentes, realizada
em Brasília, no mês de outubro de 2008, em síntese diziam
os participantes, a respeito dessa matéria: “É preciso dar um
breque nesse discurso que faz a multicitada ‘responsabilização’
ser confundida exclusivamente com criminalização / penalização,
provocando a ‘volúpia punitiva’ de muitos de nós. A indignação
da sociedade é importante, no entanto é preciso construir outros
parâmetros na forma desta sociedade reagir, superando a égide
pura e simples da justiça penal, punitiva e coercitiva, acrescentando
a perspectiva multidisciplinar para garantir a proteção integral.
Existe ainda a necessidade de requalifi car a noção de vítima,
recuperando as dimensões de sujeito e de sua integralidade.
Para tanto se fazem necessárias soluções sistêmicas e alternativas
para todos os envolvidos”.
Em oposição franca a esse posicionamento ímpar, colhido da
Reunião Preparatória citada, constata-se ainda, na média da
opinião pública, uma forte defesa monocórdica da criminalização-
penalização dos agressores sexuais e o repúdio passional
a sua impunidade. E esse entendimento médio parte da ideia
de que o sistema penal, em si mesmo, é “legitimo e efi caz”
e de que a impunidade ocorrente é disfuncional, a ser combatida
com leis penais mais draconianas e uma justiça mais efetiva em
produzir condenações. E que, portanto, a impunidade nasce
apenas de fatores conjunturais, em nossos países, isto é, ou da
insufi ciência da regulação legal ou do mau funcionamento das
agências judiciais ou de ambas. E, isso vencido, se conseguiria
quebrar o chamado “ciclo perverso da impunidade”, no caso da
exploração sexual de crianças e adolescentes. Mas, será mesmo
que o sistema penal, especialmente no tocante à criminalização-
penalização individualmente dos exploradores sexuais de
crianças e adolescentes, depende apenas do aperfeiçoamento
das leis penais e do sistema de Justiça Penal? Primeiro, para
dar conta dessa complexidade de fatores, torna-se importante
aprofundarmos nossas leituras e refl exões a respeito do que, hoje,
no Mundo se chama de “processo de deslegitimação do sistema
penal-penitenciário”: Eugênio Raul Zaffaroni e Emilio Garcia
Mendes (Buenos Aires), Nilo Batista e Carlos Nicodemos (Rio de
Janeiro), Elias Carranza (São José da Costa Rica), Alessandro
Barata (Saarbrucken), Rosa Del Olmo (Caracas), Lola Anyar de
37
Castro (Maracaibo), Louk Husman (Roterdão), Manuel de Rivacoba
y Rivacoba (Córdoba), Eduardo Novoa Monreal (Santiago), Antonio
Beristein (São Sebastião – País Basco). Atualmente esses autores
e outros tantos põem em duvida décadas e décadas de segurança
na resposta penal tradicional, enquanto alguns outros juristas
penalistas clássicos procuram o aperfeiçoamento funcionalista
e conjuntural dessa resposta penal e o combate à impunidade
dentro desse panorama também conjuntural e funcionalista:
culpam as leis vigentes e os agentes judiciais e policiais, pela baixa
efetividade da resposta penal, sem reconhecer esse fenômeno da
deslegitimação do sistema penal, em si. Contudo, sem sucesso,
estes últimos, quando se analisa mais profundamente a situação
da prevenção e repressão aos delitos e a partir dela tenta-se
construir cenários mais favoráveis à efi ciência e efi cácia dessa
resposta penal, que cada vez mais surge como uma “infl ição de
dor sem sentido”, ou seja, “penas carentes de racionalidade” – no
dizer de Eugênio Zaffaroni.
Mas nesse caso, como nos posicionaríamos no tocante
ao enfrentamento dos crimes de exploração sexual desse
segmento, mais especifi camente? Abolindo-se de imediato
e completamente a resposta penal aos agressores sexuais?
Eliminando-se as leis penais a respeito? Extinguindo-se essas
agencias judiciais? Óbvio que não! Seria uma insensatez, no
estágio atual da sociedade humana. Mas, necessitamos encontrar
uma resposta alternativa e estratégica que dê novas respostas
do Estado à exploração sexual de crianças e adolescentes,
modernizando-se o processo de responsabilização jurídica desse
tipo de agressor sexual, de logo se a distinguindo, por exemplo,
do abuso sexual, que tem uma conotação mais individualista
que a exploração sexual. Preliminarmente, há que se partir dessa
desconstrução da resposta penal, como a única, a salvífi ca,
a mais poderosa, a mais legítima. E assim, constaremos nesse
desvelar imprescindível da deslegitimidade da resposta penal:
todos os sistemas penais apresentam características estruturais
de seu exercício de poder, que desconstroem como ideológicos
e falseantes o discurso jurídico-penal tradicional retributivista.
E por constituírem essas características marcas intrínsecas de sua
essência, não podem elas ser eliminadas, sem a supressão dos
próprios sistemas penais.
Essas não são características conjunturais e sim estruturais do
exercício de poder de todos os sistemas penais:
A) A sua seletividade perversa e ideológica,
B) A reprodução interna no próprio sistema penal repressor
da violência praticada pelo criminoso contra ele próprio,
C) A criação de novas e melhores condições para
a reincidência,
D) A corrupção intrínseca e institucionalizada do próprio
sistema penal-penitenciário e
E) A destruição das relações comunitárias, por exemplo.
A possibilidade desse tipo de resposta penal e de sistema penal
serem substituídos por um Direito Penal de Garantia, um Direito
Penal Mínimo e uma Justiça com resultados restaurativos pode
ser no momento uma estratégia, um caminho que leve a garantir
uma mais efi ciente e legítima resposta estatal ao fenômeno dos
delitos (no caso nosso aqui, dos crimes sexuais contra crianças
e adolescentes) – uma resposta estatal que neutralize (ou mascare
pelo menos...), ao máximo, essas características essenciais
da resposta penal retributivista. Se atuarmos na perspectiva
dos Direitos Humanos – ao mesmo tempo em que se pune
o delinquente, também se o reconhece como pessoa humana,
com direitos fundamentais, com respeito mínimo a sua dignidade.
A demonização do delinquente sexual só serve ao modelo de
sociedade e de Estado fi rmado na vingança, na “volúpia punitiva”
alienadora da população e na reprodução da violência, em um ciclo
macabro e inacabável. E negatória inclusive do marco dos Direitos
Humanos. Contudo, denunciar simplesmente esse discurso
jurídico penal como falseante, ideológico e deslegitimado, sem
buscar alternativas com capacidade de alteridade, nos faz correr
o risco também de privar-nos do único instrumento disponível para
a defesa dos direitos humanos de alguns segmentos sociais, mais
susceptíveis de serem alcançados pela malha seletista do sistema
penal. Para a defesa dos “suspeitos”, dos presumidamente
criminosos, mesmo que depois inocentados das falsas denúncias.
Ação seletiva, ideológico-fascista e controladora higienista
baseada em pseudocientífi cos critérios, ou perfi s inconsistentes
de natureza psicológica ou psiquiátrica, que buscam ver em todos
os criminosos sexuais contra crianças e adolescentes, por tudo,
“pedófi los”, de maneira generalizadora e alienadora, ignorando de
má-fé ou por ignorância, o sentido mórbido-compulsivo e perverso
dessa parafi lia. Desse modo, submeter-se a ação criminalizadora
do Estado a normas processuais e a uma agência judicial
é melhor que deixá-la fora desse sistema, dessas normas, dessas
agências, isto é, entregue só às outras agências estatais, onde
a violência seletiva seria maior e descontrolada. Isso porque
o poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos
preferenciais à criminalização, mesmo no caso dos exploradores
sexuais de crianças e adolescentes, e desencadeia o processo
de sua criminalização, submete-os a esse processo sob direção
e controle da agência judicial que pode autorizar o prosseguimento
da ação criminalização já desencadeada pelo sistema de segurança
pública e, por fi m, a privação da liberdade de tal “selecionado” pelo
sistema penal. A seleção é feita em função da pessoa, o candidato
é escolhido a partir de um estereótipo – pobres, negros, indígenas,
jovens, desempregados, por exemplo. Por sua vez, fi ca difícil serem
“selecionados”, nesse processo de criminalização-penalização,
os integrantes da elite econômica, política, cultural de nossos
países: por exemplo, vice-governadores, prefeitos, parlamentares,
juízes, empresários, sacerdotes, policiais.
E essa seletividade classista e racista tem raízes históricas,
no Brasil, por exemplo. No período Colonial, no Brasil, no
regime das Capitanias Hereditárias, o poder de condenar
à morte pessoas despidas de qualidade superior, sem apelo, foi
conferido a Governadores e Ouvidores de diversas Capitanias,
paulatinamente, com a criação de Juntas de Justiça. O objetivo
era acabar com a dita “impunidade” que, se dizia, grassava,
à época. A Carta Régia que concedeu esta jurisdição às
autoridades da Capitania de Minas Gerais, em 1731, por exemplo,
justifi cou a medida pelos “muitos e continuados delitos que se
estão fazendo [...] por bastardos, carijós, mulatos e negros”
porque “não viam o exemplo de serem enforcados”. Outro traço
revelador da impunidade decorre do tratamento diferenciado dos
segmentos sociais, no Império do Brasil, o que seria percebido
por outro viajante, Johann Jakob von Tschudi, que, interessado
no estado das Colônias Suíças, no Brasil, visitou o país na década
38
de 1860. Escreve ele: “(...) quantas vezes aconteceu no Brasil
que um homem rico e infl uente tivesse sentado no banco dos
réus a fi m de se justifi car de seus crimes?” Os exemplos dessa
seletividade igualmente estão manifestos, atualmente, quando se
analisa as consequências das diversas Comissões Parlamentares
de Inquérito sobre Abuso e Exploração Sexual, realizadas,
no Brasil, por exemplo, pelo Congresso Nacional e pelas
Assembleias Legislativas dos Estados-Federados, ali se constata
a tendência à impunidade dos poderosos quando apontados
como agressores sexuais.
Não são apenas meros problemas conjunturais, defeitos produzidos
pela falta de um perfeito aparato legal e pela má funcionalidade
do sistema penal, em países subdesenvolvidos como o nosso,
a serem superados com o mero aperfeiçoamento das leis penais
e das agências judiciais e de segurança, num espírito puramente
positivista legal e equipamentalista e patrimonialista no nível
administrativo-institucional. É uma questão estrutural, igualmente.
Ao lado dessa impunidade conjuntural real também contra a qual
devemos lutar igualmente, há que se reconhecer também uma
impunidade estrutural, que diz respeito ao que se chamou antes
de “deslegitimação do sistema penal” tradicional, meramente
retributivista. Além da criminalização-penalização do agressor
sexual, importa que se aprofundem mais as possibilidades
de responsabilização judicial de natureza civil, administrativa,
disciplinar, política desse explorador/cliente sexual, somada às
possibilidades de responsabilização meta-judiciais e de restauração
pela mediação e outras de atendimento público, por exemplo, no
campo da saúde mental. E além do mais, igualmente, nesses
casos de violência sexual, se deve assegurar um efi ciente e efi caz
monitoramento e avaliação (= controle), tanto das intervenções
judiciais (“acesso à justiça”), quanto desse atendimento direto
pelas políticas públicas, administrativamente, pelos órgãos de
controle externo competentes.
Sistema de garantia de direitos humanos de crianças e
adolescentes no Brasil e no Paraguai, exemplifi cativamente
Todos os nossos países necessitam institucionalizar uma maneira
sistêmico-holística que consiga fazer com que, tanto a promoção
preliminar dos direitos sexuais de crianças e adolescentes, quanto
a proteção desses direitos (via responsabilização), sejam encaradas
de maneira multidisciplinar, multissetorial, multiprofissional
e multicultural. A multissetorialidade (ou intersetorialidade, quando
possível!) sozinha não consegue dar conta, sem preliminarmente
essa multidisciplinaridade no enfoque. O enfrentamento de
questões como a da exploração sexual infanto-adolescente, pelos
Sistemas de Políticas Públicas (educação, saúde, assistência
social, cultura, segurança pública etc.) e pelo Sistema de Justiça
(varas judiciais, promotorias de justiça, defensorias públicas
e outras procuraturas sociais, equipes técnicas judiciais) há que ser
posto amplamente numa “ambiência sistêmica”, isto é, no seio de
uma concertação sistêmica pela promoção e proteção dos seus
Direitos Humanos. Ou pelo menos, minimamente, no ambiente de
um “sistema de garantia de direitos”, a ser institucionalizado em
nossos países, como mais conveniente for.
Esse tem sido o esforço, nos tempos atuais, por exemplo, da
Organização das Nações Unidas - ONU e de suas agências
e organismos, como o Unicef, a OIT, a Unesco, a OMS.
E, para tanto em nível global, regional e nacional, essa “ambiência
sistêmica” tem ganhado reforço na explicitação de seu desenho,
na potencialização de suas instâncias de poder e serviço,
chegando a bons níveis de institucionalização. Por exemplo, mais
que um “sistema organizacional”, na verdade, o Sistema ONU de
Promoção e Proteção de Direitos Humanos tem se conformado
a esse modo de pensar e agir sistêmico, explicitando-se como
espaço público estratégico de articulação e de integração de
variados instrumentos normativos e de outros tantos mecanismos
de exigibilidade de direitos humanos, de modo complementar,
tanto para os povos em geral, como especifi camente para
o público infanto-adolescente (e para outros grupos vulnerabilizados).
O espaço emblemático na ONU onde essas ideias e práticas mais
se sobrelevam tem sido o Comitê dos Direitos da Criança do Alto
Comissariado para os Direitos Humanos, ao exercer seu papel
importante de controle internacional sobre as ações dos Estados-
Partes da CDC de promoção e proteção dos direitos fundamentais
da pessoa humana com menos de 18 anos – isto é, crianças
e adolescentes.
Nesse mesmo sentido antes exposto, por exemplo, caminha
o Brasil, com a construção e formulação do seu chamado “Sistema
de Garantia dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes”
e com a sua paulatina institucionalização, por força da Resolução
nº 113/2006, editada pelo Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente - Conanda. Trata-se mais de ato
normativo regulador a partir de uma interpretação extensiva da
legislação nacional vigente e de uma transposição dos modelos
internacional e regional (interamericano). Esse sistema holístico
estratégico nasce muito mais diretamente do espírito da Convenção
do que propriamente da lei nacional que aprovou o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Para tornar mais visível esse sistema estratégico de promoção
e proteção de direitos humanos de crianças e adolescentes no
Brasil, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
- Conanda, órgão público paritário entre governo e sociedade
civil, em sua Resolução nº 113/2006 instituiu parâmetros para
a institucionalização desse Sistema de Garantia de Direitos, onde
ele é defi nido assim: “O Sistema de Garantia dos Direitos Humanos
da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração
das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na
aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos
mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação
dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis
Federal, Estadual, Distrital e Municipal. Esse Sistema articular-
se-á com todos os sistemas nacionais de operacionalização
de políticas públicas, especialmente nas áreas da saúde, educação,
assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento,
orçamentária, relações exteriores e promoção da igualdade
e valorização da diversidade”.
De maneira muito mais explícita, posteriormente, o Paraguai, em
seu próprio “Código de la Niñez y La Adolescencia” (lei nº 1680/2001),
instituiu um “Sistema Nacional de Protección y Promoción Integral
de los Derechos de La Niñez y Adolescencia” (artigo 37), muito
próximo do modelo brasileiro, porém mais sistematizado no texto
da própria lei nacional de adequação à Convenção sobre os Direitos
39
da Criança. E lá está no citado Código, a se reconhecer esse Sistema
como “(...) competente para preparar y supervisar la ejecución
de la política nacional destinada a garantizar la plena vigência
de los derechos del niño e del adolescente (...)”. E estabelece mais
o Código paraguaio que esse Sistema é integrado em especial
por três instâncias mais protagônicas, em seu seio: a “Secretaria
Nacional de la Niñez y la Adolescencia”, o “Consejo Nacional de
la Niñez y Adolescencia” (mais os “Consejos Departamentales
y Municipales”) e as “Consejerias Muncipales por los Derechos Del
Niño, Niña y Adolescente” - Codeni. De se destacar no modelo
paraguaio, como grande avanço, a previsão legal da presença,
compondo esses conselhos, de “organizaciones de niños” dos
Departamentos e dos Municípios.
Diante destas constatações, principalmente no campo da
sexualidade infanto-adolescente, falar-se hoje em direitos humanos
de criança e adolescentes tem um sentido mais profundo do que
se imagina, pois ao se acentuar a vinculação desse segmento
da população aos instrumentos normativos e aos mecanismos,
internacionais e nacionais, de promoção e proteção de direitos
humanos. Signifi ca afastar-se a tentação de desvincular
o movimento de luta pela emancipação de crianças e adolescentes,
de relação ao movimento maior pela emancipação dos cidadãos,
especialmente dos “dominados e subalternizados”: empobrecidos,
mulheres, negros, sem-terra, sem-teto, homossexuais, transexuais,
índios, defi cientes, soropositivos, prostituídos, marginalizados,
delinquentes etc. Quando se fala em direitos humanos geracionais
(crianças, adolescentes, jovens e idosos) se quer acentuar
a substantividade dessa condição, isto é, acentuar a essencialidade
humana de crianças e adolescentes, ancorada nos princípios da
dignidade, da liberdade e do direito. E se quer – além do mais –
que, à essa luta pelo respeito a sua essencialidade humana, se alie
também a luta pelo reconhecimento, respeito e potencialização
da sua identidade geracional. Desse modo, importante torna-se
colocar as situações de vulnerabilidade, de risco, de exclusão,
de marginalização, de confl ito com as normas, como meras
adjetivações circunstanciais, conjunturais e não essenciais.
Mesmo reconhecendo que “crianças, vivendo sob condições
excepcionalmente difíceis” necessitam de “consideração especial”
(CDC – Preâmbulo), a essencialidade delas como pessoas
humanas vem em primeiro lugar, com o reconhecimento da
“dignidade inerente e dos direitos iguais de todos os membros
da família humana” (CDC – in ibidem). “Todos os membros da
família humana”, sem excluir, portanto, crianças e adolescentes
dessa essencialidade. Esse lócus dos direitos humanos traz uma
resignifi cação da criança e do adolescente como ser-autônomo,
em processo de emancipação e de potencialização do seu
desenvolvimento, como co-sujeitos no processo de proteção
integral a suas necessidades, a seus interesses e a seus desejos,
vistos como direitos seus exigíveis e como responsabilidade do
Estado e da sociedade.
Indicações
Para se enfrentar a questão da impunidade estrutural
e conjuntural nos processos de responsabilização derivada dos
agressores sexuais de crianças e adolescentes, especialmente de
criminalização-penalização, aqui são apresentadas as seguintes
indicações, fi rmadas no pensamento da Anced e da ABMP:
A) Redefi nição dos atuais marcos normativos nacionais,
em todo o mundo, para que sejam mais explicitamente
fundados nos paradigmas dos direitos humanos,
visando a revisão da estruturação das ações públicas de
proteção legal (defesa) dos direitos sexuais de crianças
e adolescentes, de responsabilização socio-estatal e de
responsabilização individual ampla do explorador sexual,
sem prejuízo da sua estrita criminalização-penalização;
B) Aprofundamento, em consequência, da adequação
normativa penal aos instrumentos normativos
internacionais, sem ressalvas que desvirtuem o espírito
dessa normativa, ampliando sempre e sempre a
ratifi cação de novos instrumentos de direito internacional
que tenham essa base jus-humanitária;
C) Aprofundamento da redefi nição e explicitação do lugar
social da criança e adolescente na sociedade, com
provisões que garantam sua participação de maneira
ativa e impactante nas decisões políticas, com o devido
respeito a sua opinião e consideração dessa opinião,
em conta o seu grau de maturidade, considerando-
se desse modo mais seu direito a uma sexualidade
saudável sem invasões indevidas, com respeito mais
à diversidade sexual;
D) Fortalecimento dos níveis de coordenação e controle
dos sistemas de promoção e proteção (garantia) de
direitos humanos infanto-adolescentes (SGD), autônoma
e conjuminadamente, sem concorrências, suprindo
lacunas institucionais e programáticas;
E) Reconhecimento e construção de uma maior diversidade
dos meios procedimentais de defesa de direitos de crianças
e adolescentes em situação de violência sexual, como
a busca de resultados restaurativos e outras formas mais
amigáveis de atuação jurídico-judicial e extra-judiciais.
E, por fi m, no trato específi co da questão da responsabilização,
no tocante à garantia dos direitos sexuais infanto-adolescentes
e à criminalização dos agressores sexuais individualmente,
importante que se leve em conta as seguintes considerações:
A) Em primeiro lugar, a expressão tão usada de
“responsabilização de abusadores e exploradores
sexuais”, no sentido restrito de sua criminalização-
penalização, deve merecer uma revisitação do seu
conceito e da sua aplicação, para se colocar a expressão
“responsabilização”, ampla e primeiramente no seu
sentido próprio, no campo do Direito Internacional dos
Direitos Humanos: ou seja, o Estado igualmente precisa
ser responsabilizado (“accountability/responsibility”),
tanto pela promoção dos direitos sexuais de crianças
e adolescentes através de políticas públicas intersetoriais
realmente efetivas, quanto pela proteção legal desses
direitos, através do sancionamento (amplo!), dos
abusadores e exploradores sexuais.
B) O Estado é chamado a dar uma resposta, (“answerability”)
à qual está obrigado e pela qual é responsável, diante
da ordem interna e mundial, diante das situações
de explorações sexuais. E se obriga mais a cobrar,
derivadamente, respostas dos agressores sexuais
e a responsabilizá-los, por sua vez. O Estado precisa ser
chamado a se responsabilizar pela garantia dos direitos
40
sexuais de crianças e adolescentes e a combater todas
as formas de violações desses direitos. É chamado
a reconhecer suas obrigações e ele se expõe e se arrisca
a sofrer sancionamentos morais, econômicos, políticos
- desde o mero “envergonhamento público” diante da
comunidade internacional (e comunidade nacional, por
que não!?), com a leitura dos relatórios, onde sejam
apontados por algumas formas de violações de direitos
sexuais ou diretamente ou de acumpliciamento com
outras formas sem suas providências devidas. Até outras
sanções, restrições, embargos, mais gravosos.
C) A partir dessa sua originária e preliminar responsabilização,
o Estado criminaliza-penaliza esses agressores sexuais,
como uma das formas derivadas de responsabilização
jurídica possível dos referidos agressores sexuais, através
de suas agências judiciais e policiais. Contudo, há que
se reconhecer que essa criminalização-penalização do
agressor sexual (explorador/cliente) não é a única resposta
do Estado ao “ato injusto” desse agressor sexual. E talvez
nem sempre a mais efetiva, efi caz e efi ciente, diante da
cada vez mais desmascarada “deslegitimação do direito
penal”, por sua manifesta seletividade classista, racista,
machista etc. E por sua baixa efetividade, de relação
à prevenção e repressão ao crime, as estatísticas
mostram o baixo poder intimidatório da sanção penal,
no mundo moderno.
Há que se ousar, inovar, aprofundar, criar nova ordem mundial.
E, como diz o nosso cantor Caetano Veloso, é preciso reconhecer:
“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem,
apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis – sem juízo
fi nal”. E por isso eu digo, com ele, com todos vocês, construindo
essas novas harmonias possíveis: “....alguma coisa está fora da
ordem, fora da ordem mundial...”.
*WANDERLINO NOGUEIRA NETOProcurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público da Bahia e membro da Anced- Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente– DNI - Defensa de los Niños Internacional / Seção Brasil - Grupo Temático de Monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança.
41
Apesar do Brasil ser signatário da Carta das Nações Unidas de 1945
e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, 2008
foi um ano para se entristecer, já que completamos importantes
marcos como a maioridade legal do ECA e da Convenção sobre
os Direitos da Criança, 20 anos da Constituição Democrática do
Brasil e da criação do importante Centro de Defesa dos Direitos da
Crianças e dos Adolescentes - CEDECA-Dom Luciano Mendes,
sem ver resultados globais de inclusão de toda a população
brasileira em um projeto de nação e de futuro.
Os direitos humanos no Brasil têm sempre vindo a reboque de
pressões internacionais, como foi o caso da abolição. Fomos
o último país do mundo a libertar os escravos, no século XIX, e os
herdeiros de escravos e negros, 120 anos depois, ainda são vistos
como perigosos e com tendência à criminalidade. A Lei Áurea,
em 1888, foi uma lei seca, com apenas dois artigos:
Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta
lei a escravidão no Brasil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em
contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades,
a quem o conhecimento e execução da referida
Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir
e guardar tão inteiramente como nela se contém.
Mas outras providências não foram tomadas,
como aconteceu nos Estados Unidos, que defi niu, após a abolição,
que cada família ganharia um lote de terra para construir sua casa
e plantar, e obrigava os estados a oportunizar escola elementar
para todas as crianças. No Brasil, os ex-escravos fi caram sem
opções e ofertas sociais e educacionais.
A República, proclamada um ano e meio depois, alardeou que iria
instituir uma nova ordem social, baseada em princípios de cidadania
e da igualdade de todos os brasileiros, tirando o Brasil do atraso
da Monarquia. Muitos discursos foram feitos, muitas propostas
apresentadas, mas nenhum deles efetivou direitos sociais para
todos, sem distinção étnica ou religiosa (Leite, 2005).
É bem verdade que houve algumas iniciativas de integração,
esparsas, nesses mais de 100 anos. Uma delas foi com Arthur
Ramos, um etnopsiquiatra (denominação inexistente na época),
que criou no Instituto de Pesquisas Educacionais da Cidade
do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), uma seção de
Ortofrenia e Higiene Mental na escola primária, onde analisava
os comportamentos dos alunos de escolas públicas na década
de 1930 e afi rmava que essas “crianças problemas” eram fruto
da própria “civilização e sociedade” brasileiras. Este psiquiatra,
estudioso das culturas e das raças, rejeitava totalmente a chamada
“inferioridade dos negros e sua incapacidade para civilização”,
pensamento comum na época. Para ele a chamada “mentalidade
primitiva” que, segundo as teorias evolucionistas, estaria articulada
com os cultos fetichistas e superstição existentes no sincretismo
religioso do Brasil, registrava-se nas “classes pobres” de qualquer
sociedade. Para o autor, os conceitos de primitivo e arcaico seriam
“puramente psicológicos”, sem relação com a inferioridade racial
(Abreu, in Leite et al, 2008).
A proposta para a Higiene Mental para as escolas, conduzida por
Ramos, era estudar os fatores socioculturais que condicionavam
o comportamentos dessas crianças. Entre as infl uências mais amplas
do meio social, listava os problemas psicológicos que precisavam
ser investigados: “os círculos da família”, os hábitos familiares,
os passeios e a vida matrimonial, os moldes emocionais,
sentimentais e as atitudes em relação
à criança, todos eles responsáveis
pelos seus desajustes psicossociais.
Os adultos, em sua perspectiva, modelavam
a personalidade e o caráter das crianças,
pequenos seres que não eram compreendidos
(Abreu, op.cit.: 135).
Trinta anos se passaram para que houvesse
nova investida governamental a favor das
crianças e adolescentes. No ano de 1961
começam a se confi gurar os direitos sociais
dos “menores” como dever do Estado, seguindo as obrigações
expressas nas convenções internacionais, de 1945 e 48. Isto
ocorre quando a primeira Lei Nacional de Diretrizes e Bases da
Educação – lei que fi cou 13 anos sendo discutida no Congresso
Nacional – é sancionada pelo governo do Presidente João
Goulart. Esta lei defi nia a obrigatoriedade do poder público em
oferecer escola elementar gratuita e laica para as crianças entre
7 e 14 anos, em todo território nacional, explicitando o propósito
de democratização do ensino básico e elementar. O processo da
educação passaria a se basear nos princípios de justiça, dando
a todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente
de classe social e etnia cultural, o acesso ao mundo letrado,
dentro dos princípios da igualdade de direitos. Até essa data havia
poucas escolas públicas para educar toda a população brasileira,
e os mestiços, negros e demais descentes da miscigenação
brasileira tinham raras opções para estudo, especialmente o ensino
profi ssionalizante que formaria trabalhadores para o capitalismo
que se vislumbrava a partir do governo JK.
As palavras do defensor da LDB, então deputado Anísio Teixeira,
o qual lutava pela lei desde a década de 1930, descrevem
o sentimento de justiça social do momento:
18 ANOS DO ECA; 19 ANOS DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA;20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO; 20 ANOS DO CEDECA-DOM LUCIANO MENDES;
60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA.
LIGIA COSTA LEITE*
“Enfi m, em 1988 a nova Constituição brasileira incorpora, no artigo 227, os direitos constitucionais das crianças e adolescentes brasileiros, colocando-os como alvo de prioridade nacional. Com base neste artigo foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso, já que o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida socioeducacional iniciado com a LDB em 1961 e com 50 anos de atraso das convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.”
42
Não se pode dizer que a LDB, ora aprovada pelo Congresso,
seja uma lei à altura das circunstâncias em que se acha o país
em sua evolução para constituir-se grande nação moderna
que todos esperamos. Se isto não é, não deixa, por outro
lado, de ser um retrato das perplexidades e contradições
em que nos lança esse próprio desenvolvimento do Brasil.
Afi nal, é na escola que se trava a última batalha contra
as resistências de um país à mudança. (Teixeira, 1962).
Infelizmente, esses novos tempos são interrompidos em 1964,
apenas três anos depois, com as diretrizes da Lei de Segurança
Nacional, quando os direitos de cidadania são abolidos para quase
todos os brasileiros. Para os chamados “menores”, o marco dessa
época é a Funabem, fundada em 1965 para substituir o antigo
Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Apesar de um nome
politicamente correto – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor
–, que anunciava intenções de proporcionar uma política de bem-
estar aos fi lhos da pobreza, a Funabem não mudou as técnicas
utilizadas nos internatos anteriores e os olhos da repressão se
voltaram para abafar vozes diferentes e tirar de cena todos os que
ameaçassem o regime então implantado. Isto porque uma escola
pública, gratuita e laica poderia promover uma educação crítica
e, na interação com o professor, construir a escolaridade singular
para cada aluno, articulando sua cultura com a cultura letrada.
Tudo isso seria um risco ao regime que se implantava.
Ao contrário do caminho que o Brasil vinha trilhando antes de 1964,
o retrocesso social foi enorme, o que fi ca claro pela base doutrinária
da política para os “menores” surgida em pós-64 e intensifi cada
na década de 1970. Esta, por determinações impostas, tratou de
classifi car jovens em razão de sua suposta ou possível “situação
irregular”, o que signifi cou subjugá-los a um juiz que aplicaria, de
acordo com seu juízo, medidas preventivas e terapêuticas. Essas
medidas nada mais eram recolhimento e confi namento deles
em instituições fechadas, sem prazo e condições defi nidas para
o suposto tratamento, que os colocasse em “situação regular”
para o modelo de país previsto. Todo processo de julgamento
era feito sem que o menor pobre tivesse direito de defesa,
o que não acontecia para os jovens das outras classes sociais.
Entendiam as autoridades que uma política correcional, repressiva
e, simultaneamente, assistencialista dentro de internatos,
poderia dar conta de sanear a doença social da pobreza
e do abandono social.
A base legal para isto foi a lei nº 4513/64, que veio a ser o fundamento
do Código de Menores, lei nº 6.697, de 1979, introduzindo
a prisão cautelar – inexistente no Código Penal Brasileiro, mas que
podia ser utilizada sem dó e piedade para os menores de idade
que estivessem nas ruas ou fossem denunciados, mesmo sem
provas, por qualquer “cidadão de direito” (art. 94). Os internatos,
na prática, se restringiram à função de aprisionar os jovens, não
importando o método ali desenvolvido.
Toda essa política social implantada a partir de 1964, intensifi cada
em 1968, culminando com o Código de Menores, baseava-se no
velho mito do Brasil grande e generoso, onde “em se plantando
tudo dá”, mito este que entrou no imaginário social e justifi cava
a pobreza pelas características individuais do povo brasileiro, entre
elas, a “indolência”, que gera a “incapacidade” de o povo “civilizar-se”.
Mito este desmentido em 1930 por Arthur Ramos, mas ainda existente
no Brasil de 2008.
Dentre os pressupostos do período militar estava a ideologia
de que “o trabalho cura” e a meta de salvação nacional deveria
ser instituída. Assim, outra Lei de Diretrizes e Bases para Educação
foi sancionada em 1971, abolindo quase todos direitos obtidos
e a liberdade de ensino existente pela Lei de 1961. Essa nova
lei cria uma educação continuada com o ensino profi ssionalizante
no segundo grau e um suplemento – vale dizer de segunda
categoria – para os mais pobres, defasados em série/idade, que foi
o ensino supletivo e o Mobral. Alegavam na exposição de motivos
que esses últimos teriam a duração de uma década, pois seria
como uma ponte entre o passado e o futuro industrial do país.
A meta era em dez anos alfabetizar e recuperar os estudos
dos brasileiros. Mas, também, podemos dizer que esse
discurso tinha o intuito de abafar as críticas internacionais sobre
o enorme analfabetismo existente no período, que beirava a 60%
da população.
A política social dos militares para os fi lhos da pobreza era racista
e excludente. Começava pelo internamento em instituições
fechadas mantidas pela Funabem e Febem’s, onde recebiam uma
educação para subserviência, sem possibilidades de crescimento
profi ssional, sobrevivência e mesmo prazer (Leite, 1998). Não
havia a intenção de incluí-los na industrialização crescente, até
porque a escolaridade não atendia aos requisitos desta demanda.
Esse pensamento retrógrado, arraigado no imaginário social,
permaneceu – até hoje permanece – em alguns dos que se julgavam
luminares do direito do menor e que encontraram campo fértil para
infl uir nas diretrizes dessas instituições, a partir de 1964.
Outra forma de resolver o problema da existência de crianças
pobres e sem oportunidades, fi m da década de 1960, foi a ideia
de “evitar” o seu nascimento e futuros problemas sociais,
ainda dentro do pensamento da eugenia, que vive adormecido
e desmemoriado no inconsciente nacional. Falava-se em
planejamento familiar, mas o implantado foi um grande programa
de controle da natalidade, com laqueamento de trompas de milhares
de mulheres – jovens muitas delas – com equipes interdisciplinares
de saúde, vindas especialmente dos Estados Unidos. Como
não lembrar no navio Hope que aporta no nordeste em 1968,
área de grande efervescência social e de tradição de militância
popular desde as ligas camponesas lideradas por Francisco Julião
ou da educação popular de Paulo Freire e Moacir de Goes,
então cassados e exilados. Controlar a natalidade de pobres era
controlar o país.
Uma terceira, por assim dizer, política social mais signifi cativa
para aqueles já nascidos e chegados à adolescência foi a do
extermínio. Aqueles considerados excedentes das políticas, e que
ameaçavam o mundo da ordem, estavam destinados a enfrentarem
por si as milícias paralelas que promoviam o extermínio puro
e simples deles. Isso porque os formuladores das políticas sociais,
impotentes por não saber como conter jovens rebeldes e arredios
aos recolhimentos que eram feitos nas ruas, fecham os olhos para
esta prática. Como não lembrar do Mão Branca que assustava
todos os jovens no Rio de Janeiro.
Enfi m, em 1988 a nova Constituição brasileira incorpora, no artigo
43
227, os direitos constitucionais das crianças e adolescentes
brasileiros, colocando-os como alvo de prioridade nacional.
Com base neste artigo foi elaborado o Estatuto da Criança
e do Adolescente, que nasce com 30 anos de atraso, já que
o golpe de 1964 interrompeu o processo de resgate da dívida
socioeducacional iniciado com a LDB em 1961 e com 50 anos
de atraso das convenções internacionais das quais o Brasil
é signatário.
Todos sabemos que as leis servem para balizar a conduta dos
cidadãos de um país, dar oportunidades iguais a todos, mas,
no caso do Brasil, quanto mais democráticas e menos elitistas
forem essas leis, menos serão cumpridas ou, quando o são,
acabam escapando em aspectos fundamentais. Sabemos
também que não se faz política sem vontade e dinheiro, no entanto
os recursos que eram aplicados nas antigas Funabem e LBA
não foram alocados para promover as medidas sócio-educativas
determinadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
É importante frisar que em vários artigos do ECA, a criança
e o adolescente são defi nidos em sua condição peculiar de seres
em desenvolvimento não apenas no aspecto físico, mas sobretudo
no psíquico, e por isto têm de ser foco de proteção, pois estão
expostos às infl uências do mundo em que vivem, tanto na ordem
social, econômica, como familiar e comunitária.
O professor Antônio Carlos Gomes da Costa apresenta um
comentário ao artigo 6º do Estatuto, com importante esclarecimento
para aqueles que possam ter dúvidas quando ao espírito legal na
defi nição do desenvolvimento infanto-juvenil:
A afi rmação da criança e do adolescente como pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento não pode ser
defi nida apenas a partir de que a criança não sabe, não tem
condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento
deve ser reconhecida como revestida de singularidade
e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente
são seres inacabados, a caminho de uma plenitude
a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de
responsabilidades pessoais, civis e produtivas plenas. Cada
etapa é, à sua maneira, um período de plenitude que deve
ser compreendida e acatada pelo mundo adulto, ou seja, pela
família, pela sociedade e pelo Estado (Cury, 2005: 39).
Desenvolvimento sadio implica em qualidade de vida, dignidade da
pessoa humana, em direitos preservados e exercidos pelo Estado
e demais segmentos da sociedade. No entanto, nem todos os
homens públicos e legisladores se preocupam com esses direitos
individuais da criança e do adolescente e eventualmente acabam
“esquecendo” de incluí-los em outras leis, portarias e normas de
assistência. Este é o caso da lei nº 10.216/2001, conhecida como
da reforma da atenção psiquiátrica, que “esqueceu” de legislar
sobre a criança e o adolescente. Este aspecto acabou sendo
relegado às portarias posteriores que contemplam apenas aqueles
com transtornos mentais graves ou incapacitantes, omitindo as
especifi cidades dos demais jovens que vivem riscos psicossociais
e precisam de suporte à sua saúde mental.
Como afi rma Moraes e Mecler (2008):
O atendimento às crianças e adolescentes, na área de saúde
mental, não vem apresentando sintonia ou respeito às normas
legais e o legislador brasileiro não tem observado os novos
parâmetros sobre direitos humanos, em especial o respeito
à preservação do superior interesse da criança e do
adolescente, e não oferecido soluções consentâneas com
a singularidade das pessoas que se acham em fase de
desenvolvimento e representam camada social altamente
vulnerável diante das desventuras sociais e políticas de nosso
país, razão pela qual devemos acolher iniciativas que façam
valer a doutrina da proteção integral a elas. (in Leite et al: 30)
Fica evidente que as instituições destinadas a esconder os
menores, as escolas que nem conseguiram alfabetizá-los e todas
as demais propostas que não conseguiram reprimir a juventude,
nem adestrá-la para servir passivamente a ordem vigente,
fracassaram. Da mesma forma, fracassou a intenção de eliminar
da memória brasileira a existência desse grupo social, pois ele
permanece presente em seus herdeiros, fi lhos e netos. E para
defi nir memória coletiva uso o verbete Memória, da Enciclopédia
Einaudi, escrito pelo historiador francês Jacques Le Goff (1984):
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante
na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores
da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades. Os esquecimentos
e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos
de manipulação da memória coletiva. (p.13)
Portanto, resgatar a história que gerou a pesada carga de violência
social, que atinge a todos sem exceção, pobres e ricos, velhos e
jovens nos dias de hoje, é procurar mudar esta realidade, é superar
o silêncio de políticas sociais, que tentaram abafar a existência
de uma juventude sem direitos, a qual acabou se impondo pela
simples presença nas ruas, nos crimes que pratica, nas reações
agressivas que têm diante da violência silenciosa que os atinge,
mais que a todos nós.
Os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente têm que
festejados com seu cumprimento em todos os seus aspectos, sem
exceção, entendendo que as grandes controvérsias em relação a
esta lei giram em torno da possibilidade do Brasil vir a ser uma
democracia em sua plenitude. A tentativa de manipular a memória
coletiva, felizmente, não atingiu a todos e não há como negar que
o Brasil precisa pagar esta histórica dívida social.
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(org.)Juventude, desafi liação e violência. Rio de Janeiro: Contra
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- Teixeira, Anísio. Comentário à Lei das diretrizes e Bases
aprovada em 1961. Diário de Pernambuco, 13-04-1962
*LIGIA COSTA LEITEProfessora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
45
Em 2008, o Brasil comemorou os 120 anos da Abolição da
Escravidão. Não há como deixar de refl etir sobre o sentido
deste fato sem analisar dois conceitos importantes, que marcam
a história dos afrobrasileiros.
O primeiro conceito é o de raça. Este conceito é relativamente
recente, a primeira classifi cação dos homens em raças foi publicada
em “Nouvelle division de la terre par les différents espèces ou races
qui l’habitent” (“Nova divisão da terra pelas diferentes espécies ou
raças que a habitam”), de François Bernier, de 1684, que utiliza
o termo para classifi car a diversidade humana em grupos fi sicamente
diferentes. Séculos depois ressurge na Europa quando, em 1859,
Charles Darwin publica o livro “A Origem das Espécies”. A partir
de estudos realizados em plantas e animais, Darwin desenvolveu
a teoria da seleção natural, segundo a qual na natureza sobrevivem
e dominam as espécies fortes. Nesse sentido existiriam, portanto,
espécies fortes e fracas.
Autores como Joseph-Auguste de Gobineau,
Richard Wagner e Houston Stewart Chamberlain
utilizam a teoria de Charles Darwin para explicar a
sociedade humana (VERARDO, 2006). Concluem
que alguns grupos humanos são fortes e outros
fracos. Os fortes herdariam certos aspectos
que os tornavam superiores e os autorizavam
a comandar e explorar os outros. Os fracos teriam
características que os deixavam “naturalmente”
inferiores e, portanto, “predestinados” a serem
comandados.
As diferenças de tipo físico passaram então a ser utilizadas
para classifi car os seres humanos. Assim basicamente nasceu
a fórmula do racismo, ou seja: humanos de pele escura seriam de
raça inferior; e os humanos de pela clara, de raça superior.
Com base nessas ideias, em 1908 Francisco Dalton, funda, em
Londres, a Sociedade de Educação Eugênica, com o propósito de
defender a manutenção da pureza das raças, a chamada eugenia.
Para ele, era necessário que a raça branca se mantivesse pura,
evitando a mistura das raças.
No Brasil, em 1929, é realizado no Rio de Janeiro o 1º Congresso
Brasileiro de Eugenia. A proposta veio propagar a corrente
eugênica a partir dos modelos americano e inglês atribuindo-se
ao saneamento, à higiene e ao ensino as melhores opções para
superação das mazelas vividas pela sociedade brasileira.
Esses pensamentos foram disseminados mundialmente e tiveram
muitos seguidores, dentre os quais destacamos Adolf Hitler, que,
em 1934, publicou “Minha Luta”, formulado de ideias racistas
e, como consequência, o extermínio de milhões de judeus
na segunda guerra mundial. Aí, o conceito ‘raça’ fortemente
estabeleceu-se a uma conotação biológica (MAGGIE, 2001).
No entanto, podemos verifi car que na sociedade brasileira
o conceito ganha uma nova conotação, sofre uma re-signifi cação,
e é empregado como forma de distinção social. Guimarães (2005),
em suas considerações a respeito do tema, assinala que:
“ As hierarquias sociais podem ser justifi cadas
e racionalizadas, por conseguinte, de diferentes modos,
fazendo, todas, apelo à ordem natural. (...) presumida,
portanto, pode ter uma justifi cativa teológica (origem divina);
científi ca (endodeterminada); ou cultural (necessidade
histórica – como no caso de evolucionismos que justifi cam
a subordinação de uma sociedade humana por outra). Em
todos os casos, quando essa ordem natural
delimita as distâncias sociais, assiste-se
a sistemas de hierarquizações rígidos e
inescapáveis.” (GUIMARÃES, 2005, p. 30)
O mesmo autor avalia que “a defi nição de
racismo que me parece correta terá, portanto,
de ser derivada de uma doutrina racialista, isto
é, de uma teoria das ‘raças’”. (GUIMARÃES,
2005, P. 32). Dando continuidade à refl exão,
o autor comenta ainda que:
“ Sem dúvida, pode-se usar o termo ‘racismo’ como
metáfora para designar qualquer tipo de essencialismo ou
naturalização que resultem em práticas de discriminação
social. Tal uso é, contudo, frouxo quando a idéia de ‘raça’
encontra-se empiricamente ausente e apenas empresta um
sentido fi gurativo ao discurso discriminatório. Penso que
seria mais correto designar tais práticas discriminatórias
por termos específi cos como ‘etnicismo’, etc. A referência à
raça, porque se encontra subsumida em outras diferenças,
funciona apenas como imagem de diferença irredutível.”
(GUIMARÃES, 2005, p. 34)
Segundo Guimarães (2005), “se não for a raça”, a que atribuir as
discriminações que somente se tornaram inteligíveis pela ideia de
“raça”? (p. 25)
Outro autor que tem produzido refl exões sobre o tema, D’Adesky
(2001) chama atenção para o fato de que:
“ A existência da noção de raça biológica e a evidência da
raça simbólica, ou seja, da raça socialmente percebida
e interpretada. Quaisquer que sejam as variações de
sentido do termo ‘raça’, a desconstrução científi ca da raça
OS 120 ANOS DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO.GILDA ALVES BATISTA*
“As diferenças de tipo físico
passaram então a ser utilizadas
para classifi car os seres
humanos. Assim basicamente
nasceu a fórmula do racismo,
ou seja: humanos de pele escura
seriam de raça inferior;
e os humanos de pela clara,
de raça superior.”
46
biológica não fez desaparecerem as percepções comuns
fundadas na aparência física, e em primeiro lugar na cor
da pele. Culturalmente codifi cadas essas percepções
conduzem o homem comum a classifi car os indivíduos
que encontra segundo suas características visíveis e não
de acordo com o conhecimento genético. Esse hiato
entre raça biológica e a caracterização social fundada na
aparência física constitui um problema e um desafi o para
o anti-racismo”. (D’ADESKY, 2001, p. 01).
De fato, com base nesta perspectiva da existência da raça,
mesmo que o termo não seja pronunciado, as distinções entre
os vários tipos de racismo só poderão ser estabelecidas a partir
de uma análise histórica para se verifi car como os outros termos
específi cos tornaram-se metáforas para serem designados por
“raça” e vice-versa.
Após a segunda guerra mundial, alguns teóricos passaram
a denominar “raça” tendo o fenótipo como algo que ganha
importância social por intermédio de crenças, valores e atitudes.
Desse modo, onde não havia a presença de marcas fenotípicas,
a denominação passava a ser etnia.
Este termo é utilizado para descrever um determinado grupo de
um dado contexto social e que conserva certa solidariedade,
experiências compartilhadas e por terem origem e interesses
comuns. O grupo étnico é, portanto, um fenômeno cultural de
onde se originam percepções e experiências de vida.
Entretanto, no nosso ponto de vista, o aspecto central que
constituiria o pano de fundo desses estudos seria responder
a velha questão: existe discriminação racial no Brasil?
Para tanto, faz-se necessário pensar sobre a identidade da nação
brasileira, raça, cor etc. Gilberto Freyre, um dos nossos mais
importantes intelectuais, deteve-se também sobre estas mesmas
questões. Nascido em Pernambuco em 1900, complementou
seus estudos nos Estados Unidos da América, inicialmente
na Universidade Baylor, no Texas (em 1919), ocasião em que
realizou viagens até o extremo sul deste país, fi cando horrorizado
com a violência e brutalidade da segregação. Infl uenciado
por esta experiência seguiu para Nova Iorque, onde estudou
Ciências Sociais na Universidade de Columbia (em 1921). Neste
momento, os debates acerca das formações nacionais eram
acionados pelos resultados sociais e políticos consequentes
da primeira guerra mundial.
Freyre buscou desenvolver a afi rmação de que, no Brasil, essa
situação de segregação e violência não existia. Do encontro com
a hostilidade americana construiu uma visão do passado brasileiro
e, nesta perspectiva, do presente e do futuro, lançou o conceito
do Brasil como uma nação cordial à diversidade racial, fornecendo
uma alternativa para o mundo (Casa-Grande & Senzala, 1933).
Para avaliar o papel que este autor desempenhou, foi nesta
década (30) que se iniciou o processo de institucionalização
da sociologia no Brasil, destacando-se a criação dos cursos
universitários de ciências sociais na Escola de Sociologia e Política
da Universidade de São Paulo; a criação da cadeira de sociologia
nos cursos secundários, resultado da nova política educacional;
multiplicação das coleções de livros de debate sobre problemas
brasileiros, principalmente as Coleções Brasiliana, Coleção Azul
e Documentos Brasileiros e o surgimento de jovens escritores
nos compêndios de sociologia. Suas ideias sobre uma ligação
indissociável entre raça e cultura vieram a se explicitar no “mito
da democracia racial”. Talvez, para melhor compreender suas
teses de formação da sociedade brasileira, seja importante ver
o contexto da época, o momento em que ocorria a transição entre
o modelo de análise baseado em pontos de vista sobre o social,
para a análise sistemática da sociedade.
O Mito da Democracia Racial
Outro conceito fundamental diz respeito à democracia racial. Esta
expressão tem sua formulação também a partir da obra “Casa-
Grande & Senzala”. O autor assinala que o tipo de relação entre
senhor (Casa-Grande) e o escravo (Senzala) teria favorecido uma
democracia, já que os fi lhos da relação entre senhor e escrava
tornavam-se herdeiros de parte do patrimônio destes senhores,
recebendo, desta forma, um reconhecimento social inacessível
à população negra que se encontrava na condição de escravizada.
As críticas à ideia de democracia racial, no entanto, mostram que
a mistura de raças serviu para esconder a profunda injustiça social
aos negros, mulatos e indígenas. Ao situar no plano biológico uma
questão profundamente social, econômica e política, deixou-se de
lado a problemática básica – a falta de igualdade. A sociedade não
se reconhece como reprodutora do sistema de hierarquização,
que, neste caso, é pensada como sendo uma herança histórica
da colonização portuguesa.
Refl etindo sobre a formulação do que veio a ser denominado mito
da democracia racial, Hasenbalg (1979) afi rma que,
“ Os princípios mais importantes da ideologia da democracia
racial são a ausência de preconceito e discriminação
racial no Brasil e, consequentemente, a existência de
oportunidades econômicas e sociais iguais para brancos
e negros. De fato, mais do que uma simples questão
de crença, esses princípios assumiram o caráter de
mandamentos...” (HASENBALG, 1979, p.242)
Florestan Fernandes (1978), autor de muitos estudos, analisando
as relações raciais na sociedade brasileira, aborda o tema
da democracia racial e revela os sentidos subjacentes a esta
formulação:
“ O mito em questão teve alguma utilidade prática, mesmo
no momento em que emergia historicamente. Ao que
parece, tal utilidade evidencia-se em três planos distintos.
Primeiro, generalizou um estado de espírito farisaico, que
permitia atribuir à incapacidade ou à irresponsabilidade
do ‘negro’ os dramas humanos da ‘população de cor’
da cidade, com o que eles atestavam como índices
insofi smáveis de desigualdade econômica, social e política
na ordenação das relações raciais. Segundo, isentou
o ‘branco’ de qualquer obrigação, responsabilidade
ou solidariedades morais, de alcance social e de natureza
47
coletiva, perante os efeitos sociopáticos da espoliação
abolicionista e da deterioração progressiva da situação
sócio-econômica do negro e do mulato. Terceiro,
revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as relações
entre “negros” e “brancos” através de exterioridades
ou aparências dos ajustamentos raciais, forjando uma
consciência falsa da realidade racial brasileira. (...)
Em consequência, ela também concorreu para difundir
e generalizar a consciência falsa da realidade racial,
suscitando todo um elenco de convicções etnocêntricas;
1º) a ideia de que o ‘negro’ não tem problemas no
Brasil; 2º) a ideia de que, pela própria índole do Povo
brasileiro, não existem distinções raciais entre nós; 3º)
a ideia de que as oportunidades de acumulação de
riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta
e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão
urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4º) a ideia
de que o ‘preto está satisfeito’ com sua condição social
e estilo de vida em São Paulo; 5º) a ideia de que
não existe, nunca existiu, nem existirá outro problema
de justiça social com referência ao ‘negro’...”
(FERNANDES, 1978, p. 256)
Florestan Fernandes entendia que o racismo, no Brasil, estava
associado ao desequilíbrio das estruturas sociais. Avaliava que
o preconceito racial existia no país porque, no período escravista,
a estrutura social estava organizada em castas e, após o fi m da
escravização, a estrutura se reorganiza em classes sociais, não
assegurando aos negros livres uma verdadeira integração na
sociedade brasileira.
Analisando os estudos de Florestan Fernandes e trazendo luz
à discussão sobre o tema em questão, Guimarães (2005)
conclui que,
“ No caso particular de Florestan Fernandes, além disso,
a democracia racial brasileira jamais seria decorrência de
um ethos, seja de uma realidade empírica de miscigenação
ou de ausência de regras de pertença grupal. Ao contrário,
para ele, a democracia racial seria o resultado da ordem
social competitiva e do modo racional-burocrático
de dominação, próprios do capitalismo burguês que
prescindia de formas de discriminação ou coerção
extramercantis ou econômicas. Tratava-se, portanto, de
uma propriedade do sistema social mais que atributo de
indivíduo ou grupos. Era mais um Ideal, uma meta, que
uma realidade.” (p.84)
Para Guimarães (2005), a postura de Florestan Fernandes foi
partilhada também por outros intelectuais, tais como Costa Pinto
e Guerreiro Ramos, assim como pelo Movimento Negro. Destaca,
“ ...a postura agressiva de anti-racialismo e de afi rmação
de um Brasil mestiço, por parte de Gilberto Freyre, José
Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e outros
escritores, encontravam alguma simpatia por parte do
movimento negro quando, e apenas quando, tal visão
de Brasil colidia com aquela, nutrida por escritores
e intelectuais de São Paulo, do Brasil como um país
branco, e da democracia racial como fruto de um
ethos cordial, não necessariamente miscigenado.”
(GUIMARÃES, 2005 p. 87)
Paixão (2006) em sua abordagem sobre raça e desenvolvimento
social considera que,
“ Classifi car a democracia racial como mito implica
dizer que a visão ideológica de uma escravidão benigna
e de uma sociedade harmoniosa do ponto de vista
do contato inter-racial não corresponde à realidade
dos fatos sociais e históricos. Ou seja, no passado,
ao contrário de um modelo de escravidão suave,
teríamos tido um sistema escravista extremamente
perverso, violento e rude sobre os escravizados.
A miscigenação, tão produzida mediante o gozo
não confraternizante dos senhores brancos sobre
mulheres indígenas e negras indefesas, difi cilmente
logrando sair do terreno estritamente físico no sentido
da conformação de relações efetivamente estáveis.
No presente, a imagem idílica de um paraíso racial
se contradizia com uma sociedade na qual aos negros
e negras não havia espaço nos postos de trabalho
maiôs bem remunerados e prestigiados, aos níveis
de escolaridade mais avançados (pelo contrário, na
maioria das vezes, nem sequer o ensino elementar
era garantido para esse contingente) e aos demais
mecanismos de mobilidade social ascendente, como
o acesso ao crédito produtivo, à terra e à proteção
legal contra ações abusivas perpetrados pelos órgãos
de segurança pública. Em suma, no interior de uma
sociedade na qual os padrões de hierarquização
raciais permaneciam razoavelmente rígidos, a
pacifi cação de nosso quadro de relacionamentos
étnicos e raciais era garantida (...) pelo fato dos
negros saberem de antemão qual era o seu lugar”
(PAXÃO, 2006, p.48)
Apesar dos esforços do Movimento Negro em denunciar que
o “mito da democracia racial” esconde de fato uma negação de
que existe uma dimensão especifi camente racial na desigualdade
social brasileira, esta ideologia continua viva e não perdeu seu
poder de sedução na sociedade brasileira. Quais seriam as causas
que manteria ainda vivo este “mito”? D’Adesky (2001) enumera
três razões. A primeira reside no fato de que a...
“’ Democracia racial’ coloca em primeiro plano um
ideal futuro de igualdade para todos e, ao mesmo
tempo, tem o poder de ocultar a realidade presente
de desigualdades raciais colocando em evidência a
mestiçagem real da população. Ele remete, assim,
à ideia do claro-escuro ou da ambiguidade racial,
termo frequentemente utilizado nos últimos anos
para justifi car a difi culdade de saber quem é negro
no Brasil, no quadro da seleção de candidatos aos
exames vestibulares das universidades que adotaram
o sistema de cotas.” (D’ADESKY,2001, p. 5)
A segunda razão, conforme o autor,
48
“ Trata-se, de um lado, da difi culdade de falar abertamente
das desigualdades raciais no Brasil e, ao mesmo tempo,
da extrema difi culdade do movimento negro ter acesso
a mídia. Sem o qual a sua luta ou defesa de suas ideias
se vêem limitadas do ponto de vista do grande público.
(...) falar de racismo no Brasil era tabu (...) alguns
acreditavam mesmo que o racismo e a discriminação
racial não ocorriam no Brasil e que insistir nesses temas
representava uma importação de um problema particular
dos Estados Unidos”. (p. 05)
A terceira e última razão estaria no...
“ (...) fato de que a ideologia da democracia racial continua
a ter não apenas seus adeptos, mas também defensores
entre os intelectuais e acadêmicos brasileiros. Esses
últimos são denominados de ‘neofreyreanos’, em
referência à atualização que promovem do pensamento
de Gilberto Freyre e à vontade de preservar a expressão
democracia racial neste início de século XXI.” (p. 6)
Entretanto, seria necessário considerar que existem outras
posições com relação a esta temática. Autores como Fry e Maggie
(2002) e Souza (2002) consideram que o “mito da democracia
racial” pode representar um valor, um elemento da identidade
nacional brasileira e uma meta a ser alcançada.
No entanto, acreditamos que o “mito da democracia racial”
ajudou a forjar a ideia de que as relações raciais no Brasil se dão
de formas mais harmoniosas, se compararmos a de outros países,
encobrindo uma verdade fundamental: a de que foram negadas
à população negra direitos e oportunidades iguais (HASENBALG,
1979) (HENRIQUES, 2001). Desse modo, consideramos
que devemos continuar lutando para que os direitos que
foram conquistados se ampliem, e possamos efetivamente ter
o que comemorar.
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*GILDA ALVES BATISTAPedagoga e Mestre em Educação pela PUC-Rio, Professora Substituta da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Educação da Baixada Fluminense.
50
A fome de milhares de seres humanos não é uma responsabilidade
de Deus, mas um problema ético e um insulto à dignidade
humana. Uma questão de matriz econômica e de solução política.
Uma questão que não afeta somente a cidadania das pessoas,
mas a soberania das Nações. A fome é, em suma, uma questão
de Estado.
O Brasil pode e deve vencer a fome e a exclusão social. Fome
e miséria não rimam com democracia. A partilha do alimento
é uma profi ssão de fé na igualdade de natureza e de direitos.
A fome de uma criança ou a exclusão de qualquer pessoa é uma
negação da nossa própria dignidade como ser humano. Nenhuma
criança nasce para morrer criança.
Não podemos fi car sentados e esperar que o futuro traga a solução.
Cada ser humano é chamado à vida em um tempo concreto.
Enquanto caminhamos e respiramos na face
da Terra, necessitamos de meios adequados
para crescer e atingir a maturidade e assim
poder participar da história de nossa própria
comunidade. Por esta razão, qualquer meta
presente ou futura, por mais importante que
o seja, deve ser confrontada com os sofrimentos
das crianças, dos jovens, das mulheres
e homens que experimentam frustração e as
consequências da fome e da marginalização.
Nenhum argumento pode justifi car a negação
da liberdade humana, da paz e da felicidade às pessoas que estão
vivendo hoje! Elas não podem ser objeto do sarcasmo da promessa
de que seus fi lhos terão dias melhores. A solução para o problema
da fome e da exclusão social passa por uma nova ordem social,
econômica e política que tenha como objetivo estratégico atingir
o desenvolvimento humano sustentável. Em verdade, uma nova
civilização deve surgir comprometida com a promoção da vida
com dignidade e esperança para toda a família humana.
O direito humano à alimentação e nutrição sustentável é a base dos
direitos humanos e da cidadania, fortalece a participação social na
gestão da Res. Pública, a viabilização econômica dos assentos
da reforma agrária e da agricultura familiar, a melhoria quantitativa
e qualitativa do abastecimento alimentar local, o acesso a uma
alimentação adequada através de justa distribuição e geração
de trabalho e renda, a redução da desnutrição e da mortalidade
materna e infantil e, afi nal, a promoção de práticas alimentares
e hábitos de vida saudáveis.
Como eixo do desenvolvimento humano sustentável, a Política de
Segurança Alimentar e Nutricional não atinge seus objetivos como
sendo mais um programa ou Secretaria de Assistência Social.
Trata-se de uma opção política prioritária nas ações da sociedade
que perpasse todas as esferas de ação do poder público para
garantir a todas as pessoas acesso e gozo dos frutos da terra
e do trabalho humano.
A partir de nossos municípios ou, melhor ainda, de nossa
própria rua, com a participação ativa das populações excluídas,
mediante ações concertadas entre sociedade civil, empresariado
e organismos governamentais, encontraremos soluções que
atendam às exigências da realidade e à cidadania de nosso
povo. Não nos faltam recursos técnicos e fi nanceiros, humano ou
materiais. Precisamos de mecanismos que garantam o controle da
cidadania sobre o Estado, os serviços públicos e o mercado. Sem
parcerias com o governo e sem recursos públicos, a sociedade
não consegue realizar o que é fundamental para sua vida. Por
outro lado, sem a participação do povo, os governos difi cilmente
atendem às necessidades e aos direitos
da cidadania e escapam da prisão da
burocracia ou dos laços da corrupção.
Comer é direito humano básico que jamais
pode sofrer qualquer restrição. A criança
e o idoso não produzem, mas têm direito
de assentar-se à mesa da fraternidade e
participar do banquete da vida. Todos temos
direito à nutrição e, consequentemente,
ao alimento adequado às necessidades
pessoais e culturais. O direito ao alimento
não se reduz, pois, a uma ração que garanta subsistência.
Ninguém se desenvolve sem o pão de cada dia, sem um ninho e a
companhia de gente amiga e acolhedora em volta de uma mesa.
O Direito Humano à Alimentação e Nutrição Sustentável:
um desafi o
O ano de 2008 foi muito simbólico em nosso país no que tange
a promoção do direito humano à alimentação. Celebramos o
centenário do nascimento de Josué de Castro: médico, geógrafo,
deputado, embaixador do Brasil junto a Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU). Foi ele quem
denunciou que a fome não se justifi ca por fatores ligados à natureza
ou à vontade de Deus. A fome é uma mazela humana cujas causas
são associadas à injustiça social. Josué foi o primeiro a fazer um
mapa da fome. Em seu livro Geopolítica da Fome (1946), denuncia
que precisaríamos ter bases sólidas para a reversão do quadro da
fome no país caso quiséssemos declarar que somos efetivamente
um país livre e justo.
Passados cerca de sessenta anos, assistimos nos últimos meses
o debate acerca de uma crise estrutural na organização dos
DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃOE NUTRIÇÃO SUSTENTÁVEL.
LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBAS*
“A solução para o problema da fome
e da exclusão social passa por uma
nova ordem social, econômica e
política que tenha como objetivo
estratégico atingir o desenvolvimento
humano sustentável. Em verdade,
uma nova civilização deve surgir
comprometida com a promoção da
vida com dignidade e esperança
para toda a família humana.”
51
Estados e do sistema econômico em cujo centro se encontra
o principal determinante do direito elementar à vida, que é o acesso
aos alimentos. O avanço desta crise, suas causas, impactos
e possíveis respostas tem sido alvo de debates, inclusive, entre
os Chefes de Estado hodiernamente.
Um dado grave e pouco destacado é o despreparo político-
institucional da grande maioria dos países para enfrentar a presente
crise. Devemos assistir à reconstrução de um padrão de regulação
nacional no campo alimentar entre os países com capacidade
para tanto. Embora pouco provável, seria importante se esta
conjuntura estimulasse a revisão do tipo de multilateralismo e de
regulação comercial patrocinados pela Organização Mundial do
Comércio (OMC) entre outros atores econômicos supranacionais.
Requerem-se formas de cooperação e apoio técnico aos países
mais fragilizados para além da doação de víveres.
A crise do sistema agroalimentar está inserida no contexto da
busca pelo crescimento econômico, tendo como um dos possíveis
fundamentos a política de agroenergia. Os países desenvolvidos,
especialmente, vêm buscando alternativas energéticas renováveis,
de menor custo e maior diversidade de matérias-primas, de modo
a diminuir a sua dependência em relação ao petróleo, bem como a
implementar medidas ambientais. As fontes de energia oriundas de
biomassa ganham crescente importância no cenário internacional.
Diante deste cenário, vem aumentando signifi cativamente
a demanda por agrocombustíveis no mundo.
As redes solidárias ligadas ao movimento de agro-ecologia têm
denunciado que este investimento no modelo que privilegia
fi nanceiramente o agronegócio voltado para a política energética
e para o mercado de commodities pode comprometer o modelo
que alimenta o abastecimento e se orienta pelos princípios de
sustentabilidade.
Neste contexto parece-nos que o emponderamento de atores
populares e sociais, através do resgate da cultura de promoção
e defesa dos direitos humanos, é algo fundamental e estratégico.
Enquanto reivindicação moral, os direitos humanos nascem
quando podem e devem nascer. Os direitos humanos não são
um dado, mas um constructo, uma intervenção humana, em
constante processo de construção e reconstrução. Como os
direitos humanos são fruto de um contexto histórico, parece-nos
residir exatamente aqui o nosso desafi o: como implementar
a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos humanos,
especialmente do Direito Humano à Alimentação, em uma
conjuntura onde o mesmo encontra-se ameaçado pelo paradigma
do crescimento econômico em que aquele direito (vinculado
ao paradigma do desenvolvimento sustentável) é colocado
em segundo plano nas políticas públicas?
Entendemos que esta pergunta pode ser respondida mediante
o enfrentamento dos presentes desafi os, a serem abordados,
na implementação do direito à alimentação na ordem
contemporânea:
1) Consolidação e fortalecimento do processo de afi rmação da
visão integral e indivisível dos direitos humanos, mediante
a conjugação do direito à alimentação com os demais
direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais
e culturais;
2) Incorporação do enfoque de gênero, raça e etnia na concepção
do direito à alimentação, e criar políticas específi cas para a
tutela de grupos socialmente vulneráveis;
3) Otimização da justiciabilidade e a acionabilidade do direito à
alimentação e dos demais direitos econômicos, sociais e
culturais;
4) Incorporação da pauta social de direitos humanos na agenda
das instituições fi nanceiras internacionais, das organizações
regionais econômicas e do setor privado;
5) Fortalecimento da responsabilidade do Estado na implementação
do direito à alimentação e dos direitos econômicos, sociais
e culturais e do direito à inclusão social, bem como no
reconhecimento da pobreza como violação de direitos
humanos;
6) Fortalecimento do Estado de Direito e a construção da paz nas
esferas global, regional e local, mediante uma cultura de direitos
humanos.
O atual governo federal investe na política agro-energética
pautada no paradigma do crescimento econômico como possível
saída para o processo de consolidação política da soberania
do Estado brasileiro no cenário global. O governo acredita que
com o crescimento econômico foi superado o problema da fome
(insegurança alimentar) e, com isso, deixa de investir na política de
segurança alimentar e nutricional sustentável como instrumento
de consolidação da soberania do Estado e, por conseguinte,
dos seus cidadãos. A questão que nos persegue é: há como
promover a soberania cidadã negando o seu acesso à alimentação
e nutrição?
Nossa preocupação como militantes pelo direito à alimentação
é colaborar com os atores sociais na consolidação de uma
política, com base na promoção dos direitos humanos, que tenha
como paradigma o desenvolvimento sustentável. Neste sentido,
cremos que devemos nos apropriar dos possíveis instrumentos
normativo-jurídicos, políticas públicas e medidas judiciais já
existentes. O objetivo é trazer os direitos e garantias consagrados
e normatizados para o plano da efi cácia e da realização prática,
tentando fazer com que as aspirações emanadas nas declarações,
tratados, convenções e leis sejam gozadas pelas pessoas que
sofrem violações desses direitos. Com isto, poderemos colaborar
para que os atores sociais possam fazer com que os direitos
individuais e políticos, que sejam agraciados por esse processo
de constitucionalização, passem de aspirações e orientações
a serem seguidas segundo a conveniência dos governantes, para
o plano de direito exigível. Saindo, portanto, do plano moral para
o plano da justiciabilidade e exigibilidade.
O reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais,
como direitos fundamentais, só veio no século XX, ainda que sob
a forte resistência dos denominados juristas liberais. Segundo
os mesmos, pela própria característica dos direitos econômicos,
sociais e culturais, seria impossível uma proteção jurisdicional para
esses direitos. A separação dos direitos humanos em primeira
e segunda gerações, levando em conta o seu desenvolvimento
e afi rmação, tem levado à cristalização do pensamento liberal
de que os direitos individuais, também chamados de direitos
civis e políticos, estão devidamente resguardados por
52
instrumentos de exigibilidade e justiciabilidade, em detrimento
da segunda categoria. Não se pode admitir um tratamento
quase hierárquico entre os direitos humanos, apesar de
os mesmos serem estudados e dispostos diversas vezes de
forma separada.1
A exigibilidade do direito à alimentação não pode ser visibilizada
e aplicada apenas através dos diferentes instrumentos jurídico-
normativos existentes no mundo e no país. Não é somente através
destes que se alcança o escopo da efetividade dos direitos humanos.
Os instrumentos jurídico-normativos precisam ser utilizados como
uma forma de obrigação para a atuação concreta do Poder Público.
Pressão no sentido de fazer com que o Estado defi na políticas
públicas em direção ao cumprimento das obrigações assumidas
quando da adoção de um tratado internacional ou da elaboração
de leis, principalmente as de cunho social.
Os direitos estabelecidos devem obrigar o Estado a garantir
as condições materiais para a obtenção da cidadania e da
dignidade da pessoa humana, mormente, o mínimo existencial.
Quando se fala em direito, não se restringe à possibilidade
de acesso ao judiciário para propor ações judiciais. O controle
do cidadão rumo à exigibilidade e concretização dos direitos
humanos vai além disso. Outros mecanismos existem e devem ser
aperfeiçoados para se atingir tal objetivo, entre eles estão aqueles de
participação direta ou indireta dos cidadãos, tais como: a iniciativa
popular, o orçamento participativo, o referendo e, principalmente,
os conselhos de direitos e de políticas públicas.
Como se nota, existem sistemas e instrumentos de naturezas
diversas para promoção e garantia dos direitos humanos.
Fundamental é a apropriação desses mecanismos, para que as
pessoas possam se valer dos direitos listados em tantos tratados
e leis, e perceber que as normas internacionais e nacionais não
representam apenas retórica e engodo. Este é o grande desafi o
de toda Lei. Conseguir tirar as intenções e princípios do papel
e fazer com que eles sejam uma realidade no dia-a-dia daqueles
que têm sede de direitos e de dignidade humana.
Os diplomas legais
O primeiro grande marco jurídico para os direitos humanos no pós-
guerra foi a consolidação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948). Consoante a dicção do artigo 25, preleciona
a Declaração: que toda pessoa tem direito a um nível de vida
adequado que lhe assegure, assim como à sua família, saúde
e bem-estar, inclusive alimentação (...). A Declaração preocupa-se
com a tutela do bem jurídico maior que é a vida, mas salienta que
o acesso à alimentação é condição fundamental para que aquela
seja vivida de forma adequada.
Na mesma esteira, a Carta das Nações Unidas, em seu artigo
55, declara que todos os governos signatários adotariam
as medidas necessárias para a realização dos propósitos
consignados naquele instrumento. Um outro marco é o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
de 1966. Somente vinte e cinco anos depois, em 1991, é que
o Brasil tornou-se signatário deste tratado internacional.
Temos que recordar que na década de sessenta vivíamos
exatamente o contexto da repressão dos direitos. Somente
três anos após a promulgação da nossa Carta Magna é que
o Brasil reconhece estes direitos. São os direitos ligados ao
princípio da igualdade, emanado na Revolução Francesa.
Os primeiros são os civis e políticos, emanados do princípio
da liberdade.
Outro marco jurídico internacional no campo da promoção do
direito à alimentação são as diretrizes voluntárias da FAO. Esta
é uma Declaração da Cúpula Mundial da Alimentação que, em
Roma, no ano de 2002, estabeleceu metas e compromissos dos
governos para a superação da fome e da miséria no mundo. Caso
apreciemos com atenção, veremos que os objetivos do milênio
estão associados à superação das causas e consequências da
fome no mundo.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
trouxe um contributo para os direitos humanos quando consagrou
no art. 5º, §3º, através da Emenda Constitucional nº 45/2004,
que, “in verbis”: os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais. Vale recordar que o Brasil é signatário
de três diplomas internacionais na esfera dos direitos humanos
que prelecionam o direito humano de se alimentar. Neste
sentido, adquire o direito à alimentação o status de um
direito constitucional. Vale lembrar que, não obstante não
aparecer textualmente como direito fundamental do art. 5º
da Carta Magna, ele lá está garantido pelo §3º do artigo. O
rol de direitos previsto no caput deste artigo é exemplifi cativo
e não taxativo.
Um grande avanço no que tange à consolidação de um sistema
jurídico para a promoção do direito à alimentação no Brasil foi
a promulgação da Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. O
referido diploma legal cria o sistema de segurança alimentar e
nutricional e consagra o instituto do direito humano à alimentação
adequada. Assim está disposto no art. 2º da referida Lei:
A alimentação adequada é direito fundamental do ser
humano, inerente à dignidade da pessoa humana e
indispensável à realização dos direitos consagrados na
Constituição Federal, devendo o poder público adotar as
políticas e ações que se façam necessárias para promover e
garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
Faz-se mister salientar que a Lei deve ser sempre a expressão
de um clamor de um povo que, na busca pela sua soberania,
estabelece princípios e diretrizes para que a sua cidadania seja
efetivada. Neste sentido, longo é também o caminho para fazer
com que estes direitos sejam implementados pelo Estado, com
a participação das famílias, dos governos e da sociedade como
um todo. Este processo se dá através também das garantias
de uma ampla participação no planejamento, organização,
controle e monitoramento das políticas públicas que materializam
os direitos.
1 Cf. PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Rio de Janeiro: Saraiva, 9ª edição, 2008.
53
Conclusão
Desde os primórdios a humanidade vê no pão o arquétipo da vida.
O alimento é sacramento de um processo cósmico de renovação
e perpetuação da vida. Não é a toa que os alimentos são
o fundamento sacramental da presença do divino nas mais variadas
tradições religiosas. Na visão do profeta Isaías, chegará o dia em
que já não haverá ali criancinhas que vivam apenas alguns dias,
nem velho que não complete a sua idade; com efeito, o menino
morrerá com cem anos (Is. 65,20). Salienta também o profeta que
brilha a luz aquele que parte e reparte o seu pão.
O sentido último da existência da sociedade é a construção do
processo de integração e simbiose entre todos os seres. Nosso
desejo como cidadão e operador do Direito é que a sociedade
possa garantir este direito humano primeiro e básico que é a
alimentação. Mais ainda que o alimento, alimentar-se é sentar-se
junto à mesa em condições de igualdade e celebrar juntos nossa
natureza comum de sermos um-com-o-outro (κοινονια) e um-para-
o-outro (διακονια).
* LEONARDO FELIPE DE OLIVEIRA RIBASBacharel em Filosofi a e em Teologia, advogado militante na área de direitos humanos, Mestre e Professorde Teologia Sistemático-Pastoral e Consultor Técnico do Instituto Harpia Harpyia, agência de promoçãoe defesa do direito humano à alimentação.
54
A democracia no orçamento público
Completados 20 anos da atual Constituição, o debate acerca
da democracia ganha força na sociedade civil. Cresce cada vez
mais a discussão sobre formas de participação ativa cidadã no
processo governamental. Sob essa ótica o entendimento do
orçamento público é primordial.
Não há dúvida de que as políticas públicas estão no orçamento.
Qualquer dispêndio público feito tanto pelo poder legislativo,
judiciário e executivo (principalmente), deve ser antecipado neste
instrumento. Deve-se frisar que o orçamento não é dinheiro e sim
autorização de gastos e estimativa de receitas, ou seja, expressão
monetária de um planejamento.
Pode-se considerar que o orçamento pessoal, familiar ou de
empresas não se diferencia muito daquele utilizado na esfera pública.
O cerne é o mesmo, buscar um planejamento que satisfaça nossas
necessidades (prioridades) de acordo com nossas disponibilidades.
A publicização para o acompanhamento de como estão sendo
utilizados os recursos públicos, seja para saúde, educação, obras,
emendas parlamentares ao orçamento dentre outros, permite que
o cidadão participe ativamente nas decisões políticas e interaja
com o poder executivo e legislativo.
Orçamento público não deve ser tratado como um “bicho de sete
cabeças” ou como uma peça de fi cção. Por ser um instrumento
chave na administração pública, ocorre que muitos governantes
difi cultam seu entendimento.
O orçamento evoluiu ao longo da história para um conceito de
Orçamento-Programa, segundo o qual esse instrumento não
é apenas um mero documento de previsão da arrecadação
e autorização do gasto, mas um documento legal que contém
programas e ações vinculados a um processo de planejamento
público, com objetivos e metas. Dessa forma, a participação
cidadã no acompanhamento orçamentário se torna cada vez
mais fundamental.
Breve histórico do orçamento público
nas constituições
O marco do orçamento público se dá na
Inglaterra em 1217 pelo Rei João Sem
Terra, com a famosa Magna Carta. Nela,
o principal aspecto orçamentário
é identifi cado com a instituição dos tributos.
Outra função importante estabelecida foi
a avaliação e o acompanhamento dos
gastos públicos antes arbitrados pelo Rei – essa função permanece
como missão principal dos parlamentos.
O orçamento inglês delineou a natureza técnica e jurídica desse
instrumento, e difundiu a instituição orçamentária para outros
países, como na França após a revolução de 1789. Em todo
o decorrer do século XIX, o orçamento público foi sendo
aperfeiçoado e valorizado como instrumento básico da política
econômica e fi nanceira do estado.
A multiplicidade orçamentária nos aspectos político, jurídico,
contábil, econômico, fi nanceiro e administrativo, impõe
a importância desse instrumento.
A partir da década de 1930, com a doutrina Keynesiana,
o orçamento público passou a ser sistematicamente utilizado como
instrumento da política fi scal do governo (Jesse, 1971). Visava
estabilização ou a ampliação dos níveis da atividade econômica.
No Brasil, as primeiras Constituições Federais de 1824 e 1891 não
trataram diretamente da questão orçamentária, deixando para as
leis ordinárias – ditadas pela autoridade – o encargo de regular
A DEMOCRACIA NO ORÇAMENTO PÚBLICO.THIAGO MARQUES*
“Pode-se considerar que o
orçamento pessoal, familiar ou
de empresas não se diferencia
muito daquele utilizado na esfera
pública. O cerne é o mesmo,
buscar um planejamento que
satisfaça nossas necessidades
(prioridades) de acordo com
nossas disponibilidades.”
“A democracia social exige a participação do cidadão nas decisões do
governo nos seus três estágios – municipal, estadual e federal. Esta
participação vai além do voto, dever e direito básico do eleitor, e abrange
não só a fiscalização dos atos dos eleitos mas também a discussão
da política administrativa adotada pelos que eventualmente encontram-se
no poder.
O importante, o indispensável é lembrar que todo o poder emana do povo
e em seu nome será exercido. Quando um governo age em áreas cruciais,
como a das privatizações de empresas estatais, vendendo patrimônio do
povo, sem consulta prévia aos verdadeiros donos, está traindo a confiança
do eleitorado, incluindo aí as forças da oposição.
Também na elaboração dos orçamentos públicos – e em especial os
municipais – o eleitorado deve ter voz ativa, discutindo, analisando e
fiscalizando a sua execução. Sem essa ativa participação, a democracia
passa a ser um mero jogo eleitoral, onde disputas paroquiais influem
negativamente nos verdadeiros interesses da coletividade.
Um orçamento participativo é um orçamento
democrático. Sem a participação do povo,
do contribuinte, do eleitor, o dinheiro público
será aplicado segundo critérios que nem
sempre representam as melhores soluções
para os problemas da comunidade. Participar
é tão importante quanto votar. E é com
a participação ativa que se constrói a verdadeira
democracia social.”
Barbosa Lima Sobrinho1
“Só a participação cidadã é capaz de mudar o país!”
Betinho
1 Prefácio à cartilha “De Olho no Orçamento”. Fórum Popular do Orçamento 2° ed. Rio de Janeiro, 2002.
55
o assunto. A evolução e o desenvolvimento da técnica orçamentária
são recentes, a partir de 1936.
Em 1936, importantes inovações foram introduzidas na proposta
orçamentária que propôs modifi cações na técnica orçamentária e
sugeriu a criação de um órgão especializado, incumbido de tratar
os problemas orçamentários do governo federal e subordinado ao
Ministério da Fazenda. As inovações foram:
- Aumento de fi delidade em termos numéricos do programa
de trabalho;
- Maior atenção às perspectivas da receita;
- Expedientes de audiências entre a equipe do órgão central
e os representantes das unidades administrativas; e
- Coligação e sistematização de todos os elementos
necessários à constituição de uma base idônea para
cálculo das estimativas dos recursos, erigindo método
de previsão das rendas públicas como instrumento
fundamental de sua atuação.
A Constituição de 1946, denominada “planejamentista”, explicita a
criação de planos setoriais e regionais, com refl exos no orçamento,
ao estabelecer vinculações com a receita. A experiência brasileira
na elaboração de Planos Globais até 1964 caracterizou-se por
contemplar somente os elementos de despesa com ausência
de uma programação de objetivos, metas e recursos reais,
intensifi cando a desvinculação dos Planos e dos Orçamentos.
Em 1964 é criado o cargo de Ministro Extraordinário do
Planejamento e Coordenação Econômica, ocupado por Celso
Furtado, com a atribuição de dirigir e coordenar a revisão do plano
nacional de desenvolvimento econômico; coordenar e harmonizar,
em planos gerais, regionais e setoriais, os programas e projetos
elaborados por órgãos públicos; e coordenar a elaboração
e a execução do Orçamento Geral da União e dos orçamentos dos
órgãos e entidades subvencionadas pela União, harmonizando-
os com o plano nacional de desenvolvimento econômico. Neste
período é criada a lei que traçou os princípios orçamentários
no Brasil e que ainda hoje é a principal diretriz para a elaboração
dos orçamentos da União, Estados e Municípios, a Lei Federal
nº. 4.320/64.2
Com a Constituição Federal de 1988, o sistema orçamentário
passou a ser regulado por três leis:
i) a Lei do Plano Plurianual (PPA): O PPA é a lei que defi ne
as prioridades do Governo pelo período de 4 (quatro)
anos. O projeto de lei do PPA deve ser enviado pelo
Poder Executivo ao Poder Legislativo até o dia 31 de
agosto do primeiro ano de seu mandato (4 meses antes
do encerramento da sessão legislativa). De acordo com
a Constituição Federal, o PPA deve conter “as diretrizes,
objetivos e metas da administração pública federal
para as despesas de capital e outras delas decorrentes
e para as relativas aos programas de duração continuada”
(art. 165 §1°);
ii) a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO): A LDO é a lei
anterior à lei orçamentária, que defi ne as metas
e prioridades em termos de programas a executar pelo
Governo. O projeto de lei da LDO deve ser enviado pelo
Poder Executivo ao Legislativo até o dia 15 de abril
de cada ano (8 meses e meio antes do encerramento
da sessão legislativa). De acordo com a Constituição
Federal, a LDO estabelece as metas e prioridades para
o exercício fi nanceiro subsequente, orienta a elaboração
do Orçamento (Lei Orçamentária Anual), dispõe sobre
alterações na legislação tributária e estabelece a política
de aplicação das agências fi nanceiras de fomento; e
iii) a Lei Orçamentária Anual (LOA): A Lei Orçamentária Anual
disciplina todos os programas e ações de governo no
exercício. Nenhuma despesa pública pode ser executada
sem estar consignada no Orçamento. A Constituição
determina que o Orçamento deve ser votado e aprovado
até o fi nal de cada Legislatura. Depois de aprovado,
o projeto é sancionado e publicado pelo Poder Executivo,
transformando-se na Lei Orçamentária Anual. A LOA
estima as receitas e autoriza as despesas do Governo
de acordo com a previsão de arrecadação.
Estas três leis compõem o processo de tramitação do orçamento
de qualquer ente da federação. Assim, o planejamento das ações
governamentais sob a forma orçamentária (receitas e despesas),
ambos servindo como instrumento para a realização de uma
gestão fi scal responsável, no sentido de se alcançar estabilidade
econômica e desenvolvimento sustentável, constituem o cerne do
Orçamento Público.
A experiência demonstra ao longo dos últimos anos a preocupação
em fortalecer a vinculação existente entre planejamento
e orçamento. Ao contrário do que ocorria em períodos de alta
infl ação, hoje é possível planejar e autorizar dotações para
a realização de ações voltadas à concretização efi ciente de políticas
públicas de bem-estar, ou seja, é a programação orçamentária
voltada não só para o controle de gastos, mas também para
a avaliação de resultados.
Princípios e estrutura do Orçamento
A Constituição de 1988 defi ne, na seção II do capítulo II do título
VI, todo o processo orçamentário. Não obstante, além do Direito
Constitucional, existe o Direito Financeiro como complemento ao
Orçamento Público. Este último é representado pela Lei Federal
nº 4.320 de 1964, que estatui normas gerais aplicáveis a todas as
esferas da Administração Pública.
Como exemplo, podemos tentar defi nir de forma didática que
o Orçamento Público é relacionado: 1º Elaboração - Constituição
Federal; 2º Estrutura - Lei 4.320; e recentemente, 3º Limites
- Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). É evidente que há uma
inter-relação de ambos na dinâmica orçamentária.
A Lei Complementar nº 101/2000 - Lei de Responsabilidade
na Gestão Fiscal foi concretizada como fruto de uma política
neoliberal inserida no processo mundial de ajustes fi scais das
economias, que se intensifi cou a partir da década de 80 na América
Latina, após a ocorrência de crises de fi nanciamento externo e de
difi culdades encontradas pelos países para saldarem suas dívidas.
No 1º artigo, o objetivo da LRF fi ca evidenciado: “A responsabilidade
2 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Históricos das atividades orçamentárias. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br
56
na gestão fi scal pressupõe a ação planejada e transparente, em
que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o
equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas
de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites...”.
Assim, a LRF impõe um modo limitador e controlador das fi nanças
públicas.
Os princípios orçamentários são:
“ A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita
e despesa de forma a evidenciar a política econômica
fi nanceira e o programa de trabalho do Governo, obede-
cidos os princípios de unidade, universalidade e anuali-
dade.” (art. 2).
Primeiro, o princípio da Unidade: só existe um Orçamento para
cada ente federativo (no Brasil, existe um Orçamento para a União,
um para cada Estado e um para cada Município). Cada ente
deve possuir o seu Orçamento, fundamentado em uma política
orçamentária e estruturado uniformemente. Não há múltiplos
orçamentos em uma mesma esfera. O fato do Orçamento
Geral da União possuir três peças, como o Orçamento Fiscal,
o Orçamento da Seguridade Social e o Orçamento de Investimento,
não representa afronta ao princípio da unidade, pois o Orçamento
é único, válido para os três Poderes. O que há é apenas volumes
diferentes segundo áreas de atuação do Governo.
Segundo, Universalidade: o orçamento deve conter todas
as receitas e despesas dos poderes, fundos, órgãos e entidades
da administração direta e indireta, ou seja, nenhuma instituição
pública que receba recursos orçamentários ou gerencie recursos
federais pode fi car de fora.
E, por fi m, o princípio da Anualidade: o orçamento cobre um
período limitado. No Brasil, este período corresponde ao ano ou
exercício fi nanceiro, de 01 de janeiro a 31 de dezembro. O período
estabelece um limite de tempo para as estimativas de receita
e fi xação da despesa, ou seja, o orçamento deve se realizar no
exercício que corresponde ao próprio ano fi scal.
A principal estrutura do orçamento criada pela Lei 4.320 é a
classifi cação das Receitas e Despesas por Categorias Econômicas,
especifi cando o que é Corrente e o que é Capital.
As Receitas Correntes são oriundas principalmente de tributos,
contribuições, patrimônios, atividades agropecuárias, atividades
industriais, de serviços e outras, e constituem a maior parte das
receitas totais. Receitas de Capital são auferidas principalmente
da realização de recursos fi nanceiros oriundos da constituição
de dívidas e outros.
As Despesas Correntes são as chamadas de custeio, incluindo
despesas com pessoal, materiais, contratação de terceiros
e outros, e representam o maior dispêndio dos orçamentos dos
entes. Despesas de Capital são os investimentos em equipamentos
e infra-estrutura.
Na LOA as receitas são estimativas realizadas pelo governo, por
isso elas podem ser maiores ou menores do que foram inicialmente
previstas. A dinâmica é simples, se a economia crescer durante
o ano mais do que se esperava, a arrecadação com os impostos
tende a aumentar. O movimento inverso também pode ocorrer.
O conceito de Orçamento-Programa abordado anteriormente
é a base da Lei Orçamentária Anual, devendo existir integração
entre a LOA de cada período, com a LDO e o Plano Plurianual.
O programa é o elemento básico da estrutura do Orçamento-Programa,
pois é com a sua utilização que os esforços e ações de governo são
organizados para o alcance de uma situação futura almejada.
O principal critério de classifi cação da despesa pública utilizado
para elaboração do Orçamento-Programa é a classifi cação por
Programas de Trabalho, cuja fi nalidade básica é demonstrar as
realizações do governo, ou seja, o resultado fi nal de seu trabalho
em prol da sociedade.
Uma das especifi cações mais importantes, que permite identifi car
se determinado Programa de Trabalho pertence à determinada
área (Educação, Saúde e outros), independentemente da estrutura
institucional, é expresso na Portaria Federal nº 42 de 1999, que
atualiza a Lei 4.320 na discriminação das despesas por Funções
e Subfunções e dá outras providências.
Entende-se como Função o maior nível de agregação das diversas
áreas de despesa que competem ao setor público. A Subfunção
representa uma partição da função, visando a agregar determinado
subconjunto de despesa do setor público.
É importante frisar que as subfunções poderão ser combinadas
com funções diferentes daquelas a que estejam vinculadas.
Essa classifi cação foi realizada com objetivo de dar mais clareza
ao orçamento e assim identifi car no detalhe o que se vai fazer,
ou o que se deveria fazer, proporcionando a oportunidade de
discussão diante a população.
A participação popular se faz necessária também na elaboração
do orçamento, pouco se discute o Orçamento Público, o que
acaba por “transformar” o OP em “Orçamento de Poucos”.
Conclusões
Os avanços do processo democrático no Brasil misturam de modo
complexo, funcional e territorialmente, importantes características
democráticas e autoritárias, ou seja, é um Estado democrático
esquizofrênico. É um estado no qual os componentes de
legalidade democrática e, portanto, de publicidade e cidadania,
desaparecem nas fronteiras das várias regiões e relações étnicas
e de classe. (O’DONNELL, 1993)
A ausência de mecanismos que estimulem e permitam
a participação ativa e consciente dos cidadãos no acompanhamento
e avaliação das políticas públicas e de seus governantes faz com
que aumente o ceticismo político da população, ocorra falta de
transparência governamental e consequentemente efetivação
das práticas corruptas dos administradores públicos, assim
a necessidade de renovação do Estado e de suas instituições
torna-se primordial.
57
A sinergia entre o Poder Executivo e Legislativo na elaboração
de políticas públicas obedece a uma lógica centralizada, sem
contestações e pouco transparente, sendo oposto ao conceito
de regimes inclusivos e amplamente aberto à contestação pública
(DAHL, 1971).
Mecanismos de inclusão política e contestação pública se fazem
necessários. A participação e o controle social no monitoramento
e avaliação das políticas públicas, seja no orçamento ou nas
diversas leis encaminhadas e fomentadas pelo Legislativo, é de
grande importância.
Governos hierárquicos, centralistas, clientelistas e autoritários
controlados pelas elites locais que orientam seguindo interesses
de cunho privado a gestão da administração pública ainda fazem
parte da política brasileira.
Para enfrentar esta realidade conservadora, as experiências
apontam para a reforma das instituições, promoção da
transparência e do controle social, descentralização da gestão
e participação cidadã.
Sob essa ótica, a garantia dos direitos constitucionais de
participação dos cidadãos será efetivamente exercida.
Referencias bibliográfi cas
- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fed-
erativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
- ________. Lei de Responsabilidade Fiscal. Lei Complementar
nº 101 de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de fi nanças
públicas voltadas para a responsabilidade fi scal e dá outras
providências. Diário Ofi cial, ano CXXXVIII, nº. 86, p. 1-11, 2000.
- BURKHEAD, Jesse. Orçamento Público. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Guanabara: FGV, 1971.
- DAHL, R. A. Poliarquia. Participação e Oposição. São Paulo:
Edusp, 1997
- FÓRUM POPULAR DO ORÇAMENTO. Cartilha “De Olho no
Orçamento”. 2° ed. Rio de Janeiro, 2002
- MACHADO JR, J. Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei 4320
comentada. 30ª ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2001.
- O´DONNELL, G. Sobre o Estado, a democratização e alguns
problemas conceituais. Novos Estudos Cebrap, n. 36, 1993.
- SANTOS, Boaventura de Sousa. 2002. Democratizar a De-
mocracia - os caminhos da democracia participativa. (Rio de
Janeiro. Civilização Brasileira.).
Sites:
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Históricos
das atividades orçamentárias. Disponível em: <http://www.
planejamento.gov.br>.
*THIAGO MARQUESEconomista e Consultor do Fórum Popular do Orçamento do Rio de Janeiro (FPORJ).
58
“São perigosos,
São tão preguiçosos
ruins demais.
Fingem que gemem nas macas,
que sangram nas facas,
que morrem.
Tem televisão
qualquer barracão
da escória desse país.
Com que direito,
pedem os leitos
limpos dos meus guris?”
(Jorge Simas/Paulo Cesar Feital)
No ano em que se comemorou a chamada maioridade do
Estatuto da Criança e do Adolescente, os 60 anos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos e os 120 anos
da Abolição da Escravatura, dentre outras
datas de nossa história, fomos convocadas
a pensar/problematizar algumas características
atribuídas a crianças e jovens pobres como
se esses aspectos fi zessem parte de suas
naturezas, tornando-se, assim, inquestionáveis.
Para tal apontaremos algumas produções de
subjetividades1 ocorridas, em especial no Brasil,
durante o século XX que têm caracterizado
a população infanto-juvenil subalternizada como
perigosa, violenta, criminosa e não humana.
A seguir, discutiremos alguns efeitos forjados hoje em
nosso mundo globalizado pelas práticas que têm associado
periculosidade, violência, criminalidade e não humanidade
à situação de pobreza. Alguns desses efeitos podem ser expressos,
por exemplo, pelo aumento dos extermínios de crianças e jovens
pobres, ocorridos cotidianamente, pelo signifi cativo número de
crianças abrigadas, de jovens cumprindo medidas de reclusão,
dentre alguns outros aspectos que serão aqui assinalados.
Majoritariamente, na sociedade capitalista, a criança e o jovem
têm sido construídos como seres em formação, em crescimento,
em desenvolvimento, em evolução. De acordo com esse
pensamento, essas fases da vida carregariam certas marcas,
afi rmadas como naturezas. Algumas práticas baseadas nos
conhecimentos hegemônicos da Medicina e da Biologia fazem
associações entre mudanças corporais e determinadas etapas
do desenvolvimento psíquico, afi rmando formas específi cas de
estar no mundo. Esse modo biomédico de se pensar a infância
e a adolescência como um todo universal e homogêneo tem
construído modos naturalizados de vida. Com relação, por exemplo,
ao jovem afi rma-se que determinadas mudanças hormonais,
glandulares e físicas, encontradas nessa fase, são responsáveis
por certas características psicológico-existenciais que seriam
próprias da juventude. Descrevem, assim, suas atitudes,
comportamentos e formas de estar no mundo como manifestações
dessas características, percebidas como uma essência
e, portanto, como imutáveis. Dessa maneira, “qualidades”
e “defeitos” considerados típicos do jovem como entusiasmo,
vigor, impulsividade, rebeldia, agressividade, alegria, introspecção,
timidez, dentre outros, passam a ser sinônimo daquilo que
é próprio de sua natureza.
No que se refere à infância, da mesma forma, lhe são atribuídas
algumas características tidas como típicas desse momento
do desenvolvimento. Tanto na família como na escola, tal
fase é naturalmente percebida como a que exige cuidados,
acompanhamento constante, apontando para a dependência,
a imaturidade e a incapacidade para tomar decisões.
Ao lado dessas caracterizações tidas como
universais e científi cas, no que se refere às
crianças e jovens pobres, outras são adicionadas:
a violência e a criminalidade. Com isso vai se
confi gurando para os fi lhos da pobreza duas
classifi cações: a infância em perigo – aquela que
ainda não delinquiu, mas que pode vir a fazê-lo
e, por isso, deve ser tutelada – e a juventude
perigosa – aquela percebida como delinquente
e, portanto, ameaçadora para a manutenção
da ordem social.
Como tais articulações foram sendo produzidas e fortalecidas?
Articulando pobreza, periculosidade, criminalidade2
Há anos trabalhando com algumas ferramentas propostas por
Michel Foucault (1988), entendemos, como ele, que seja importante
pensar a emergência do capitalismo industrial – que esse autor
chamou de sociedade disciplinar – quando as elites passam a se
preocupar não somente com as infrações cometidas pelo sujeito,
mas também com aquelas que poderão vir a acontecer. Este é o
dispositivo da periculosidade, que emerge na Europa no século
XIX, e que fará com que o controle não se exerça apenas sobre o
que se é, o que se fez, mas principalmente sobre o que se poderá
vir a ser, sobre o que se poderá vir a fazer, sobre as virtualidades
dos sujeitos.
Em nosso país, que traz como herança mais de trezentos anos
de escravidão, considerada à época como fato natural, o controle
das virtualidades exercerá um papel fundamental na constituição
de nossas percepções e subjetividades sobre a pobreza.
Para tal, muito têm contribuído algumas teorias consideradas
A PRODUÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS PERIGOSOS:A QUEM INTERESSA?
CECÍLIA M. B. COIMBRA*MARIA LÍVIA DO NASCIMENTO**
“Portanto, esses chamados direitos
humanos – princípios burgueses –
não podem ser estendidos a todos e
caracterizados como universais, pois
em uma sociedade onde a liberdade
é uma quimera, a desigualdade e
a competitividade são as regras
do bom viver, uma existência livre,
igualitária e fraterna não tem lugar.”
1 No conceito de subjetividade dominante ou hegemônica, “... a produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção . As forças sociais que administram o capitalismo hoje entendem que a produção de subjetividade talvez seja mais importante que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até que o petróleo e as energias, visto produzirem esquemas dominantes de percepção do mundo”. (Guattari e Rolnik, 1988, p. 40).
2 Algumas análises apresentadas neste item podem ser encontradas em Coimbra (1998) e Coimbra e Nascimento (2003).
59
científi cas como as racistas e eugênicas, que emergem também
no século XIX, na Europa, condenando as misturas raciais
e caracterizando-as como indesejáveis, produtoras de
enfermidades, de doenças físicas e morais (imbecilidades,
idiotias, retardos, defi ciências em geral, indolência, dentre outras).
É interessante notarmos que, naquele mesmo período, ocorreram,
também na Europa, movimentos que propugnaram e infl uenciaram
as propostas de abolição da escravatura negra nas Américas.
Ou seja, ao mesmo tempo em que emerge a fi gura do trabalhador
livre – segundo os interesses econômicos vinculados ao
capitalismo liberal da época – produz-se uma essência para esse
mesmo trabalhador. Defi nindo-se formas consideradas corretas
e verdadeiras de ser e de existir, forjam-se subjetividades sobre
a pobreza e sobre o pobre; diz-se o que são e o que deverão ser.
Segundo a lógica do capitalismo liberal, os trabalhadores livres têm
liberdade para oferecer e vender sua força de trabalho no mercado,
desde que se mantenham no seu devido lugar, desde que não
participem dessas misturas indesejáveis, mantendo-se dentro das
normas vigentes, desde que, portanto, respeitem as regras impostas
por uma sociedade de classes. Sociedade essa que, paradoxalmente,
a partir de certos princípios defendidos por uma elite que ascende ao
poder, propugna em seus discursos que os direitos humanos, políticos,
econômicos, sociais e culturais são direitos de todos, produzindo-os,
assim, como direitos universais através de suas famosas palavras de
ordem: liberdade, igualdade e fraternidade.
Entendemos – como nos apontou Karl Marx – que a formação
da riqueza, a acumulação do capital produz, também, o seu
contrário, a miséria. Pela ótica do capitalismo esta passa
a ser naturalmente percebida como advinda da ociosidade, da
indolência e dos vícios inerentes aos pobres. Portanto, esses
chamados direitos humanos – princípios burgueses – não podem
ser estendidos a todos e caracterizados como universais, pois em
uma sociedade onde a liberdade é uma quimera, a desigualdade
e a competitividade são as regras do bom viver, uma existência
livre, igualitária e fraterna não tem lugar.
Ainda no século XIX, na Europa, pari passu às teorias racistas
e ao movimento eugênico e lhes servindo de base, temos a obra
de Morel (1857), o “Tratado das Degenerescências”, onde aparece
o termo “classes perigosas”, defi nido da seguinte maneira:
(...) no seio dessa sociedade tão civilizada existem “verdadeiras
variedades” (...) que não possuem nem a inteligência do dever,
nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não
é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por
qualquer ideia de ordem religiosa. Qualquer uma destas
variedades foi designada sob o justo título de classes
perigosas (...) constituindo para a sociedade um estado de
perigo permanente. (Apud Lobo, 1997, p. 55)
Vários outros autores tentam contribuir na busca de bases
científi cas para essas teorias. Já desde o início do século XIX,
populariza-se entre os cientistas a Antropometria, medição de
ossos, crânio e cérebro que, por meio de comparações, busca
provar a inferioridade de determinados segmentos sociais. Ficam
famosas, inclusive entre os educadores da época, as teses de
Paul Broca (1824-1880) e Cesare Lombroso (1835-1909). Este
último, com sua Antropologia Criminal, defende ser possível
distinguir, por intermédio de certas características anatômicas,
os criminosos natos e os perigosos sociais. A teoria das disposições
inatas para a criminalidade, defendida por Lombroso, ainda tem
muitos defensores entre nós (Waldhelm, 1998). Por exemplo,
durante o período da ditadura militar em nosso país, em 1974, em
duas cidades satélites de Brasília, DF (Ceilândia e Taguatinga), por
“ordens superiores”, em duas pré-escolas públicas, crianças – em
sua maioria fi lhos de migrantes nordestinos – são colocadas em
fi la para terem seus crânios e faces medidos. Posteriormente, são
enviados à direção e aos professores dos referidos estabelecimentos
laudos que descrevem as características emocionais e intelectuais
dessas crianças.
É curioso observar que propostas deste tipo estão sempre se
atualizando. Em 2007, pesquisadores da PUC/RS e da UFRGS
propuseram um projeto para examinar o cérebro de jovens
infratores, com o objetivo de investigar as bases biológicas da
violência dos que cometeram atos delituosos. O grupo se propõe
a fazer um mapeamento cerebral por ressonância magnética
para tentar entender as manifestações físicas do problema da
delinqüência juvenil.
Fora tais “devaneios cientifi cistas”, temos defi nições mais
grosseiras que, cotidianamente, afi rmam a existência de “bandidos
de nascença, os que já nasceram para o crime e vão praticá-lo de
qualquer maneira” (Benevides, 1983, p. 56). Por exemplo, para
o delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury – conhecido por sua
participação em torturas a presos políticos durante a ditadura –
“bandido era visto como um fenômeno da natureza”. Dizia ele:
“ (...) você cria cachorro? Numa ninhada de cachorro vai ter
sempre o cachorrinho que é mau caráter, que é briguento
e vai ter outro que se porta bem. O marginal é aquele
cachorrinho que é mau caráter, indisciplinado, que não
adianta educar.” (Apud Benevides, 1983, p. 57)
Essas teorias racistas e eugênicas são realimentadas pela obra
de Charles Darwin, “A origem das Espécies” (1859). Conceitos
como “prole malsã”, “herança degenerativa”, “degenerescência da
espécie”, “taras hereditárias”, “inferiorização da prole”, “procriação
defeituosa”, “raça pura”, “embranquecimento”, “aperfeiçoamento
da espécie humana”, “purifi cação” são comuns nos tratados de
Medicina, Psiquiatria, Antropologia e Direito do fi nal do século XIX
e início do século XX que pregam, seguindo o modelo da eugenia,
a esterilização dos chamados degenerados como profi laxia para
os males sociais.
Renato Kehl, médico ligado ao movimento eugênico no Brasil, no
início do século XX, defendia a esterilização
“(...) dos parasitas, indigentes, criminosos, doentes que
nada fazem, que vegetam nas prisões, hospitais, asilos; dos
que perambulam pelas ruas vivendo da caridade pública,
dos amorais, dos loucos que enchem os hospitais; da mole
de gente absolutamente inútil que vive do jogo, do vício,
da libertinagem, do roubo e das trapaças (...)” (Apud Lobo,
1997, p. 147-148).
60
Ou seja, deveria ser esterilizada toda a população pobre brasileira
que não estivesse inserida no mercado de trabalho capitalista,
todos aqueles que não fossem corpos úteis e dóceis para
o mercado.
Coroando e seguindo as pegadas de todas essas teorias
encontramos, no Brasil, ainda no mesmo período, o movimento
higienista que, extrapolando o meio médico, penetra em toda
a sociedade brasileira, aliando-se a alguns especialistas como
pedagogos, arquitetos/urbanistas e juristas, dentre outros. Tal
movimento, formado por muitos psiquiatras e juristas da elite
brasileira e expoentes da ciência à época como Franco da Rocha,
Nina Ribeiro, Silvio Romero e Henrique Roxo, atinge seu apogeu
nos anos de 1920, quando da criação da Liga Brasileira de Higiene
Mental pelo médico Gustavo Riedel. Suas bases estão nas teorias
racistas, no darwinismo social e na eugenia, pregando também
o aperfeiçoamento da raça e colocando-se abertamente contra
negros e mestiços, a maior parte da população pobre brasileira.
Esta elite científi ca está convencida de sua “missão patriótica” na
construção de uma “Nação moderna” e suas propostas baseiam-
se em medidas que devem promover o “saneamento moral” do
país. A “degradação moral” é especialmente associada à pobreza
e percebida como uma epidemia que se deve tentar evitar.
Portanto, para erigir uma Nação, os higienistas afi rmam que toda
a sociedade deve participar dessa “cruzada saneadora
e civilizatória” contra o mal que se encontra no seio da pobreza.
Tal movimento irá atravessar os mais diferentes setores da
sociedade, redefi nindo os papéis que devem desempenhar em um
regime capitalista a família, a criança, o jovem, a mulher, a cidade e
os segmentos pobres. A Medicina passa a ordenar o modelo ideal
de família nuclear burguesa. Detentores da ciência, os médicos
tomam para si a tutela das famílias, indicando e orientando como
todos devem comportar-se, morar, comer, dormir, trabalhar, viver
e morrer.
O higienismo, aliado aos ideais eugênicos e à teoria da
degenerescência de Morel, concebe que os vícios e as virtudes
são, em grande parte, originários dos ascendentes. Afi rma que
aqueles advindos de “boas famílias” teriam naturalmente pendores
para a virtude. Ao contrário, aqueles que traziam “má herança”,
leia-se os pobres, seriam portadores de degenerescências. Dessa
forma, justifi ca-se uma série de medidas contra a pobreza, que
passa a ser percebida e tratada como possuidora de uma “moral
duvidosa” transmitida hereditariamente.
Rizzini (1997) discute a produção dos “pobres dignos” e dos
“viciosos”, segundo uma escala de moralidade, e afi rma que
para cada um deles serão utilizadas estratégias diferentes. Aos
“pobres dignos”, aqueles que trabalham, que mantêm a “família
unida” e “observam os costumes religiosos” é necessário
o fortalecimento dos valores morais, pois pertencem a uma classe
“mais vulnerável aos vícios e às doenças”. Seus fi lhos devem ser
afastados dos ambientes perniciosos, como as ruas e até mesmo
de suas próprias casas. Com base em tais crenças, durante toda
a vigência dos Códigos de Menores (1927 e 1979), crianças
e jovens foram afastados de suas famílias com a justifi cativa de
que era preferível a internação a seus lares pobres, tidos como
perniciosos. Atualmente, com o ECA, não é mais justifi cável retirar
o poder familiar por pobreza, mas é possível fazê-lo alegando-
se negligência, abandono ou maus-tratos. Nascimento, Cunha
e Domith (2008) ao construírem um debate que estabelece
relações entre as práticas de desqualifi cação da família pobre
e o processo de criminalização e penalização da pobreza, indagam:
“Diz o Estatuto que não mais se pode destituir o poder familiar
por pobreza, mas não são os pobres, agora qualifi cados como
negligentes, descuidados, violentos, que continuam a perder
a guarda dos fi lhos?”
Já os pobres considerados “viciosos”, por sua vez, por não
pertencerem ao mundo do trabalho – uma das mais nobres virtudes
enaltecidas pelo capitalismo – são portadores de delinquência,
são libertinos, maus pais e vadios. Representam um “perigo
social” que deve ser erradicado. Daí a necessidade de medidas
coercitivas, principalmente para essa parcela da população,
pois são criminosos em potencial. Assim, embora a parcela
dos “ociosos” seja a mais visada por seu “potencial destruidor
e contaminador”, a periculosidade também está presente entre
os “pobres dignos”, pois por sua natureza – a pobreza – também
correm os riscos das doenças.
A partir desse mapeamento dos pobres, surge uma grande
preocupação com a infância e a juventude que, em um futuro
próximo, poderão compor as “classes perigosas”: as crianças
e os jovens “em perigo”, aqueles que deverão ter suas virtualidades
sob controle permanente.
O conjunto dessas teorias estabelece/fortalece a relação entre
vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza, bem como entre
pobreza e periculosidade/violência/criminalidade. Mesmo autores
mais críticos, ao longo dos anos, têm caído nesta armadilha de
mecanicamente vincular pobreza e violência, a partir de estudos
baseados nas condições estruturais da divisão da sociedade em
classes sociais e no antagonismo e na violência resultantes dessa
divisão.
Não é por acaso que, da aliança entre médicos e juristas da época,
surge em 1927 a primeira lei brasileira específi ca para a infância
e adolescência, o primeiro Código de Menores. Data daí a utilização
do termo “menor”, não mais para menores de idade de quaisquer
classes sociais, mas para um determinado segmento: o pobre.
Esta marca, presente nas subjetividades dos brasileiros, se impõe
até hoje, mesmo quando, em 1990, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) retira o conceito de “menor” de seu texto legal.
Infância e juventude, crianças e adolescentes, são as designações
que deverão ser utilizadas em substituição à categoria “menor”.
Essa produção de infâncias e juventudes desiguais foi se
constituindo, ao longo de todo o século XX, através da massiva
prática de internação de crianças e jovens pobres, em especial
após a emergência do Juizado de Menores, em 1923, criado para
solucionar o problema da “infância e juventude desassistidas”. Tal
política de internação se fortalece, sobretudo, nos dois períodos
ditatoriais brasileiros, com a criação de órgãos como o Serviço
de Assistência ao Menor (SAM), implantado em 1941 durante
o Estado Novo, e a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(Funabem), que surge em 1964 durante o período da ditadura militar.
61
Estabelecimentos denominados, à época da vigência dos Códigos
de Menores, de “depósitos”, dizendo-se destinados ao “regime
educativo” e com a fi nalidade de “prevenção ou preservação”. Em
realidade, são locais onde crianças e jovens pobres sofrem toda
sorte de maus-tratos. Se trouxermos esta análise para o presente,
mesmo após o ECA, podemos dizer que a prática da violência
nos internatos não é uma característica do passado. Hoje, em
pleno século XXI, tal situação de exclusão pouco mudou e o que
vemos nesses estabelecimentos é um quadro de superlotação, de
falta de equipamentos e de funcionários, de constantes torturas
e violações.
Voltando ao século XX e à vigência dos Códigos de Menores,
percebemos naquela época uma forte preocupação com
a disciplinarização das crianças pobres, com a necessidade de
colocar em ordem os “desviados” ou aqueles que poderiam vir
a ser. Para estes, o espaço jurídico prevê a reeducação,
a internação e a preparação para o trabalho. No conjunto dessas
medidas, chamadas de proteção, o Estado vai construindo um
modelo do que diz ser assistência à pobreza. Assim,
Sob égide do Juiz, os menores não eram “julgados”, mas
“tutelados”; não eram “condenados”, mas sim “protegidos”
e não eram “presos”, mas “internados”. Visando assegurar
sua assistência e proteção, o Juiz os encaminhava aos
estabelecimentos (...) onde deveriam fi car internados
pelo tempo por ele determinado. A internação nestes
estabelecimentos, mais que a educação e recuperação dos
menores, privava-os da liberdade, afastando-os do convívio
das ruas, encaradas como espaço pernicioso. (...) Outra
preocupação que se fazia presente naquela época, e que se
verifi ca até os dias de hoje, era a tendência de se oferecer
ofícios profi ssionalizantes em ofi cinas, que preparam para o
trabalho, mas em funções socialmente desvalorizadas e de
baixa remuneração (...) (Bulcão, 2001, p. 60)
Em nosso país, desde o início do século XX, diferentes dispositivos
sociais vêm produzindo subjetividades em que o “emprego fi xo”
e a “família organizada” tornam-se padrões de reconhecimento,
aceitação, legitimação sociais e direito à vida. Ao fugir a esses
territórios modelares entra-se para a enorme legião dos “perigosos”,
daqueles que são olhados com desconfi ança, evitados, afastados,
enclausurados e, mesmo, exterminados.
Sabemos que a situação da pobreza vem se agravando, com base
nas políticas noeliberais, nas quais o trabalho inexiste e as políticas
públicas são totalmente inefi cazes e a punição se faz cada vez
mais frequente, a partir do fortalecimento do Estado penal e de
subjetividades policialesco-punitivas.
Se no capitalismo liberal as crianças e os jovens pobres foram
recolhidos em espaços fechados para serem disciplinados
e normatizados na expectativa de que fossem transformados em
cidadãos honestos, trabalhadores exemplares e bons pais de família;
hoje, no neoliberalismo, não são mais necessários ao mercado, são
supérfl uos, suas vidas de nada valem, daí o extermínio.
Importante assinalarmos que, com o neoliberalismo, vem se
implantando um modelo de sociedade chamada por alguns de
“sociedade de acumulação fl exível de capital” (Harvey, 1993), ou
“sociedade do espetáculo” (Debord, 1997) e mesmo de “sociedade
de controle” (Deleuze, 1992), que vem se mesclando com o que
Foucault (1986) denominou de biopoder. De um modo geral,
essa “nova era” caracteriza-se, em especial, na Europa, após
a Segunda Guerra Mundial, pelas diferentes formas de controle
ao ar livre que vêm se misturando às disciplinas que operam em
sistemas fechados como família, escola, fábrica, hospital, prisão.
No contemporâneo, o marketing, os meios de comunicação de
massa e todos esses processos de subjetivação passam também
a ser instrumentos de controle social, especialmente através da
produção de modos de ser, viver e existir.
Entretanto, essas duas formas de funcionamento social, disciplinar
e de controle, vêm coexistindo simultaneamente. Para a pobreza há
um caminho já delineado; por isso, não é por acaso o alto índice de
crianças e jovens pobres exterminados. Para os que conseguem
sobreviver, estão previstos diferentes tipos de enclausuramento.
Muitos jovens pobres maiores de 18 anos encontram-se nas
prisões, as chamadas prisões da miséria, segundo o sociólogo
Loic Wacquant (2001). Há, também, inúmeros casos de “privação
de liberdade” aplicada para os que têm entre 12 e 18 anos. Já
para as crianças pobres, menores de 12 anos, restam os abrigos;
estabelecimentos desaparelhados em termos materiais e de
pessoal, que se encontram em mãos de entidades fi lantrópicas
e caritativas, onde são cotidianas as situações de violência.
Em nosso país, a partir de meados dos anos 1980, com
a gradativa implantação de medidas neoliberais – globalização do
mercado, Estado penal, fl exibilização do trabalho, desestatização
da economia, competitividade, livre comércio e privatização –
temos uma massiva produção de insegurança, medo, pânico,
articulados midiaticamente ao crescimento do desemprego, da
exclusão, da pobreza e da miséria.
Nesse dantesco quadro, crianças e jovens quando escapam do
extermínio, são os “excluídos por excelência” (Forrester,1997),
pois sequer conseguem chegar ao mercado de trabalho formal.
Sua atuação em redes ilegais como o circuito do narcotráfi co,
do crime organizado, dos sequestros, dentre outros vem sendo
tecida como única forma de sobrevivência e se prolifera, cada
vez mais, como práticas de trabalho à medida que aumenta
a apartação social.
A exclusão e a alienação de crianças e jovens pobres, pelo
envolvimento com a ilegalidade, têm produzido fortes marcas em
suas existências: os que conseguem sobreviver aos extermínios,
certamente não escapam do recolhimento em abrigos e internatos.
O ECA – seus avanços e limites
Até 1990, os profi ssionais que trabalhavam na área dos direitos da
criança e do adolescente tinham suas atuações apoiadas no Código
de Menores de 1927 e em sua posterior reformulação, ocorrida em
1979. Enquanto o primeiro se baseava no princípio do menor como
sinônimo de carente, pobre e criminoso em potencial, a mudança
de 1979 se pautou no princípio da “situação irregular”. Essas
duas legislações seguiram uma lógica que colocava no terreno
da imoralidade, da anormalidade e mesmo da patologia os modos
62
de vida das famílias pobres, justifi cando, assim, a necessidade
do Estado tomar para si a tarefa de proteger crianças e jovens
cujas famílias eram consideradas fora das normas. Ou seja, os
textos das duas leis defendiam que existiam formas melhores
e, portanto, ideais dos pobres educarem, cuidarem e protegerem
seus fi lhos. Com base nisso, ao longo de todo o século XX,
justifi cavam-se as propostas de retirada do pátrio poder devido
à condição de pobreza, incentivavam-se as adoções de crianças
pobres, internavam-se os chamados abandonados, dentre outras
práticas de exclusão. É interessante notar que os princípios que
regiam os dois códigos sofreram infl uência direta do higienismo,
aliado às teorias racistas, eugênicas, da degenerescência
e da evolução das espécies, que marcaram os momentos de
emergência dessas leis.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce no bojo
dos novos movimentos sociais emergentes nos anos de 1980,
afi rma a criança e o jovem de qualquer segmento social como
sujeitos de direitos. Em contraposição aos Códigos de Menores,
preconiza a lógica da “proteção integral”, retirando o princípio
da “situação irregular”, desfazendo a separação entre “menor”
e criança, recusando a prática da internação como primeiro
e principal recurso das medidas chamadas de assistência
à infância e à adolescência.
É inegável a importância trazida pelo ECA no que se refere ao
reordenamento jurídico vinculado à área da infância e da juventude
e à proteção dos direitos e garantias para estes segmentos da
população. É fundamental sua defesa no sentido de torná-lo uma
realidade, pois mesmo após 18 anos de existência, ainda são
mantidas práticas menoristas e atos de violência, de desrespeito
e de abuso que fazem parte do cotidiano dos estabelecimentos
onde são aplicadas as chamadas medidas protetivas e sócio-
educativas preconizadas por esta nova legislação.
Entretanto, considerar a criança e o jovem enquanto sujeitos
de direitos afi rmados como universais não faria parte de uma
proposta liberal? Uma proposta de igualar juventudes e infâncias
desiguais, mas que são entendidas como possuidoras de
essências diferentes? Tal lógica é formulada a partir de princípios
considerados científi cos que vêm historicamente caracterizando
as crianças e os jovens dentro de modelos dominantes, onde
eles são vistos como seres em formação, em crescimento, em
desenvolvimento.
Entendemos, portanto, que, apesar do avanço que o ECA
signifi ca para a política de proteção a crianças e jovens brasileiros,
a lógica de igualar infâncias e juventudes tão desiguais em termos
sócio-econômicos, culturais e históricos faz parte dos princípios
e modelos defendidos pelo liberalismo. Ou seja, é uma tentativa
de igualar em cima de valores burgueses modos de vida que
continuam desiguais e que tendem, no neoliberalismo, a se tornar
cada vez mais distantes entre si.
Algumas conclusões de um campo ainda em aberto
Talvez alguns outros caminhos possam ser trilhados se nos
detivermos sobre a importância e a função que as práticas sociais
têm em nosso mundo, como já foi assinalado por Foucault (1988).
Questionando o pensamento, ainda hoje dominante no Ocidente –
que entende objetos, saberes e sujeitos como tendo uma essência,
uma natureza que lhes seria própria – este fi lósofo propõe uma
outra forma de entender o mundo. São as práticas sociais que
fazem aparecer os diferentes objetos, saberes e sujeitos. Partindo
dessa lógica é possível avaliar como nossas práticas cotidianas,
por menores e mais invisíveis que sejam, constituem-se em
poderosos instrumentos de reprodução e/ou criação, produzindo
os mais surpreendentes efeitos.
As formações profi ssionais em geral nos têm ensinado a caminhar
sempre guiados por modelos que irão indicando o que devemos
fazer e como devemos fazer. Entretanto, o para que fazemos
nunca é mencionado. Ao contrário, essas formações nos fazem
acreditar na neutralidade e objetividade de nossas atuações. Não
percebemos como nossas práticas têm forjado/fortalecido a todo
o momento os modelos de bom cidadão, bom pai, bom marido,
bom fi lho, bom aluno etc., aceitos como universais e verdadeiros,
pois baseados em formulações consideradas científi cas.
Se consideramos os objetos, sujeitos e saberes como produções
históricas, datadas e advindas das práticas sociais; se aceitamos
que os “especialismos” técnico-científi cos que fortalecem
a divisão social do trabalho no mundo capitalista têm tido, dentre
outras funções, a de produzir verdades vistas como absolutas
e universais e a desqualifi cação de muitos outros saberes que
se encontram no mundo; se entendemos como importante em
nossas práticas cotidianas a análise de nossas implicações,
assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz,
e o que constituímos e produzimos com essas mesmas práticas,
poderemos pensar, inventar e criar outras formas de atuar, de ser
profi ssional-militante.
Especialmente nesses tempos neoliberais – em que a globalização
e todos os seus corolários, mais do que uma versão do modo de
produção capitalista atual, é uma forma efi caz de defi nir modelos
de ser, de estar e de existir em um mundo dito fl exível e pós-
moderno, baseado nas profundas desigualdades das relações
sociais – o trabalho daqueles que atuam na área da criança
e da juventude reveste-se de enorme importância. Entender que
os discursos/ações do capital, muitas vezes microscópicos,
invisíveis e apresentados como desinteressados, pois percebidos
como naturais, têm poderosos efeitos: excluem, estigmatizam
e tentam destruir a pobreza, notadamente sua infância e juventude.
Há de se estar atento e perceber que, apesar das políticas ofi ciais
e ofi ciosas, existe por parte dos segmentos subalternizados, em
especial de seus jovens, resistências e lutas. Eles teimam em
continuar existindo, apesar de tudo; suas resistências se fazem
cotidianamente, muitas vezes percebidas como fragmentadas,
fora dos padrões reconhecidos como organizados e até mesmo
como condutas anti-sociais, delituosas e, por isso, “perigosas”.
Por outro lado, crianças e jovens, através de diferentes ações,
vêm afi rmando outras formas de funcionamento e de organização
que fogem aos pré estabelecidos. Essa população pobre
e marginalizada cria e inventa outros mecanismos de sobrevivência
e de luta, resistindo teimosamente às exclusões e destruições
que vivenciam diariamente em seu cotidiano e conseguindo,
63
algumas vezes, escapar ao destino traçado pela lógica do capital
e entendido como inexorável e imutável.
Sem pretender racionalmente fazer revoluções, mudar o presente
e preparar o futuro, muitos desses movimentos de resistência,
sem dúvida, produzem revoluções moleculares, forjam mudanças
micropolíticas em seus atores e nos cenários onde atuam,
afi rmam e apontam para novos caminhos, criações, invenções.
É verdade que foram e continuam sendo ignorados pela história
ofi cial, pelos chamados intelectuais, pelos grandes meios de
comunicação. Apesar desse competente apagamento ofi cial vêm
ocorrendo várias e diferentes experiências empreendidas por
crianças e jovens em seus cotidianos, que confi guram práticas de
resistência, expressas através da música, de outras artes, de micro-
organizações coletivas, de redes de solidariedade. O importante é
percebê-las, ver que existem, fortalecê-las, nos aliarmos a elas.
“(...)aprendi que se depende sempre
de tanta muita diferente gente
toda pessoa sempre é as marcas
das lições diárias de outras tantas pessoas.
E é tão bonito quando a gente entende
que a gente é tanta gente
onde quer que a gente vá
É tão bonito quando a gente sente
que nunca está sozinho
por mais que pense estar.
É tão bonito quando a gente pisa fi rme
nessas linhas que estão
nas palmas de nossas mãos.
É tão bonito quando a gente vai à vida
nos caminhos onde bate
bem mais forte o coração.”
(Gonzaguinha)
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de Mestrado, Faculdade de Educação UFF, Niterói, 1998.
Discografi a
- Gonzaguinha, Caminhos do coração in Caminhos do coração,
M-Odeon, 1982.
- Simas. J. e Feital, P.C., O Clero in Carta ao Rei, Produção
independente, sem data.
* CECILIA MARIA BOUÇAS COIMBRADoutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia/UFF, fundadora
e atual Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ** MARIA LÍVIA DO NASCIMENTO
Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia/UFF
64
Os líderes mundiais devem se desculpar por não terem cumprido
a promessa de justiça e de igualdade que fi zeram com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada há 60 anos.
Nessas seis décadas, muitos governos se mostraram mais
interessados em abusar do poder ou em perseguir seus próprios
interesses políticos do que em respeitar os direitos de quem
representam.
Isso não signifi ca negar os progressos que foram feitos no
desenvolvimento de normas, sistemas e instituições de direitos
humanos, em nível internacional, regional e nacional. Em diversos
lugares do mundo, muita coisa melhorou por causa dessas
normas e princípios. O número de países que hoje oferecem
proteção legal e constitucional para os direitos humanos é maior
do que nunca. Apenas uma pequena porção de países negaria
abertamente à comunidade internacional o direito de examinar
sua situação de direitos humanos. Em 2007,
completou-se um ano de funcionamento pleno
do Conselho de Direitos Humanos da ONU,
através do qual todos os Estados-membros
das Nações Unidas concordaram em debater
publicamente seu desempenho em questões
de direitos humanos.
Apesar de todos os eventos positivos,
a realidade, porém, é que a injustiça,
a desigualdade e a impunidade continuam
sendo alguns dos aspectos mais marcantes
do mundo de hoje.
Em 1948, em uma atitude de extrema liderança, os líderes mundiais
se reuniram para adotar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Os Estados-membros de uma Organização das Nações
Unidas que recém ensaiava os primeiros passos demonstraram ter
grande visão e coragem quando depositaram sua confi ança em
valores globais. Eles tinham pleno conhecimento dos horrores da
II Guerra Mundial e tinham consciência da realidade sombria que
viria com a Guerra Fria. Sua visão não se limitava apenas ao que
acontecia na Europa. 1948 foi também o ano em que a Birmânia
ganhou sua independência, que Mahatma Gandhi foi assassinado
e que as leis de apartheid passaram a ser introduzidas na África
do Sul. Grande parte do mundo ainda se encontrava sob o jugo
do colonialismo.
Os redatores da DUDH agiram com a convicção de que somente
um sistema multilateral de valores globais, baseado em igualdade,
justiça e no Estado de direito, poderia fazer frente aos desafi os
que estavam por vir. Em um verdadeiro exercício de liderança,
eles resistiram às pressões de campos políticos que se opunham.
Rejeitaram qualquer hierarquia entre o direito à liberdade de
expressão e o direito à educação; entre o direito de não ser
torturado e o direito à segurança social. Eles reconheceram que
a universalidade dos direitos humanos – todas as pessoas nascem
livres e iguais – e sua indivisibilidade – todos os direitos, sejam
eles econômicos, sociais, civis, políticos ou culturais, devem
ser realizados com o mesmo empenho – são a base de nossa
segurança coletiva e de nossa humanidade comum.
Nos anos seguintes, a liderança visionária deu lugar a interesses
políticos estreitos. Os direitos humanos se transformaram em
um jogo excludente entre as duas “superpotências” envolvidas
em uma luta ideológica e geopolítica para estabelecer sua
supremacia. Enquanto um dos lados negava os direitos civis
e políticos, o outro rebaixava os direitos econômicos e sociais.
Ao invés de favorecer a dignidade e o bem estar das pessoas, os
direitos humanos eram usados como instrumento para promover
objetivos estratégicos. Os países que recém
haviam conquistado sua independência
e que se encontravam em meio à disputa
entre as potências, ou lutaram pela
democracia e pelo Estado de direito, ou
abandonaram-nos de vez para adotarem
diversas formas de autoritarismo.
A esperança sobre os direitos humanos
aumentou com o fi m da Guerra Fria,
mas foi frustrada por uma explosão de
confl itos étnicos e pela implosão de vários
Estados, desencadeando uma série de emergências humanitárias,
marcadas por abusos de direitos humanos perversos em grande
escala. Enquanto isso, a corrupção, os governos medíocres e a
impunidade generalizada para as violações de direitos humanos
reinavam absolutos em muitas partes do mundo.
Ao entrarmos no século XXI, os ataques terroristas de 11 de
setembro transformaram o debate de direitos humanos, mais
uma vez, em uma questão desagregadora e destrutiva entre
“ocidentais” e “não-ocidentais”, restringindo liberdades,
alimentando suspeitas, medo, discriminação e preconceitos, tanto
entre governos quanto entre populações.
As forças da globalização econômica trouxeram novas promessas,
mas também novos desafi os. Apesar de os líderes mundiais
alegarem ter-se comprometido com a erradicação da pobreza, em
sua grande maioria, ignoraram os abusos de direitos humanos que
provocam e que aprofundam a pobreza. A promessa da Declaração
Universal dos Direitos Humanos continuou a existir só no papel.
Hoje, olhando para trás, o que mais surpreende é a unidade
de propósitos demonstrada pelos Estados-membros da ONU
“Apesar de os líderes mundiais
alegarem ter-se comprometido
com a erradicação da pobreza, em
sua grande maioria, ignoraram os
abusos de direitos humanos que
provocam e que aprofundam a
pobreza. A promessa da Declaração
Universal dos Direitos Humanos
continuou a existir só no papel.”
1 Introdução ao Relatório Anual 2008 da Anistia Internacional.
PROMESSAS QUEBRADAS.1
IRENE KHAN*
65
àquela época, quando adotaram a DUDH por absoluto consenso.
Agora, frente a inúmeras e urgentes crises de direitos humanos,
não há, entre os líderes mundiais, uma visão compartilhada sobre
como lidar com os desafi os contemporâneos de direitos humanos
em um mundo que está cada vez mais ameaçado, inseguro
e desigual.
O cenário político, hoje, é muito diferente do que era 60 anos atrás.
Existem muito mais países hoje do que em 1948. Algumas ex-colônias
estão entrando no jogo global lado a lado com seus antigos senhores
coloniais. Pode-se esperar que as potências novas e as antigas se
unam, como fi zeram seus predecessores em 1948, para reafi rmar
seu compromisso com os direitos humanos? A julgar por 2007,
o quadro não é nada promissor. E quanto às novas lideranças
e às pressões da sociedade civil, farão alguma diferença neste ano
de aniversário?
Um histórico desanimador
Na condição de país mais poderoso do globo, os Estados Unidos
estabelecem os parâmetros para o comportamento dos governos
em todo o mundo. Com um obscurecimento legal impressionante,
o governo dos EUA prosseguiu em seus esforços para enfraquecer
a proibição absoluta da tortura e de outros maus-tratos.
Autoridades de alto escalão recusaram-se a denunciar a infame
prática de asfi xia na “prancha d’água” (waterboarding).
O presidente dos EUA autorizou que a CIA prosseguisse com as
detenções e com os interrogatórios secretos, mesmo que isso
consista no crime internacional de desaparecimento forçado.
Centenas de prisioneiros em Guantánamo e em Bagram, além
de milhares no Iraque, continuaram a ser detidos sem acusação
nem julgamento. Muitos deles estão há mais de seis anos nessa
condição. O governo dos EUA não só fracassou em tratar da
impunidade de suas forças no Iraque, como ainda foi na direção
contrária, concedendo imunidade à empresa de segurança privada
Blackwater durante as investigações sobre as mortes de civis
iraquianos em setembro de 2007. Essas ações não contribuíram
em nada para fazer avançar a luta contra o terrorismo, mas fi zeram
muito para prejudicar o prestígio e a infl uência dos Estados Unidos
no estrangeiro.
A vacuidade dos pedidos por democracia e por liberdade no
exterior, feitos pelo governo dos EUA, fi cou evidenciada através de
seu constante apoio ao Presidente Musharraf, quando o governo
paquistanês prendia milhares de advogados, de jornalistas,
de defensores de direitos humanos e de ativistas políticos que
clamavam por democracia, por um Estado de direito e por
independência do Judiciário no Paquistão. Enquanto o Presidente
Musharraf ilegalmente impunha um estado de emergência,
destituía o presidente do Supremo Tribunal e lotava os tribunais
superiores com juízes mais obedientes, o governo estadunidense
justifi cava o apoio que lhe dava alegando tratar-se de um aliado
“indispensável” na “guerra ao terror”. A insegurança crescente
nas cidades e nas regiões de fronteira do Paquistão, porém,
indicam que, longe de conter a violência extremista, as políticas
repressoras do Presidente Musharraf, incluindo desaparecimentos
forçados e detenções arbitrárias, têm fomentado as desavenças
e contribuído para estimular sentimentos antiocidentais, lançando
as sementes de uma maior instabilidade na sub-região. Embora
os EUA continuem a acolher o Presidente Musharraf, o povo
paquistanês manifestou o quanto repudia suas políticas.
O mundo precisa que os Estados Unidos estejam verdadeiramente
engajados e comprometidos com a causa dos direitos humanos,
tanto em seu território quanto no exterior. Em novembro de 2008,
a população dos EUA elegeu um novo presidente. Para que
o país tenha autoridade moral como defensor dos direitos humanos,
o novo governo deverá fechar a prisão de Guantánamo e julgar
os detentos em tribunais federais comuns ou, então, soltá-los.
Deverá revogar a Lei de Comissões Militares e assegurar o respeito
pelo direito internacional humanitário e pelos direitos humanos em
todas as suas operações militares e de segurança. Deverá proibir
as provas obtidas mediante coerção e denunciar todas as formas
de tortura e de outros maus-tratos, quaisquer que sejam suas
fi nalidades. O novo governo deverá estabelecer uma estratégia
viável para a paz e a segurança internacionais. Deverá abandonar
o apoio a líderes autoritários e investir em instituições democráticas,
no Estado de direito e nos direitos humanos, o que possibilitará
uma segurança duradoura. Deverá, ainda, estar preparado para
acabar com o isolamento dos EUA no sistema internacional de
direitos humanos e para engajar-se de maneira construtiva com
o Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Se o governo dos Estados Unidos tem se destacado recentemente
por afrontar o direito internacional, os governos da Europa têm
demonstrado uma propensão à aplicação de dois pesos e duas
medidas. A União Européia (UE) pretende ser “uma união de
valores, unida pelo respeito ao Estado de direito, moldada por
normas comuns e pelo consenso, comprometida com a tolerância,
a democracia e os direitos humanos”. Contudo, em 2007, surgiram
novas evidências de que diversos Estados-membros da União
Européia voltaram-se para o lado oposto e foram coniventes com
a CIA no sequestro, na detenção secreta e na transferência ilegal
de prisioneiros para países em que foram torturados ou sofreram
maus-tratos. Apesar dos repetidos apelos do Conselho da Europa,
nenhum governo investigou completamente esses delitos, nem
deixou claro o que aconteceu ou adotou medidas adequadas
para impedir uma futura utilização do território europeu para
transferências extrajudiciais e detenções secretas.
Ao contrário, alguns governos europeus procuraram enfraquecer
uma decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, de 1996,
proibindo o repatriamento de suspeitos para países em que
poderiam sofrer tortura. A Corte se pronunciou com relação
a um dos dois casos que ainda aguardavam decisão em 2007,
reafi rmando a proibição absoluta da tortura e de outras formas de
maus-tratos.
Enquanto muitos reclamam por causa dos excessos regulatórios
da UE, ninguém se incomoda com a falta de regulação em matéria
de direitos humanos no âmbito interno da União. A verdade é que
a União Européia não consegue cobrar de seus Estados-membros
responsabilidade por questões de direitos humanos externas ao
arcabouço legal da UE. A Agência dos Direitos Fundamentais da
União Européia, criada em 2007, recebeu um mandato tão limitado
que não lhe permitia exigir qualquer prestação de contas. Embora
a UE estabeleça parâmetros de direitos humanos elevados para os
66
países que pretendem aderir ao bloco (e o faz com razão), uma vez
que esses países são admitidos, eles podem violar as normas da UE,
tendo que prestar pouca ou nenhuma satisfação à organização.
Poderão os Estados-membros da UE pedir que a China ou
a Rússia respeitem os direitos humanos quando eles mesmos são
cúmplices com a tortura? Poderá a UE pedir que outros países –
muito mais pobres – mantenham suas fronteiras abertas quando
seus próprios Estados-membros estão restringindo os direitos dos
refugiados e dos requerentes de asilo? Poderá a União Européia
pregar a tolerância no exterior quando fracassa em enfrentar
a discriminação contra ciganos, muçulmanos e outras minorias
que vivem dentro de seu próprio território?
O ano de 2008, tanto para os EUA quanto para a UE, foi um período
de importantes transições políticas. O Tratado de Lisboa, assinado
pelos governos da União Européia em dezembro de 2007, exige
que novos compromissos institucionais sejam engendrados por
seus Estados-membros. Em alguns dos Estados-membros mais
importantes, eleições e outros acontecimentos políticos fi zeram
ou farão emergir novas lideranças políticas. Eventos como esses
oferecem oportunidades para iniciativas de direitos humanos tanto
no âmbito da UE quanto em nível global.
Quando os Estados Unidos e a União Européia causam danos
a sua reputação em matéria de direitos humanos, sua habilidade
para infl uenciar os outros diminui. Um dos exemplos mais visíveis
da esterilidade que infundiram aos direitos humanos foi o caso de
Mianmar, em 2007. A junta militar do país reprimiu com violência
as manifestações pacífi cas organizadas por monges, invadiu
e fechou monastérios, confi scou e destruiu propriedade, espancou,
prendeu e atirou nos manifestantes, hostilizou e tomou como
reféns seus amigos e seus familiares.
Os EUA e a UE condenaram essas ações em termos bastante fortes
e intensifi caram seus embargos comerciais e de armamentos;
porém, isso não teve, praticamente, qualquer efeito concreto
sobre a situação de direitos humanos. Milhares de pessoas
continuaram a ser detidas em Mianmar, entre as quais ao menos
700 prisioneiros de consciência, sendo a mais proeminente entre
eles a ganhadora do prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, que
passou 12 dos últimos 18 anos sob prisão domiciliar.
Do mesmo modo que em Mianmar, também em Darfur os governos
ocidentais praticamente não exerceram qualquer infl uência sobre
a situação de direitos humanos. Embora a indignação e as amplas
mobilizações da opinião pública internacional tenham gravado
o nome de Darfur na consciência mundial, para o sofrimento das
pessoas, isso não fez quase nenhuma diferença. Os assassinatos,
os estupros e a violência prosseguiram implacavelmente e, se
é que algo aconteceu, o confl ito tornou-se ainda mais complexo
e uma solução política tornou-se ainda mais remota. Apesar de
uma série de resoluções do Conselho de Segurança da ONU,
o posicionamento de forças híbridas da União Africana e da ONU
na região ainda não havia acontecido integralmente.
Potências emergentes
Tanto com relação a Mianmar quanto a Darfur, o mundo voltou-
se não para os Estados Unidos, mas para a China, como o país
com a infl uência política e econômica necessária para fazer
as coisas acontecerem – e não sem razão. A China é o maior
parceiro comercial do Sudão e o segundo maior de Mianmar.
A Anistia Internacional, através de suas pesquisas, mostrou que
armamentos chineses estão sendo transferidos para Darfur em
desafi o ao embargo de armas imposto pela ONU. Há muito tempo
que a China justifi ca seu apoio a governos abusivos, tais como
os do Sudão, de Mianmar e do Zimbábue, defi nindo os direitos
humanos como sendo um assunto interno de Estados soberanos
e não como uma questão de sua política internacional de modo
que convenha aos interesses políticos e comerciais chineses.
A posição da China, porém, não é imutável nem intratável. Em
2007, o país votou a favor do destacamento de uma força de
manutenção da paz híbrida para Darfur, pressionou Mianmar
a aceitar a visita do enviado especial da ONU, e diminuiu o apoio
aberto que dava ao Presidente Mugabe, do Zimbábue. Os mesmos
fatores que, no passado, motivaram a China a estabelecer relações
com regimes repressores, podem muito bem ser a razão para as
mudanças observadas hoje em suas políticas para esses países:
a necessidade de fontes confi áveis de energia e de outros recursos
naturais. A Anistia Internacional e outras organizações de direitos
humanos, há muito tempo, têm argumentado que países com má
reputação em matéria de direitos humanos não criam um ambiente
propício para os negócios – negócios precisam de estabilidade,
e é isso que os direitos humanos propiciam. É possível que
também a China esteja começando a reconhecer que apoiar
regimes instáveis com má reputação em direitos humanos não faz
sentido para os negócios e que, se o país quiser proteger seus
bens e seus cidadãos no exterior, deverá apoiar valores globais
que criem estabilidade política a longo prazo.
Entretanto, mesmo com essas mudanças em sua diplomacia,
a China ainda tem um longo caminho a percorrer. O país continua
sendo, desde 2004, o maior fornecedor de armas para o Sudão.
Em janeiro de 2007, a China votou contra uma resolução do
Conselho de Segurança da ONU que condenava as práticas de
direitos humanos de Mianmar. Além disso, o país ainda terá de
cumprir as promessas de direitos humanos que fez antes das
Olimpíadas de Pequim.
Algumas reformas na aplicação da pena de morte e o relaxamento
nas regras para a imprensa estrangeira, observados em 2007,
foram obscurecidos pela repressão aos ativistas de direitos
humanos e à imprensa dentro da China, e também pela ampliação
do escopo da “reeducação pelo trabalho” (uma forma de detenção
sem acusação ou julgamento), como parte de um esforço para
“limpar” Pequim antes das Olimpíadas.
No período que antecedeu os Jogos Olímpicos, o espaço para
melhoras na situação de direitos humanos da China foi reduzido, ao
passo que os confrontos aumentaram. Assim que baixar a poeira
das Olimpíadas, a comunidade internacional precisará desenvolver
uma estratégia efi caz para levar o debate de direitos humanos
com a China a um plano mais produtivo e mais progressivo.
O governo chinês, de sua parte, deverá reconhecer que
a liderança global traz consigo responsabilidades e expectativas,
e que um jogador global, se quiser ser digno de crédito, não
67
poderá ignorar os valores e princípios que formam a identidade
coletiva da comunidade internacional.
E a Rússia, como se sai em termos de liderança de direitos
humanos? Uma Rússia cheia de autoconfi ança e afl uente com
os rendimentos do petróleo tem reprimido as opiniões políticas
divergentes, exercido pressão sobre os jornalistas independentes
e introduzido controles para refrear as ONGs. Em 2007,
manifestações pacífi cas foram dispersadas com o uso da força,
enquanto advogados, defensores de direitos humanos e jornalistas
eram ameaçados e atacados. O sistema judicial permaneceu
vulnerável a pressões do Executivo. A corrupção arraigada
comprometeu o Estado de direito e a confi ança da população
no sistema legal. Na Chechênia, a impunidade praticamente não
tinha limites, fazendo com que as vítimas tivessem de recorrer
à Corte Européia de Direitos Humanos, em Estrassburgo, para
conseguir justiça.
Será que, a partir de 2008, o novo presidente russo, Dimitry
Medvedev, dará um tratamento diferente às questões de direitos
humanos? Faria muito bem dar uma olhada ao redor do mundo
para aprender a lição de que estabilidade política duradoura e
prosperidade econômica só podem ser construídas em sociedade
abertas em que os Estados prestem contas de seus atos.
Se os membros permanentes do Conselho de Segurança da
ONU fi zeram pouco para promover os direitos humanos e muito
para enfraquecê-los, que tipo de liderança podemos esperar de
potências emergentes como a África do Sul, o Brasil e a Índia?
Como uma democracia liberal de bases bem estabelecidas, com
forte tradição legal em questões de direitos humanos e com um
Judiciário independente, a Índia conta com o potencial para ser
um bom modelo. No Conselho de Direitos Humanos da ONU,
o país teve uma atuação positiva. A Índia pode ser creditada
ainda por ter ajudado a aproximar os principais partidos e os
insurgentes maoístas no Nepal, acabando com um prolongado
confl ito armado que provocou abusos de direitos humanos de
enormes proporções. Contudo, em matéria de direitos humanos,
a Índia ainda precisa ser mais enérgica em sua implementação
doméstica e mais franca ao exercer sua liderança internacional.
Em Mianmar, enquanto a junta militar investia com violência
contra as manifestações pacífi cas realizadas por monges e por
outros manifestantes, o governo indiano continuou com suas
negociações sobre extração de petróleo. Em Nandigram, Bengala
Ocidental, comunidades rurais foram atacadas e tiveram seus
integrantes feridos e mortos, com cumplicidade da polícia, quando
protestaram contra o estabelecimento de uma zona econômica
especial para a indústria.
O papel da África do Sul na NEPAD (Nova Parceria para
o Desenvolvimento da África) – que enfatiza questões de boa
governança – traz esperanças de que os líderes africanos
assumirão a responsabilidade por resolver os problemas africanos,
inclusive com relação aos direitos humanos. O governo da África
do Sul, porém, tem hesitado em se pronunciar sobre os abusos de
direitos humanos no Zimbábue. Os direitos humanos são aplicáveis
universalmente para todos – e nenhum país sabe disso melhor
do que a África do Sul. Poucos países têm uma responsabilidade
moral de promover esses valores universais, onde quer que
estejam sendo violados, maior que a da África do Sul.
Países como Brasil e México têm sido fi rmes tanto na promoção
dos direitos humanos em nível internacional quanto em seu apoio
à engrenagem de direitos humanos da ONU. No entanto, a menos
que a distância entre suas políticas no plano internacional e seu
desempenho no âmbito doméstico seja diminuída, sua credibilidade
como defensores dos direitos humanos será contestada.
Direitos humanos não são valores ocidentais – na verdade, os
governos ocidentais têm mostrado tanto desdém pelos direitos
humanos quanto qualquer outro governo. Eles são valores universais
e, como tais, suas perspectivas de sucesso estão interligadas
à liderança das Nações Unidas. Embora o Conselho de Segurança
da ONU tenha permanecido imobilizado em questões de direitos
humanos por causa dos interesses divergentes de seus membros
permanentes, em 2007 a Assembléia Geral da ONU demonstrou
seu potencial de liderança ao adotar uma resolução pedindo uma
moratória universal da pena de morte. É exatamente esse tipo de
orientação que o mundo precisa das Nações Unidas: Estados
que inspirem uns aos outros a aprimorarem seu desempenho, ao
invés de se nivelarem por baixo. Isso é o melhor que a ONU pode
oferecer. Terá o Conselho de Direitos Humanos da ONU esse
tipo de liderança em 2008 quando adotar o sistema de Revisão
Periódica Universal?
Em setembro de 2007, em uma demonstração de liderança corajosa
e impressionante, frente à oposição de Estados extremamente
poderosos, 143 dos Estados-membros da Assembléia Geral da
ONU votaram a favor da adoção da Declaração sobre os Direitos
dos Povos Indígenas, encerrando duas décadas de discussões.
Dois meses depois de a Austrália ter votado contra a Declaração,
o governo recém eleito do primeiro-ministro Kevin Rudd apresentou
um pedido formal de desculpas pelas leis e pelas políticas de
sucessivos governos que “infl igiram profunda afl ição, sofrimento
e prejuízo” à população indígena aborígine.
Construindo uma nova unidade de propósitos
Enquanto a ordem geopolítica passa por mudanças tectônicas,
as antigas potências estão renegando os direitos humanos, ao
passo que os novos líderes ainda não emergiram ou se mostram
ambivalentes com relação a esses direitos. Neste cenário, qual
é o futuro dos direitos humanos?
O caminho pela frente tem muitas pedras. Confl itos
entranhados – altamente visíveis no Oriente Médio, no Iraque
e no Afeganistão e esquecidos em lugares como o Sri Lanka
e a Somália, para citar apenas alguns – provocam sacrifícios
humanos enormes. Os líderes mundiais ou se atrapalham
nas suas tentativas de encontrar saídas para situações como
a do Iraque ou do Afeganistão, ou não têm a vontade política para
encontrá-las, como no caso de Israel e dos Territórios Palestinos
Ocupados. Este confl ito tão prolongado tem sido especialmente
marcado pelo fracasso de uma liderança internacional coletiva (na
forma de um quarteto constituído pelos Estados Unidos, pela União
Européia, pela Rússia e pela ONU) em lidar com a impunidade
e com a injustiça.
68
Quando os mercados oscilam e os ricos usam sua posição
e infl uência indevidas para mitigar suas perdas, os interesses dos
mais pobres e dos mais vulneráveis perigam ser esquecidos. Um
grande número de empresas, com o apoio tácito de governos que
se recusam a investigá-las ou a regulá-las efetivamente, continua
a escapar da responsabilidade por seu envolvimento em abusos
e violações de direitos humanos.
Há muita retórica sobre erradicar a pobreza e pouca vontade
política para agir. Pelo menos dois bilhões de integrantes de nossa
comunidade humana continuam a viver na pobreza, lutando para
conseguir água potável, comida e moradia. Embora as mudanças
climáticas afetem todos nós, os mais pobres serão os mais
prejudicados, pois perderão suas terras, seus alimentos e seus
meios de vida. Julho de 2007 marca o ponto medial do cronograma
estabelecido pela ONU para alcançar as Metas de Desenvolvimento
do Milênio. Apesar de nada perfeitas, a realização dessas metas
signifi caria um bom caminho andado na direção de melhorar, até
2015, a saúde, as condições de vida e a educação de grande parte
das populações do mundo em desenvolvimento. O mundo, porém,
não está no rumo certo para alcançar a maioria dessas metas
mínimas e, infelizmente, os direitos humanos não estão sendo
levados em conta nesse processo. Evidentemente, uma mudança
de foco e novas iniciativas são mais do que necessárias.
E a liderança para erradicar a violência baseada em gênero, onde
está? Em quase todas as regiões do mundo, mulheres e meninas
sofrem com os níveis elevados de violência sexual. Na região
de Darfur, destroçada pela guerra, os estupros e a impunidade
ainda persistem. Nos EUA, muitas sobreviventes de estupro de
comunidades indígenas carentes e marginalizadas não conseguem
obter justiça nem proteção efetiva por parte das autoridades
federais ou das tribais. Os líderes devem estar mais atentos a fazer
com que os direitos de mulheres e meninas sejam realidade.
Todos esses são desafi os globais com uma dimensão humana.
Por isso, exigem uma resposta global. Os direitos humanos
reconhecidos internacionalmente oferecem a melhor estrutura
para essa resposta, pois representam um consenso global com
relação aos limites aceitáveis e aos problemas inaceitáveis das
políticas e das práticas governamentais.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é hoje um modelo
tão apropriado para uma liderança iluminada quanto o era em
1948. Os governos, portanto, devem renovar seu compromisso
com os direitos humanos.
Populações inquietas, indignadas e desiludidas não permanecerão
silenciosas se o abismo que existe entre suas demandas por
igualdade e liberdade e a resposta dos governos a essas demandas
aumentar a cada dia. O descontentamento popular com a alta
acentuada no preço do arroz em Bangladesh, os distúrbios
causados no Egito pelo preço do pão, a violência pós-eleitoral
no Quênia e as manifestações que ocorreram na China por causa
de despejos e de questões ambientais não são apenas exemplos
da preocupação popular com temas sociais e econômicos. São
sinais da ebulição de um caldeirão de protestos dos movimentos
populares, infl amado pela traição de seus governos às promessas
que fi zeram de justiça e de igualdade.
De um modo praticamente inimaginável em 1948, existe hoje um
movimento global de cidadãos exigindo que seus líderes renovem
seu compromisso com a defesa e a promoção dos direitos
humanos. Advogados em ternos pretos no Paquistão, monges
com trajes alaranjados em Mianmar, os 43,7 milhões de pessoas
no mundo que, em 17 de outubro de 2007, exigiram uma ação
contra a pobreza, são fortes sinais, emitidos nesse ano passado,
de que uma cidadania global está determinada a defender os
direitos humanos e a cobrar de seus líderes responsabilidade pelo
que fazem.
Em um povoado do norte de Bangladesh, um grupo de mulheres
senta sobre esteiras de bambu, em um local poeirento no centro
da aldeia. Elas participam de um programa de formação legal.
A maioria delas, mal sabe ler ou escrever. Elas ouvem com
atenção o professor que, auxiliado por cartazes com esquemas e
fi guras, ensina sobre uma lei que proíbe o casamento de crianças
e que requer da mulher uma manifestação de consentimento com
o casamento. Essas mulheres acabaram de receber fi nanciamentos
por meio de um projeto de microcrédito operado por uma importante
ONG de desenvolvimento rural de Bangladesh (Bangladesh Rural
Advancement Committee). Uma das mulheres adquiriu uma vaca
e espera conseguir uma renda extra vendendo leite. Outra planeja
comprar uma máquina de costura e abrir uma pequena confecção
própria. O que ela espera dessa aula? “Quero saber mais sobre os
meus direitos”, diz ela. “Não quero que minhas fi lhas sofram o que
eu sofri; por isso, tenho que aprender a proteger os meus direitos
e também os delas.” Pode-se ver nos seus olhos um brilho de
determinação que, por todo o mundo, está nos olhos de milhões
de pessoas como ela.
Neste aniversário dos 60 anos da DUDH, o poder que têm as
pessoas de criar esperanças e de produzir mudanças está tão
vivo quanto nunca. Uma consciência de direitos humanos está
envolvendo o planeta.
Os líderes mundiais se arriscam por ignorá-la.
Anistia Internacional, em solidariedade a todos os defensores de
direitos humanos do mundo no 60º aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
* IRENE KHANSecretaria Geral da Anistia Internacional
69
“A criança é o princípio sem fi m, o fi m da criança é o princípio do
fi m. Quando uma sociedade deixa matar as crianças é porque
começou seu suicídio como sociedade. Quando não as ama
é porque deixou de se reconhecer como humanidade.
Se não vejo na criança uma criança, é porque alguém a violentou
antes e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado.
Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama
e comida; essa que vive a solidão das noites sem gente por
perto, é um grito, é um espanto.
Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo
encontro, porque a criança é o princípio sem fi m e o seu fi m
é o fi m de todos nós.”
Herbert de Souza (Betinho)
Quando há mais ou menos 3.000 anos atrás
o homem passou a viver em grupo, estava em
busca da proteção que a reunião de iguais poderia
lhe dar, proteção contra animais selvagens
e contra aspectos geográfi cos e climáticos.
Porém viver em grupo não é apenas uma união
entre semelhantes. Estas mesmas pessoas
que inicialmente parecem iguais se
comparadas às feras que os ameaçam,
não resolvem seus confl itos de forma linear
e precisam de regras e/ou normas de
condutas para que possam viver em paz e harmonia. Na busca
desta estrutura ideal começam a existir os primeiros grupos
sociais e conseqüentemente nossas primeiras sociedades
organizadas.
Com a evolução das relações econômicas o que era delineado
como pertinente para os primeiros indivíduos não mais satisfaz os
atores que desempenham papeis fundamentais nestas primeiras
estruturas sociais. O que antes era apenas busca de proteção
à vida e qualidade deste viver, passa a ser também proteção
a propriedades e bens acumulados por aqueles que aparentemente
vivem em harmonia.
Para a preservação deste conjunto de interesses, inúmeras vezes
confl ituosos, faz-se necessária a criação de regras e leis que
controlem a participação na sociedade, é preciso que os papéis
sejam bem defi nidos e respeitados, com direitos e deveres claros
para todos aqueles que pretendem viver hegemonicamente
nestes grupos sociais. Como já foi dito anteriormente, quando
está em jogo à proteção à vida ou a sua qualidade todo indivíduo
pode e deve ser tratado de forma igualitária, porém quando se
trata de proteção às propriedades a situação se inverte, pois
a possibilidade de aquisição desses bens nunca se dá de forma
igual, principalmente com a estrutura econômica predominante no
mundo ocidental. Portanto o controle destes grupos sociais não
pode se dar apenas por uma legislação que em princípio prevê
igualdade entre pares. Segundo Gramsci “A burguesia mantêm
o controle sobre toda a sociedade não apenas através da coerção
política ou econômica, porém também pela cooptação ideológica,
por meio de uma cultura hegemônica na qual os valores
e interesses particulares da burguesia se tornam o senso comum”.
Nesta estrutura, ainda segundo o autor, é preciso que o “senso
comum”, entendido como uma construção mental imposta por
um grupo dominante torne natural a existência de privilégios
e a dominação de um indivíduo ou grupo por outro.
As consequências de uma sociedade que têm como base a
desigualdade e a dominação de um ser humano por outro seu
igual, são vividas diariamente pelo povo
brasileiro. Nesse contexto, deparamo-nos
com a violência e a desesperança que
geram a busca de soluções que cada vez
mais segregam e distanciam aqueles que
inicialmente buscavam proteção ao viver
em grupos.
O que hoje confi gura a sociedade brasileira
está longe de oferecer proteção à maioria
de sua população, segundo pesquisa
realizada pelo Centro de Políticas Sociais
da Fundação Getúlio Vargas divulgado em abril de 2006, intitulado
“Mapa do Fim da Fome II”. Conforme seus resultados, o Brasil
possui 56 milhões de pessoas vivendo na indigência com renda
inferior a R$ 79,00 por mês. A situação é mais alarmante, pois
cerca de 45% dos miseráveis brasileiros têm 15 ou menos anos
de idade.
Este grupo é o objeto de nosso estudo e prática, são estas as
crianças e adolescentes que têm seus direitos básicos restringidos
antes mesmo de nascerem. A luta pelo reconhecimento dos direitos
fundamentais de crianças e adolescentes enquanto “pessoa
em condição peculiar de desenvolvimento” passa pela garantia
de promoção e proteção através de instrumentos normativos
e políticas públicas de atendimento.
Contamos, hoje com uma legislação que lhes garante Proteção
Integral e Direitos Fundamentais através do Estatuto da Criança
e do Adolescente lei federal 8.069/901[2], porém o que está
previsto em lei não corresponde à prática, carecemos de políticas
e dotação orçamentária para execução da lei. A existência de
crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de
Janeiro é a prova visual disto.
UM ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUE ESTÃONAS RUAS – RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL.
MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNES*
“A luta pelo reconhecimento
dos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes enquanto
“pessoa em condição peculiar
de desenvolvimento” passa
pela garantia de promoção e
proteção através de instrumentos
normativos e políticas públicas
de atendimento.”
1[2]Estatuto da Criança e do Adolescente lei federal 8.069/90-Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fi m de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
70
É preciso que além das leis e normas de convivência a sociedade
não se acostume e ache natural a moradia nas ruas, não porque
de alguma forma isso incomoda aos moradores dos prédios
e comerciantes adjacentes, nem porque sentimos pena ou
medo, o que acarretaria numa busca por soluções higienistas
e repressoras, mas principalmente por entendermos que
a existência de crianças e adolescentes vivendo em situação de
rua não é um momento histórico ou um problema específi co de
uma classe social e econômica, do qual somente somos atingidos
por seus efeitos e conseqüências. A grande questão que se coloca
aqui é a importância de admitirmos nossa co-responsabilidade,
ou seja, o fato de que essa é uma situação produzida por
todos nós que compomos a sociedade em que vivemos.
Em outras palavras: somos “vítimas” daquilo que contribuímos
para produzir, mesmo que seja por nossa omissão enquanto
sujeitos políticos.
É urgente entendermos que a situação de extrema vulnerabilidade
social, não acesso ou ausência de direitos de uma camada tão
expressiva em números e características de nossa sociedade,
não é problema dos outros, mas antes sim uma conseqüência
natural desta estrutura econômico social a qual reproduzimos
sem questionar de países economicamente bem sucedidos.
Apenas com este entendimento poderemos buscar soluções
que realmente atendam a todos, não apenas aqueles que estão
dormindo pelas calçadas, mas também aqueles não mais passam
por essas mesmas áreas por medo uns dos outros.
É preciso perceber a ida para as ruas como parte de um
problema maior que não envolve somente aqueles que sofrem
as conseqüências desta sociedade produtora de tantas
desesperanças. Quando nos propomos a trabalhar com este
público, não queremos, com isso, nos limitar a busca de soluções
individuais que resolvam apenas o problema daquele que está na
rua. Queremos, através destas crianças e adolescentes, promover
uma indignação social que não fi que aguardando promessas de
um futuro melhor, que ajam, transformem e reivindiquem seus
espaços de igualdade de direitos.
Partimos da defi nição de que criança e adolescente em situação
de rua é todo aquele que vive permanentemente nas ruas ou que,
mesmo possuindo referência familiar têm nas ruas atividades
de subsistência ou referências afetivas que o leve a pernoites
contínuos.
O trabalho que a Associação Benefi cente São Martinho realiza com
crianças e adolescente em situação de rua há 25 anos passou
por um longo processo transformador de postura ideológica e
conseqüentemente de análise metodológica.
A história da instituição se confunde e entrelaça com a história
da sociedade civil organizada no município do Rio de Janeiro.
Quando em 1984 um grupo de voluntários, sensibilizado com a
situação em que viviam dezenas de crianças e adolescentes que
perambulavam pela Praça Tiradentes e Estação Rodoviária passa
a estar diariamente com este público, deu-se início ao trabalho de
abordagem nas ruas da cidade. Ainda sob um olhar assistencialista,
os voluntários se disponibilizavam a oferecer comida, materiais
de higiene e roupas para os meninos que lá estavam. Após seis
anos de trabalho sistemático de abordagens, em 1990 este grupo
voluntário, já constituído na Associação Benefi cente São Martinho,
ganha um espaço para realização de atividades sócio educativas
no coração da Lapa. Sob os arcos o prédio conhecido com
Centro Sócio Educativo passa a ser uma referência do trabalho
com crianças e adolescentes em situação de rua, tanto para
a sociedade política, como para a sociedade civil. É neste contexto
que a equipe, já constituída por profi ssionais, revê e repensa sua
prática. Como nos diz Cornelius Castoriadis (1982) “Chamamos
de práxis este fazer no qual o outro ou os outros são visados
como seres autônomos e considerados como o agente essencial
do desenvolvimento de sua própria autonomia... a autonomia do
outro ou dos outros é, ao mesmo tempo, o fi m e o meio.”
No 2º semestre de 2004, buscando uma postura menos
assistencialista e mais emancipadora, o projeto Ao Encontro
dos Meninos em Situação de Rua reformula sua estrutura
metodológica objetivando um posicionamento crítico de
crianças e adolescentes em situação de risco social nas ruas
buscando a transformação da ordem social. Não podemos
mais ver este menino com um “indivíduo carente” que inicia sua
história quando passa a ter contato com a Instituição, ele tem
um processo anterior, que faz parte de um contexto familiar e
comunitário com inúmeras possibilidades futuras.
Sendo assim, tornou-se necessário que o educador social,
compreendesse as estruturas sociais dos atendidos (familiar,
sócio-econômica, e política do país), suas fragilidades (narcotráfi co,
violência nas suas diversas formas de manifestação e a miséria),
suas estratégias de sobrevivência e a dinâmica do grupo e do
entorno, visto que esses fatores estimulam a ida para as ruas,
é este profi ssional que através das abordagens estabelece uma
relação de confi ança e troca com crianças e adolescentes que
estão no centro e zona sul do Rio de Janeiro.
A metodologia utilizada nas abordagens se inspira em alguns
autores e teóricos da sociologia, antropologia e pedagogia.
Um de nossos mais importantes inspiradores é Paulo Freire com
sua crença de “que há uma relação indissociável entre a educação
e a política... A autêntica educação é política. A prática educativa,
a formação humana, implica opções, rupturas e decisões
a favor de algum sonho.” Nesse sentido, o projeto investe na
consciência crítica dos atendidos. É preciso que nós refl itamos sobre
questões como cidadania, direitos e deveres, responsabilidade
individual, familiar e governamental. É fundamental, sobretudo,
que essas crianças e adolescentes voltem a sonhar, a desejar,
a investir em um futuro promissor, como qualquer criança
faz. Nas atividades realizadas nas ruas os educadores não
pretendem levar respostas ou posturas ideais, se questionam
e questionam junto com os meninos essas categorias que
impõem idéias e ideais preconcebidos. O educador é um
fomentador, mediador e participante destes debates, não se
coloca à margem da discussão e muito menos como observador.
Ele é parte desta organização social e busca soluções que
reestruture e não adapte os ditos “marginalizados”. As estratégias
utilizadas para promover esses momentos de discussões
são: arte-educação, com leituras de livros, jornais e criação
de estórias; esporte dando ênfase nos jogos coletivos e a cultura
incluindo música e capoeira.
71
Contudo observamos que as comunidades que abrigam em suas
calçadas crianças e adolescentes se sentem incomodadas com
a situação e esperam que o problema seja resolvido. Porém,
é no momento da solução que elas se dividem: enquanto
alguns desejam, apenas, deixar de ver as crianças ali, outros se
preocupam com o motivo que as levaram a esta situação e o que
pode ser feito para que elas tenham qualidade de vida o que será,
certamente, em outro lugar.
Com o primeiro grupo é preciso realizar um trabalho de
conscientização que não pode se basear, apenas, no discurso
já tão desgastado pela ausência de solução. É preciso mostrar-
lhes as habilidades e competências que essas crianças
e adolescentes têm quando estimuladas. Uma alternativa é realizar
o que chamamos “abordagem coletiva”. Nesse espaço, a equipe
vai para as ruas (coordenadora, assistente social, psicóloga,
pedagoga, médico, dentista e enfermeira) é um momento onde
realizamos apresentação de capoeira, música, desenhos e peça
de teatro, com a participação de todos.
É preenchido, também pela equipe um formulário chamado
de marco zero, onde é anotada a percepção das relações, hostis
ou não, dos atores sociais do entorno com relação às crianças
e adolescentes em situação de rua. É muito importante que
possamos levar a refl exão sobre a situação de moradia nas
ruas para aqueles que moram nas calçadas e para os que moram
nos prédios.
Quando esta refl exão leva aos meninos um desejo de mudança
de sua situação eles realizam, com a equipe técnica, atendimento
psicossocial iniciando o processo de saída das ruas e conseqüentes
busca dos direitos que lhes foram negados como retirada de
documentos, retorno à escola e ao convívio familiar e comunitário.
Muitas vezes esse processo é bastante difícil, pois os problemas
que os levaram a ir para rua permanecem em suas comunidades
de origem: faltam de vagas nas escolas, emprego, violência
familiar e envolvimento com o tráfi co. Para isso a articulação
com programas governamentais existentes e instituições não
governamentais que atuam nessas áreas é fundamental.
A vida na rua hoje, não difere muito dos 24 anos passados de
atendimento da São Martinho. É uma realidade difícil em que
precisamos enfrentar a violência explícita e física da polícia e do
governo com ausência de políticas voltadas para garantia dos
direitos básicos previstos na lei e também enfrentar a sociedade
com sua violência implícita de olhares de medo e negação da sua
parcela de responsabilidade neste quadro geral de vivência nas
ruas ou pelas ruas.
A busca de soluções por parte destes grupos que realmente
poderiam criar caminhos dignos de vida comunitária se dá sempre
através da repressão dos mecanismos de segurança. E hoje com
acúmulo de “forças majoritárias clandestinas”, o crescimento da
atuação das milícias nas comunidades do Rio de Janeiro é um
exemplo desta força.
Acreditar que a solução para problemas de segurança não passa
pelas esferas governamentais, é um descrédito da organização
da própria sociedade. Se aqueles que nos representam ofi cial
e legalmente não respondem a contento nossos anseios e para
isso delegamos a grupos que se utilizam das mesmas armas
que aqueles que nos agridem, estamos assim instituindo o caos
público e regredindo ao estado primitivo da lei do mais forte e “do
olho por olho dente por dente”.
Dentro desta nova desordem pública os mais atingidos são aqueles
que não podem pagar por essa fugaz sensação de segurança
e que historicamente já vivenciam a ausência de direitos básicos,
também pagos por quem pode como educação e saúde de
qualidade, moradia e a também desejada segurança.
É esse o público com o qual a São Martinho trabalha por não
acreditar em uma estrutura social que identifi ca crianças
e adolescentes como um caso de polícia.
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– Pereira, Pedro. Proteção dos Direitos Humanos-dilemas e
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– Pizá, Graça & Barbosa, Gabriela F. coordenação. A violência
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Violência, 2004
– Rizzini, I. Vidas nas Ruas– crianças e adolescentes nas
ruas:trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro:PUC
– Sousa, Dario – pesquisa. Perfi s e trajetórias de crianças e
adolescentes que vivem nas ruas da zona sul carioca e Barra da
Tijuca. Rio de Janeiro: UERJ, 2007
*MÔNICA DE ALKMIM MOREIRA NUNESPedagoga, Pós-Graduada em Filosofi a da Educação, Coordenadora do Projeto Ao Encontro dos Meninos em
Situação de Rua da Associação Benefi cente São Martinho no período de 2004 a 2008.
72
Durante os primeiros séculos da colonização portuguesa, a prática
em relação à criança indígena era a de separá-la de sua família
para moldá-la aos costumes ditos civilizados e cristãos, e em
relação à criança negra era a de sua incorporação como força de
trabalho escrava, tão logo atingisse a idade dos sete anos. Quanto
à assistência, limitava-se ao recolhimento de expostos e órfãos
em instituições caritativas. Não existia, àquela época, “a criança”,
pensada como categoria genérica, em relação à qual se pudesse
deduzir algum direito universal, pois não existia o pressuposto da
igualdade entre as pessoas, sendo a sociedade colonial construída
justamente na relação desigual senhor/escravo2.
O que existiam eram categorias diferenciadas de crianças
como os “fi lhos de família”, os “meninos da terra”, os “fi lhos dos
escravos”, os “órfãos”, os “expostos”, os “desvalidos”; ou ainda,
os “pardinhos”, os “cabrinhas”, os “negrinhos”.
Os “fi lhos legítimos de legítimo matrimônio
cristão” não colocavam problemas à ordem
social, pois que, justamente, encontravam-se
sob o controle do “pai de família”, que tinha
poderes quase ilimitados. Da mesma forma,
os meninos da “terra”, contidos nos colégios
jesuítas e os “negrinhos”, propriedades
do senhor, encontravam-se controlados
socialmente através destas relações de posse
e assujeitamento. Os “expostos” e os “órfãos”,
embora sem o suporte familiar, encontravam
nos estabelecimentos mantidos pela caridade, como as Casas da
Roda e os Recolhimentos das Órfãs, o seu guardião legal.
Naquela época, as categorias que colocavam problemas à ordem
social eram as gentes sem eira nem beira – os “mendigos”, os
“viciosos”, os “vadios” – fenômeno tão bem descrito por Laura
de Mello e Sousa no livro “Os desclassifi cados do ouro”. Essa
gente desclassifi cada não tinha como se inserir na estrutura dual
da sociedade colonial. Não eram escravos propriamente, porque
não haviam sido comprados e também não eram senhores, não
podendo ocupar posições na estrutura burocrática e administrativa
da Colônia. Existiam como uma espécie de “mão de obra de
reserva escrava”, temidos como sendo “a pior raça de gente”, mas
ao mesmo tempo reserva útil, objeto de recrutamentos forçados
sempre que o Estado necessitasse de milícias para o combate
aos quilombolas e aos índios, ou para a construção de estradas,
prisões e demais edifi cações e serviços3.
O problema modifi ca-se inteiramente quando os escravos,
a partir da Lei do Ventre Livre (1871) e da Abolição da Escravatura
(1888), adquirem a condição de livres e, portanto, de “fi lhos”
e “pais de família”, sem, contudo, adquirirem as condições materiais
para o exercício pleno da cidadania. Foi quando crianças pobres
passaram a ser encontradas nas ruas brincando, trabalhando,
pedindo esmolas ou eventualmente cometendo pequenos furtos.
Não se querendo reconhecê-las como tendo os mesmos direitos
e status dos “fi lhos de família”, situação tradicionalmente reservada
apenas aos bem nascidos socialmente, mas ao mesmo tempo não
se podendo acusá-las de “criminosas”, por não haverem cometido
infração alguma às leis penais, o que teria permitido recolhê-las
aos estabelecimentos carcerários, um novo arranjo tutelar terá
que ser inventado a partir da identifi cação destas crianças pobres
como “menores abandonados” e potencialmente “perigosos”,
ou seja, “órfãos de pais vivos” e “futuros criminosos”. Caberia
então ao Estado, neste novo arranjo, assisti-los caritativamente
como aos órfãos e expostos e, ao mesmo tempo, corrigi-los
e regenerá-los como aos condenados, só que preventivamente e
com a justifi cativa de sua proteção.
Assim e retrospectivamente, até os
anos 1870, nenhuma problematização
ou inquietação em relação a menores
ditos abandonados é encontrada nos
documentos ofi ciais do Império4. O que traz
preocupação, por um lado, é a situação
dos órfãos e dos expostos, objetos
da assistência caritativa, e por outro,
a situação dos menores nas
prisões, quando sujeitos às leis
penais. “Menor”, como aparece nos documentos,
é apenas uma variável de identifi cação nas estatísticas policiais,
que separavam os presos e os réus entre homens e mulheres, livres
e cativos, nacionais e estrangeiros, casados e solteiros, maiores
e menores de idade. Quando muito, os documentos lembravam
que os condenados menores de idade não deveriam fi car presos
juntos com os condenados maiores de idade, da mesma forma que
as mulheres deveriam estar em prisões distintas dos homens.
A categoria “menor abandonado” só emergirá no Brasil no bojo
da discussão sobre a reforma das prisões e após a Lei do Ventre
Livre e não, como se poderia supor a princípio, pelo viés da
caridade. Os estabelecimentos caritativos, à época, não se
preocupavam com os menores condenados, dedicando-se
apenas aos órfãos e expostos. Essas categorias de crianças,
inclusive, são tratadas em Relatórios Ministeriais distintos:
as estatísticas e considerações sobre os órfãos, expostos
e desvalidos são apresentadas nos Relatórios do Ministério
do Império sob a rubrica “instituições de caridade”, e as
considerações sobre os menores de idade sujeitos à lei
penal, nos Relatórios do Ministério da Justiça, sob a rubrica
“polícia” ou “prisões”5. Órfãos e expostos apenas são tratados nos
A REFORMA DAS PRISÕES, A LEI DO VENTRE LIVRE E A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO DO “MENOR ABANDONADO”.1
ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTES*
“A Proteção Integral, de que trata
o Estatuto, se organiza em torno
de três fundamentos ou princípios
básicos, sem os quais não existe
tal Proteção Integral: crianças
e adolescentes são sujeitos de
direitos, são pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento,
são prioridades absolutas.”
1 Para a confecção deste texto utilizou-se de material que já vem sendo pesquisado há 20 anos, em diferentes arquivos, como parte de um projeto sobre a História da Assistência à Infância no Brasil. Alguns destes achados de pesquisa já estão disponíveis em publicações diversas, conforme indicação bibliográfi ca nas Notas.2 Um dos objetivos da catequização dos povos indígenas foi justamente o de salvá-los de um suposto estado de inferioridade humana, civilizatória e espiritual: povos “sem Rei, Lei e Fé”. O “próximo” não era, portanto, qualquer outro humano, mas um súdito do Rei de Portugal e um cristão temente a Deus. 3 Ver: Direitos Humanos: um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei. Conselho Federal de Psicologia – 3ª Edição Especial para a VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2007.4 Exceção é feira ao Decreto N. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecendo casas de asilos para os meninos encontrados em estado de pobreza. No entanto, apenas em 1875, justamente após a Lei do Ventre Livre, foi inaugurado no Rio de Janeiro o Asilo de Meninos Desvalidos.
73
Relatórios do Ministério da Justiça quando vítimas: o órfão, quando
sua educação for negligenciada ou sua herança mal administrada
ou surrupiada pelo tutor, e o exposto, quando encontrado na via
pública, sujeito às intempéries do tempo, morto ou podendo vir
a falecer, ou quando jogados ao mar forem devolvidos às praias.
O que se constata, ao longo de todo o Império, é uma preocupação
constante com as mudanças na legislação penal e com a reforma
do sistema carcerário que deveria advir como consequência
dessas mudanças, uma vez que a penalidade mais comum passa
a ser a privação da liberdade e não mais as penas de morte,
degredo e galés. Ao mesmo tempo em que se elogia o progresso
civilizatório que as novas leis representam, equiparando-se
o Brasil aos países do primeiro mundo, tais leis são constantemente
combatidas, na medida em que se acredita que elas atrapalham
o trabalho da polícia, servindo mais para proteger os malfeitores
que os cidadãos honrados, além de que, com as prisões
superlotadas, pela primeira vez depara-se o Estado com uma
massa carcerária a ser administrada, passando as prisões
a serem defi nidas como “escolas do crime”.
É neste contexto - em que se discute a situação das prisões
e a criação de um sistema penitenciário em virtude das novas leis
penais e do processo, onde o acusado adquire o direito de se
defender e impetrar recursos, e a pena deixa de ter o caráter de
vingança e adquire a função de regeneração, e apenas após as leis
abolicionistas, quando cresce o número de pessoas pobres vivendo
e trabalhando nas ruas das grandes cidades - que a justifi cativa
para a apreensão da criança pobre será formulada, defi nindo-a
como “abandonada”, passando a ser voz comum a idéia de que
deveriam ser encaminhadas às “instituições preventivas”.
A difi culdade de se administrar a questão prisional passa
a decorrer diretamente do “problema do menor”, o que servirá
como justifi cativa “científi ca” para que os “menores criminosos”,
mas não sujeitos à lei penal por não terem agido com discernimento
e os menores que nenhum crime haviam cometido mas eram
considerados “mendigos”, “ociosos” e “vadios” pudessem ser
encaminhados às escolas correcionais e de reforma mediante
a suspensão ou destituição do pátrio poder, ou a pedido dos
próprios pais, por serem os fi lhos considerados “desobedientes”
ou “incorrigíveis”, ou a pedido da mãe viúva, por se sentir incapaz
de sustentar os fi lhos ou de proteger a honra da fi lha. Ao serem
recolhidos nas ruas pela polícia e levados à presença do Juiz de
Órfãos para receberem “destino”, a grande maioria destes menores
foi encaminhada ao trabalho, mediante soldada.
Recebendo como “destino” o trabalho em casas de família,
fábricas ou fazendas, ou encaminhados às escolas de aprendizes
de Guerra ou Marinha, sofrendo muitas vezes abusos de todas as
espécies, constituía este aprendizado do trabalho uma modalidade
de “servidão das crianças” ou “sequestro da infância pobre” em
tempo de pós-abolição e mão-de-obra escassa - só lhes restando
a alternativa da fuga do cativeiro, o que muitos realizaram, sendo
recapturados e novamente evadidos. Outros foram devolvidos ao
Juiz, por “não aprenderem o trabalho” ou por não aprenderem
a “disciplina do trabalho”, por apresentarem alguma doença
ou incapacidade, por terem sido acusados de furto ou de maus
hábitos, por terem sido defl oradas, porque não mais desejavam
o trabalho ou aquele trabalho. Alguns outros tiveram fi lhos, que
foram colocados na Casa dos Expostos. Outros ainda foram
enviados para o Hospício Nacional dos Alienados, ou faleceram.
A República, longe de mudar o foco desta discussão e reverter
este processo, o aprofundou, buscando instituir uma legislação
específi ca para os ditos menores, visando, sobretudo, o controle
daqueles considerados “moralmente abandonados”. Assim,
o Código Penal de 1890, apenas um ano após a Proclamação da
República (1889), regulamentou a idade da imputabilidade penal
em nove anos, permitindo o envio de crianças e adolescentes para
as casas de detenção. Ao não abolir, mas apenas regulamentar
a idade para o trabalho infantil, a República também permitiu que
crianças e adolescentes fi cassem fora da escola regular.
Construiu-se, desta forma, sobre a base da regulamentação
da idade penal e da regulamentação do trabalho infantil, da
possibilidade de destituição do pátrio poder em relação a
alguns menores e da internação dos mesmos menores em
estabelecimentos correcionais e de reforma, um sistema dual no
atendimento às crianças, uma vez que, enquanto o Código Civil
de 1916 tratava dos “fi lhos de família”, o Código de Menores de
19276 tratava dos menores “abandonados” ou “delinquentes”,
entre os quais: “expostos”, “mendigos”, “vadios”, “viciosos”
e “libertinos”.
Embora não se possam estabelecer apenas rupturas entre estes
dois modelos de assistência – coexistindo muitas vezes o mesmo
propósito de controle social e o mesmo método de confi namento
- podemos afi rmar, no entanto, que o sistema caritativo, de
natureza religiosa e asilar, ocupava-se basicamente da pobreza,
motivado principalmente pelo dever de salvação das almas. Já
a fi lantropia dita esclarecida, de natureza cientifi cista e favorável
a uma assistência estatal, tendeu sempre a uma gestão técnica
dos problemas sociais, ordenando os desvios a partir de um
modelo de normalidade que defi nia a criança pobre quase
sempre como “carente”, “anormal”, “defi ciente”, “perigosa”
ou “delinquente”.
Tal a abrangência deste sistema dito de proteção à infância que,
praticamente, cobria todo o universo de crianças e adolescentes
pobres, pois que à existência do “menor” correspondia uma
suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo
burguês de família tomado como norma - à qual a criança pobre
sempre escapava: seja porque não tinha família (“abandonada”
ou “órfã”); porque a família não podia assumir funções de
proteção (“carente”); porque não podia controlar os excessos
da criança (“conduta anti-social”); porque os comportamentos
e envolvimentos da criança ou do adolescente colocavam em
risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infratora”); seja
porque a criança era dita portadora de algum desvio ou doença
com a qual a família não podia ou sabia lidar (“defi ciente”,
“doente mental”, com “desvios de conduta”); seja ainda porque,
necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local
de moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda
porque, sem um ofício e expulsa/evadida da escola ou fugitiva
do lar, caminhava ociosa pelas ruas, à cata de um qualquer
expediente (“perambulante”)7.
No entanto, em que pese o artifício de transformar pobreza em
5 Esta situação se modifi cará na República, quando as atribuições do Ministério do Império forem repassadas ao Ministério da Justiça, unifi cando as duas pastas.6 Decreto Nº 17943-A, de 12 de outubro de 1927 – Consolida as leis de assistência e proteção a menores (Código de Menores de 1927).7 Ver: ARANTES, Esther Maria M.. Rostos de Crianças no Brasil. In: A Arte de Governar Crianças. RIZZINI, Irene e PILOTTI, Francisco (organizadores). Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Niño; Editora Universitária Santa Úrsula; AMAIS Livraria e Editora, 1995.
74
abandono, o problema da assistência à infância permaneceu
sempre por ser devidamente equacionado, na medida em que ao
defi nir este abandono de maneira abrangente a legislação fazia
com que a rede de atendimento tivesse por objetivo abarcar todos
os efeitos da pobreza, subsumindo funções de abrigo, casa,
escola, hospital e prisão. Se isto, por um lado, sempre permitiu
a seus agentes um poder muito grande sobre os menores pobres
e suas famílias, por outro, tal empreitada sempre esbarrou não
apenas nos minguados recursos disponíveis para a assistência
como também em difi culdades de natureza ética e política,
e mesmo jurídica. Aquilo que se tornava visível pela atuação
técnica como “desestruturação familiar” (crianças nas ruas ou
separadas em diferentes lares e internatos; mães solteiras ou
distantes geografi camente de seus companheiros; pais ou mães
desempregados ou internados em hospitais gerais, psiquiátricos
ou encarcerados em presídios; pais mortos ou desaparecidos;
crianças pequenas cuidadas por irmãos apenas um pouco mais
velhos; etc.) era, na grande maioria das vezes, a própria condição
de existência e sobrevivência das famílias pobres no Brasil.
Desta forma, o que se encontrava em jogo na assistência à infância
no Brasil, ao longo de quase todo o século XX, não era a noção
científi ca (ou supostamente científi ca) de criança e nem mesmo
o seu correlato jurídico menor de idade, mas a constituição de
uma dupla infância ou de um duplo estatuto de menoridade
(a criança e o menor) - forjados em relações de exploração
e violência existentes na sociedade, mas sempre em nome de
sua proteção.
Foi para romper com esta lógica e com estas práticas que
os movimentos sociais e demais organizações da chamada
sociedade civil, no bojo da mobilização pelo fi m da Ditadura Militar
e pela democratização do Brasil, iniciaram ampla mobilização
em torno dos direitos humanos e de cidadania dos diferentes
grupos marginalizados da população brasileira, entre os quais
os chamados “menores”. À medida que se pode efetivamente
questionar o modelo de assistência até então vigente, tornou-se
possível a emergência de novas proposições. Na redação do artigo
227 da Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou não apenas
a Declaração Universal dos Direitos da Criança, como também
o pré-texto da Convenção destes mesmos direitos, que, naquela
data, ainda não havia sido apresentado à Assembléia Geral das
Nações Unidas. Ao assim proceder, aboliu o Código de Menores
de 1979 e, em seu lugar, em 13 de julho de 1990, promulgou
o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Federal 8.069, que
dispõe sobre a Proteção Integral à criança e ao adolescente,
conforme seu Art. 1º.
A Proteção Integral, de que trata o Estatuto, se organiza em
torno de três fundamentos ou princípios básicos, sem os quais
não existe tal Proteção Integral: crianças e adolescentes são
sujeitos de direitos, são pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento, são prioridades absolutas. É condição para
esta Proteção Integral que estes três princípios venham juntos e
nunca separados, não se devendo opor, por exemplo, “proteção
especial” e “responsabilização”, no caso do adolescente autor
de ato infracional, bem como não se devendo opor “sujeito de
direitos” e “pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”,
particularmente em situações de vulnerabilidade, quando, mais do
que nunca, estes princípios devem vir juntos8.
Este é o desafi o posto para todos nós: o de entendermos
o caráter ético, jurídico, político e social do Estatuto da Criança
e do Adolescente, uma vez que esta Lei assegura à criança
e ao adolescente a condição de sujeito de direitos sem abolir
a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Não se
trata, evidentemente, de infantilizar as crianças e os adolescentes
e de reduzi-los à condição de objeto que por tanto tempo lhes
foi imposta, numa retomada do chamado “menorismo”, mas
apenas de assegurar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento,
a condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos,
pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta.
Dado este caráter inovador e único do Estatuto da Criança e do
Adolescente, sua aprovação gerou intenso otimismo nos militantes
de Direitos Humanos, depositando-se grande esperança nos
Conselhos de Direitos e Tutelares, principalmente pelo princípio da
participação popular, também estabelecido no Estatuto.
Decorridos 18 anos de sua aprovação, no entanto, forçoso
reconhecer que as mudanças até agora obtidas não têm
correspondido aos sonhos e esperanças de todos aqueles que
lutaram para que a Doutrina da Proteção Integral fosse incorporada
ao ordenamento jurídico brasileiro. Em nome do equilíbrio fi scal e do
cumprimento de metas pactuadas com organismos internacionais,
a partir da década de 1990, o Brasil diminuiu consideravelmente
os gastos com as políticas sociais básicas, inviabilizando, na
prática, o cumprimento da Constituição e do Estatuto. A crise que
se instalou, a partir daí, combinou desemprego, desesperança
e violência, onde os jovens pobres do sexo masculino tem sido as
maiores vítimas, sendo que grande parte das mortes nesta faixa
etária acontece por motivação externa: acidentes e assassinatos9.
Há que se ressaltar, no Rio de Janeiro, a letalidade dos confrontos
a partir da chamada “guerra às drogas”, sendo que também os
presídios e unidades do sistema sócio-educativo encontram-se
organizados pela lógica das “facções”.
Nesta conjuntura, onde faltam recursos para a garantia dos
direitos sociais ou onde tais recursos não são priorizados frente às
exigências de controle fi scal, cresce o número de pessoas favoráveis
a um endurecimento da legislação e do rebaixamento da idade
penal, divulgando-se insistentemente, como causa do aumento da
violência, uma suposta impunidade proporcionada pelo Estatuto,
cuja única fi nalidade seria a de “proteger bandidos” – criando na
população uma indiferença face ao trágico destino de milhares
de jovens pobres, tanto dos que são executados sumariamente
quanto dos que se encontram privados de liberdade.
Quanto a esses argumentos, talvez a história possa ainda nos
ajudar. Interessado em estabelecer as bases da Assistência
Pública, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores J. J. Seabra
incumbiu, em 1905, o então secretário da Escola Correcional
Quinze de Novembro, Franco Vaz, posteriormente seu Diretor, de
estudar o assunto e apresentar a tal respeito um trabalho, no prazo
de seis meses. Franco Vaz apresentou um longo relatório intitulado
“A infância abandonada”, dividido em duas partes: a primeira
trata do que denomina “abandono material”, na qual estuda
a mortalidade infantil, suas causas e remédios; na segunda, trata
8 Ver: Nogueira Neto, Wanderlino. Direitos Humanos. In: Justiça Juvenil sob o marco da proteção integral. Caderno de textos. São Paulo: ABMP, 2008.9 Vide Mapa da Violência.
75
do “abandono moral”, onde se ocupa das crianças consideradas
vadias, delinqüentes, viciosas que “enchem, dia a dia, as cadeias
e os sítios lúgubres”.
Para confeccionar o seu Relatório10, Franco Vaz visitou os
diversos estabelecimentos onde havia crianças e jovens no Rio
de Janeiro. Em visita à Casa de Detenção, constatou a presença
de 18 menores com idade entre 10 e 18 anos, cujos motivos da
detenção foram: ter atirado uma pedra num comerciante que
o agredira, ter sido apanhado perambulando ou dormindo na rua
à espera de trabalho, estar à noite em companhia de uma mulher
em um bar, estar perdido e confuso mentalmente sem saber
o caminho de volta para casa ou ainda ser encontrado nas
ruas vendendo jornais.
Se dizendo profundamente magoado com a situação daqueles
“pobres irresponsáveis”, mas assinalando não ser possível banir
a miséria da face da terra, nem democratizar a democracia, nem
abolir as diferenças sociais ou mesmo propor a escola pública
para todos, propõe então que sejam tomadas medidas enérgicas
contra a desordem familiar, o jogo, o alcoolismo, a prostituição,
e também que fossem autorizadas medidas mais duras como
processo rápido e sumário, supressão da fi ança, reclusão em
colônias correcionais e prisão celular para nacionais e deportação
para estrangeiros, propondo, ainda, que a penalidade para os
menores passasse a ser indeterminada, para que pudessem
permanecer nos estabelecimentos correcionais pelo tempo que
fosse preciso para sua regeneração. Propôs, fi nalmente, que
o Estado assumisse a tutela de todos os menores moralmente
abandonados, anulando, se necessário fosse, o poder paterno; e
que a criança, quando encaminhada pela autoridade à Detenção,
deveria ser colocada inicialmente em regime celular, sendo a cela
um remédio efi caz contra o desregramento infantil, preparando o
organismo da criança para receber os efeitos benéfi cos da escola
de reforma e preservação.
Não se lembrou Franco Vaz, no entanto, de abrir as portas da
cadeia, pois os meninos nenhum crime haviam cometido.
10 Sobre Franco Vaz, consultar a importante Dissertação de Mestrado de Maria de Fátima Bastos Menezes Migliari, intitulada “Infância e adolescência pobres no Brasil. Análise social da ideologia”. Defendida no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em novembro de 1993.
* ESTHER MARIA DE MAGALHÃES ARANTESProfessora da UERJ e PUC-Rio.
76
Ainda hoje há quem acredite que o Estatuto da Criança e do
Adolescente possui um caráter exclusivamente socioeducativo.
Se nem mesmo a teoria dá amparo à falácia, o que se dizer da
prática? Sob o manto de boas intenções manifestas e ao arrepio
da Constituição da República de 1988 a nossa juventude pobre
é vítima do poder punitivo estatal ofi cial desde os doze anos de
idade. A despeito dessa realidade, que salta aos olhos até do
observador mais desatento e insensível, a mídia hegemônica
e todo senso comum que a acompanha seguem por aí maldizendo
a inimputabilidade dos menores de idade e as intenções
supostamente protetivas da lei nº 8.069/90.
Não se pode negar, todavia, que é o próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente o ponto de partida desta incompreensão. Ao anunciar,
por exemplo, em seu artigo 100, que “na aplicação das medidas
levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-
se aquelas que visem ao fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários” a legislação
especial não foi sistemática e tampouco coerente.
Isto porque fez incluir dentre as medidas
socioeducativas do capítulo IV a internação, “que
constitui medida privativa de liberdade” (artigo
121). A contraditória atribuição de fi nalidades
pedagógicas ao encarceramento conduziu parte
da doutrina a conclusões equivocadas:
“ as medidas socioeducativas não podem
ser encaradas como penas, dada a
preponderância de seu aspecto e fi nalidade pedagógica.
Desta feita, devem ter sua aplicação condicionada às
necessidades pedagógicas e voltada ao fortalecimento dos
vínculos familiares e comunitários do adolescente”1;
“ Os métodos para tratamento e orientação tutelares são
pedagógicos, psicológicos e psiquiátricos, visando,
sobretudo, à integração da criança e do adolescente em
sua própria família e na comunidade local”2.
Ao mesmo passo que se dá ênfase ao inexistente caráter
socioeducativo das medidas deixa-se de reconhecer a natureza
eminentemente sancionatória e retributiva da privação da liberdade
juvenil. Como nenhum outro instrumento de controle social, logrou
muito êxito o Estatuto ao atribuir às suas sanções “uma função
positiva de melhoramento do próprio infrator”3. Esta profi ssão de
fé nas teorias da prevenção especial positiva está bem explícita
no artigo 121, § 2º da lei nº 8.069/90, cujo conteúdo ressalva
que a medida de internação “não comporta prazo determinado,
devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão
fundamentada, no máximo a cada seis meses”. Em sendo
a privação da liberdade um bem para o adolescente infrator, que
pela pedagogia da segregação se livrará de todos os males que
o afl ige, é compreensível e até desejável que sua medida seja
aquela necessária para realizar os inúmeros benefícios a que se
propõe. Se, diversamente de seus congêneres, o poder punitivo
empregado contra a juventude cumpre as funções positivas
declaradas nas bases teórica e legislativa que lhe dá sustentação,
melhor que o deixemos livres das amarras constitucionais.
A bem da verdade, não tem outra serventia a repetição do credo
ressocializante senão a de ocultar “a natureza dolorosa da pena
e chega mesmo a negar-lhe o próprio nome, substituído por
sanções ou medidas”4. Negar que a pena, concretamente e em
sua forma de privação de liberdade, seja também sanção típica do
direito menorista pode redundar em prejuízos para o adolescente,
que por esta razão não tem para si resguardado todos os direitos
atinentes a sua condição de sentenciado. E em que pese não
ostente os títulos que a legislação reserva aos maiores de idade
– réu, acusado e criminoso – os espaços
onde a Justiça da Infância e da Juventude
deposita sua clientela guardam notável
semelhança com as penitenciárias e casas
de custódia do país.
Havendo ainda quem duvide disso, convida-
se para uma leitura breve de trechos dos
relatórios que em 2004 e em março de
2006 produziram, respectivamente, a
Human Rights Watch e o Conselho Federal
de Psicologia em parceria com a OAB.
O primeiro, cujo objeto de análise se restringiu aos centros de
detenção juvenil da cidade do Rio de Janeiro e um de Belford
Roxo, oferece resumo contundente daquilo que estas unidades
representam:
“Os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro estão
superlotados, são imundos e violentos e não conseguem
garantir, em praticamente nenhum aspecto, a proteção dos
direitos humanos dos jovens (...)
Além dos espancamentos e dos freqüentes abusos verbais,
os jovens em muitos destes centros de detenção são
trancafi ados em suas celas por períodos de uma a duas
semanas como punição pelos delitos considerados graves
(...). Esta determinação é feita exclusivamente a critério dos
monitores: não há nenhuma audiência, nenhum direito de
recurso e, aparentemente, nenhuma orientação que os
monitores devem seguir para aplicar a punição. (...)
Os centros de detenção juvenil do estado não atendem aos
requisitos básicos de saúde e higiene. Os jovens às vezes
usam as mesmas roupas durante três semanas antes de
serem lavadas (...). À noite, têm que defecar e urinar em
BREVES NOTAS SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADEDA MEDIDA DE INTERNAÇÃO.
RAFAEL CAETANO BORGES*
“E as similitudes entreos diversos relatórios estaduais que, ao fi nal, deram origemà publicação conjunta do CFP e da OAB, jamais poderiamser lidas comomera coincidência.”
1 Melfi , Renata Ceschin, O adolescente infrator e a Imputabilidade Penal, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2008, p. 143.2 Liberati, Wilson Donizeti, Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo, Helvética, 1995, p. 80 apud Melfi , Renata Ceschin, O adolescente infrator e a Imputabilidade Penal, Rio de Janeiro, Lumen Iuris, 2008, p. 143.3 Zaffaroni, Eugênio Raul, Batista, Nilo, Alaglia, Alejandro, Slokar, Alejandro, Direito Penal Brasileiro, v. I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 125.4 Op. cit., p. 126.
77
sacos de plástico porque os monitores não o deixam sair
das celas para ir ao banheiro”5.
Patético que dentre as recomendações encaminhadas ao governo
do Estado tenha sido incluída a de “providenciar sabão para os
jovens, bem como oportunidades adequadas de se banharem”6.
Diante de violações tão fl agrantes a direitos e garantias
fundamentais previstas na Constituição da República de 1988
(v.g: artigo 5º, inc. XLVII, “e”, inc. XLIX) e em inúmeros documentos
internacionais7 – os quais, internalizados pelo direito pátrio (art.
5º, inc. LXXVIII, § 3º), são equivalentes a emendas constitucionais
– soam risíveis certos direitos que o legislador infraconstitucional
elencou no artigo 124 do Estatuto:
XI – receber escolarização e profi ssionalização;
XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XIII – ter acesso aos meios de comunicação social.
Se nem mesmo padrões mínimos de higiene e salubridade são
garantidos nas unidades de segregação fl uminenses, por onde entram
a pedagogia e a ressocialização? Relatos colhidos pela Human Rights
Watch chegam a dar conta do uso de pasta de dentes para fi ns
alimentares: “Eles comem pasta de dente. Estão com fome. Comem
porque estão com fome”8. A precariedade dos estabelecimentos é tão
evidente que “supostamente alguns jovens alegam ser adultos para
evitar a detenção dentro do sistema juvenil”9. Quando descobertos,
“dizem que é melhor estar no sistema penitenciário do Estado,
envolvido, nas últimas semanas, em denúncias de torturas, morte
e corrupção, do que fi car internado nos institutos do Departamento
Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase)”10.
Adotando sistemática distinta, o relatório que produziram
conjuntamente o Conselho Federal de Psicologia e a OAB foi feito
a partir de “incursões simultâneas aos centros de internação de
praticamente todas as unidades da federação”11. A apresentação
do documento, ao apontar a “signifi cativa constatação de que
o ideal sócioeducativo do regime persiste, de fato, ainda como
ideal”12 não se deixa seduzir pelas promessas irrealizáveis do
Estatuto, cujas letras desejaram conciliar privação de liberdade
à panacéia ressocializante. De plano, recomenda que “não deveria
ser economizado esforço para abolir, na medida do possível,
a prisão de jovens”13; no ensejo, reclama da pedagogia e da
psicologia a “desafi adora tarefa de desenhar possibilidades de
intervenção, para casos complexos e resistentes, que possam
prescindir do confi namento como condição necessária de
efetivação”14.
No Estado do Rio de Janeiro a inspeção foi realizada no Instituto
Padre Severino, na Ilha do Governador. A circunstância de as
constatações do relatório mais recente, ainda que relativamente
a apenas uma unidade, pouco discreparem daquelas que a Human
Rigths Watch apresentou há quase quatro anos atrás sugere que a
desumanização dos adolescentes encarcerados seja um objetivo
permanentemente perseguido pelas políticas do Estado:
“Os alojamentos são inadequados, com características de
cela; o ambiente tem pouca ventilação, é quente, pequeno,
alguns exalando mau cheiro.
Foi relatado por adolescentes que estes só saem das ‘celas’
15 minutos por dia e que, às vezes, nem saem. (...)
Um adolescente mostrou sinais de traumatismo toráxico
e afi rmou ter sido efeito de espancamento; outros relataram
ter sofrido tapas, socos e castigos. Reclamam que, às vezes,
a troca de roupas é feita de dez em dez dias”15.
E as similitudes entre os diversos relatórios estaduais que, ao fi nal, deram
origem à publicação conjunta do CFP e da OAB, jamais poderiam
ser lidas como mera coincidência. Retratam o absoluto desprezo
do Estado brasileiro pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e o
resultado da ausência total de políticas públicas na área. Registram-se,
apenas como exemplos, as observações mais representativas:
“A FEBEM – SP é um sistema prisional, pautado pelas
práticas de tortura, negligência e humilhação no trato com
os adolescentes sob a responsabilidade do Estado. (...)
O ambiente é de intensa violência, que atinge os internos
e funcionários, física e psicologicamente, com ausência da
responsabilidade do Estado pela custódia dos adolescentes.
Foi possível observar e entrar em contato com adolescentes
que sofreram castigos físicos e estavam aprisionados em
celas”. (Complexo do Tatuapé, São Paulo/SP)16;
“Os alojamentos são inadequados e precários, construídos
em forma de prisão, ou presídio para adultos, havendo clara
superlotação em cada cela (...)
Denúncia grave de um caso de necessidade de emergência
não atendida: um adolescente baleado, na véspera, estava
sem atendimento adequado, em uma cela superlotada”.
(Centro de Internação de Adolescentes Santa Therezinha,
Belo Horizonte/MG)17;
“Os alojamentos assemelham-se a celas, fora do padrão
internacional exigido pela ONU. Condições de ventilação
e higiene precárias, sendo que estes jovens são obrigados,
no período da noite, a fazer suas necessidades em sacos
plásticos ou garrafas”. (Centro Educacional São Lucas,
São José/SC)18;
“Todos os alojamentos se assemelham a celas, com condições
precárias de higiene e cuidado. São poucos os colchões
disponíveis (...). Os banheiros não possuem condições
mínimas de higiene, não possuindo vasos sanitários nem
portas divisórias separando a latrina do local destinado
ao banho”. (Centro Sócio-educativo Dagmar Feitosa,
Manaus/AM)19;
“Na ala 2, a primeira a ser visitada, constatou-se a total falta
de asseio. Os quartos na realidade são celas, local destinado
ao isolamento dos internos, onde se encontravam 16
adolescentes, que reclamaram de violência física praticada
por policiais do Batalhão de Choque da PM, chamado pela
direção da Unidade”. (Centro de Atendimento ao Menor,
Aracaju/SE)20.
Torna especialmente grave os relatos produzidos, prova cabal de
inadmissível descumprimento da lei nº 8.069/90, o limite etário de
imputabilidade fi xado na Constituição da República de 1988 (artigo
228). Trata-se de relatos feitos a partir de inspeções a unidades
5 Human Rights Watch, Brasil, “Verdadeiras Masmorras”, Detenção Juvenil no Estado do Rio de Janeiro, p. 1. –– 6 Human... p. 10. –– 7 Dentre as normas internacionais ratifi cadas mais pertinentes, destacam-se: Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente; Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. –– 8 Human..., p. 48. –– 9 Human..., p. 42. –– 10 Human..., p. 43. –– 11 Conselho Federal de Psicologia e Ordem dos Advogados do Brasil, Direitos Humanos, um retrato das unidades de internação de adolescentes em confl ito com a lei. –– 12 Direitos Humanos..., p. 7. –– 13 Direitos Humanos..., p. 9. –– 14 Idem. –– 15 Direitos Humanos..., p. 26. –– 16 Direitos Humanos..., p. 24. –– 17 Direitos Humanos..., p. 29. –– 18 Direitos Humanos..., p. 43. –– 19 Diretos Humanos..., p. 54. –– 20 Direitos Humanos..., p. 104.
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de internação destinadas a privar da liberdade adolescentes em
confl ito com a lei. Portanto, espaços estatais que submetem
a penas privativas de liberdade pessoas presumidas pelo texto
constitucional como inimputáveis. E se é certo que a tais pessoas,
em razão de sua idade, não se pode imputar a prática de
condutas criminosas, não deveria ser menos certo que também
não pudessem se sujeitar à pena de prisão
No ordenamento jurídico-penal brasileiro a pena, gênero do
qual a privação da liberdade é espécie, é sanção reservada
a sujeitos ativos imputáveis. Reserva-se a mais coercitiva das
medidas àquele que “dotado de certa dose de autodeterminação
e de compreensão (imputabilidade) que o tornava apto a frear,
reprimir, ou desviar sua vontade, ou o impulso que o impelia
para o fi m ilícito (possibilidade de outra conduta) e que, apesar
disso, consciente e voluntariamente (dolo), ou com negligência,
imprudência ou imperícia (culpa stricto sensu), desencadeou
o fato punível”21. Pois bem, por força do que o próprio legislador
constituinte originário estabeleceu na Constituição da República
de 1988, este juízo de reprovação – pressuposto para aplicação
da pena – não pode sequer ser realizado quando o sujeito ativo
de determinado ilícito é uma criança ou um adolescente.
Recai sobre eles presunção absoluta de inimputabilidade
e, sob quaisquer hipóteses, são tidos como incapazes de se
autodeterminar e, portanto, compreender o caráter lícito/ilícito
de suas atitudes.
Entendida como o conjunto de condições pessoais de sanidade
e maturidade que dão ao agente a capacidade de lhe ser
juridicamente imputada a prática de um ato punível, no Brasil
a imputabilidade não alcança os menores de idade. Outrossim,
também não alcança aqueles que, “por doença mental ou
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender
o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento” (artigo 26, caput, Código Penal). No ponto, foi mais
preciso o legislador. Isentou de pena, expressamente, o agente
que ostentar tais condições. E em sendo ambos inimputáveis
– o menor e o débil mental – não há dúvida que a isenção
de pena prevista no dispositivo aproveita ao primeiro tanto quanto
ao segundo.
A aparente perplexidade sugerida por um sistema que preconiza
a inimputabilidade e, simultaneamente, medidas privativas de
liberdade para menores infratores não passou despercebida
por Fragoso:
“Diz a lei que os menores de 18 anos são inimputáveis,
fi cando sujeitos às normas estabelecidas na legislação
especial (art. 27, CP; e art. 228, CF). Em realidade, a questão
não é de imputabilidade, ou seja, de capacidade de culpa.
Os menores estão fora do direito penal e não podem ser
autores de fatos puníveis”22.
Parece verdadeiro que, ao menos em tese, estejam os menores
fora do direito penal. Ocorre, porém, que foi a própria Constituição
da República de 1988 que, privando-os desse ramo do direito,
o fez a partir de considerações atinentes à sua imputabilidade.
Artigo 228 – São penalmente inimputáveis os menores de
dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
E a sujeição dos menores à legislação especial não pode tornar
uma meia-verdade a inimputabilidade consagrada. Coloca-se
o adolescente sob o manto do Estatuto da Criança e do Adolescente
(legislação especial aplicável) considerando-se, desde logo,
tratar-se de pessoa inimputável. Sendo assim, sem capacidade
de culpa e evidentemente infenso às sanções típicas do direito
penal comum.
Transcendendo de toda a discussão acerca da questão humanitária,
padece de irracionalidade lógica o desejo de promover a contenção
de agentes incapazes de se autodeterminar pelas vias repressiva
e segregadora.
Já é um passo signifi cativo reconhecer-se que o Estatuto da
Criança e do Adolescente, a despeito de todas as previsões
protetivas que traz em seu bojo, sustenta a aplicação da
medida de internação como instrumento de promoção da
dignidade do jovem infrator. À notória contradição, tanto mais
quando se faz acompanhar por elementos colhidos no dia
a dia da realidade nacional, segue-se, quase que naturalmente,
saudáveis inquietações. Incompreende-se que se prossiga
atribuindo funções positivas, ainda que em plano ideal, a um
sistema comprovadamente cruel e perverso. E não se diga que
a questão é conjuntural ou localizada. Afi nal, como se viu, suas
falhas persistem sob quaisquer condições de tempo, espaço ou
circunstância política.
Apesar de afrontado, permanece o texto constitucional como
referência segura para a realização plena dos direitos da criança
e do adolescente, dentre os quais se inclui a inimputabilidade
e todos os desdobramentos dela advindos – notadamente
a proibição de os submeter a penas privativas de liberdade, pouco
importando se sob o falso pretexto de ressocializá-los ou reinseri-
los na sociedade.
21 Toledo, Francisco de Assis, O erro no direito penal, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 8.22 Fragoso, Heleno Cláudio, Lições de Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 197.
*RAFAEL CAETANO BORGESAdvogado criminal graduado pela UERJ. Trabalha no escritório Nilo Batista & Advogados Associados.