S117
1. Doutora em Medicina pela Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto.Professora de Pediatria, Faculdade de Medicina, Universidade Federaldo Rio Grande do Sul. Presidente do Departamento Científico de Aleita-mento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria.
2. Doutor em Saúde Pública, Universidade da Califórnia, Los Angeles,EUA. Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medi-cina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte,MG. Professor orientador do Programa de Pós-graduação em Saúde daCriança e do Adolescente da UFMG.
Como citar este artigo: Giugliani ERJ, Lamounier JA. Aleitamentomaterno: uma contribuição científica para a prática do profissional desaúde. J Pediatr (Rio J). 2004;80(5 Supl):S117-S118.
As mudanças mais radicais de todos os tempos na
alimentação infantil ocorreram entre 1850 e 1970, época emque o leite materno foi gradativamente sendo substituído porleites de outras espécies, cada vez mais modificados natentativa de �assemelharem-se� ao leite humano. A introdu-ção dos substitutos para o leite humano representa, semdúvida, o maior experimento in vivo não-controlado1. Segun-do Moysés Paciornik, nenhuma função humana foi tão agre-dida, modificada, artificializada quanto a amamentação2. Emresposta ao crescente abandono da prática da amamentaçãoe diante das denúncias das conseqüências desastrosas paraa saúde infantil da utilização indiscriminada de leites indus-trializados, especialmente em populações desprivilegiadas,iniciou-se, na década de 70, um movimento que visava àretomada da amamentação como forma preferencial de ali-mentar a criança pequena3. Mas, para isso, seria necessárioconscientizar as pessoas sobre os benefícios da amamenta-ção, provando que o leite de outras espécies usado emsubstituição ao leite que a natureza havia levado milhões deanos aperfeiçoando poderia aumentar o risco de agravo àsaúde das crianças. Assim, despertou-se o interesse decientistas de todo o mundo, que passaram a estudar váriosaspectos do leite humano e da amamentação. Como resulta-
Aleitamento materno: uma contribuição científicapara a prática do profissional de saúde
Breastfeeding: a scientific contribution to the practice of health care providers
do, foi construído um amplo referencial teórico provando,inequivocamente, a superioridade do leite materno sobre osseus pretensos substitutos. No entanto, apesar de todo oavanço científico e dos esforços de diversos organismosnacionais e internacionais, as taxas de aleitamento maternono Brasil, em especial as de amamentação exclusiva, estãobastante aquém do recomendado. A mediana de amamenta-ção no Brasil é de 10 meses, e de amamentação exclusiva, deapenas 23 dias4, contrastando com a recomendação interna-cional de amamentação exclusiva por 6 meses e complemen-tada por 2 anos ou mais5.
Não basta a mulher estar informada das vantagens doaleitamento materno e optar por esta prática. Para levaradiante sua opção, ela precisa estar inserida em umambiente favorável à amamentação e contar com o apoio deum profissional habilitado a ajudá-la, se necessário. Masnem sempre o profissional de saúde tem conhecimentos ehabilidades suficientes para manejar adequadamente asinúmeras situações que podem servir de obstáculo à ama-mentação bem-sucedida, em parte porque o aleitamentomaterno é uma �ciência� relativamente nova, e nem sem-pre são disponíveis materiais didáticos apropriados sobre oassunto. Um estudo recente mostrou que, em sete livros-texto de pediatria americanos publicados entre 1999 e2002 (vários deles amplamente utilizados no Brasil), asinformações sobre aleitamento materno, quando não omi-tidas, variavam e, por vezes, eram inacuradas e inconsis-tentes6. Por exemplo, nenhum dos livros recomendavaaleitamento materno complementado por no mínimo 1 ano,apenas um recomendava aleitamento materno exclusivopor 6 meses, apenas dois recomendavam o início daamamentação na primeira hora de vida e informavamcorretamente as contra-indicações à amamentação e so-mente três abordavam o manejo do ingurgitamento mamá-
0021-7557/04/80-05-Supl/S117Jornal de PediatriaCopyright © 2004 by Sociedade Brasileira de Pediatria
EDITORIAL
Elsa R. J. Giugliani1 Joel A. Lamounier2
S118 Jornal de Pediatria - Vol. 80, Nº5(supl), 2004
rio. Este suplemento, portanto, tem como finalidade dispo-nibilizar conhecimentos atualizados sobre aleitamentomaterno, importantes para o pediatra e outros profissionaisque trabalham com mães/bebês.
O primeiro artigo do suplemento busca ampliar a compre-ensão sobre a natureza híbrida (biologia-cultura) do aleita-mento materno. Segundo os seus autores, �a amamentação,além de biologicamente determinada, é socioculturalmentecondicionada, tratando-se, portanto, de um ato impregnadode ideologias e determinantes que resultam das condiçõesconcretas de vida�. Esse entendimento é importante para secompreender o comportamento das mulheres (e de pessoasno seu entorno) frente à amamentação.
Para promover, proteger e apoiar a amamentação comeficiência, o profissional de saúde, além do conhecimentoem aleitamento materno e competências clínicas, precisater habilidade em se comunicar eficientemente com anutriz. O artigo �Aconselhamento em amamentação e suaprática� aborda os princípios básicos dessa forma de atua-ção, que implica acolher e ajudar a mulher a tomar decisõesde forma empática, saber ouvir e aprender, desenvolver aconfiança e dar apoio.
A partir dos 6 meses, recomenda-se que a criançacomece a receber outros alimentos, mas que mantenha aamamentação por 2 anos ou mais. Juntos, o leite maternoe os alimentos complementares são fundamentais para ocrescimento e o desenvolvimento ótimos da criança. Devi-do à importância do tópico e em função das mudançassignificativas nas atuais recomendações alimentares decrianças amamentadas em relação às recomendações an-teriores, este suplemento incluiu um artigo que trataespecificamente sobre este tema, apresentando as evidên-cias que embasam essas recomendações.
Os benefícios do aleitamento materno para a criança têmsido bem mais estudados do que os benefícios para a mulherque amamenta. Apesar disso, já são conhecidos algunsefeitos positivos da amamentação para a saúde da mulher.Embora o foco da prática clínica do pediatra seja a criança, elecom freqüência opina sobre assuntos relacionados à saúde danutriz. Por isso, é muito útil que esse profissional conheça asvantagens que a amamentação traz à mãe, as quais sãoabordadas no artigo �Benefícios da amamentação para asaúde da mulher�.
Além de conhecer bem as vantagens da amamentaçãopara a criança e sua mãe, todo profissional que atende mãe/bebê, incluindo o pediatra, deve ter conhecimento sobre aprevenção e o manejo dos principais problemas decorrentesda lactação. Ingurgitamento mamário, traumas mamilares,mastites, entre outros, são fonte de sofrimento para a mãeque amamenta, podendo determinar o desmame precoce. Noentanto, a maioria dos livros-texto de pediatria não forneceas informações necessárias para o manejo adequado dessesproblemas. O artigo �Problemas comuns na lactação e seumanejo� aborda aspectos técnicos e práticos necessários paraa atuação do profissional frente a esses problemas.
Outro tópico pouco explorado na literatura refere-se àsdisfunções orais do recém-nascido. Cabe principalmente aopediatra diagnosticar precocemente esse transtorno e mane-já-lo adequadamente. Para isso, é preciso conhecer a fisiolo-
Aleitamento materno: uma contribuição científica... � Giugliani ERJ e Lamounier JA
gia normal da sucção do recém-nascido e saber avaliarcriticamente a técnica da amamentação. O artigo �Manejoclínico das disfunções orais na amamentação� objetiva con-tribuir para a capacitação do profissional para o manejoclínico adequado das disfunções orais.
Hoje já é consenso a opinião de que o leite materno éparticularmente importante na alimentação do recém-nasci-do prematuro. Apesar disso, em geral é baixa a incidência deêxito na amamentação de prematuros, especialmente emunidades neonatais de risco. O artigo �Aleitamento maternoem prematuros: manejo clínico hospitalar� contribui para queo profissional de saúde tenha mais recursos para enfrentar odesafio que é tornar factível a oferta de leite materno aosrecém-nascidos pré-termo. Um dos fatores facilitadores daamamentação do prematuro é o Método Mãe Canguru, objetode um outro artigo deste suplemento. O artigo �Método MãeCanguru: aplicação no Brasil, evidências científicas e impactosobre o aleitamento materno� aborda alguns aspectos práti-cos do método, bem como apresenta as evidências científicassobre os benefícios dessa prática.
Muitas vezes, o pediatra se vê diante da situação angus-tiante de ter que contra-indicar a amamentação. Por isso, eletem que estar seguro quanto à indicação de suspensão daamamentação, mesmo que temporariamente. Os artigos�Recomendações quanto à amamentação na vigência deinfecção materna� e �Uso de medicamentos durante a lacta-ção� discutem detalhadamente as situações que podemcolocar em risco a criança amamentada, dando subsídios paraque o profissional possa avaliar os riscos e os benefícios daamamentação nessas situações.
Por último, incluiu-se um artigo que dá subsídios aopediatra e outros profissionais para discutir, com embasa-mento científico, a crença corrente, principalmente entre osodontólogos, de que o aleitamento materno está associado acáries. O artigo �Aleitamento materno e cárie do lactente e dopré-escolar: uma revisão crítica� analisa os vários estudosepidemiológicos que investigaram uma possível relação entrealeitamento materno e cárie. Com essas informações, oprofissional pode posicionar-se e argumentar sobre o tópico.
Acreditamos que este suplemento, além de bastanteoportuno, constitui importante contribuição ao movimentode resgate à �cultura e prática da amamentação� em nossopaís.
Referências
1. Hambraeus L. Leites industrializados versus leite humano naalimentação do lactente. Uma apreciação crítica do ponto devista nutritivo. Clínicas Pediátricas da América do Norte.1977;24:17-36.
2. Paciornik M. Aprenda a nascer e a viver com os índios. Rio deJaneiro: Ed. Rosa dos Tempos; 1997.
3. Jelliffe DB, Jelliffe EFP. Human milk in the modern world. 2nd ed.Oxford: Oxford University Press; 1978.
4. Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Área deSaúde da Criança. Prevalência de aleitamento materno nascapitais brasileiras e no Distrito Federal. Brasília: Ministério daSaúde; 2001.
5. World Health Organization [site na Internet]. Nutrition andinfant feeding. Disponível em: http.//www.who.int/child-adol-health/nutrition/infant_exclusive.htm. Acessado em: 30/09/2004.
6. Philipp BL, Merewood A, Gerendas E, Bauchener H. Breastfeedinginformation in pediatric textbooks needs improvement. J HumLact. 2004;20:206-10.