1
ALDA REGINA REVOREDO ROBOREDO
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS
FACULDADE AUTÔNOMA DE DIREITO – FADISP
Programa de Mestrado em Função Social do Direito
São Paulo - 2007
2
ALDA REGINA REVOREDO ROBOREDO
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS
Dissertação de Mestrado apresentada à
Banca Examinadora da Faculdade
Autônoma de Direito – FADISP, como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Função Social do Direito, sob a
orientação da Professora Dra. Tânia Mara
Ahuali.
SÃO PAULO
2007
3
A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
E AS CLÁUSULAS ABUSIVAS
por
Alda Regina Revoredo Roboredo
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre, no
Programa de Mestrado em Função Social do
Direito da Faculdade Autônoma de Direito –
FADISP, à Banca Examinadora formada
pelos seguintes examinadores:
_______________________________
________________________________
_________________________________
4
Ao meu grande mestre Jesus Cristo, por ter
permitido que eu chegasse até aqui, tendo ao meu lado a
presença de pessoas tão especiais;
Acácio, meu amor, companheiro de todas as
horas, exemplo de advogado, que todos os dias me
ensina e me incentiva. Sem você não teria chegado até
aqui;
Aos meus filhos Mariana e Acacinho, por terem
conseguido entender que os sonhos podem ser
realizados quando há determinação, e principalmente por
terem superado essa fase marcada por tanta ausência!
Obrigado, pelo carinho e pela paciência que
tiveram!
5
Á Dra. Thereza Alvim agradeço não só pelos
ensinamentos, mas também pela acolhida nessa
respeitada faculdade, o que muito me honra!
Ao professor Dr. Everaldo Augusto Cambler,
os mais sinceros agradecimentos pela dedicação e pelas
aulas maravilhosas de Responsabilidade Civil.
6
RESUMO
O contrato sempre foi e continuará sendo instrumento de extrema
importância para a circulação de riquezas na sociedade. O Código Civil reflete
os valores e princípios consagrados na Constituição Federal e dessa forma todos
os institutos jurídicos, dentre eles o contrato, passam a cumprir uma função
social.
Nota-se um enfraquecimento do princípio da força obrigatória dos
contratos (pacta sunt servanda) a partir da intervenção do Estado na relação
entre particulares. O Código Civil vigente, pautado nos pilares da socialidade,
eticidade e operabilidade, determina que os contratantes observem o princípio
da boa-fé objetiva. Nesse contexto não se admite cláusulas abusivas nos
contratos.
O Código Civil prevê as situações onde será permitida a revisão ou a
resolução do contrato. Isso já ocorria no Código de Defesa do Consumidor que
contém um rol exemplificativo de cláusulas abusivas. Nos contratos civis, não
havendo previsão expressa, o intérprete e aplicador da lei poderá valer-se das
cláusulas gerais e ainda da Lei de Introdução ao Código Civil para coibir a
prática de abusos. Dessa forma preserva-se o contrato para que o mesmo atinja
sua finalidade, qual seja o interesse dos contratantes e a sua função social.
O objetivo dessa dissertação consiste em estudar a função social do
contrato como cláusula geral que contribuirá para coibir a prática de cláusulas
abusivas nos contratos civis.
7
ABSTRACT
A legal contract has always been and it will always be a tool of great
importance for the circulation of wealth in society. The Civil Code mirrors the
values and principles laid down by the Federal Constitution and thus, all judicial
powers, such as the contract, embody a social function.
The binding power of contracts (pacta sunt servanda) may be
weakened by the intervention of the State in the negotiations between parties.
The present legal code, based on the pillars of sociality, eticity and operability
determines that the contractors obey the principles of objective good faith.
No abusive clauses are allowed within this context. The Civil Code
foresees the instances where the revision or resolution of the contract is allowed.
This situation has already been observed in consumer affair regulations, with
examples of clauses considered to be abusive. In Civil contracts, without
expressed provisions, the interpreter and enforcer of the law can make use of
general clauses or apply the Introduction Law of the Civil Code to moderate the
practice of such abuses. In this way, the contract is preserved so that it can reach
its goal, which is that of assisting the contractors in the fulfillment of their social
goals.
This dissertation has as its objective the study of the social function
of contracts as general clauses that may contribute to moderate the practice of
abusive clauses in civil contracts.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................... 9 CAPÍTULO I - NOÇÕES GERAIS HISTÓRICAS.............................................. 11 1.1. A Revolução Francesa e o Contrato..................................................... 19 CAPÍTULO II – O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE CIRCULAÇÃO DE RIQUEZAS NO ESTADO LIBERAL................................................................. 24 2.1. O conteúdo econômico do contrato....................................................... 26 2.2.O individualismo e o princípio da força obrigatória dos contratos.......... 28 2.3. A minimização do princípio da força obrigatória dos contratos............. 33 CAPÍTULO III - ESTADO SOCIAL DE DIREITO E OS DESAFIOS DO DIREITO CONTRATUAL............................................................................................... 41
3.1. A Crise no Direito Contratual................................................................ 50 3.2. Dirigismo Contratual............................................................................. 55 3.3. Constitucionalização do Direito Privado............................................... 67 3.3.1. Código de Defesa do Consumidor e o Contrato......................... . 75 3.3.1.1. Limites de aplicação...................................................... 81 3.3.1.2. Algumas Comparações com o Código Civil.................. 87 CAPÍTULO IV - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.............................. 91
4.1. Origem Constitucional......................................................................... 98 4.2. Unificação das obrigações Civis e Comerciais................................... 104 4.3. A Função Social e a limitação da liberdade contratual....................... 107 4.4. Da eficácia da aplicação da Função Social do Contrato................... 119 4.4.1. A boa-fé objetiva...................................................................... 130 4.5. Função econômica do contrato e a segurança jurídica....................... 141 CAPÍTULO V – CLÁUSULAS ABUSIVAS....................................................... 150 5.1. Controle das cláusulas abusivas........................................................ 171 5.2. A importância da Lei de Introdução ao Código Civil na interpretação
dos contratos .....................................................................................179 CONCLUSÃO.................................................................................................. 185 REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA..................................................................... 189
9
INTRODUÇÃO
A sociedade não é estática e sofre constantes transformações, as quais
refletem no comportamento dos indivíduos e, consequentemente, nos valores que
são aceitos pelos integrantes desse grupo.
Para a compreensão desses valores, sem adentrar na seara filosófica,
podemos traduzi-los como qualidade, que torna algo inestimável, o que, por si, já
revela a grandiosidade e a importância do seu reconhecimento por toda sociedade.
Para serem respeitados, exigidos e cumpridos, faz-se necessária, a proteção
jurídica, para que os valores se tornem invioláveis.
Nesse contexto, faz-se necessário um sistema jurídico aberto, que dê
guarida a esses valores e, ao mesmo tempo, seja capaz de permitir a inserção de
novos valores, na medida em que a sociedade assim exija, a fim de garantir, que os
indivíduos recebam, efetivamente, a tutela jurisdicional.
Outra não poderia ser a solução encontrada pelo legislador, que
acertadamente nos presenteou com um novo Código Civil pautado nos princípios da
socialidade, da eticidade e da operabilidade, onde a interpretação do direito vincula-
se à observação de valores sociais, éticos e morais, consagrados na Constituição
Federal de 1988, sobretudo o valor fundamental do nosso ordenamento jurídico,
qual seja: a pessoa humana.
O Código Civil vigente, através das cláusulas gerais, atribuiu ao Contrato o
escopo ético-jurídico da função social e, da mesma forma, exige a observação da
boa-fé em todos os negócios jurídicos. Preservou os princípios inerentes ao
10
contrato e, mesmo tendo ocorrido uma mitigação no princípio da força obrigatória
dos contratos, esse instrumento conserva, na sua essência, o cunho econômico,
que permite o desenvolvimento da sociedade.
Nosso ordenamento jurídico repudia todo tipo de exploração do homem pelo
homem, como verificamos em vários preceitos do Código Civil, a exemplo da
proibição do enriquecimento sem causa, da resolução do contrato por onerosidade
excessiva, entre outros, e, ainda, através das cláusulas gerais, que também servirão
de instrumentos de apoio no combate à abusividade.
Através desse estudo, buscar-se-á demonstrar que, embora o Código Civil
não preveja um rol exemplificativo de cláusulas consideradas abusivas, tal como
ocorre no Código de Defesa do Consumidor, não há que se aplicar regras desse
diploma aos contratos civis, considerando que o aplicador da lei poderá se utilizar,
também, da Lei de Introdução ao Código Civil, para impedir a prática de abusos.
Finalmente, pretendemos demonstrar que o contrato deve ser preservado, a
satisfação do interesse dos particulares garantida, as obrigações devem ser e
permanecer equilibradas, a prática de abusos há de ser coibida e, a segurança
jurídica, mantida em todos os negócios jurídicos, tudo para que a paz social seja
alcançada.
Da mesma forma, tem-se como objetivo demonstrar que a aplicação da
cláusula geral não poderá servir como máscara para esconder o inadimplente, uma
vez que o contrato, quando cumprido surte efeitos que repercutem no
desenvolvimento da sociedade, objetivo constitucional a ser perseguido.
11
CAPÍTULO I - NOÇÕES GERAIS HISTÓRICAS.
É fato que o surgimento do contrato remonta há alguns séculos1, numa
época em que a humanidade já havia demonstrado alguma evolução, tendo
abandonado a fase da barbárie, embora não se tenha notícia de qual seja a data
exata do seu aparecimento2.
Pela riqueza de conteúdo e inquestionável influência exercida sobre o
ordenamento jurídico de inúmeras nações, tomaremos como referência o Direito
Romano, que pode representar, sem medo de errar, um ponto de partida para o
estudo dos contratos, pois o modelo e a estrutura dos contratos, dele advindos,
foram utilizados pelo mundo ocidental, justamente por ser reconhecido como modelo
de civilização jurídica.
A palavra contractus significa contrair, sendo que, no Direito Romano, outros
termos eram utilizados para o mesmo fim, tais como conventio, cum venire e pacis
si, cujos significados seriam convenção, vir junto e pacto, enfim, todas estas
expressões traduziam o “estar de acordo3”.
É sabido que no direito romano a noção do contrato (contractus), tem um
sentido mais restrito, na medida em que dizia respeito apenas e tão somente a criar
1 Arnold Wald. O contrato: Passado, Presente e Futuro. Revista Cidadania e Justiça: 1º semestre de 2000. RJ. Publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros. Pág. 43. “Poucos institutos sobreviveram por tanto tempo e se desenvolveram sob formas tão diversas quanto o contrato, que se adaptou a sociedades com estruturas e escala de valores tão distintas quanto às que existiam na Antiguidade, na Idade Média, no mundo capitalista e no próprio regime comunista”. 2 Pablo Stolze Galgliano e Rodolfo Pamplona Filho.Novo Curso de Direito Civil. Contratos. Pág 2. “Não podemos fixar, ao longo da história, uma data específica de surgimento do contrato e a sua ocorrência confunde-se com a própria evolução moral da humanidade, a determinação de uma data ou de um período predefinido seria formulação de alquimia jurídica, sem validade científica”. 3 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Pág.364.
12
obrigações4, enquanto que o pacto (pactum, conventio) não tinha essa
especificidade.
Todos esses termos traduziam o acordo entre duas ou mais pessoas acerca
de um objeto, porém não bastavam por si só para que surgisse uma obrigação5
juridicamente exigível.
Quanto à obrigação que surgia desse acordo de vontades, ressaltamos a
sua diferença em relação ao direito moderno, uma vez que, enquanto, no direito
romano, o contrato servia apenas para criar a obrigação, no direito moderno, o
contrato não só cria, mas também regula, modifica, ou extingue as relações
jurídicas.
Verificamos que nessa fase as formas tinham uma importância tão grande
que eram equiparadas a um sacramento, dado o rigor com que eram exigidas,
mesmo que essas não expressassem, exatamente, a vontade das partes. Assim,
além da vontade propriamente dita era exigido o cumprimento de fórmulas.
Essas fórmulas consistiam na troca de determinadas palavras como, por
exemplo, spondesne (prometes?) indagação de um contratante e o outro contratante
então respondia com outra fórmula6, spondeo (prometo!).
Assim como na época da Lei das XII tábuas, em que a intenção das partes
se materializava, através das palavras minuciosamente pronunciadas, no Direito
4 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano. Pág. 108. “Somente em textos pós-clássicos ou interpolados o termo contractus indica negócios, que não são acordos de vontade, ou relações que não nascem do acordo de vontades”. 5 José Cretella Junior. Curso de direito romano: O Direito Romano e o Direito Civil Brasileiro. Pág. 246. “Menciona o autor que apenas os contratos ditos consensuais se formavam pelo mútuo consentimento, os quais, por essa característica, eram tidos como insólitos nesse sistema contratual. Tais contratos eram quatro: venda, locação, mandato e sociedade”. 6 J.M. Leoni Lopes de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil. Pág.549.
13
Romano7 as formas, obrigatoriamente, deveriam ser exteriorizadas, cumprindo-se,
detalhadamente, as respectivas solenidades.
Percebemos então que, no Direito Romano, o contrato já estava estruturado
a partir do acordo de vontades, que gerava obrigação (ressaltando o caráter
personalíssimo da obligatio), desde que exteriorizasse uma forma correlata às
categorias de contrato até então reconhecidas, verbis, re ou litteris.
Nessas categorias de contratos, o elemento formal, ou seja, a observância
das formas prescritas, no sentido de minucioso exercício de um ritual de celebração,
prevalecia sobre a vontade propriamente dita.
Eram denominados verbis, quando demonstrava o elemento formal através
de palavras sacramentais, através do pronunciamento de fórmulas obrigatórias pelas
partes contratantes. Já o contrato re atrelava-se a entrega do objeto, que se
denominava traditio, enquanto que o contrato litteris, pressupunha celebração por
meio da inscrição material prevista no livro, no codex.
Em fase posterior, o freqüente uso de pactos de venda, locação, mandato e
sociedade, deu ensejo ao surgimento de contratos realizados com base somente no
acordo de vontades, daí porque, durante algum tempo, somente esses contratos
eram reconhecidos como consensuais, sendo que existia ação (actio)
correspondente a esses quatro pactos, o que significava uma ação própria a cada
um deles.
7 Idem. “Analogamente a outros institutos do direito romano, o contrato também tem sua história que se desenvolve por mais de mil anos de contínuas transformações. Não havendo como vimos um só direito romano, mas como que vários direitos romanos, porque o império atravessou os tempos, preservando em suas linhas gerais o extraordinário monumento jurídico, é fácil concluir que o contrato dos primeiros tempos se apresenta com fisionomia bem diversa da que caracteriza, por exemplo, nos período clássico e justinianeu. Do formalismo para o não-formalismo, do apego excessivo à forma para um abrandamento ininterrupto, em benefício do conteúdo, da intenção das partes – eis o sentido exato da evolução contratual do direito romano”.
14
O Direito Romano estruturou ao lado do contractus a figura do pactum e
para este não havia possibilidade de ação, sendo que ambos eram inseridos
genericamente na palavra conventio, e, quanto a essa expressão, parte da doutrina
ensina tratar-se de gênero do qual o contrato é espécie8.
Como bem expressa Silvio de Salvo Venosa9, “Cada uma dessas
convenções, sob certas formalidades, constituía um contractus”, o que significa que
não havia uma teoria geral aplicada aos contratos, mas apenas alguns tipos de
contratos.
A importância da distinção entre contractus e pactum consiste nos efeitos de
cada um e, a esse respeito, o Ministro José Carlos Moreira Alves10 esclarece, com
muita sabedoria e simplicidade, que o pactum não gerava obrigação, mas sim
exceção e, por essa razão, não era tutelado por uma ação (actio), mas, de modo
indireto, por uma exceptio.
Percebemos que, nesta fase histórica, o formalismo sobrepunha-se ao
elemento subjetivo da vontade11, de modo que qualquer convenção, revestida das
formalidades obrigatórias, passa a ser exigível e, a partir de então, denominada
stipulatio.
8 Caio Mario. Lesão nos Contratos. Pág. 9. “... Todos, porém, genericamente batizados de conventiones, expressão que revive em Pothier, como gênero, do qual o contrato é uma espécie, como ainda no nosso Teixeira de Freitas (art. 1.830 da Consolidação).” 9 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. pág 365. “A solenidade dava força às convenções. Cada uma dessas convenções, sob certas formalidades, constituía um contractus. Não conhecia, portanto o Direito Romano uma categoria geral de contrato, mas somente alguns contratos em particular”. 10 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano. Pág. 110. 11 Clóvis Veríssimo do Couto e Silva. A obrigação como processo. Pág. 225. “A determinação do direito pela atividade processual e o rígido formalismo, que marcaram caracteristicamente a primeira fase do direito romano, fizeram com que, mesmo no período clássico, a vontade fosse sempre considerada como algo fático, não se reconhecendo, à sua autonomia a posição de princípio jurídico”.
15
Isso significa que, durante o período denominado “direito clássico”, em sede
de contrato, o pressuposto, que faz surgir a obrigação, não era o elemento subjetivo
(vontade), mas sim o elemento objetivo, traduzido na estrita observância das
formalidades, ou seja, nesse período não eram reconhecidos os princípios da
autonomia da vontade e do consensualismo.
Somente mais tarde passa-se a conhecer outros contratos12, que não os
formais, entre os quais, cita a doutrina, aqueles considerados reais, tais como o
depósito, comodato, mútuo e penhor, bem como também a categoria dos
denominados consensuais, em que se inserem a venda, o arrendamento, o mandato
e o contrato de sociedade.
Dessa forma podemos entender que o Direito Romano, num primeiro
momento, concebeu apenas os contratos obrigatórios, que geravam obrigações, e,
fazendo uma comparação com o direito moderno, restringiam-se apenas aos típicos
ou nominados13.
Em relação à possibilidade de resolução14 de um contrato, por razões
decorrentes de situações que, hoje, se assemelham ao que chamamos onerosidade
excessiva, enriquecimento injusto ou em razão da existência de cláusula abusiva,
12 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. “Posteriormente, na história romana, foram sendo reconhecidos outros pactos, que se utilizavam para certos negócios. Só com Justiniano é que se confere uma ação (actio praescriptis verbis) para qualquer convenção entre as partes (contratos inominados)”. 13 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano. Pág 108. “Quanto aos contratos obrigatórios (aos quais, em geral, nos referimos somente com o termo contrato), o direito moderno, ao lado dos contratos típicos ou nominados (acordo de vontades que se ajustam a um dos tipos de contrato descritos na lei), admite amplamente os contratos atípicos ou inominados (acordos de vontade que não se amoldam, estritamente, a nenhum dos tipos estabelecidos na lei, mas que se destinam a constituir relações jurídicas obrigacionais merecedoras de tutela, segundo a ordem jurídica)”. 14 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos contratos típicos e atípicos. Pág. 39. “No século III da era cristã, com a Constituição de Diocleciano e Maximiliano, teria surgido à idéia de que um contrato poderia resolver-se, quando trouxesse desvantagens para um dos contratantes. Acontecia no caso de venda de imóvel, quando o vendedor fosse forçado a vendê-lo, em condições desvantajosas, por preço inferior à metade de seu valor real”.
16
imposta por uma das partes ao outro contratante, há registros de que, no século III
da era cristã, algo parecido já era praticado.
Aliás, quanto ao aspecto histórico das cláusulas abusivas, não podemos
deixar de mencionar que as mesmas são repudiadas, já há muitos séculos pelas
sociedades, como se observa dos registros históricos no Código de Hamurabi15.
Com a evolução, a stipulatio romana transforma-se na traditio cartae, onde
se exige a entrega do documento e, portanto, estamos falando, nesta fase, da
preponderância da forma escrita.
Para suprir as possíveis falhas do ius civile, havia a figura do pretor, a quem
cabia intervir, diante do caso concreto, efetuando o preenchimento das possíveis
lacunas do ordenamento16.
Essa intervenção acontecia através de editos, afixados nos tribunais, em
tábuas, com a finalidade de indicar as fórmulas, que seriam apreciadas, desde que
corretamente pleiteadas, bem como indicavam, também, as condições, que
deveriam ser preenchidas para que o pleito fosse atendido.
Lembramos que esses pretores normalmente eram eleitos para o período de
um ano e, portanto, com investidura era temporária, desempenhavam o papel do
magistrado. Após esse período, os editos contendo as fórmulas por eles
15 Raimundo Mendes. A proteção do consumidor, segundo Hammurabi.Pág.166-168. “Esse escrito compreendido entre 1955 a 1913 a.C.compreendia disposições acerca da regulamentação da atividade comercial no que tange a preços, quantidade e qualidade de produtos. Desse Código podemos mencionar o seguinte dispositivo: ‘(...) e o inquilino deu ao proprietário (da casa) toda a prata do aluguel de um ano, (se) o proprietário da casa disse ao inquilino para sair antes de terminar o prazo, o proprietário da casa (dará) a prata que o inquilino (lhe) deu, porque (fez) o inquilino sair de sua casa antes de terminar o prazo”. 16 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Pág 365. “A intervenção do pretor mostrou-se importante no preenchimento das lacunas do ordenamento”.
17
determinadas, que eram denominadas normas pretorianas, não desapareciam e
eram, frequentemente, repetidas pelo novo pretor.
Cumpre também explicitar que os direitos, à que correspondiam as fórmulas
criadas pelos pretores, não eram garantidos pela lei17, mas somente reconhecidos
pelo pretor, que detinha o poder de aplicar a lei, nos casos por ela não previstos.
Em razão da atividade do pretor e também do imperador alguns pactos
passam a gerar obrigações18, embora não estivessem previstos entre os contractus.
Há notícias de que, no período clássico e no pós-clássico, a estrutura do
contrato concebido de forma extremamente rígida, como acordo de vontades,
somado ao pressuposto objetivo, resultando no surgimento da obrigação, começa a
sofrer alguma alteração no sentido de abrandamento do rigor.
Nesse período da história do Direito Romano, em que o jurisconsulto Gaio
realizou a classificação das denominadas fontes das obrigações19, é que se verifica,
de forma mais palpável a concepção jurídica do contrato, traçando uma comparação
com o conceito do direito moderno.
17 Caio Mario da Silva Pereira. Lesão nos Contratos. Pág. 5. “Corrigindo, secundando, ou suprindo as deficiências do ius civile, baixavam os pretores editos, afixados em tábuas brancas (álbum) frente ao tribunal respectivo, nos quais indicavam as fórmulas que lhes podiam ser pleiteadas e em que condições eles as concederiam. Conferiam assim proteção aos direitos reconhecidos mas não garantidos pela lei, estendiam o império desta a casos não previstos, abrandavam o seu rigor, e até corrigiam a lei, insurgindo-se contra as suas prescrições.” 18 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano. Pág 110. “(...) Graças à jurisprudência, ao pretor e ao imperador, certos pactos (os pactos vestidos, na pitoresca linguagem dos autores medievais: pactos adjetos, pretorianos e legítimos) passam a gerar obrigações, embora os juristas romanos não os enquadrem entre os contractus (contratos)”. 19 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Obrigações.Pág. 25. “Atribui-se a Gaio a catalogação das fontes das obrigações, dentre as quais se incluía o contrato como uma delas”.
18
Cumpre lembrarmos que essa classificação, conforme a concepção jurídica
adotada na época20, não se confunde com o entendimento técnico, que se tem hoje,
a respeito do contrato.
Somente no período pós-clássico, possivelmente, como adverte o Ministro
José Carlos Moreira Alves21, é que se admite uma categoria abstrata de contratos,
os quais passam a ter uma tutela única.
Nesse sentido, colacionamos o ensinamento de Orlando Gomes22,
esclarecendo que: “Não é no direito romano que se deve buscar a origem histórica
da categoria que hoje se denomina contrato”.
No direito justinianeu surge a concepção de que a obrigação nasce do
acordo de vontades e, desta forma, o elemento subjetivo, até então irrelevante,
passa a ser considerado elemento juridicamente merecedor de importância. É nesse
período, também, que se percebe uma maior flexibilidade em relação à rigidez
existente quanto aos tipos contratuais.
Aos poucos com a influência da corrente da escola do direito natural, os
pactos e as convenções tornam-se semelhantes aos contratos. 20Idem.“Deve-se ao jurisconsulto Gaio o trabalho de sistematização das fontes das obrigações, desenvolvidas posteriormente nas Institutas de Justiniano, que seriam distribuídas em quatro categorias de causas eficientes”:
a) O contrato – compreendendo as convenções, as avenças firmadas entre duas partes; b) O quase-contrato – tratava-se de situações jurídicas assemelhadas aos contratos, atos
humanos lícitos equiparáveis aos contratos, como a gestão de negócios; c) O delito – consistente nos ilícito dolosamente cometido, causador de prejuízo para outrem; d) O quase-delito – consistente nos ilícitos em que o agente atuou culposamente, por meio de
comportamento carregado de negligência, imprudência ou imperícia. 21 José Carlos Moreira Alves. Direito Romano.Pág. 110 e seguintes. “Possivelmente no direito pós-clássico a tipicidade contratual sofre abalo com a admissão da categoria dos contratos inominados, isto é, contratos atípicos, que formam uma categoria abstrata, e que tem, em comum, a unidade de ação que os tutela e o fato gerador da obrigação: a execução, por um dos contratantes, de sua prestação faz nascer, para o outro, a obrigação de efetuar a contraprestação”. 22 Orlando Gomes. Contratos. Pág.6. “A moderna concepção de contrato, tal qual concebemos hoje, consistente em acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico a que se prendem, somente se esclarece à luz da ideologia individualista típica do regime capitalista de produção”.
19
Como se sabe, é notável a transformação da sociedade e inegável o
progresso jurídico, no âmbito contratual, em decorrência das práticas mercantis23,
muitas das quais, através dos costumes, foram simplificando as relações e,
conseqüentemente, também os contratos.
A idéia que se tem de contrato, na atualidade, advém, exatamente, dos
conceitos traçados no Código Civil Alemão (BGB) e no Código Civil Francês24.
1.1. A REVOLUÇÃO FRANCESA E O CONTRATO.
Somente se reconhece, no contrato, o aspecto pertinente a sua força
normativa, a partir do iluminismo, movimento que marcou época na França, por não
aceitar a autoridade real enquanto poder absoluto fundamentado no poder divino,
que fazia oposição à Igreja e as condições inalteráveis de hierarquia social e cuja
ideologia influenciou boa parte do mundo ocidental.
Essa força normativa demasiadamente valorizada e resultante do auge do
individualismo, no qual o homem, pelo fato de firmar a sua vontade racional,
equipara-se a um deus, é levada ao extremo na seara contratual.
23 Fabio Ulhoa Coelho. Manual de Direito Comercial. Pág. 6. “O comercio gerou e continua gerando novas atividades econômicas. Foi a intensificação das trocas pelos comerciantes que despertou em algumas pessoas o interesse de produzirem bens de que não necessitavam diretamente; bens feitos para serem vendidos e não para serem usados por quem os fazia. É o início da atividade que, muito tempo depois, será chamada de fabril ou industrial. Os bancos e os seguros, em sua origem, destinavam-se a atender necessidades do comerciantes. Deve-se ao comércio eletrônico a popularização da rede mundial de computadores( internete), que estimula diversas novas atividades econômicas. 24 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Pág. 366. “A preponderância da autonomia da vontade no direito obrigacional, e como ponto principal do negócio jurídico, nos vem dos conceitos traçados para o contrato no código francês e no código alemão”.
20
Nesse diapasão, revela-se a visão que havia sobre a vontade racional
expressada, e, a partir dessa expressão, entende-se que há uma igualdade formal
entre as partes contratantes.
Assim, essa concepção individualista, que consagra a vontade racional do
homem, fruto de uma visão absolutamente antropocêntrica e patrimonialista25, vai
influenciar a teoria contratual do século XIX26, a do início do século XX e,
consequentemente, a codificação de alguns países, incluindo o Brasil.
A confirmação dessa influência está no fato de que os códigos civis27, na
sua grande maioria, foram, ou ainda preservam alguns traços, inspirados no Código
de Napoleão do ano de 1804, o qual espelha a vitória da burguesia na revolução
francesa.
O Brasil assimilou o Código de Napoleão e, por essa razão, nossa ordem
jurídica ainda revelava, até bem pouco tempo, os reflexos advindos daquela cultura,
em especial a marca do individualismo.
Temos, então, que a marca do individualismo tem sua origem,
especialmente, na Revolução Francesa, período em que a burguesia, abastada 25 Ana Prata. A tutela Constitucional da Autonomia Privada. Pág.7. “Há, desde logo, que observar que sujeito jurídico, propriedade e autonomia privada não são conceitos universais: eles pertencem ao domínio das relações entre proprietários. A atribuição de personalidade jurídica e, consequentemente, de capacidade negocial, encontra-se estreitamente vinculada ao surgimento da posse privada e do direito de propriedade: reivindicando a posse, ou afastando ‘judicialmente’ as turbações na posse do bem, a pessoa a quem esse bem foi atribuído surge como capaz de realizar actos produtores de efeitos jurídicos. Mas porque só a ela foi repartida-atribuída a posse de certa terra, só ela pode praticar esses actos que à terra respeitam e que produzem efeitos jurídicos.Quando a pessoa passa a poder dispor do bem – e não apenas a ter o poder de o usar e assegurar a sua utilização produtiva – então ela afirma-se exclusiva titular de um poder de produzir efeitos jurídicos, já não só como meio de transmissão do próprio bem”. 26 Cristiano Heineck Schmitt. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. Pág. 42. “A autonomia da vontade como princípio norteador da ordem jurídica privada só alcançará seu apogeu, no entanto, no século XIX, época do primado liberal”. 27 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das obrigações e dos contratos. Pág. 362. “Nosso legislador de 1916 tinha a seu dispor as orientações do velho Código Francês de 1804, ainda em vigor, no qual se inspiraram o revogado Código Italiano de 1865 e o Código Alemão de 1896, que entrou em vigor em 1º de Janeiro de 1900”.
21
economicamente em decorrência do desenvolvimento da indústria e do comércio,
pregava a idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, almejando o poder político
que era mantido pela nobreza.
Essa burguesia voltou-se contra o clero e a nobreza, proclamando que o
poder não mais emanava do soberano ou de Deus, mas sim do povo e da nação.
Cabe lembrar que, até o ano de 1789, o poder, a que nos referimos e que
vigorou na Europa Ocidental até o século XVIII, é o poder real, centralizado no
monarca, aprovado pela Igreja Católica, denominado absolutismo e conhecido
também como “antigo regime”.
Somente em 1789, com a Revolução Francesa, é que houve a
transformação do “Estado Territorial”, personificado na pessoa do rei, em “Estado
Nacional”.
Assumindo o poder, essa burguesia transformou a sociedade,
implementando o ideal de liberdade, como um dos fundamentos da revolução, o que
possibilitou, ainda mais, o crescimento da riqueza, sobretudo porque concebida
segundo o interesse e a necessidade dos seus idealizadores.
Entre as necessidades mais gritantes da burguesia estava, justamente, a do
reconhecimento do direito de propriedade, sendo essa a grande conquista no que
tange à segurança jurídica, já que, até então, esse direito dependia do poder político
exercido pela nobreza.
Dessa forma, o contrato passa a ter uma importância fundamental, pois, ao
mesmo tempo em que constituía instrumento capaz de operar transferência de
propriedades, tornou-se uma garantia para a burguesia e para todos os
22
proprietários. Isto porque não haveria o risco de serem privados dos seus bens, já
que, para a efetiva transferência dos mesmos, passa a ser obrigatória a
manifestação da vontade, através do contrato.
Como sabemos, logo após o início da Revolução Francesa, marcada pela
queda da bastilha28, maior símbolo do absolutismo, a Assembléia Nacional Francesa
aprovou, em 26 de agosto de 1789, o texto denominado Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, composto por 17 artigos que exprimiam os objetivos e ideais
da revolução.
Esses artigos expressavam os direitos sagrados e intocáveis do homem,
sendo que entre eles está, justamente, aquele que assegura o tão almejado direito
de propriedade, prescrevendo que “O fim de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são: a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão29”.
São os princípios expressos naquela declaração que inspiraram os textos
das codificações de várias nações.
No Código Napoleônico temos o contrato disciplinado no livro terceiro, que
cuida dos “diversos modos de aquisição da propriedade”, colocando a aquisição da
propriedade no patamar de direito da pessoa, o que bem demonstra a absoluta
aversão, ao que era praticado pela classe, até então, dominante.
28 Roberto Catelli Junior.O mundo dos cidadãos. Pág. 40. “A Bastilha era uma prisão, verdadeiramente uma fortaleza dentro de Paris onde estavam confinados os presos políticos e que foi tomada em 14 de julho de 1789 pela multidão formada por camponeses, artesãos, pequenos comerciantes e burguesia. Muitos dos que defendiam a bastilha foram enforcados e suas cabeças, exibidas pelas ruas de Paris”. 29 Roberto Catelli Junior. O mundo dos cidadãos. Pág 43.
23
Esta é a razão pela qual o contrato, no Código Napoleônico, é um
instrumento que basta, por si só, para a aquisição da propriedade. Aquilo que era
possível apenas à classe dominante passa a ser possível aos indivíduos, a partir do
reconhecimento da autonomia para contratar e para tornar-se proprietário30, o que
significa oportunidade de adquirir os bens até então pertencentes somente àquela
classe.
Neste contexto, Carlos Roberto Gonçalves31 aduz que:
“O código de Napoleão foi a primeira grande codificação moderna. A exemplo do direito romano considerava a convenção o gênero, do qual o contrato era uma espécie (art. 1101). Idealizado sob o calor da Revolução de 1789, o referido diploma disciplinou o contrato como mero instrumento para a aquisição da propriedade. O acordo de vontades representava, em realidade, uma garantia para os burgueses e para as classes proprietárias”.
Ratificando esse entendimento mencionamos o ensinamento de Silvio de
Salvo Venosa32, em que afirma que “No Código Francês, propriedade e liberdade
ligam-se indissoluvelmente, porque sem propriedade não pode haver liberdade”.
E por estar intimamente ligado à propriedade, o contrato, no sistema jurídico
francês, opera a transferência dos direitos reais33, revelando, desta forma, mais um
aspecto do contratualismo levado ao extremo.
30 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das obrigações e dos contratos.Pág 365 e ss. 31 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Pág. 3. 32 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das obrigações e dos contratos.Pág 365 e seguintes. 33 Idem. Pág.362. “A transferência de bens passava a ser dependente exclusivamente da vontade”.
24
CAPÍTULO II - O CONTRATO COMO INSTRUMENTO
DE CIRCULAÇÃO DE RIQUEZAS NO
ESTADO LIBERAL.
Nesse contexto de não interferência do Estado34 e do exercício pleno da
liberdade, bem como do direito de propriedade, durante todo o século XIX e boa
parte do século XX, o contrato passa a ser reconhecido, também, como instrumento
de suma importância para o desenvolvimento da atividade econômica35.
Esta é a razão pela qual, entendemos ser o contrato não apenas um
instrumento, mas também uma forma de refletir a realidade econômico-social, num
determinado momento histórico.
Nesta realidade econômico-social, o contrato reflete, também, a estrutura
política e os ideais de um determinado sistema, a exemplo do individualismo e da
não interferência do Estado, que foram os ideais que mais contribuíram para a
formação do fundamento e da própria essência dos contratos.
Confirmando que os ideais políticos36 refletem na constituição dos
fundamentos dos contratos, temos que as idéias de igualdade e liberdade, entre
34 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. Pág. 42. “No panorama jurídico do século XIX, a obrigação contratual tem como única fonte a vontade das partes, servindo a lei para assegurar somente o adimplemento do acordo, abstendo-se o Estado de qualquer intervenção nas relações entre os indivíduos. 35 Arruda Alvim. RT 815. Pág. 21. “Toda disciplina do séc. XIX gravitou, fundamentalmente, em torno de duas realidades: a liberdade e, nesse espaço de liberdade, o exercício da atividade econômica através dos contratos e, paralelamente, a garantia do direito de propriedade”. 36 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 25. “O contrato é para a ciência do direito, em si mesmo, um conceito jurídico, altamente desenvolvido e trabalhado, e como se percebe, pelo exame do contrato clássico – que é, ainda, o que tem sido mais trabalhado pela doutrina – representa ele uma absorção da realidade econômico-social, ao que se somaram princípios políticos e, mesmo ideológicos, que foram o individualismo e o liberalismo, cujas idéias foram as mais fundamente cunhadas na configuração do que é contrato”.
25
outras inspiradoras da Revolução Francesa, marcam, profundamente, não só um
momento histórico, como, também, todo o instituto jurídico, por mais de um século.
E quanto à igualdade conquistada, um dos ideais da Revolução Francesa,
como já se mencionou, essa dizia respeito apenas ao aspecto formal, não existindo
a mínima preocupação com o implemento de uma igualdade substancial. O mesmo
ocorreu com o ideal da fraternidade, que apenas permaneceu estampado na
bandeira levantada pela burguesia.
Uma vez conquistado o poder, a lei foi o meio de mantê-lo, lembrando que,
nesse contexto, só era permitida, aos juízes, a estrita aplicação da lei, uma vez que
a possibilidade de interpretação restringia-se somente ao seu aspecto literal.
Isso porque, além de assim desejarem os detentores do poder, que visavam
à prevalência dos seus interesses, inexistiam quaisquer formas de reconhecimento
de conceitos vagos, que permitissem a interpretação da lei em qualquer outro
sentido que não o literal.
Essa restrição, ou melhor, esse impedimento de uma atividade jurisdicional
plena, tinha a finalidade de tornar realidade o ideal da não-intervenção do Estado,
razão pela qual Montesquieu pregava, com veemência, sua aversão aos juizes,
tratando-os, jocosamente, como “bouche de la loi” 37.
Percebemos, então, a existência de um dilema diante do exercício da
liberdade, se, de um lado, para os juízes, não havia liberdade para interpretarem a
lei, por outro lado, a liberdade, concedida aos sujeitos do contrato, era considerada o
auge da manifestação livre da vontade.
37 Montesquieu. O espírito das leis. Pág. 53. (a boca que pronunciava as palavras da lei).
26
2.1. O CONTEÚDO ECONÔMICO DO CONTRATO
O contrato, como já observamos, reflete a estrutura política de um sistema,
bem como revela, também, a realidade socio-econômica que influenciará toda a sua
estrutura.
Assim, entendemos que o contrato não pode ser encarado de modo a se
atribuir importância apenas ao acordo de vontades dos contratantes, pois, como
vimos, há aspectos, de extrema relevância, que influenciam o seu conteúdo e a sua
forma.
Nesse contexto é oportuna a lição de Arruda Alvim38:
“Há pelo menos uma dualidade de sentidos em relação à palavra contrato, quais sejam a de operação econômica, que é o conteúdo substancial e real dos contratos, e, o de instituto jurídico. Pode-se dizer existir entre o segundo sentido e o primeiro uma relação de instrumento em relação ao conteúdo”.
Esse conteúdo, que entendemos ser o econômico, é, inegavelmente, o
responsável pela geração de riquezas, uma vez que, protegido juridicamente,
estabelece uma relação que possibilita, às partes contratantes, a realização do fim
pretendido, quando da efetivação do contrato.
Nesse sentido, comentando a respeito do tema, Humberto Theodoro Junior39
aduz que “O contrato é antes de tudo um fenômeno econômico. Não é uma criação
do direito”.
38 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e o seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 25.
27
Concordamos que esse seja o conteúdo substancial do contrato e
verificamos que, mesmo sob a égide do Estado Liberal, em que vigorou o
individualismo extremado, é impossível não reconhecê-lo como instrumento gerador
de grandes riquezas, que muito contribui para o desenvolvimento social.
Assim, não podemos esquecer o aspecto positivo do principio da força
obrigatória dos contratos, inserido no contexto do liberalismo e do individualismo,
consignado no brocardo pacta sunt servanda, que possibilitou a realização de
negócios, já que aqueles que detinham o capital podiam, livremente, estabelecer as
cláusulas contratuais que lhes fossem convenientes.
Não restam dúvidas a respeito de ser o contrato um elemento altamente, e
talvez o mais importante, impulsionador do desenvolvimento econômico de um país,
posto que, através dele, se realizam trocas, se opera a circulação e a construção de
riquezas, sem esquecer, ainda, da segurança jurídica que ele proporciona.
Reforçando o entendimento de que o contrato é fundamental para o
desenvolvimento da sociedade, colacionamos as considerações de Roberto Senise
Lisboa40, asseverando que “Todo negócio jurídico compõe o aparato da atividade de
circulação de riquezas, com vista ao progresso da coletividade, e não apenas do
produtor”.
Nessa perspectiva, reconhecemos que a sociedade não subsiste sem o
contrato, como bem observou Caio Mario da Silva Pereira41:
39 Humberto Theodoro Junior. O contrato e sua função social. Pág. 97. 40 Roberto Senise Lisboa. Contratos difusos e coletivos. Pág. 92-94. 41 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Pág. 11.
28
“Qualquer indivíduo – sem distinção de classe, de padrão econômico, de grau de instrução – contrata. O mundo moderno é o mundo do contrato. E a vida moderna o é também, e em tão alta escala que, se se fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na civilização de nosso tempo, a conseqüência seria a estagnação da vida social.”
Prossegue o doutrinador:
“O ‘homo economicus’ estancaria as suas atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários”.
Em síntese, o contrato, além de essencial para a vida em sociedade,
constitui, também, meio de realização da justiça, já que possibilita a concretização
do princípio que consiste em dar a cada um o que é seu42.
2.2. O INDIVIDUALISMO E O PRINCÍPIO DA FORÇA
OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS.
Sabemos que a Revolução Francesa enalteceu, como um dos corolários da
liberdade, o princípio da força obrigatória dos contratos, conhecido através do
brocardo denominado pacta sunt servanda43 - “Os contratos têm que ser cumpridos”
- não existindo limitação para o contrato, que não aquelas fundadas no interesse
público.
42 Arruda Alvim. RT 815. Pág. 30. 43 Arruda Alvim. RT 815. P. 21. “Este princípio é “alma” e a “vida” dos contratos, ou se quiser é a sua ratio essendi.”.
29
Há uma corrente filosófica, que entende o pacta sunt servanda como
elemento básico de todo o direito natural44. Este entendimento carrega, em si,
características que valorizam a vontade e a lealdade, que podem ser verificadas, no
questionamento, retirado do Digesto de Ulpiano: “O que haverá de mais compatível
com a lealdade humana do que respeitar aquilo que foi pactuado45?”.
O princípio da força obrigatória dos contratos revela a essência que vai
condicionar a existência do contrato, uma vez admitido que os indivíduos sejam
iguais, formalmente falando, ou seja, não há motivos para o não cumprimento do
contrato, se os sujeitos são absolutamente iguais e dessa forma são tratados
perante a lei46.
Essa liberdade desenfreada no campo contratual, personalizada no
individualismo, vivida dentro do contexto de um Estado liberal, onde o poder
judiciário não tinha nenhuma autonomia, se revela não só como fim do Absolutismo,
mas também como o encontro da verdadeira felicidade, tal qual apregoado por
Rosseau no seu Contrato Social.
44 J.M. Leoni Lopes de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil. Pág. 551. “A regra do pacta sunt servanda como princípio elementar de todo o direito natural foi tema desenvolvido por Grócio, sustentando que a vontade é soberana e que o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural cujo princípio deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas também entre as nações”. 45 Ulpiano, Digesto, 2.14. 46 Fernando Noronha. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. Pág. 66. “Essa situação era garantida pela própria jurisprudência da época e bem refletida pelos célebres pronunciamentos, um na Inglaterra outro nos Estados Unidos. ‘Em 1875, Sir George Jessel que era Máster of the Rolls e de quem se afirmava ter sido ‘one of the greatest judges of the nineteenth century’, fundamentava uma decisão dizendo que, ‘ se existe uma coisa que a ordem pública (public policy) exige mais do que qualquer outra, é que as pessoas de maior idade e perfeito discernimento (men of full age and competents understanding) devem ter a máxima liberdade de contratar (the utmost liberty of contracting), e que os seus contratos, quando assumidos livre e voluntariamente (when entered into freely and voluntarily), devem ser considerados sagrados e devem ser tutelados pelos tribunais ( shall be held sacred and shall be eforced by courts of justice). Em 1905, a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais leis sobre salários mínimos e duração máxima da jornada de trabalho, argumentado tratar-se de injustificada interferência com a liberdade e a propriedade (unwarranted interference with liberty and property)”.
30
E para bem elucidar o sentido da felicidade do homem idealizada por
Rosseau, um dos grandes pensadores iluministas, cumpre aqui destacarmos que o
contrato social significa o instrumento de organização da sociedade, em que deveria
prevalecer a vontade da maioria.
Salientamos, ainda, que esse mesmo pensador, que, sem sombra de
dúvida, foi um dos inspiradores dos líderes da Revolução Francesa, criticava,
fortemente, a desigualdade econômica, chegando, inclusive, a considerar que a
causa dessa desigualdade era a propriedade47.
Percebe-se que se há um progresso social com o fim do Absolutismo, por
outro lado, a afirmação de que o homem pode atingir a plena felicidade em razão de
uma autonomia privada ilimitada, configura-se como retrocesso, já que o valor
relevante é só o econômico, esquecendo-se que o valor humano deve sempre ser
considerado.
Dessa forma, a vontade das partes passa a ser princípio contratual
intangível, já que o Estado adotava uma posição de omissão total, não interferindo,
de modo algum, nessa relação, em que, ao menos teoricamente, existia igualdade
formal entre as partes.
47 Jean Jacques Rousseau. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Segunda parte: “Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.”
31
O pressuposto que serve de base para a autonomia privada sem fronteiras,
de modo que tudo o que era contratado era justo48, encontra inspiração na filosofia
jusracionalista de Kant.
Constatamos, então, que o livre exercício da autonomia da vontade possui
dois aspectos a serem analisados: o primeiro, diz respeito ao inegável
desenvolvimento econômico e ao surgimento de novas modalidades de negócios; o
segundo, refere-se à verificação das conseqüências de um positivismo extremado,
que, inegavelmente, foi causa de grandes tragédias humanas49, uma vez que os
contratos deveriam ser cumpridos, mesmo que uma das partes fosse
vergonhosamente levada à ruína pela outra.
Dessa obrigatoriedade de cumprimento do contrato a qualquer preço, a
doutrina adotou como princípio que rege as obrigações contratuais, o princípio da
obrigatoriedade da convenção.
Esse princípio determina que as estipulações feitas no contrato devam ser
fielmente cumpridas, assim se traduzindo o conhecido brocardo pacta sunt
servanda, de forma que, caso o contrato não seja integralmente cumprido, haverá a
possibilidade de vir, o inadimplente, a sofrer expropriação no seu patrimônio.
O fundamento dessa exigência é o entendimento de que o acordo, tendo
sido concluído livremente e sem nenhum vício, passa a incorporar o ordenamento
48 Darcy Bessone de Oliveira. Aspectos da evolução da teoria dos contratos. Pág.101. “Quem diz contratual diz justo”. “Segundo a doutrina clássica, o contrato é sempre justo, porque, se foi requerido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes”. 49 Arruda Alvim. RT 815. Pág. 22. “Se nós formos perguntar qual foi a evolução em todos os países, em relação ao ‘tamanho’ da autonomia privada, sem sombra de dúvida, a evolução pela qual passou o espectro da autonomia privada, haver-se-á de concluir ter sido um espaço que diminuiu, porque se verificou que a chamada “igualdade formal” levava a injustiças profundas.”
32
jurídico50, já que a obrigação tem origem na vontade declarada, a qual constituiu o
contrato.
Eis a razão pela qual a regra em que se funda o denominado princípio da
força obrigatória dos contratos é a de que, o contrato válido faz lei entre as partes.
A esse respeito, Arruda Alvim51 assenta que:
“Na fase extrema do liberalismo econômico e do individualismo jurídico aceitou-se, em escala diminuta, a lesão, como comprometedora do ato de celebração do contrato, e, bem assim, a teoria da imprevisão, como não influente para modificar ou liberar o contratante prejudicado com a execução do contrato. Vale dizer, ao que houvesse sido objeto de manifestação de vontade, haveria a ordem jurídica de dar respaldo, praticamente incondicional”.
Constatamos a força que está impregnada na liberdade de contratar no
Código Civil Francês, especificamente, em seu artigo 1.134, consagrando que o
contrato faz lei entre as partes52.
Esta é, sem dúvida, uma das marcas do individualismo, o que, levado ao
extremo, tem como conseqüência o surgimento de um enorme desequilíbrio social,
causando insatisfação e, gerando movimentos sociais, por toda a Europa Ocidental,
na tentativa de recolocar o homem na sociedade53.
50 Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. Pág. 62. 51 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág. 26. 52 Artigo 1134 do Código francês; “as convenções feitas nos contratos formam para as partes uma regra à qual deve se submeter como a própria lei”. 53 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Pág. 5. “ Essa tendência individualista, entretanto, acabaria por gerar sérios desequilíbrios sociais, somente contornados pelo dirigismo contratual do século XX, reflexo dos movimentos sociais desencadeados na Europa Ocidental, e que recolocariam o homem na sociedade, retirando-o do pedestal a que ascendera, após a derrocada do Antigo Regime, quando pretendeu assumir o lugar de Deus.”
33
Desta analise, depreendemos que o individualismo não encontra
acolhimento dentro de um sistema que tenha como pressupostos básicos os valores
que coloquem o homem como valor-fonte54 de todos os valores.
Assim, observando atentamente o nosso ordenamento jurídico, percebemos
a distinção principiológica entre o Código Civil de 1916 e o Código Civil vigente,
naquilo que diz respeito ao individualismo55.
2.3. DA MINIMIZAÇÃO DO PRINCIPIO DA FORÇA
OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS.
O Código Civil vigente abandonou a diretriz anterior, calcada absolutamente
no Direito Privado, para adotar uma diretriz assentada em fundamentos não apenas
jurídicos, mas também metajurídicos, o que determina o entendimento que se tem
hoje de “sujeito de direito” não abstrato e isolado, mas, sim, inserido na coletividade.
54 Miguel Reale. Teoria Tridimensional do Direito. Pág. 137. “O ‘bem comum’, por conseguinte de que falo, é o bem da ‘comunidade das pessoas’, na harmonia de ‘ valores de convivência’, distintos e complementares, em um processo histórico que tem como fulcro a pessoa, valor-fonte de todos os valores”. 55 Daniel Martins Boulos. A Autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil. Pág. 128. “Basta referir que no Código de 1916, a exemplo de outros Códigos Civis, o princípio da força obrigatória dos contratos encontrava raríssimas exceções, tais como nos casos de (a) uma das partes não poder manifestar corretamente a sua vontade, quer por não possuir o discernimento para tal (casos de incapacidade), quer em razão de algum motivo especial que fizesse o emitente da declaração de vontade merecedor de proteção (casos de vícios do consentimento) ou mesmo que fosse necessária a proteção de terceiro alheios ao ato volitivo (vícios sociais); (b) inobservância da forma prescrita em lei ou utilização de forma nela proibida ou ainda desatendimento de alguma solenidade nela prevista; (c) ilicitude ou impossibilidade do objeto”. “Ou seja, o Código Civil de 1916 continha hipóteses taxativas por meio das quais era permitido ao juiz interferir nas relações contratuais travadas entre dois particulares, de modo que o princípio pacta sunt servanda restava, praticamente, incólume diante da legislação civil. Esse entendimento é fruto, dentre outros motivos, de o antigo Código Civil ser “filho do século XIX”, pois, embora aprovado em 1916, é certo que o Projeto Bevilacqua de 1899, que deu origem ao Código Civil revogado experimentou apenas mudanças de caráter formal nos dezesseis anos em que tramitou no Congresso Nacional”.
34
Em meados do século XX, época marcada pelo dirigismo contratual, surge,
nas consciências jurídicas, uma preocupação com o necessário reconhecimento do
princípio da dignidade da pessoa humana, como fator limitativo da liberdade
econômica e da livre iniciativa56, até então, praticadas sem nenhuma preocupação
com os valores sociais.
A partir dessa concepção, entendemos, então, que o princípio da dignidade
da pessoa humana deva ser reconhecido como um princípio, também, do direito
privado57.
Nesse contexto, onde se verifica o desenvolvimento tecnológico em todas as
áreas, verificamos, também, que as atividades de produção atingem uma proporção
nunca antes pensada, disponibilizando uma imensa e variada quantidade de
produtos e serviços, que, aliados a outros fatores, dentre os quais a explosão
demográfica, colaboraram para a transformação da sociedade caracteristicamente
agrícola, em sociedade de consumo de massa, resultando, consequentemente, na
evolução da ordem jurídica.
Como se sabe, a evolução jurídica não ocorre na mesma velocidade em que
ocorrem as transformações tecnológicas e sociais, que implicam em mudanças de
comportamentos e, consequentemente, exigem proteção jurídica adequada para os
indivíduos inseridos nessa nova realidade.
56 Mário Lucio Quintão Soares e Lucas Abreu Barroso. Revista Brasileira de Direito Privado. Nº 14. Pág. 53. “Uma das projeções da livre iniciativa é a liberdade de participação na economia, corroborando o capitalismo enquanto modelo econômico adotado, que traz consigo todas as mazelas e formas de exclusão que lhe são inerentes, mas que deverá, antes de tudo, respeitar os valores sociais do trabalho, juntamente com a livre iniciativa na posição de fundamento do Estado e preceito da ordem econômica, visando compatibilizar o regime de produção escolhido (capital, lucro) a dignidade da pessoa humana e a dimensão econômico-produtiva da cidadania”. 57 Rosa Maria de Andrade Nery. Noções preliminares de direito civil.pág.110 e ss.
35
Nesse sentido, entendemos que o Código Civil vigente premiou toda a
sociedade brasileira, quando traduz através das Cláusulas Gerais58, os valores que
estão consignados na consciência jurídica pátria.
Parece-nos que a intenção do legislador foi, justamente, buscar
compatibilização do ordenamento jurídico, harmonizando o Código Civil com a
Constituição Federal e, também, com o Código de Defesa do Consumidor, naquilo
que diz respeito aos valores contidos no espírito da lei.
E sobre os valores contidos na lei, a exemplo de toda a carga axiológica
consubstanciada no Código Civil vigente, oportunamente, citamos o ensinamento
sempre tão objetivo de Washington de Barros Monteiro59, sobre a socialidade do
direito:
“A sociedade brasileira vem evoluindo como fato natural, como fenômeno impulsionado pela força universal, e por isso mesmo o legislador, acompanhando essa evolução, é obrigado a ir soltando as amarras do individualismo em benefício do bem comum60”.
58 Daniel Martins Boulos. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil. Pág.129. “Já o Código Civil Brasileiro de 2002, além de alargar as hipóteses por meios das quais a regra (repita-se, ainda vigente) ‘ os pactos tem que ser cumpridos’ pode e deve ser afastada, estabeleceu um regime de cláusulas gerais que contém princípios que constituem cada um dos quais, verdadeira limitação à liberdade contratual e, em maior escala, à própria autonomia privada. Assim ocorre, por exemplo, com a cláusula geral que veda o abuso de direito, contida no art. 187. Assim também sucede com a cláusula geral da boa-fé objetiva (art. 422), com aquela que veda o enriquecimento sem causa (art. 884 e ss.) e com a que prevê a extensão da responsabilidade objetiva a casos não tipificados na lei, mas segundo critérios por ela fixados (art. 927, parágrafo único)”. 59 Washington de Barros Monteiro. RT 200/369. 60 Miguel Reale. Teoria Tridimensional do Direito. P. 137. “O ‘bem comum’, por conseguinte de que falo, é o bem da ‘comunidade das pessoas’, na ‘harmonia de ‘valores de convivência’, distintos e complementares, em um processo histórico que tem como fulcro a pessoa, valor-fonte de todos os valores.”
36
Essa evolução, ou esse progresso jurídico, que traz o homem para assumir
o lugar de ‘valor-fonte’, termo utilizado por Miguel Reale, possibilitou a visualização
das falhas e das injustiças, que o princípio da igualdade formal, consagrado no pacta
sunt servanda61, acarretava na estrutura social, consubstanciando-se no
enfraquecimento desse princípio, até então, considerado absoluto62.
Da mesma forma, sustentando que o pacta sunt servanda não é princípio
absoluto, Maria Helena Diniz63 assim fundamenta:
“Devido ao dirigismo contratual, o ‘pacta sunt servanda’ não é absoluto, pois casos haverá, como o do artigo 6º, inciso V, da Lei n. 8.078/90, em que se terá a revisão judicial dos atos negociais, p. ex., em razão do desequilíbrio sofrido em conseqüência de fatos imprevisíveis nas relações contratuais, que possam até acarretar a exploração de um sobre o outro sob o véu do contrato, justificando o restabelecimento do ‘status quo ante’ pela cláusula ‘rebus sic stantibus’, antecipando a reforma preconizada no Projeto de Código Civil supervisionado por Miguel Reale.”
Sob esse prisma de constatação de transformação social, que implicou na
necessidade de proteção jurídica adequada a essa realidade, colacionamos a lição
de Paulo Roberto Nalin64:
61 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Contratos. Pág. 14. “O princípio da força obrigatória do contrato significa, em essência, a irreversibilidade da palavra empenhada”. 62 Leonardo Mattieto.Problemas de Direito Civil Constitucional. Coord. Gustavo Tepedino.Pág.175. “Nas palavras emblemáticas de Ripert, ‘O contrato já não é ordem estável, mas eterno vir a ser’. A noção de liberdade contratual havia sido construída como projeção da liberdade individual, ao mesmo tempo em que se atribuía à vontade o papel de criar direitos e obrigações. A força obrigatória do contrato era imposta como corolário da noção de direito subjetivo, do poder conferido ao credor sobre o devedor. Com a evolução da ordem jurídica, já não tem mais o credor o mesmo poder, o direito subjetivo sofre limites ao seu exercício e não compete aos contratantes, com exclusividade, a autodeterminação da lex inter partes, que sofre a intervenção do legislador e pode submeter-se à revisão pelo juiz”. 63 Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. Pág. 62. 64 Paulo Nalin. Do Contrato: Conceito pós-moderno – Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. Pensamento jurídico. Pág. 109.
37
“O homem contratante acabou, no final do século passado e início do presente, por se deparar com uma situação inusitada, qual seja a da despersonalização das relações contratuais, em função de uma preponderante massificação, voltada ao escoamento, em larga escala, do que se produzia nas recém-criadas indústrias”.
Essas transformações refletem, diretamente, na seara dos contratos, e,
como assevera Arruda Alvim65, verifica-se que ocorreu uma minimização do princípio
pacta sunt servanda, no Código Civil de 2002.
Portanto, entendemos que houve o reconhecimento de que o modelo de
contrato, compatível com o liberalismo, que permitia a realização de grandes
injustiças, não atendia mais às necessidades, nem tampouco protegia os valores
consagrados pela sociedade.
Arruda Alvim preleciona, ainda, que esse acontecimento evidencia que o
nosso legislador, ao expressar as situações em que se admite o abrandamento ou a
minimização do princípio, demonstra um progresso no ordenamento jurídico, que
passa a ser compatível com os códigos de países mais desenvolvidos.
Exemplo, citado por Arruda Alvim, sobre a sintonia ou compatibilização com
códigos de países que traduzem os valores escolhidos pela sociedade, entre esses
a rejeição às injustiças cometidas em razão do contrato nos moldes do liberalismo,
está no artigo 1.467 do Código Civil Italiano66.
65 Arruda Alvim. RT 815. Pág 24. 66 Código Civil Italiano.Artigo 1.467. “Contratto com prestazioni corrispetive nei contratti a ezecusione continuata o periódica ovvero a essecuzione differita, se la prestazione di uma delle parti è divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte Che deve tale prestazione può domandare la risoluzione del contratto, com gli effetti stabiliti dall’art.1.458.
38
Como se vê o legislador italiano prevê a possibilidade de resolução do
contrato, se a prestação para uma das partes se tornou excessivamente onerosa,
em decorrência de acontecimento extraordinário e imprevisível, que cause
desequilíbrio para as partes.
Interessante observarmos que o legislador italiano, ao contrário do legislador
pátrio, expressou, claramente, que a onerosidade, que permite a resolução do
contrato, não é aquela que poderá surgir em decorrência da álea normal do contrato,
muito embora seja essa a interpretação que entendemos ser adequada para os
artigos 47867 e 47968 do nosso Código Civil, que também permitem nestas situações
a resolução do contrato.
Reforça esse entendimento, a lição de Caio Mario da Silva Pereira69:
“O código civil italiano de 1942 (art 1.467), ao disciplinar o instituto, concedendo ao prejudicado a ação resolutória, abre ao beneficiário a oportunidade de evitar este desenlace oferecendo a modificação eqüitativa das condições de execução”.
Continua o doutrinador:
La rizoluzione nom può essere domandata se la sopravvenuta onerosità rientra nell àlea normale del contratto. La parte contro la quale è domandata la risoluzione può evitaria offrendo de modificare equamente lê condizioni del contratto.” 67 Código Civil artigo 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 68 Código Civil artigo 479: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”. 69 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Contratos. Pág.167.
39
“Esta solução, que foi adotada expressamente no art. 479 do Código Civil de 2002, merece aplausos porque concilia o princípio da autonomia da vontade com a intervenção estatal que é sempre, no atual regime, uma exceção. O que a lei concede ao contratante é a resolução”.
“(...) Nunca haverá lugar para a aplicação da teoria da imprevisão naqueles casos em que a onerosidade excessiva provém da álea normal e não do acontecimento imprevisto, como ainda nos contratos aleatórios, e que o ganho e a perda não podem estar sujeitos a um gabarito predeterminado”.
Nota-se, também, que o legislador italiano, da mesma forma que o legislador
pátrio, busca proteger o contrato, preservando-o para que seja cumprido, e, para
isso, permite que o contratante demandado se ofereça a rever as cláusulas
contratuais, evitando a sua resolução.
Percebe-se, então, que a minimização do princípio da força obrigatória dos
contratos significa que a sociedade quer o cumprimento do contrato e a manutenção
da segurança jurídica, da mesma forma que deseja um contrato mais humanizado70,
possível de ser revisto, nas situações que foram consideradas e justificadas pelo
nosso legislador.
Como adverte Orlando Gomes71, não apenas em relação ao contrato, mas
também em relação a todas as alterações ocorridas nas instituições do direito civil
em razão das transformações sociais econômicas e políticas, não se pode definir,
com exatidão, o sentido da incorporação dessas transformações pelo Direito.
Eis o porquê da afirmação do jurista:
70 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. Pág. 471. “As transformações ocorridas na ordem econômica e política da sociedade, aceleradas por fatos históricos de teor decisivo para a evolução da humanidade, contribuíram peremptoriamente para a mudança de orientação, revelando a impropriedade da ordem jurídica implantada na dogmática individualista”. 71 Idem.
40
“Para alguns a incorporação tem o sentido de humanização, para outros os de democratização e ainda de socialização, não importando qual seja o adjetivo que se queira aplicar, o incontestável é que o pensamento jurídico evoluiu no sentido de afirmar a supremacia dos interesses coletivos sobre os individuais”.
Essencialmente, para a consciência jurídica, o contrato não poderia
estar à deriva, no reino da liberdade absoluta e, a utilização da cláusula rebus sic
stantibus72, situada no campo do intervencionismo estatal, pela denominada teoria
da imprevisão, não bastaria para proteger os contratantes em todas as possíveis
situações que, uma vez ocorrendo, desequilibrariam, consideravelmente, a posição
das partes no negócio jurídico.
Assim, os avanços sociais culminaram na conquista de condições mais
humanas para os contratantes, o que não significa dizer que tenha sido colocado em
dúvida o princípio da força obrigatória73, mas sim que o princípio traz, hoje, na sua
essência, um forte conteúdo ético.
72 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Pág.162. “O contrato devia ser cumprido no pressuposto de que se conservassem imutáveis as condições externas, mas que, se houvesse alterações, a execução devia ser igualmente modificada: Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelligentur. A teoria tounou-se conhecida como cláusula rebus sic stantibus, e consiste, resumidamente, em presumir, nos contratos comutativos, uma cláusula, que não se lê expressa, mas figura implícita, segundo a qual os contratantes estão adstritos ao seu cumprimento rigoroso, no pressuposto de que as circunstâncias ambientes se conservem inalteradas no momento da execução, idênticas às que vigoravam no da celebração. Os escritores, tanto entre nós quanto no estrangeiro, procuraram adaptar a velha cláusula rebus sic stantibus às condições atuais. Fé-lo Osto, com a teoria da superveniência; fé-lo Larenz, com a base do negócio jurídico; fé-lo Giovene, com a teoria do erro; fé-lo Naquet com a invocação da boa-fé. A que, a nosso ver, melhor atende às injuções sistemáticas é a da imprevisão, aqui afeiçoada e difundida por Arnoldo Medeiros da Fonseca”. 73 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Pág. 15. “Não é posto em dúvida o princípio da obrigatoriedade, de aceitação universal, muito embora se lhe ponham obstáculos, em nome da ordem pública”.
41
CAPÍTULO III - ESTADO SOCIAL DE DIREITO E OS
DESAFIOS DO DIREITO
CONTRATUAL
É incontestável que vivenciamos, hoje, na sociedade, a transformação da
idéia do individual para a concepção do coletivo, do bem comum e do social,
restando clara a impossibilidade de permanência de uma sociedade nos moldes do
liberalismo, em que o maior desejo do indivíduo era a omissão do Estado74.
Caio Mario da Silva Pereira75, enfrentando essa realidade, assim se
manifestou:
“O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das idéias dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em benefício da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado reforço.”
E:
“O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresárias; a regulamentação dos meios de produção e
74 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. Pág. 52. “Até então, o Estado não intervencionista ocupava, diante dos direitos fundamentais, uma postura estritamente omissiva, o que agradava aos teóricos do liberalismo. Buscava-se a igualdade política deixando-se de lado a econômica”. 75 Caio Mario da Silva Pereira. Instituição de Direito Civil. Contratos. Pág. 29.
42
distribuição; e, sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobre os de ordem privada76”.
Sabemos que, ao liberalismo, está atrelada a idéia de um mínimo jurídico,
segundo a qual apenas na lei, pode existir alguma limitação à autonomia da
vontade, admitindo-se isso como um pressuposto, mesmo que não declarado.
Portanto, conseqüência desse liberalismo, será a atividade econômica alheia
ao Estado e, totalmente, dependente da iniciativa dos particulares, que realizam
seus desejos e se relacionam através do contrato77, fato esse que, como já
mencionamos, teve também seus aspectos sociais positivos.
Como se pode notar, esse liberalismo precisou ser corrigido, já que as
injustiças se avolumaram, em razão da ideologia liberal de base capitalista
burguesa78, que só beneficiava os detentores do poder econômico, propiciando, aos
que pertenciam às classes privilegiadas, a oportunidade de explorar o mais fraco, o
mais pobre, e o mais necessitado.
Nessa perspectiva, salientamos que, no nosso sistema constitucional, a livre
iniciativa, consagrada no liberalismo econômico do século XIX, é um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil e um princípio geral da atividade
econômica79.
76 Apud, Messineo Dottrina Generale del Contratto, nº 11, pág. 15. 77 J.M. Leoni Lopes de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil. Pág 556. 78 Idem. 79 Constituição Federal de 1988. Artigo 170, caput. “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:”
43
Ressaltamos que esses princípios contêm, hoje, um significado diverso,
como assevera Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel80:
“O atual sistema econômico constitucional confere à livre iniciativa um significado diverso daquele empregado no período individualista liberal, em que preconizava a mínima intervenção estatal nas relações econômicas.”
A superação do individualismo se constata com a transformação do Estado
Liberal em Estado Social, o que, no Brasil, oficialmente se verifica de forma
expressa, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no seu
preâmbulo81.
O Estado Social, fundado nos direitos sociais e nos princípios de justiça
social e igualdade material, surge após as trágicas experiências com as guerras
mundiais, quando o valor humano82 passa a ocupar o topo dos ordenamentos
jurídicos, que evidenciam um compromisso com o ideal de justiça, respeito e
preservação da dignidade humana.
A fim de cumprir esse compromisso é que se justifica a intervenção do
Estado, como garantidor da ordem jurídica, já que a economia passa a ser vista pela
ordem jurídica sob o aspecto da solidariedade social.
80 Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel.Liberdade e Direito Privado. Pág.24. 81 Constituição da República Federativa do Brasil. Preâmbulo: “... instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. 82 Constituição Federal de 1988. Artigo 1º, III.
44
É inquestionável e incontestável a prevalência das idéias e do espírito
social contidas no nosso ordenamento jurídico, conforme se depreende do
preâmbulo da Constituição Federal, onde encontramos, de forma cristalina, seu
pressuposto básico, bastando, para isso, verificar o artigo 1º, que consagrou, entre
os fundamentos do Estado Democrático de Direito, o princípio fundamental da
“dignidade da pessoa humana.”
Temos, então, que a denominada solidariedade social, no direito privado,
seria o reflexo do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, e,
seguindo esse raciocínio, haveria, então, o reflexo desse princípio fundamental em
todos os princípios do direito privado, incluindo, naturalmente, aqueles que norteiam
o direito contratual.
Nesse sentido, defendendo a intervenção do Estado para a concretização do
princípio da justiça social e igualdade material, assevera Eduardo Teixeira Farah83:
“Torna-se necessária e obrigatória a intervenção do Estado na ordem econômica para a concretização destes dogmas. A diretriz da solidariedade social impõe seja observado em toda e qualquer atividade empresarial um mínimo de racionalidade econômica, pois não haverá justiça econômica e pleno desenvolvimento se não for garantido um mínimo de equilíbrio material no campo das relações econômicas da sociedade.”
No campo da relação entre particulares, considerando todos os princípios
contidos no sistema constitucional, temos que ressaltar que não podemos
generalizar, ou até mesmo banalizar, os valores que esses princípios consagram,
83 Eduardo Teixeira Farah. Disciplina da Empresa e princípio da solidariedade social. Pág.679.
45
aplicando-os a toda e qualquer relação que se estabeleça, sob pena de vermos
estancar o processo de desenvolvimento social.
Isso porque, se para atingir o ideal de desenvolvimento social traçado na
Constituição, faz-se necessária a intervenção do Estado na relação entre
particulares, essa intervenção há de ser específica, submetida ao princípio da
legalidade, de forma a ser utilizada para proteger todos os indivíduos.
Frisamos, ainda, que o desenvolvimento da nossa sociedade deve-se, em
elevadíssima escala, à iniciativa privada, que assume riscos e, muitas vezes,
amarga imensos prejuízos contratuais, mesmo frente ao Estado, que, conforme
previsão constitucional, tem o dever de proteger essa iniciativa, para que se cumpra
os objetivos constitucionais.
De outra forma, estaríamos descumprindo um outro preceito constitucional,
pois, como já mencionado, entre os objetivos fundamentais, a Constituição Federal
elegeu, também, em seu artigo 3º, a garantia do desenvolvimento nacional84, sendo,
o contrato, um dos instrumentos que, sem dúvidas, propicia esse desenvolvimento.
Reforçamos a nossa concordância, com a regulamentação que limita a
autonomia privada, desde que observados os critérios legais, pois, como se sabe,
está comprovado, por toda a humanidade, que a idéia de que, quanto menos direito,
mais liberdade, não proporciona a realização do bem comum, nem atende à justiça
social85.
84 Constituição Federal de 1988. “Artigo 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: inciso II: garantir o desenvolvimento nacional”. 85 J.M. Leoni Lopes de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil. Pág 557.
46
Nessa direção, o que se espera do Estado, enquanto garantidor da ordem
jurídica, é que a intervenção, na seara dos contratos, seja no sentido de normatizar,
prevenir, e, quando necessário, impedir a exploração dos mais fracos, buscando
sempre os meios de realização equilibrada dos negócios, para que a sociedade
atinja os seus fins.
Nesse sentido, torna-se oportuna a lição de Pietro Perlingieri86:
“O Estado tem a tarefa de intervir e de programar na medida em que realiza os interesses existenciais e individuais, de maneira que a realização deles é, ao mesmo tempo, fundamento e justificação da sua intervenção”.
De outra parte, temos que mencionar que só o Estado é capaz de garantir a
harmonia e, até mesmo, a liberdade dos indivíduos, contextualizada na sociedade
contemporânea em que, caracteristicamente, nos deparamos com a massificação e
o consumerismo.
Verificamos, então, que a questão da intervenção do Estado na relação
entre particulares exige análise com extrema cautela e prudência, pois, uma vez que
essa intervenção extrapole os limites fixados pela lei, corremos o grande risco de
assistir ao esvaziamento do contrato, o que seria, em outras palavras, “matar o
paciente, pela dosagem excessiva do remédio, que a princípio tinha a missão de
curá-lo”.
Constatamos, novamente, a suma importância do contrato, que, mesmo sob
o prisma de contextualização do Estado Social, deve ter preservada a sua essência. 86 Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil. Pág. 55.
47
Oportuna é a lição de lição de Humberto Theodoro Junior87:
“O contrato é um instituto de origem econômica e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser ignorados pela lei e muito menos pelo aplicador da lei. O contrato sem função econômica simplesmente não é contrato.”
Aspecto que, por outro lado, não pode ser esquecido e que justifica a
intervenção do Estado, é que, sob o ponto de vista da sociedade contemporânea,
marcada pelos contratos de consumo, haja vista a necessidade dos indivíduos terem
necessidades em comum, torna-se difícil, ou quase impossível, pensar em proteção
individual, para cada um que contrata nessas condições.
Sob essa perspectiva, verificamos que o pensamento jurídico está voltado
amplamente para o coletivo, para o social88, já que a necessidade de um, é,
também, a necessidade de um número incontável de indivíduos.
Diante dessa realidade, a cada momento, surge para o jurista, para o
legislador, e para os operadores do direito, um novo desafio, a saber: a exigência de
solução pontual para problemas que, na verdade, são problemas comuns a grande
parte dos indivíduos.
Em última análise, nas relações contratuais de consumo exige-se,
atualmente, uma reflexão constante em prol da coletividade, buscando viabilizar e
87 Humberto Theodoro Junior. O contrato e sua Função Social. Pág. 101. 88 Darcy Bessone de Oliveira Andrade. Aspectos da Evolução da Teoria dos Contratos. Pág. 109. “Tornou-se necessário substituir um individualismo abstrato e inorgânico por outro que se ligue, organicamente, à finalidade social do Estado e harmonize a moral individualista com a moral social, transformando-se os códigos de puro direito privado em códigos de direito privado social”.
48
adequar o contrato e essa nova realidade, não existindo mais possibilidade de se
manter o ultrapassado conceito individualista89.
Assim, temos que a solução só poderia ser a utilização de uma legislação
especial para esse segmento da sociedade, abandonando-se os dogmas que,
durante muitos anos, impediram uma reformulação e uma modernização nos
princípios contratuais, adequando-os, assim, à nova realidade social, criando-se,
então, o Código de Defesa do Consumidor, para regular e proteger essas relações
contratuais.
É nesse sentido a lição de Rogério Ferraz Donnini90:
“Independentemente da discussão a respeito da publicização do Direito Civil, o legislador pátrio, ao criar o Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.078/90) cumpriu os exatos termos da Constituição Federal, que no art. 170 estabelece como princípio constitucional, a defesa do consumidor.”
Parece-nos lógico que para essa sociedade massificada91, não poderia ser
mantida a proteção contratual estabelecida no Código Civil, já que é evidente a
desigualdade entre os contratantes, denominados consumidor e fornecedor.
Mesmo tendo o Código Civil vigente suas bases alicerçadas em princípios
éticos, pensar na aplicação do princípio da autonomia da vontade, tal qual em sua
89 Cristiano Heineck Schmitt. Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo. Pág.31. “Passaram a ser chamados ‘contratos de massa’, pois celebrados com toda a coletividade. A massificação e a despersonalização das relações contratuais fizeram surgir a figura do consumidor.” 90 Rogério Ferraz Donnini. A Constituição Federal e a concepção social do contrato. Pág. 74. 91 Idem. “Com efeito, os contratos de massa, celebrados entre consumidores e fornecedores, antes do advento do CDC, tinham um tratamento inadequado no Código Civil, que tratava as partes segundo uma igualdade formal, realizando uma evidente função individual”.
49
origem, para os contratos de consumo, tornaria impraticável a contratação92, pois,
como sabemos, e podemos afirmar, sem medo de errar, atualmente, é na forma
padronizada que se realizam essas contratações.
Certamente, a transformação ocorrida na sociedade obrigou o Estado a
interferir mais nas relações entre particulares, como já observamos, adotando
sistemas jurídicos específicos, para a proteção dos indivíduos que, nesse novo
cenário social, são considerados hipossuficientes.
Essas providências, adotadas pelo Estado, se revelam através de
legislações especiais, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor, que surge
para trazer maior equilíbrio entre os contratantes, bem como segurança jurídica para
a concretização dos negócios.
Eis aqui a zona cinzenta, que paira sobre o sistema jurídico. Se, por um
lado, há necessidade da interferência do Estado, para equilibrar relações
particulares, no âmbito do contrato de consumo, por outro, não consideramos
adequada a pretensão de generalizar essa interferência, de modo que também atinja
os contratos regidos pelas regras contidas no Código Civil.
O grande desafio, instaurado na seara contratual, consiste, exatamente, na
tarefa de harmonizar os princípios constitucionais e o interesse privado, tendo em
vista o estabelecimento dos novos princípios éticos-sociais, que disciplinam o direito
privado.
92 Idem. Pág.369. “A autonomia da vontade não mais se harmoniza com o novo direito dos contratos. a economia de massa exige contratos impessoais e padronizados; doutro modo, o individualismo tornaria a sociedade inviável.”
50
Sem dúvida, será árdua a tarefa, que cabe aos estudiosos do direito, ao
judiciário e aos próprios contratantes, pois, ao contrário do que muitos defendem, o
princípio da força obrigatória dos contratos continua vigente no nosso ordenamento,
a bem da segurança jurídica.
Ademais, entendemos que esse princípio é essencial para a sobrevivência
da sociedade, tendo, portanto, a mesma importância que o princípio fundamental da
dignidade humana.
3.1. A CRISE NO DIREITO CONTRATUAL.
A Constituição Federal de 1988, inegavelmente, interferiu no âmbito do
Direito Privado, especialmente no campo contratual, tendo, com isso, desencadeado
a denominada crise contratual, que pode ser traduzida como mitigação dos
princípios contratuais tradicionais, bem como pelo entendimento de que esses
princípios estejam sendo colocados em risco.
Rogério Ferraz Donnini93, antes mesmo da vigência do atual Código Civil, já
aduzia que:
“A crise no sistema contratual da sociedade moderna fez com que se chegasse a proclamar a morte do contrato94. No entanto, o que houve foi sua transformação, que se deu pela interferência direta do Direito Público sobre o Privado, com a criação de normas cogentes para regular algumas avenças, como ‘verbi gratia’, os contratos de consumo”.
93 A Constituição Federal e a concepção social do contrato. Pág. 74 94 Apud.Grant Gilmore. La morte del contratto. Milano: Giuffrè, 1988. Rogério Ferraz Donnini. Pág 74.
51
Silvio de Salvo Venosa95 afirma não existir crise no direito contratual, nem
sequer no direito privado, mas sim uma crise que está situada na própria evolução
da sociedade, posição essa que nos parece ser muito coerente diante da realidade
social.
Entendemos que a denominada ‘crise’ consiste na dificuldade de aceitarmos
que a autonomia da vontade, tal qual concebida no Código Civil de 1916, não mais
se compatibiliza com as diretrizes traçadas pelo Código Civil de 2002.
Giselda Hironaka96, a esse respeito, assevera que:
“A denominada crise dos contratos tem como pano de fundo a confusão entre liberdade de contratar e liberdade contratual, mas o contrato continua a prosseguir como o que sempre fundamentalmente foi: um instrumento essencial da organização social”.
No nosso entendimento, a dificuldade não reside na compreensão dos
valores que foram agregados ao ordenamento jurídico, mas na sua concretização,
uma vez que a estrutura da relação jurídica deve ser mantida e os princípios que
regem a relação entre particulares, respeitados.
Nesse sentido, o Código Civil vigente faz do contrato um elemento de
eficácia social, o que significa dizer que o contrato deve ser cumprido, não apenas
em razão do credor da obrigação, mas, também, em prol de toda a sociedade.
95 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos. Pág. 368. 96 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Contrato: Estrutura Milenar de Fundação de Direito Privado. Pág. 248.
52
Como se sabe, os contratos são regidos pelos princípios da autonomia da
vontade e da relatividade, já que somente as partes, que assumiram a obrigação,
ficam a ela vinculadas, e, portanto, da união desses dois princípios fica estabelecido
que o contrato faz lei entre as partes.
Assim, mesmo sob o enfoque da diminuição da força do princípio da
autonomia da vontade, temos que ressaltar que o contrato interessa somente às
partes que realizaram o negócio, o que se traduz na expressão res inter alios.
Portanto, será necessária a conscientização de que, no contrato, as partes
não são adversárias97, isso porque todas elas buscam o equilíbrio, para atingirem,
com justiça, o objetivo, definido previamente, por elas próprias.
Dessa forma, há que se ter cautela com a utilização de alguns termos como
“social”, “coletivo”, ao se interpretar as palavras contidas nos princípios basilares que
regem o Código Civil de 2002.
Parece-nos que somente os efeitos do contrato interessam para a
sociedade, mas não o contrato em si, já que o contrato que obedece a todos os
preceitos legais, quando cumprido, resulta em benefícios para toda sociedade.
Somente nesse aspecto é que visualizamos a prevalência do interesse
social sobre o individual, em se tratando de negócio jurídico regido pelo Código Civil
vigente.
97 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código Civil. Pág. 69. “Em vez de adversários, os contratantes passaram, num número cada vez maior de contratos, a serem caracterizados como parceiro, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e eqüitativa”.
53
Sob esse prisma, aplaudimos o legislador, que premiou nossa sociedade
com o artigo 42198 do Código Civil de 2002, impondo limites à liberdade99 de
contratar, pela função social do contrato, tema que abordaremos mais adiante.
A título de exemplificação, citamos o contrato de locação, cujos efeitos
interessam a toda sociedade, tendo em vista a necessidade de moradia, mas o
contrato, em si, em termos de prazo, valores e garantias, diz respeito apenas aos
contratantes, e, seguindo o raciocínio, caso ocorra inadimplemento durante a
execução do contrato, com o consequente despejo do locatário, não há que se
pensar em argumentar que o contrato de locação não tenha obedecido as novas
diretrizes estabelecidas pelo Código Civil vigente.
Mais uma vez, nota-se que a malfadada ‘crise’ situa-se na dificuldade em
harmonizar o espírito da lei, que está contido nas orientações trazidas pelo Código
Civil de 2002, especificamente, nas cláusulas gerais, com os fundamentos e os
objetivos constitucionais, estabelecidos em prol do desenvolvimento de toda a
sociedade, a constituir pretexto para maior interferência do Estado nos negócios
privados.
Ademais, nos parece que a intenção do legislador tenha sido, justamente,
permitir que a sociedade possa se desenvolver, respeitando os contratos firmados,
concretizando-se, dessa forma, a circulação de riquezas, agora sob as novas
diretrizes, estabelecidas pelo Código Civil de 2002, quais sejam: a eticidade,
socialidade e operabilidade.
98 Código Civil 2002. Artigo 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 99 Guillermo Borda. Manual de contractos. “O homem moderno já não mais aceita o dogma no sentido de que seja justo tudo que seja livre”.
54
Confirmando o interesse na harmonização dos princípios, encontramos, no
nosso ordenamento, situações escolhidas pelo legislador, que permitem a revisão do
contrato. Isso nos permite dizer que o legislador reconhece que o contrato seja algo
dinâmico, bem como evidencia que viabilizar o seu cumprimento, consiste em admitir
que o contrato deva ser preservado.
Por esta razão, nosso ordenamento jurídico, demonstrando o escopo do
legislador de não colocar em perigo toda a estrutura da relação jurídica, admite a
anulação do contrato por lesão, a sua resolução ou a sua revisão em razão de
excessiva onerosidade, a sua cessão, a oponibilidade das cláusulas a terceiros não
contratantes, além da substituição de cláusulas100.
Para preservar o contrato, mesmo sendo necessária a substituição de
cláusulas, devemos entender que, buscar solução para dirimir os eventuais
problemas, é algo inerente ao dever de cooperação e de lealdade, que incumbe aos
contratantes, por força do conteúdo, que há no conceito de boa-fé objetiva,
expressamente consignado no artigo 422 do Código Civil vigente101.
Portanto, o dever de preservar o contrato é algo que se extrai da
interpretação teleológica da lei, e, caso não se admitisse a revisão, por se entender
que as idéias individualistas ainda devem prevalecer, estaríamos diante de uma
situação contraditória, já que o Direito, em si próprio, desempenha um papel
social102.
100 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código Civil. Pág.70. 101 Código Civil. Artigo 422. “ Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” 102 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e o seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 37. “Quando – neste contexto se fala em papel social do Direito – quer-se significar ‘papel social contrariamente ao individualismo”.
55
Desta forma, julgamos oportuno transcrever as palavras de Arnold Wald103,
que entende, como questão de sobrevivência, a exigência de adequação do contrato
à realidade social:
“Num mundo em que nada mais é absoluto, o contrato, para subsistir, aderiu ao relativismo, que se tornou condição ‘sine qua non’ de sua sobrevivência no tempo, em virtude da incerteza generalizada, da globalização da economia e da imprevisão institucionalizada”.
Assim, a preocupação da consciência jurídica situa-se na efetiva realização
do direito nessa nova realidade social, pois a experiência demonstrou que uma
postura exacerbadamente positivista não atende esse objetivo, o que contribuiu para
que o Estado interferisse nas relações jurídicas, ao que denominamos dirigismo
contratual.
3.2. DIRIGISMO CONTRATUAL.
Após a revolução industrial, quando as empresas passam a ter importância
fundamental, a sociedade é marcada, no aspecto pertinente a atividade contratual,
pela diferença gritante que se estabelece entre os contratantes, haja vista o flagrante
desequilíbrio econômico existente entre as partes.
A criação de grandes empresas, produzindo bens em larga escala, contribui,
evidentemente, com o desenvolvimento econômico e incentiva o consumo em
103 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código Civil. Pág. 71.
56
massa da população, cujo crescimento, como sabemos, foi demasiadamente
grande, fenômeno a que se atribui o título de explosão demográfica.
Essa é uma característica da sociedade pós-moderna, consumerista, na qual
os bens são destinados a atender necessidades, cada vez mais urgentes, que,
diariamente, se renovam, diante do surgimento de novos produtos e serviços, em
substituição imediata daqueles bens que, até pouco tempo, eram considerados
necessários, ou, até mesmo, essenciais.
Essa realidade nos revela que não há limites para as descobertas
tecnológicas na busca da satisfação do desejo humano, o que acarreta no
surgimento de novas maneiras de relações jurídicas e, consequentemente,
necessidade de se adequar, a proteção correspondente.
A nova sociedade exige, especificamente na seara contratual, uma regra
jurídica mais flexível, que permita uma proteção jurídica diferenciada, para a
realização dos negócios, que evoluem e se transformam ilimitadamente.
Pensando o contrato, e posicionando-o, em termos de tempo e lugar, nos
deparamos com mais uma realidade, qual seja, a de que os contratos, em sua
grande maioria, não se efetivam mais entre pessoas físicas, como ocorria no
passado. Nesse negócio jurídico, em que as partes podem discutir em igualdade de
condições o conteúdo do contrato, é que se encontra a concepção originária de
contrato paritário104, no qual prevalece a autonomia da vontade propriamente dita.
104 Silvio de salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos. pág. 366. “A idéia de um contrato absolutamente paritário é aquela ínsita ao direito privado. Duas pessoas, ao tratarem de um objeto a ser contratado, discutem todas as cláusulas minudentemente, propõem e contrapopõem a respeito de preço, prazo, condições, formas de pagamento etc. até chegarem ao momento culminante, que é a conclusão do contrato”.
57
A esse respeito, Silvio de Salvo Venosa105 assim se manifesta:
“No contrato paritário a autonomia da vontade tem lugar verdadeiramente destacado, pois quem vende ou compra, aluga ou toma alugado, empresta ou toma emprestado, está em igualdade de condições para impor sua vontade nesta ou naquela cláusula”.
O jurista cita, ainda, que nessa forma de contratação, pressupõe-se a
igualdade absoluta entre as partes, sendo que, ambas, são detentoras do mesmo
poder, permitindo a fácil constatação do equilíbrio do contrato, situação essa que
significa a busca de um ideal, mas “Esse ideal, na verdade, nunca foi atingido”.
Afirmamos, em concordância com o citado jurista, que esse tipo de negócio
jurídico não desapareceu, já que suas regras continuam presentes no Código Civil
de 2002 e, normalmente, o objeto desse contrato é individualizado. Constata-se que
essa forma de contratação torna-se cada vez mais rara nos dias atuais.
Embora tenha se tornado mais escassa, essa é a forma de contratação que
entendemos fazer parte da essência do negócio jurídico, sendo o pilar em que se
fundamenta o direito de contratar, base do direito privado, a que todo indivíduo tem
direito constitucionalmente garantido.
Dessa forma, verificamos mais uma característica da sociedade
contemporânea, denominada sociedade de consumo, ou seja, a abundante
105 idem
58
contratação com as pessoas jurídicas106, fornecedoras dos serviços e dos bens
necessários ao bem-estar da sociedade.
Importante destacarmos, também, outra característica da sociedade
contemporânea, que influencia na realização dos negócios jurídicos, que vem a ser
o fato de que, atualmente, riqueza não é sinônimo de propriedade107, razão porque o
contrato assume, cada vez mais, um papel de suma importância para a vida
negocial. Isso porque, os valores imateriais e, também, os mobiliários são geradores
de recursos e alavancadores da economia, em prol do desenvolvimento da
sociedade.
Ademais, na sociedade contemporânea, a atividade empresarial e o estímulo
para o consumo são constantes, e, contrariamente ao que acontecia na sociedade
agrícola, na qual a circulação de riqueza dependia da propriedade, atualmente, a
principal fonte de recursos, responsável pela movimentação da riqueza, passa a ser
a empresa108, visão essa absolutamente contextualizada com o capitalismo.
Destarte, o contrato é, hoje, um instrumento de suma importância, para a
realização dos negócios na sociedade massificada, onde, diariamente, as pessoas e
106 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. Pág. 4. “Entretanto essa espécie de contrato, essencialmente privado e paritário, representa hodiernamente uma pequena parcela do mundo negocial. Os contratos em geral são celebrados com a pessoa jurídica, com a empresa, com os grandes capitalistas e com o Estado.” 107 Enzo Roppo. O contrato. 1988. “Com o progredir do modo de produção capitalista, com o multiplicar-se e complicar-se das relações econômicas, abre-se um processo que poderemos definir como de imobilização e desmaterialização da riqueza, a qual tende a subtrair ao direito de propriedade (como poder de gozar e dispor, numa perspectiva estática, das coisas materiais e especialmente dos bens imóveis) a sua supremacia entre os instrumentos de controle e gestão de riqueza. Num sistema capitalista desenvolvido, a riqueza de fato não se identifica apenas com as coisas materiais e com o direito de usá-las; ela consiste também, e, sobretudo, em bens imateriais, em relações, em promessas alheias e no correspondente direito ao comportamento de outrem, ou seja, a pretender de outrem algo que não consiste necessariamente numa res a possuir em propriedade”. 108 Referimos-nos a empresa como atividade econômica organizada onde se verifica a conjugação dos cinco fatores de produção, capital, trabalho, tecnologia e matéria prima.
59
as empresas estão contratando, em qualquer parte do mundo, já que não existem
mais barreiras ou fronteiras para o capital.
Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira109, já no ano de 1959,
escrevendo sobre a lesão nos contratos, demonstrava profunda preocupação com a
necessária retomada da aplicação da equidade, face à percepção da transformação
rápida que haveria na sociedade. Essa transformação social alteraria,
substancialmente, as regras de convivência entre os indivíduos, apontando para o
perigo da permanência, no ordenamento jurídico, do positivismo exacerbado.
É essa estrutura de massa, originada pelo contingente de indivíduos, que
necessitam consumir bens e serviços, que modificou, radicalmente, as estruturas do
contrato110.
Nesse contexto, é evidente, a necessidade de intervenção do Estado nos
negócios realizados entre particulares, com o propósito de restabelecer o equilíbrio
perdido por força das circunstâncias impostas pela própria sociedade.
Esse dirigismo consiste, justamente, na possibilidade de interferência do
Estado nas relações jurídicas privadas, instrumentalizadas pelos contratos, quando,
em razão do seu conteúdo, do segmento econômico, ou da absoluta impossibilidade
de escolha para um dos contratantes, propiciem situações de abuso do poder
econômico, privilégio no exercício da liberdade e exploração do ser humano, o que
significa verdadeira ameaça aos direitos fundamentais.
109 Caio Mario da Silva Pereira. Lesão nos Contratos. Prefácio. “Não é de mal advertir que o instituto da lesão nasceu sob o signo da equidade, e que há de sobreviver no propósito de reprimir a exploração de um contratante pelo outro, incutindo na vida negocial o respeito pela eternidade filosófica da regra moral, em um mundo cada vez mais egoísta”. 110 Cristiano Heineck Schmitt. Cláusulas Abusivas nas relações de consumo. Pág.31. “A emergência do mercado de massa, fenômeno social, econômico e cultural do nosso tempo, decorrente da expansão industrial ocorrida no século XIX, modificou as estruturas tradicionais do contrato”.
60
Nesse sentido, é a lição de Maria Helena Diniz111:
“O princípio da autonomia da vontade sofre, portanto, restrições, trazidas pelo dirigismo contratual, que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico contratual, por entender-se que, se se deixasse o contratante estipular livremente o contrato, ajustando qualquer cláusula sem que o magistrado pudesse interferir, mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína, a ordem jurídica não estaria assegurando a igualdade econômica.”
Reforçando esse entendimento, colacionamos a lição de Álvaro Villaça
Azevedo112:
“Não se deve colocar no arbítrio das partes muita liberdade sem muita limitação e a tendência moderna é a de intervir cada vez mais, o Estado na ordem social e econômica, para que as pessoas não usem o poder social ou econômico para oprimir seus semelhantes”.
É inegável que o contratante, como sujeito de direito, inserido nessa
realidade negocial, em que as necessidades individuais são uniformes, na grande
maioria das vezes, necessita de uma proteção especial, tamanha a evidência da sua
vulnerabilidade.
Sobre o fundamento do dirigismo contratual, Maria Helena Diniz113 aduz que:
111 Maria Helena Diniz. Direito Civil Brasileiro. Vol. 3. Pág. 34. 112 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos Contratos típicos e atípicos. P.14. 113 Maria Helena Diniz. Direito Civil Brasileiro. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. Pág. 35.
61
“A expressão dirigismo contratual é aplicável às medidas restritivas estatais que invocam a supremacia dos interesses coletivos sobre os meros interesses individuais dos contraentes, com o escopo de dar execução à política do Estado de coordenar os vários setores da vida econômica e de proteger os economicamente mais fracos, sacrificando benefícios particulares em prol da coletividade, mas sempre conciliando os interesses das partes e os da sociedade”.
Caio Mario da Silva Pereira114, com muita propriedade, revela a reação de
alguns juristas, diante dessa nova realidade:
“Esse movimento intervencionista ganha corpo, na medida em que aumentam a extensão e a intensidade das normas de ordem pública e chega a inspirar em juristas apegados às noções tradicionais a crença no desprestígio ou mesmo na morte do contrato (André Toullemon, Gaston Morin, Barreyere), por não admitirem uma vontade contratual que não seja filha da plena liberdade.”
Ressalte-se que o dirigismo contratual não pode ser admitido irrestritamente,
caso contrário, os efeitos seriam desastrosos para a sociedade.
A interferência do Estado não pode desestimular o investimento de capital
pelos particulares, pois são as empresas que assumem, em várias situações, a
responsabilidade de desenvolver a sociedade, função que, em muitas atividades,
caberia ao Estado.
A esse respeito, é esclarecedora a lição de Nelson Nery Junior115:
114 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Contratos. Pág. 28. 115 Nelson Nery Junior. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. Pág. 502.
62
“O dirigismo contratual não se dá em qualquer situação, mas apenas nas relações jurídicas consideradas como merecedoras de controle estatal para que seja mantido o desejado equilíbrio entre as partes contratantes.”
Frequentemente notamos essa intervenção do Estado no âmbito da
vontade privada, através da limitação imposta para a fixação de preços em
produtos ou serviços considerados essenciais, na determinação de valores
máximos, a serem praticados na cobrança de tarifas, por exemplo, no setor
bancário, bem como na fixação de índices aplicáveis na correção de contratos de
locação de imóveis.
Nessas situações, a intervenção na vontade se dá através de proibição, ou,
então, com o estabelecimento obrigatório de algumas cláusulas116, as quais, sendo
normas de ordem pública, não permitem que os contratantes possam manifestar
vontades, que contrariem essas determinações.
Portanto, impondo algumas cláusulas, a liberdade para fixar o conteúdo dos
contratos passa a sofrer fortes limitações, as normas de ordem pública, até então
aplicadas supletivamente, passam a vigorar no conteúdo e, até mesmo, a reger
alguns contratos de forma obrigatória.
Dessa forma, com a intervenção do Estado na relação jurídica privada,
ocorre uma transformação no exercício da vontade individual, embora a liberdade de
contratar, sob alguns aspectos, mantenha-se intocável, isto é, respeita-se a
liberdade de escolha, para contratar ou não.
116 Silvio de Salvo Venosa. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Pág.387. “A lei determina, pois, o conteúdo do contrato, limitando e delimitando a vontade dos contratantes ou, mais comumente, de determinada classe de contratantes”.
63
Do mesmo modo, a liberdade para criar tipos contratuais também é
preservada, sendo possível a realização de contratos inominados, atípicos e mistos,
desde que, naturalmente, seja observada a exigência do fiel cumprimento das
normas de ordem pública117.
Sob o ponto de vista das idéias socialistas e solidaristas, entendemos que a
intervenção do Estado visa à proteção dos indivíduos economicamente mais fracos.
Exemplos dessa intervenção podem ser verificados no direito do trabalho,
através da Consolidação das Leis do Trabalho; na legislação que trata da locação
imobiliária - Lei 8.245/91; na fixação de percentuais máximos para cobrança de juros
nas Instituições Financeiras sob fiscalização do Banco Central; no tabelamento de
preços para alguns gêneros alimentícios, quando necessário e, de forma específica,
na elaboração do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90.
Analisando os exemplos citados, percebemos que os bens que merecem
essa proteção jurídica, através da intervenção do Estado na vontade do particular,
são de altíssima relevância social e, por isso, justificam essa tutela diferenciada.
Pelos exemplos citados, entendemos que essa intervenção do Estado faz-se
necessária, uma vez que o contratante economicamente forte, podendo estabelecer
livremente o conteúdo de um contrato, certamente estabeleceria cláusulas que o
deixariam em vantagem absurdamente maior, em relação ao contratante fraco, que,
117 Arruda Alvim. Cláusulas abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág.35. “O único limite à manifestação livre de vontade foi sempre o das normas de ordem pública, com natureza de regras imperativas ou cogentes.”
64
impossibilitado de optar, faria adesão118 ao contrato, sofrendo as conseqüências do
abuso praticado.
Por essa razão, na sociedade contemporânea, passa a ser cada vez mais
difícil sustentarmos a idéia de uma contratação absolutamente livre.
Nesse sentido, ensina Paulo Luiz Neto Lôbo 119, que: “É veemente a
necessidade de limites ao poder empresarial assim como foi necessário limitar o
poder do Estado Absolutista”.
Nesse contexto, ressaltamos que, no Código de Defesa do Consumidor, cujo
conteúdo normativo tem caráter essencialmente social, rotineiramente verificamos a
interferência do Estado, protegendo o indivíduo inserido na sociedade massificada.
Essa proteção especial que a lei proporciona ao consumidor faz-se
necessária e, a esse respeito, concordamos com o ensinamento de Silvio de Salvo
Venosa120, que, se referindo ao consumidor, afirma: “É ele a parte mais importante
para a sociedade capitalista e ao mesmo tempo a mais vulnerável e desprotegida na
relação contratual.”
Para que não exista qualquer dúvida quanto à possibilidade de intervenção
do Estado na relação privada, o Supremo Tribunal Federal121 assim se manifesta:
118 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 33. “Essa padronização veio, justamente pelo que se acabou de dizer, a encontrar determinados limites, na ordem jurídica, exatamente pelas circunstâncias de avantajamento de uma das partes contratantes, a dano eventual da outra parte, que é o aderente. Tais limitações, de ordem pública, obstam certas vantagens, na medida em que estas encontrem-se ou possam estar definidas como abusivas.” 119 Paulo Luiz Neto Lobo.Cláusulas Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. Pág. 15/16. 120 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos.Pág.368. 121 AgRg em AgIn 21475/ SP, proferido pela 1ª Turma, relator Ministro Moreira Alves, DJ 05.03.1999.
65
“Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa regular a política de preços de bens e serviços, abusivos que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros”.
Salientamos que a contratação estandardizada, que ocorre na relação de
consumo, acarreta muitos benefícios para a sociedade, como, por exemplo, a
celeridade, facilidade, simplicidade, menor custo e, também, o aumento no número
de relações jurídicas que, somados, contribuem para o crescimento econômico-
social.
Essas transformações ocorridas na sociedade, que já haviam sido
profetizadas pelos grandes juristas e doutrinadores brasileiros, ocasionaram uma
verdadeira revolução cultural, a exemplo da admissão das assinaturas eletrônicas,
evidenciando que, em muitos casos, não se faz mais necessário o documento
escrito manualmente pelo contratante.
A esse respeito, Arnold Wald122 faz uma observação que julgamos pertinente
ao tema, especificamente, quanto à exigência, que cada vez mais se fará presente
na sociedade, para que o Direito possa acompanhar a evolução e as necessidades
das próximas gerações:
“A nova economia, admitindo a assinatura eletrônica e os e-mails, constitui, pois uma modificação cultural de maior importância com reflexos na própria formação e educação das novas gerações, passando a exigir profunda alteração legislativa.”
122 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. Pág. 63.
66
Salientamos que essa intervenção do Estado na vontade dos particulares
não se dá, exclusivamente, através do Poder Judiciário, podendo ser percebida,
também, através da atuação de outros órgãos da administração pública123 .
Intervindo na relação entre os particulares, ou seja, no contrato, o Estado
pode, através do Poder Judiciário, realizar a revisão do contrato, substituir
cláusulas, alterar a forma de cumprimento da obrigação, substituindo a vontade, ou
ainda, determinar a resolução do contrato.
Nesse âmbito, está situada a teoria da imprevisão adotada pelo nosso
ordenamento jurídico, possibilitando a revisão dos contratos de trato sucessivo ou a
termo, quando, em razão de acontecimento superveniente, extraordinário e
imprevisível, o cumprimento da obrigação tornar-se extremamente oneroso para
uma das partes, conforme prevê o Código Civil vigente.
Nessa situação, o judiciário realiza a revisão do contrato, podendo ser
aplicada, a cláusula rebus sic stantibus124, com o objetivo de restabelecer o
equilíbrio existente, quando da formação do contrato.
Pelo expendido, percebemos que é pacífico, na doutrina, o entendimento
de que somente norma de ordem pública, portanto, através da intervenção do
123 Arruda Alvim. RT 815. Pág. 22. “ O Estado havia de intervir e o controle em nosso sistema jurídico fica deferido ao Poder Judiciário, em última análise. Isto não significa que não possam existir organismos administrativos, que, igualmente, controlem determinados contratos, v.g., entre nós o CADE”. 124 Maria Helena Diniz. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. Pág. 36. “O novo Código Civil, ante o fato de o contrato não mais representar interesses antagônicos, passando a ser uma affectio contratus, baseada numa relação equilibrada, veio não só a recepcionar, nos artigos 317, 478,479 e 480 a rebus sic stantibus, com o escopo de manter a equação contratual, mas também a admiti-la, insitamente nos artigos 393, 1.699, 333, III, 476, 567, 495 e 1.973”.
67
Estado pelo poder judiciário, será possível fixar uma barreira para o exercício da
liberdade de contratar, bem como para o conteúdo de alguns contratos.
Dessa forma, entendemos que as normas do direito privado não são
apenas as normas dispositivas. Essas convivem com normas de ordem pública, que
não podem ser alteradas pela vontade das partes, e, em algumas situações, esses
contratos podem ter o seu conteúdo determinado pelo Estado, por estarem atrelados
a setores que são de interesse de toda a coletividade.
Finalmente, sob a ótica da relevância dos bens que recebem essa tutela,
essa imposição de limites à liberdade de contratar, e de estabelecer o conteúdo do
contrato, espelha a vontade e os valores consagrados pela nossa sociedade. Soma-
se a esse fator a questão das políticas públicas, já que a Constituição Federal de
1988 expressa no artigo 174125, que o Estado é o agente normativo e regulador da
atividade econômica.
3.3. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO.
Como vimos, com a evolução social, a relação estabelecida entre
particulares passa a ser pensada sob um outro prisma, uma vez que o Estado
Liberal desaparece, cedendo espaço para o Estado Social, e a economia passa a
ser vista, pelo sistema jurídico, sob a ótica da solidariedade.
Ressalte-se que essa solidariedade social, fruto do reconhecimento do
princípio ético-juridico da dignidade humana, que resta consagrado
125 Constituição Federal de 1988 – Artigo 174: “ Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
68
constitucionalmente e influenciou toda a sistemática do direito civil, não tem o poder
de aniquilar a liberdade, princípio também consagrado constitucionalmente.
Dessa forma, entende-se que, necessariamente, há de prevalecer o critério
de ponderação entre liberdade e solidariedade, para que o objetivo seja alcançado.
Sobre essa ponderação, Maria Celina Bodin de Moraes126 aduz que:
“Regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade social, isto é, da relação de cada um com o interesse geral, o que reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da comunidade”.
Após a Primeira Guerra Mundial e, de forma mais contundente após a
Segunda Guerra, esses direitos sociais127 passam a ser reconhecidos pelas
Constituições, o que demonstra a preocupação não apenas com os direitos
individuais, mas, também, com a ordem econômica e social.
Nota-se, então, que os Estados estruturam os seus sistemas jurídicos
constitucionais, orientados a consubstanciar a igualdade material entre os
indivíduos, impondo deveres ao Estado, a fim de que esse proporcione os
instrumentos necessários para que igualdade seja atingida.
126 Maria Celina Bodin de Moraes. Constituição e Direito Civil: Tendências. Pág. 55 e 59. 127 João Hora Neto. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002. Pág. 40. “Precisamente, a abertura do sistema jurídico civil decorre da passagem do Estado liberal para o Estado social, este marcadamente intervencionista e comprometido com o ideal de justiça. Na Europa, já a partir da segunda metade do século XIX, e, no Brasil, com a eclosão da primeira Grande Guerra, diversos acontecimentos históricos e movimentos sociais, de variadas matizes, como, por exemplo, a explosão demográfica, a industrialização, a massificação das relações contratuais, a desordenação dos centros urbanos, as doutrinas socialistas, as encíclicas sociais da igreja, o dirigismo contratual, entre outros, ocasionaram o declínio dos dogmas do Estado liberal, e, por conseguinte, a derrocada dos alicerces da civilística clássica, essencialmente individualista, neutra e abstencionista”.
69
Sobre essa formulação do sistema jurídico constitucional, consignando os
direitos sociais, Ana Prata128 assim se manifesta:
“Cria-se, desta forma, um novo modelo político-jurídico, baseado no dever do Estado em garantir a todos os seus cidadãos um mínimo de bens materiais e culturais, ou propiciando que eles possam obtê-lo pelo seu trabalho (direito ao trabalho, direitos dos trabalhadores, liberdade sindical, direito de greve, direito à saúde, direito à assistência social, etc.).”
Como sabemos, foi o horror, vivenciado na guerra, que fez com que a
grande maioria dos povos passasse a se preocupar com a preservação do ser
humano e com a dignidade da pessoa, momento em que o ser humano passa a
ocupar o topo do texto constitucional da grande maioria dos Países.
Portanto, tendo sido tomada consciência da necessidade de se respeitar
a dignidade da pessoa, verifica-se uma maior preocupação com as relações
estabelecidas entre os particulares, e, dessa forma, todas as normas destinadas a
regulamentar essa relação privada passam a refletir o conteúdo axiológico,
consubstanciado no texto constitucional.
Nessa perspectiva, entendemos que a ‘constitucionalização do Direito
Civil’ consiste na inserção de conceitos fundamentais do Direito Civil na Constituição
e, a respeito desse assunto, Miguel Reale129, citando texto de Pontes de Miranda,
fez a seguinte consideração:
128 Ana Prata. A tutela constitucional da autonomia privada. Pág. 11. 129 Miguel Reale. “A Constituição e o Código Civil”. Artigo publicado no site migalhas.com.br em 13de novembro de 2003.
70
“Esse fato é da maior importância para o processo da democratização do País, tendo o jurista Pontes de Miranda salientado que ‘a passagem dos direitos e liberdades às constituições representa uma das maiores conquistas políticas da invenção humana, invenção da democracia”.
Dessa forma, entendemos que os valores, consagrados na nossa
Constituição Federal de 1988, estão presentes em todo o sistema normativo, e toda
interpretação que se dê às normas infraconstitucionais deverá, obrigatoriamente,
estar em consonância com os princípios constitucionais.
É o que verificamos no nosso ordenamento jurídico, após a Promulgação da
Constituição Federal de 1988.
A esse respeito, torna-se oportuna a lição de Maria Celina Bodin130:
“A supremacia axiológica da Constituição passou a se constituir como centro de integração do sistema jurídico de direito privado abrindo caminho para a formulação de um Direito Civil Constitucional”.
No mesmo sentido, Caio Mario da Silva Pereira131 assenta que: “Diante da
primazia da Constituição Federal os direitos fundamentais passaram a ser dotados
da mesma força cogente nas relações públicas e nas relações privadas”.
Assim, entendemos que a Constituição Federal de 1988 não se limita a
definir os direitos políticos e a garantir a livre iniciativa, da mesma forma, que não se
limita apenas a definir a organização do Estado.
130 Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Pág.22. 131 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Contratos. Pág.X.
71
O Código Civil deixa de ser a constituição dos direitos privados, transferindo
esse papel para a Constituição Federal, fato que já se constatava com o aumento,
tanto em quantidade, como em qualidade, das legislações especiais, que foram
surgindo ao longo do tempo, haja vista o Código Civil de 1916 não atender mais aos
valores consagrados na Constituição Federal de 1988.
Devido ao surgimento de tantas legislações especiais, fala-se na doutrina
sobre o movimento de descodificação do direito civil, nesse sentido é a lição de João
de Matos Antunes Varela132:
“As leis deixaram em grande parte de constituir verdadeiras normas gerais para constituírem ‘estatutos privilegiados’ de certas classes profissionais ou de determinados grupos políticos”.
Caio Mario da Silva Pereira133, reforçando o entendimento de que as leis
especiais passaram a ser necessárias e devem ser mantidas, desde que
compatíveis com a lei geral estabelecida no Código Civil de 2002, assim escreve:
“Considero a necessidade de serem preservadas as leis especiais vigentes, salvo a total incompatibilidade com normas expressas no novo Código Civil”. (...)
“Os ‘microssitemas’, que decorrem das leis especiais, constituem pólos autônomos, dotados de princípios próprios, unificados somente pelos valores e princípios constitucionais, impondo-se assim o reconhecimento da inovadora técnica interpretativa.”
132 João de Matos Antunes Varela. O movimento de Descodificação do Direito Civil. Págs. 507-509. 133 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Contratos. Prefácio, XV.
72
Parece-nos, então, que os princípios gerais do direito, antes fixados no
Código Civil, passaram a ter seu espaço reservado na Constituição Federal.
Ademais, nota-se que há, realmente, uma tendência à chamada
‘constitucionalização’, inclusive em outros países, haja vista que: (i) a Constituição
Espanhola, em seu artigo 51134, espelha a defesa do consumidor; (ii) a Constituição
Portuguesa135, também traz, em seu artigo 109, n. 1, a expressa previsão da
intervenção do Estado, quando for necessário garantir o preço adequado para a
aquisição dos bens essenciais à população; e, (iii) da mesma forma acontece na
Constituição Italiana, ao consignar, em seu artigo 41, inc. 2º, a proteção ao
contratante mais fraco, a fim de direcionar a atividade econômica, em consonância
com os fins sociais.
Ressaltamos, ainda, que o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988
expressa, de forma transparente, que as normas definidoras dos direitos e das
garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Admitindo que as normas constitucionais refletem-se, diretamente, nas
normas que regem as relações privadas, é oportuno salientar, muito embora não
seja esse o escopo do nosso trabalho, que, concretamente, não há instrumentos,
constitucionalmente previstos, para garantir a aplicação imediata de todos os direitos
que foram consignados constitucionalmente.
134 Constituição Espanhola. Art. 51, n. 1: “Los poderes publicos garantizarán la defesa de los consumidores y usuarios, protegiendo, mediante procedimientos eficaces, la seguridad, la salud y los legítimos interesses econômicos de los mismos”. 135 Constituição Portuguesa. Art. 109, n.1: “O Estado intervém na racionalização dos circuitos de distribuição e na formação e no controlo dos preços, a fim de combater actividades especulativas, evitar praticas comerciais restritivas e os seus reflexos sobre os preços, e adequar a evolução dos preços de bens essenciais aos objetivos da política econômica e social”.
73
De outra parte, temos que consignar que alguns desses direitos foram
observados, a exemplo do inciso XXXII, do artigo 5º, da Constituição Federal de
1988, in verbis:
“Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXII - O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
Lembramos que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 está inserido no
Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, soma-se a isso a
determinação contida no artigo 48, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, o qual transcrevemos na íntegra: “Art. 48- O congresso Nacional, dentro
de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará o código de defesa
do consumidor”.
Analisando os dispositivos acima, entendemos que a ordem jurídica
determinou novas regras para a interpretação das relações de direito privado,
especificamente, no que diz respeito a relação de consumo, o que implica no
74
reconhecimento de que a defesa do consumidor seja um princípio constitucional, do
qual resulta alteração da autonomia da vontade136 .
Inegavelmente, a constitucionalização137 implica na intervenção do Estado
na autonomia privada, seja através dos princípios e normas, expressamente
declaradas na Constituição Federal, seja através de valores, que deverão estar
refletidos no ordenamento civil.
Em suma, parece que é pacifico o entendimento da doutrina a esse respeito,
o que aponta para um novo posicionamento138, perante as inovações trazidas pelo
Código Civil de 2002, que deve ser o de interpretar as regras contratuais em
absoluta consonância com a Constituição Federal de 1988.
Finalmente, ratificando a idéia da harmonização de normas contidas no
Código Civil de 2002 com a Constituição Federal de 1988, colacionamos o
ensinamento de Miguel Reale139:
“Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente reconhecendo-se cada vez mais que o direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais.”
136 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo. Pág. 106. 137 Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil. Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. “Não se pode mais discorrer sobre limites de um dogma ou mesmo sobre exceções: a Constituição operou uma reviravolta qualitativa e quantitativa na ordem normativa. Os chamados limites à autonomia, colocados à tutela dos contraentes mais frágeis, não são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são expressão direta do ato e de seu significado constitucional”. 138 Alinne Arlette leite Novais. Os novos paradigmas da teoria contratual. Pág.34. “A observância dos princípios constitucionais na aplicação do Código Civil pode se constituir numa via de renovação do Direito, em contraposição a antigos postulados”. 139 Miguel Reale. Exposição de motivos do novo Código Civil.
75
Assim, considerando as transformações ocorridas, podemos perceber que
os seus efeitos consistem no entendimento de que as partes podem livremente
contratar, desde que observadas as normas de ordem pública140, aqui inseridas as
cláusulas gerais e, dentre elas, a da função social do contrato, conforme o parágrafo
único, do artigo 2.035, do Código Civil de 2002, que transcrevemos in verbis:
“Artigo 2.035 - Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
3.3.1. Código de Defesa do Consumidor e o contrato.
Tratar-se-á, a seguir, da verificação de algumas regras e princípios próprios
aos contratos de consumo, bem como do limite de sua aplicação, traçando uma
correlação com o contrato civil, a fim de bem demonstrar a diferença que há entre
esses dois universos.
Como visto, a Lei Maior conduziu a defesa do consumidor à categoria de
direito fundamental, e, portanto, passa a ser cláusula pétrea, consoante o artigo 60,
§ 4º, IV, da Constituição Federal de 1988.
140 Silvio Rodrigues. Direito Civil. Vol. 3. Pág. 16. “A idéia de ordem pública é constituída por aquele conjunto de interesses jurídicos e morais que incumbe a sociedade preservar, por conseguinte, os princípios de ordem pública não podem ser alterados por convenção entre os particulares.”
76
A Constituição Federal, quando trata da ordem econômica e financeira, em
seu artigo 170, leva-nos a entendermos que a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar, a
todos, existência digna, conforme os ditames da justiça social, desde que observado
o princípio da defesa do consumidor.
A Lei Maior faz menção à proteção do consumidor, em seis artigos, a saber:
no artigo 5º, inciso XXXII; no artigo 24, inciso VIII; no artigo 150, § 5º; no artigo 170,
inciso V; no parágrafo único do artigo 175; e, finalmente, no artigo 48 das
Disposições constitucionais transitórias.
Assim, percebemos que a proteção do consumidor é questão de alta
relevância social141, interessando à economia e ao direito.
Ada Pellegrini Grinover142, a esse respeito, assevera que:
“As vigas mestras do novo direito tutelado pelo ordenamento pátrio, como recomendou e dirigiu nossa Constituição da República 1988, repousa na proteção e defesa do consumidor, tendo no princípio da dignidade da pessoa humana, máxime nos direitos da personalidade, sua maior atenção.”
141 Rogério Medeiros Garcia de Lima. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Pág. 31. 142 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Pág. 6/7. 143 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág. 26. “Mas se assim foi, essa nova estrutura e fisionomia da ordem econômica atuou sobre a sociedade e engendrando o fenômeno da massificação, com escala industrial a que nos referimos, implicou, também em imprimir outra fisionomia à atividade comercial, vale dizer, passou-se a viver numa escala industrial de grande porte e numa economia de massa. Isto veio a mudar o panorama da economia, e, ao lado de grandes conglomerados ‘vendedores” passou a existir uma ‘grande massa compradora. A dinâmica desta atividade veio a ser marcada por grande uniformidade. A separação entre os ‘vendedores’ (=fornecedores) e os ‘compradores’ (=consumidores) resultou nítida, com interesses claramente diferenciados, com diferenciação que se acentuou, cada vez mais”.
77
Como já tivemos oportunidade de mencionar, os acontecimentos sociais,
responsáveis pelo surgimento da sociedade de consumo, trouxeram benefícios para
os indivíduos, da mesma forma que os colocaram em situação de extrema
desvantagem na relação contratual estabelecida entre consumidor e fornecedor,
protagonistas nesse cenário contratual.
Lembrando que essa imensa quantidade de indivíduos que possuem as
mesmas necessidades, uniformizadas, a serem satisfeitas pelos mesmos produtos e
serviços, é vista como um grupo, um universo, ou ainda, uma coletividade, a que
denominamos consumidores.
Por outro lado, para atender uma demanda tão grande, temos um outro
grupo, formado pelas empresas que, em razão da capacidade de atender essa
massa de indivíduos, já que possuem conhecimento técnico e poder econômico,
produzem os bens e serviços em grande escala, e, por essa razão, são
denominados fornecedores143.
Esse fenômeno resulta em mudança radical na atividade comercial e
empresarial, e, em razão da imensa quantidade, tanto de fornecedores como de
consumidores, passamos a denominar economia144 de massa, essa realidade em
que tudo, ou quase tudo, passa a ser uniformizado, isto é, tanto a necessidade,
como os bens e serviços que podem satisfazê-la.
Desta forma, somente um contrato uniformizado seria adequado para a
realização dos negócios que se originam dentro deste universo, em que coexistem
fornecedores e consumidores.
144 Arruda Alvim. Idem pág. 32. “Não poucos dizem - tendo em vista a definitiva influência que a economia teve nesse tipo de contratação – que se tem, na hipótese, altamente palpável e expressiva, a criação do Direito através da economia”.
78
Como já mencionado, as necessidades e as formas de satisfazê-las, uma
vez uniformizadas e aliadas às exigências da vida contemporânea, em que tudo
deve ser feito muito rápido, resultaram na elaboração de contratos de conteúdos
também uniformizados145, os quais são os únicos capazes de atender, rapidamente,
às necessidades dos consumidores.
Neste cenário, em que tudo acontece em números exorbitantes, seja em
relação aos negócios, seja em relação à rapidez em que eles se consumam, não
podemos deixar de lado a realidade que também se insere nesta dinâmica, traduzida
em produção de bens e serviços em massa, consumo massivo, e danos também em
massa146.
Esse contrato uniformizado trata-se de um modelo apto a suprir um conjunto
de necessidades estandardizadas, e o seu conteúdo é totalmente estipulado pelo
fornecedor, cabendo ao consumidor, que normalmente necessita do produto ou do
serviço, apenas aceitá-lo integralmente ou então recusá-lo na sua totalidade.
A determinação das cláusulas é realizada pelo fornecedor porque cabe a ele
o conhecimento do produto, bem como a responsabilidade sobre o mesmo, não
havendo, por essas razões, possibilidade de transferência dessas atribuições para o
consumidor.
145 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág. 26. “Essa estandardização ou uniformidade na vida econômica, pois para satisfazer um número imenso de pessoas, isso fez nascer a imperativa necessidade de uma maior simplicidade e celeridade nas contratações, necessidade essa emergente da ‘própria natureza das coisas’.” 146 Mauro Cappelletti. Tutela dos interesses difusos. Pág. 169/182. “Quando uma lesão é produzida em forma massiva, de massa, não apenas eu sendo consumidor, mas muitos, muitos outros sendo consumidores também, o meu direito, minha lesão, não passa de um fragmento do dano total”.
79
Nessa perspectiva, considera-se o fornecedor como contratante forte e o
consumidor como parte frágil, vulnerável e, economicamente, fraca, nessa relação
contratual.
A esse respeito, Arruda Alvim147 nos direciona para a compreensão da
origem da disciplina fundamental aplicada aos contratos de adesão, as suas
condições gerais, esclarecendo-nos que podemos encontrá-la no Código Civil
Italiano, precisamente nos artigos 1.341 e 1.342.
Essas cláusulas que, na verdade, consistem em condições gerais do
contrato, devem ser conhecidas antecipadamente e, em alguns Países, são
denominadas cláusulas predispostas148.
Por essa razão, as regras que orientam a interpretação desses contratos,
determinam que as cláusulas devam beneficiar o contratante fraco, o aderente, e,
quando ocorrer uma situação na qual a cláusula seja omissa ou possibilite dúvidas,
a regra determina que a cláusula deva ser interpretada contra aquele que estipulou o
seu conteúdo.
147 Arruda Alvim. Cláusulas abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág.29. “Art. 1.341 – Condições gerais dos contratos. As condições gerais do contrato (1342, 1679, e 2211) predispostas (= elaboradas) por um dos contratantes são eficazes em relação ao outro, se no momento da conclusão do contrato este já as conheceu ou haveria de as ter conhecido tendo em vista a experiência ordinária. De qualquer forma não produzem efeito (1418) se não houverem sido aprovadas por escrito, as condições que estabeleçam em favor de quem as elaborou, limitações de sua responsabilidade ( 1299), faculdade de rescindir o contrato ( 1373) ou de suspender a execução civil do contrato, ou se impõem a cargo do outro contratante decadência (2965), limitações à faculdade de por exceções, restrições à liberdade contratual com terceiros (1379, 1566, 2596), prorrogação tácita ou renovação do contrato (1597, 1899) cláusulas compromissórias (c.p.c 808) ou derrogação da competência da autoridade judiciária (c.c.1.370; c.p.c. 6, 28,29, 30, 413).” ‘Art. 1.342. Contratos concluídos através de módulos ou formulários. Nos contratos concluídos através da subscrição de módulos ou formulários (1.370), elaborados para disciplinar de maneira uniforme determinadas relações contratuais, as cláusulas agregadas/inseridas no módulo ou no formulário, prevalecem desde que sejam incompatíveis com essas outras e ainda que essas outras não hajam sido objeto de cancelamento.” 148 Idem. Pág.31. Assim são denominadas na Itália, Argentina, e Espanha.
80
Georges Ripert149 afirma que há nesses contratos um sufocamento da
vontade, mas reconhece que a vontade, que está sendo imposta e atrai para si
outras vontades, traduz e representa um poder econômico indispensável à vida e ao
desenvolvimento de um país.
As regras de interpretação que se aplicam a esses contratos, visam coibir a
prática de cláusulas abusivas, uma vez que condicionam a validade150 do contrato,
apenas e tão somente, em relação às cláusulas lícitas. Isso porque, entende-se que,
nas condições em que o contrato se realiza, facilmente poderá ocorrer a incidência
de cláusulas consideradas abusivas.
Outro aspecto importante, a ser destacado na relação entre consumidor e
fornecedor, é o que diz respeito à imputação de responsabilidade civil pelo fato do
produto ou do serviço, que, por opção do legislador, é apurada, independentemente
de culpa, desde que comprovado o nexo causal.
Como ensina Silvio de Salvo Venosa151, antes da vigência da lei de defesa
do consumidor (8.078/90), a responsabilidade do fabricante, produtor ou
comerciante era regida pelo artigo 159 do Código Civil de 1916 (Artigo 186 do
Código Civil vigente) e o ônus de provar a culpa subjetiva do demandado recaia
sobre o consumidor, o que inviabilizava a propositura da demanda pelo consumidor.
149 Georges Ripert. A regra moral nas Obrigações Civis. Pág.112-3. “Que há de contratual neste ato jurídico? É na realidade a expressão de uma autoridade privada. O único ato de vontade do aderente consiste em colocar-se em situação tal que a lei da outra parte venha a se aplicar. O aderente entra neste círculo estreito em que a vontade da outra parte é soberana. E, quando pratica aquele ato de vontade, o aderente é levado a isso pela imperiosa necessidade de contratar. É uma graça de mau gosto dizer-lhe isso: tu quiseste. A não ser que não viaje, que não faça um seguro, que não gaste água, gás, ou eletricidade, que não use transporte comum, que não trabalhe ao serviço de outrem, é-lhe impossível deixar de contratar.”. 150 Arruda Alvim. Cláusulas abusivas e o seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 33. “A adesão é válida quando incidente sobre cláusulas havidas como lícitas”. 151 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Responsabilidade Civil. Vol.4. Pág. 159/160.
81
Como sabemos, a responsabilidade do fornecedor é objetiva, consoante o
artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor, havendo isenção dessa
responsabilidade, somente nos casos previstos no § 3º, incisos I, II, e III do mesmo
artigo.
Ressalte-se ainda que, na relação de consumo, as hipóteses de caso fortuito
e força maior não são admitidas como eximentes de responsabilidade, como se
verifica na doutrina de Nelson Nery Junior152, Rosa Maria de Andrade Nery e, da
mesma forma, Luiz Antonio Rizzatto Nunes153.
3.3.1.1. Limites de Aplicação.
Ainda podemos citar, quanto ao conjunto de princípios que, em proteção do
consumidor, orientam a relação de consumo, além da isonomia substancial e da
dignidade da pessoa humana, a boa-fé objetiva, a interpretação mais favorável e a
inversão do ônus da prova, diante da verossimilhança do pedido ou da
hipossuficiência.
Em suma, todos esses princípios e regras, declaradamente protecionistas,
têm a finalidade de estabelecer o equilíbrio entre fornecedor e consumidor, ou seja,
para compensar a superioridade econômica do fornecedor, a lei, funcionando como
contrapeso, atribuiu superioridade jurídica ao consumidor, para que haja equilíbrio
na relação.
152 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados.Pág.733. 153 Luiz Antonio Rizzatto Nunes. Comentários ao Código de defesa do Consumidor. Pág. 169 e 195.
82
Os princípios aplicados na relação de consumo, inegavelmente, são
abrangentes e, pela sua amplitude, há quem defenda, na doutrina, que os mesmos
possam ser utilizados, para todo e qualquer contrato.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves154 aduz que:
“O Código do Consumidor estabeleceu princípios gerais de proteção que, pela sua amplitude, passaram a ser aplicados também aos contratos em geral, mesmo que não envolvam relação de consumo. Destacam-se o princípio geral da boa-fé (art. 51, IV), da obrigatoriedade da proposta (art. 51, VIII), da intangibilidade das convenções (art. 51, X, XI, e XIII), no capítulo concernente às cláusulas abusivas, o referido diploma introduziu os princípios tradicionais da lesão nos contratos (art. 51, IV e § 1º) e da onerosidade excessiva (art. 51, § 1º, III).”
Silvio de Salvo Venosa155, a esse respeito assevera:
“Os princípios tornados lei positiva pela lei de consumo devem ser aplicados, sempre que oportunos e convenientes, em todo contrato e não unicamente nas relações de consumo. Desse modo o juiz terá sempre em mente a boa-fé dos contratantes, a abusividade de uma parte em relação à outra, a excessiva onerosidade etc., como regras gerais e cláusulas abertas de todos os contratos, pois os princípios são genéricos, mormente levando-se em conta o sentido dado pelo novo Código Civil.”
Sem dúvidas, a doutrina entende que os princípios constitucionais que
orientam as legislações, as quais refletem os valores consagrados na Lei Maior e
154 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Vol. 3. Pág.10. 155 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Vol. II, Pág. 371.
83
que foram positivados no Código do Consumidor, devam ser aplicados, em toda a
seara contratual.
Com muita clareza, a respeito dos princípios constitucionais, que devem ser
observados em todos os contratos, Gustavo Tepedino nos ensina:
“Parece chegada a hora de se buscar uma definição de um conjunto de princípios ou de regras que se constituam em normas gerais a serem utilizadas não de forma isolada em um ou outro setor, mas de maneira abrangente, em consonância com as normas constitucionais, para que se possa, a partir daí, construir o que seria uma nova teoria contratual.”
Reforçando a idéia de que, ao verificar a relação contratual ou uma
determinada cláusula, o juiz deverá, além da ilicitude, verificar se a atividade
econômica atende os valores constitucionais, o doutrinador assevera:
“Para além do juízo de ilicitude, verificar se a atividade econômica atende aos valores constitucionais (especialmente a regra concernente à justiça distributiva, à erradicação da pobreza e à diminuição das desigualdades sociais e regionais, insculpida no art. 3º, III, e a relativa ao objeto central de efetivação de uma sociedade em que se privilegie o trabalho, a cidadania e a dignidade humana, prevista no art. 1º, III), só merecendo tutela jurídica quando a resposta for positiva. E tal critério se aplica não só às relações de consumo, mas aos negócios jurídicos em geral.”
Pelo expendido, considerando-se o contexto social e jurídico que antecedeu
a criação do Código Civil vigente, seria inevitável, que a carga principiológica do
Código de Defesa do Consumidor contaminasse o direito privado.
84
Ressalte-se que o projeto do Código Civil permaneceu no Congresso
Nacional desde 1975, portanto, 27 anos, e, durante todo o período que antecedeu a
criação do Código Civil de 2002, a jurisprudência muito contribuiu, aplicando aos
contratos, uma nova dinâmica, inspirada na necessária superação das
desigualdades. Vale dizer, ainda, que, somente em 1988, houve a retomada da
democracia e a promulgação da Constituição Cidadã, tendo, em 1990, surgido o
Código de Defesa do Consumidor.
Note-se que, do surgimento do Código de Defesa do Consumidor em 1990
até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, passaram-se mais de 10 anos e,
durante todo esse período, muito se polemizou a respeito do conceito de
consumidor, que, como se sabe, está consignado no artigo 2º da Lei 8.078/90.
A essa definição, surgiram equiparações156, às quais se estende a proteção
do Código de Defesa do Consumidor, originadas da interpretação do parágrafo único
do artigo 2º, segundo o qual “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas,
ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”; do artigo
17, que “equipara ao consumidor todas as vítimas do evento” e; do artigo 29, que
equipara ao consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às
práticas comerciais.
Essa polêmica, que gerou muita discussão doutrinária sobre o alcance da
relação de consumo, implicou no surgimento de duas grandes correntes: a dos
finalistas ou minimalistas, que interpretam o artigo 2º da lei 8.078/90 de maneira
restrita e a dos maximalistas, que entendem que a interpretação desse artigo deve
ser a mais extensa possível.
156 Adalberto Pasqualotto. O Código de Defesa do Consumidor em face do Novo Código Civil. Pág.98
85
Essa polêmica implicou, ora na ampliação, ora na restrição dos conceitos de
consumidor e de ato de consumo, o que dificultava a fixação do universo, a ser
tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, a entrada em vigor
do Código Civil de 2002, sem embargos da extrema contribuição jurisprudencial e
doutrinária, veio contribuir para a definição do âmbito de atuação do Código de
Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor é lei especial, cuja existência é
justificada em razão da desigualdade que o mercado provoca. Essa desigualdade,
como sabemos, implica em desequilíbrio entre as partes que compõem essa
relação. Esse desequilíbrio, por sua vez, requer proteção jurídica para a parte que
fica em desvantagem, portanto, para restabelecer o equilíbrio na relação de
consumo, aplica-se a lei especial.
Ricardo Luis Lorenzetti157, a respeito desse desequilíbrio estrutural, aduz
que:
“O desequilíbrio estrutural decorre da organização inerente às empresas e da concomitante desorganização própria dos consumidores individuais, que procuram atender suas necessidades com os bens e serviços oferecidos em condições impostas unilateralmente pelos fornecedores, de modo geral desfavoráveis aos seus interesses”.
Note-se que o uso indiscriminado da lei 8.078/90 implicaria na destruição da
sua essência, uma vez que não estaria mais sendo aplicada, segundo o princípio
que prevê tratamento desigual para os desiguais, para a concretização da justiça.
157 Ricardo Luis Lorenzetti. Fundamentos de Direito Privado. RT, 1998, Pág. 141.
86
Ademais, ousamos discordar da corrente que sustenta a aplicação
indiscriminada e de forma generosa, do Código de Defesa do Consumidor, a todo e
qualquer contrato, sob o fundamento de que há incompletude no Código Civil.
Essa concepção não traduz a realidade do mundo dos negócios, já que a
economia não se desenvolve apenas em razão dos contratos de consumo.
Parece-nos muito claro que não existe a mínima possibilidade de
fungibilidade, como sustentam alguns doutrinadores, haja vista a atuação de ambos
os contratos ocorrer em ambientes absolutamente diversos.
Diariamente, os meios de comunicação divulgam transações que envolvem
cifras consideráveis, as quais, obviamente, se realizam através de contratos e,
certamente, o mais leigo dos cidadãos é capaz de, intuitivamente, reconhecer que
esses contratos jamais podem ser tratados pelas regras destinadas aos contratos de
consumo.
Nessa perspectiva, não podemos olvidar que o Código Civil é a lei geral e
que o princípio constitucional, previsto entre os direitos fundamentais no artigo 5º,
XXXII, da Constituição Federal, determina a utilização do Código de Defesa do
Consumidor para proteção de um sujeito de direito, que não é o sujeito de direito
comum, mas sim um consumidor!
Claudia Lima Marques158 , a esse respeito, vaticina:
“Efetivamente, se a todos considerarmos ‘consumidores’, a nenhum trataremos diferentemente, e o direito especial de proteção imposto
158 Claudia Lima Marques; Eduardo Turkienicz. “Caso Teka vs. Aiglon: em defesa da teoria finalista de interpretação do artigo 2º do CDC” pág. 236.
87
pelo Código de Defesa do Consumidor passaria a ser um direito comum, que já não mais serve para reequilibrar o desequilibrado e proteger o não igual.”
“(...) O Código de Defesa do Consumidor brasileiro não é um Código de ‘Consumo’, como a consolidação legal francesa denominada Code de la consommation, nem é uma lei geral sobre contratos de adesão comerciais e civis”.
“O Código de Defesa do Consumidor brasileiro concentra-se no sujeito de direitos, visa proteger esse sujeito, sistematiza suas normas a partir dessa idéia básica de proteção de apenas um sujeito ‘diferente’ na sociedade de consumo: o consumidor.”
Pelo expendido, podemos inferir que, em sentido amplo e, por exclusão,
para o sujeito de direitos comum, o Código de Defesa do Consumidor nada mais é
que um limitador da livre iniciativa, conforme previsão expressa no artigo 170, V, da
Constituição Federal de 1988.
3.3.1.2 Algumas comparações com o Código Civil vigente.
Tratar-se-á de realizar, ainda que de forma não aprofundada, algumas
comparações entre as disposições contratuais no Código Civil vigente e no Código
de Defesa do Consumidor.
O código civil em vigor, indo ao encontro do Código de Defesa do
Consumidor, naquilo que diz respeito ao seu conteúdo solidarista, consagrou os
princípios da boa-fé, da probidade e da função social do contrato, como se verificam
nos artigos 421 e 422 do Código Civil vigente:
88
“Artigo 421 – A liberdade de contratar será exercida em razão e no limites da função social do contrato”.
“Artigo 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
O Código de Defesa do Consumidor prevê a desproporcionalidade das
prestações, como causa de revisão contratual e, ainda, considera prática abusiva, o
fato de o fornecedor prevalecer-se da inexperiência ou da fraqueza do consumidor,
como se verifica nos artigos 6º, V, e artigo 39, IV:
“Artigo 6º - São direitos básicos do consumidor:
(...)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”
“Artigo 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(...)
IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;”
89
No Código Civil vigente, o instituto da lesão, que no CDC está tratada no
artigo 6º, V, foi incluído, entre os defeitos do negócio jurídico, especificamente, no
artigo 157, sendo que o legislador define sua ocorrência, quando uma pessoa, dada
a situação em que se encontra, ou seja, sob premente necessidade, assume uma
obrigação manifestamente desproporcional ao valor da contraprestação.
Observe-se que o artigo 6º, V, do CDC não faz menção ao dolo do
aproveitador. Por outro lado, o artigo 39, IV, não faz referência expressa à
desproporcionalidade entre as prestações.
Quanto ao contrato de adesão, o Código Civil em vigor expressa, no artigo
423, que, na presença de cláusulas ambíguas ou contraditórias, será adotada
interpretação que favoreça o aderente.
Na legislação consumerista, está previsto, no artigo 47, que a interpretação
será em benefício do consumidor, que essa interpretação, independe da incidência
ou não de cláusulas ambíguas ou contraditórias, como exige o Código Civil vigente.
O Código Civil vigente prevê, no artigo 478, a possibilidade da resolução do
contrato por onerosidade excessiva, desde que acarrete extrema vantagem para a
outra parte, havendo, ainda, a exigência de que essa situação decorra de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, como ocorre na Teoria da
Imprevisão.
Pelo que se extrai do artigo 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, a
revisão independe de o fato ser extraordinário ou imprevisível, bastando, apenas,
que seja superveniente, bem como não se exige que a desproporcionalidade, no
cumprimento da obrigação, implique em vantagem para o outro contratante.
90
Quanto à responsabilidade civil, o Código Civil vigente, em seu artigo 927 e
parágrafo único, compatibiliza-se com os artigos 12 do Código de Defesa do
Consumidor, já que admite que, ao criador do risco, cabe suportar os efeitos da sua
efetivação, o que significa que o risco assume o lugar da culpa.
Finalmente, em relação ao tratamento dispensado ao combate das cláusulas
abusivas, abordaremos o tema mais adiante, em capítulo específico, já que o
assunto será enfrentado sob a perspectiva da função social.
91
CAPÍTULO IV - A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
É indispensável, para a análise deste princípio contratual fundamental159, o
entendimento das alterações, de cunho filosófico, que o Código Civil vigente firmou
no direito pátrio, fixando novas diretrizes ético-sociais.
Essas alterações, segundo Arruda Alvim160, demonstram que passa a existir
uma sintonia maior entre o nosso ordenamento jurídico e os diplomas estrangeiros
mais recentes, entre eles, o Código Civil Português e o Código Civil Italiano.
Com a fixação dos valores que servem de fundamento, de base e de meta,
para a organização da sociedade brasileira, dentro do modelo de Estado Social,
verificamos que esses valores adentram pelo ordenamento jurídico, estando
presentes, em todas as áreas do direito.
Dessa forma, para interpretar o Código Civil, e aqui estamos nos referindo a
interpretação teleológica, faz-se obrigatória a idéia de que os princípios
constitucionais se irradiam para as relações entre particulares, razão pela qual os
doutrinadores e estudiosos do direito afirmam existir uma “constitucionalização” do
direito privado.
Essa “constitucionalização” , como já mencionado, nada mais é do que a
efetiva obrigatoriedade de interpretar os Códigos, leis especiais, bem como toda a
159 Antonio Junqueira de Azevedo. Princípios do novo Direito Contratual e Desregulamentação do Mercado. Código Civil. Revista dos Tribunais, São Paulo v. 750,p.113-120 abr. 1998. ”Agora disposta no artigo 421 do novo Código Civil, a função social do contrato assume definitivamente e também na esfera do direito posto, a condição de um dos princípios contratuais, reclamando, portanto, a fixação de um conteúdo que lhe dê operabilidade”. 160 Arruda Alvim. A Função Social dos Contratos no Novo código Civil. RT 815/ set. 2003.
92
estrutura normativa, respeitando os valores consignados na Constituição Federal e,
acima de tudo, os direitos fundamentais.
Para reforçar o sentido da riqueza que há na conciliação de valores
consignados na Constituição Federal, com os valores fundamentais do Código Civil
vigente, torna-se oportuno citar as palavras de DEL VECCHIO161, que exprimem,
exatamente, essa realidade que se constata no ordenamento jurídico, afirmando
que: “Todo Direito é, em verdade, um complexo sistema de valores”.
O jurista continua seu raciocínio, expressando, exatamente, a
complementaridade de valores, com a qual nos deparamos, atualmente, quando
analisamos o Código Civil vigente, explicando que: “O sistema jurídico representa
uma conciliação entre os valores da ordem e os valores da liberdade”.
O prestígio constitucional que se deu aos elementos axiológicos, no tocante
aos contratos, pode ser verificado no caput do artigo 170162 da Constituição Federal
de 1988.
Ademais, é impossível imaginar a sociedade sem o contrato.
Outros artigos da Constituição Federal de 1988, tais como o 1º, III, e o artigo
3º, I, que, respectivamente, consagram como princípio fundamental, a dignidade da
pessoa humana e, como objetivo fundamental da Republica Federativa do Brasil, a
construção de uma sociedade justa e solidária, devem ser observados, quando da
interpretação das normas que compõem o nosso ordenamento jurídico.
161 Giorgio Del Vecchio.Evoluzione ed Involuzione del Diritto. Roma, 1945, p.11, diz respeito a “un tentativo di conciliazione tra il valore dell’ordine e il valore della liberta.” 162 Constituição Federal de 1988, artigo 170, caput: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.”
93
Assim, as normas que regem os contratos também são impregnadas por
esses valores, de onde resulta que, embora o contrato tenha conteúdo patrimonial,
no ordenamento jurídico, orientado pelos princípios constitucionais acima referidos e
pelos princípios norteadores do Código Civil vigente, deverá submeter-se ao sistema
valorativo que foi escolhido pelo legislador.
Nessa perspectiva, o contrato não poderá atender apenas aos interesses
dos contratantes, mas deverá cumprir o seu conteúdo axiológico, atendendo àqueles
princípios que norteiam todos os institutos de direito privado, lembrando que os
valores essenciais do Código Civil vigente são: eticidade, socialidade e
operabilidade.
De uma forma simplista, poderíamos dizer que o contrato, além de cumprir
as exigências que lhe são próprias, deverá cumprir, também, a exigência que lhe foi
imposta através de uma cláusula geral, e isso significa, em sentido amplo, cumprir a
exigência de ser útil para a sociedade.
Seguindo o raciocínio, essa exigência, analisada dentro do contexto
constitucional, nos conduz ao entendimento de que será útil para a sociedade, o
contrato que preserve a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado
Democrático de Direito, bem como que atenda, também, ao solidarismo, definido
como objetivo fundamental para a sociedade brasileira.
A esse respeito, Cláudio Luiz Bueno de Godoy163 assevera :
163 Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Texto de apoio - Jornadas de Estudos, Direito dos Contratos. Centro de Extensão Universitária. São Paulo, 25 de Outubro de 2003.
94
“Quanto ao solidarismo social, no campo dos contratos e de sua função social, ele importa na necessidade de que as entabulações reflitam uma iniciativa de colaboração entre os contratantes não mais vistos como partes opostas, preservando-se sua igualdade substancial, de modo a que possam contratar de maneira livre, sem que se escravizem ao ajuste.”
No mesmo sentido, preleciona Ruy Rosado de Aguiar Junior164, senão
vejamos:
“(...) Aplaudo o Projeto no que representa de inovador na visão geral do contrato como um ato que deve atingir finalidade social, regulado pelos princípios da boa-fé, da moralidade, da lealdade, dos bons costumes, da ordem pública. Para o juiz civil forneceu os instrumentos necessários para a realização da justiça material. Aplaudo-o também no que tem de apuro técnico. Apenas observo que, nesse propósito de atender àqueles princípios gerais antes enunciados, ao elaborar as normas de conduta, deixou de lhes dar plena aplicação – ou lhes deu em extensão aquém da possível e desejado. De qualquer forma, na Teoria Geral do Direito e na matéria obrigacional, constitui um avanço do qual não podemos mais retroceder”.
Percebemos que o doutrinador reconhece que o trabalho do legislador foi
muito bem desempenhado, pelo fato de ter impregnado a matéria contratual, com a
cláusula geral da socialidade, que exige uma interpretação, socialmente útil, para as
normas codificadas.
Torna-se necessário, antes de prosseguirmos, uma análise a respeito da
denominada socialidade, que orienta a teoria contratual.
164 Ruy Rosado de Aguiar Jr. Obrigações e Contratos – Projeto de Código Civil disponível no site do CJF.
95
Miguel Reale165, em texto apresentado pela comissão revisora, faz a
seguinte manifestação:
“O sentido social é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil de 1916.”
(...)
“Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da socialidade, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais.”
A expressão socialidade representa um neologismo e, por esse motivo,
necessita ser interpretada, nas frases acima, buscamos o conteúdo conceitual, que
nos parece significar que o individualismo do Código Civil de 1916 foi superado.
O Código Civil de 1916, assim como outros códigos da mesma época, foi
inspirado no Código de Napoleão, que resultou, exatamente, da luta do cidadão
contra um grupo, que dominava a sociedade, composto pelos militares, pelo clero e
pela nobreza, que esmagavam o indivíduo e, portanto, essa situação representou a
luta do indivíduo contra o poder do Estado, contra o coletivo.
O Código Civil de 2002 vem carregado de valores que marcam o fim do
individualismo. É o que se extrai das doutrinas e da própria leitura da Exposição de
Motivos do Anteprojeto do Código Civil, o que conduz ao entendimento de que a
proteção é voltada ao Estado, em detrimento da proteção do cidadão.
165 Miguel Reale. Visão Geral do Projeto de Código Civil. Revista Literária de Direito. 23/v/1998.
96
Se o sentido social, consignado nas normas do Código Civil vigente, é o
sentido de identificar o ‘social’ com a ‘vontade do Estado’, não só retrocedemos
como devemos nos preocupar.
Ademais, temos que buscar compreender o que nosso ordenamento quer
proteger, se o Estado ou o indivíduo.
Nesse sentido, é o ensinamento de Jacy de Souza Mendonça:
“Se o novo código teve por objetivo garantir o predomínio do social contra o individual, estamos em risco, porque o próximo passo será a tendência a identificar social com o Estado e, em seguida, Estado com detentor do poder.”
Diga-se que, a par da premissa acima referida, normalmente, a vontade do
Estado não são compatíveis com a vontade dos cidadãos, tanto que as declarações
universais de direitos, sempre enalteceram o cidadão, o indivíduo, demonstrando
que a preocupação maior dos ordenamentos deve ser com a cidadania, e não com o
coletivo.
Por outro lado, sabemos que o indivíduo só é sujeito de direito dentro de
uma concepção social, a qual sempre está onde está o Direito, porque o homem é
social, por sua natureza.
Nessa direção, é esclarecedora, a assertiva de Jacy de Souza Mendonça166:
166 Jacy de Souza Mendonça. Princípios e diretrizes do novo Código Civil. Pág 32.
97
“Não somos pessoas senão num contexto, num todo, dentro de uma comunidade. Mas isso não significa predomínio do social. O predomínio é sempre da realização do cidadão. O direito existe para possibilitar ao cidadão a realização de sua plenitude como pessoa. Embora o homem só possa se realizar dentro de uma comunidade, em harmonia com a sociedade em que vive não há predomínio da sociedade, o predomínio é da pessoa.” (g.n.).
(...)
“O erro não está em ser favorável ao social, está na idéia de transformar o social em predominante, em relação ao pessoal, porque o segundo passo será transformar o Estado em poderoso e a pessoa humana em desprezível.”
Assim, firmamos nossa posição, no sentido de que o ordenamento jurídico
tenha a finalidade de proteger o indivíduo, e que a orientação, que se extrai das
novas diretrizes do código civil, é a preocupação com o bem comum, conforme
prevê o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que, para nosso bem,
continua em plena vigência.
No campo contratual, os valores, a que nos referimos anteriormente, surgem
através das cláusulas gerais, como ocorre com a função social do contrato,
exatamente como se apresenta positivada no artigo 421 do novo Código Civil167,
dando início ao capítulo, que trata das disposições gerais dos contratos.
Observando a Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, datado
de 16 de janeiro de 1975, notamos a preocupação que há em demonstrar, de forma
transparente, a orientação hermenêutica escolhida para orientar toda a disciplina
contratual.
167 Artigo 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
98
Nesse sentido, é a lição de Miguel Reale168:
“Nesse contexto, bastará, por conseguinte, lembrar alguns pontos fundamentais, a saber: Tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencialmente à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”.
Dessa forma, considerando que o Código Civil tenha a função de fazer com
que a Constituição, efetivamente, atue nos cidadãos, tudo o que está no Código
deve ser interpretado à luz da Constituição. Entretanto, a concretude169 de toda
carga ética nas relações entre particulares, só será alcançada, através das
denominadas normas individuais, que são as sentenças e as regras estipuladas nas
relações entre as partes.
4.1. ORIGEM CONSTITUCIONAL.
Ressalte-se que a função social do contrato, que está consignada no artigo
421 do Código Civil vigente, já estava presente na disciplina contratual, em razão do
texto constitucional prever, expressamente, a função social da propriedade170.
Vejamos a redação desses artigos in verbis:
168 Miguel Reale. Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil. Item 22, letra c. 169 Renan Lotufo. A descaracterização da Pessoa Jurídica no Novo Código Civil. Pág.101. 170 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. Pág. 73.
99
Constituição Federal de 1988:
“Art.5º. (...).
(...)
XXIII - A propriedade atenderá a sua função social;
(...)
Art. 170, (...).
(...)
III – função social da propriedade.”
Código Civil:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Assim, entendemos que a cláusula geral da função social do contrato não
tem sua origem no Código Civil, mas sim no texto constitucional, embora haja, sobre
essa questão, divergências doutrinárias.
Para alguns juristas, entre os quais citamos Miguel Reale e Miguel Reale
Junior171, a função social do contrato decorre da função social da propriedade,
171 Miguel Reale e Miguel Reale Junior. Função social e boa-fé na valoração dos contratos. In Reale-Reale Jr. Questões, nº. 10, pág.125.
100
estando os seus fundamentos nos artigos 5º, inciso XXIII 172 e 170, inciso III173 da
Constituição Federal.
Nesse sentido, a nosso ver, justamente por receber proteção constitucional,
antes de mais nada, a propriedade deve ser respeitada, e, se, por via reflexa, aplica-
se a mesma função da propriedade aos contratos, é porque esses existem para
serem cumpridos e, justamente, por essa razão, é que devem ter uma função social.
Ademais, se não fosse essa a essência do contrato, não haveria
necessidade do mesmo receber proteção jurídica.
Dessa forma, comungamos da opinião manifestada por Arruda Alvim174, que
entende que o direito de propriedade, assim como o direito que resulta do contrato, a
não ser em razão das restrições impostas pela lei, são direitos cujo exercício não
poderão sofrer privação o proprietário ou o contratante, em nome da utilização
inadequada que se dê à função social.
No mesmo sentido, é a manifestação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes175,
que se posiciona no sentido de que a utilização inadequada da função social passa
a ter significação de caráter expropriatório, para o direito de propriedade, e,
consequentemente, nessa trilha, a utilização indevida, na seara do contrato, levaria
à destruição da sua essência.
172 Artigo 5º inciso XXIII da Constituição Federal: “A propriedade atenderá a sua função social”. 173 Artigo 170 inciso III da Constituição Federal: “função social da propriedade”. 174 Arruda Alvim. RT 815 – Setembro de 2003 – p. 12. “Não é viável restringir-se o direito de propriedade, a tal ponto, para colocá-la única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade. As mudanças que possa sofrer a conformação do direito de propriedade implicam – comparando-se o perfil atual do direito de propriedade com aquele do passado – que se possa, nesse confronto, verificar-se uma atrofia do direito de propriedade. Tais mutações têm ocorrido em nome e por causa da chamada função social da propriedade, mas se as modificações operadas tiverem caráter expropriatório, essas legitimarão pretensão indenizatória”. 175 Gilmar Ferreira Mendes. Direitos fundamentais e controle da constitucionalidade, estudos de direito constitucional. São Paulo: Celso Bastos, IBDF, 6.2.4.3.2, p. 158.
101
Reconhecidamente, vemos que deve haver uma correta utilização dessa
cláusula geral, a fim de se preservar o contrato, uma das mais legítimas liberdades
individuais176.
Outra origem constitucional é apontada por Antônio Junqueira de
Azevedo177, para quem a função social do contrato decorre do artigo 1º, inciso IV da
Constituição Federal de 1988, que consagra o valor social da livre iniciativa.
Vejamos o teor do artigo, in verbis:
Constituição Federal de 1988:
“Art. 1º. A Republica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”
Não é outra a opinião de Caio Mario da Silva Pereira178:
“A redação que vingou deve ser interpretada de forma a se manter o princípio de que a liberdade de contratar é exercida em razão da autonomia da vontade que a lei outorga à pessoas.
176 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria geral das obrigações e dos contratos. 177 Antônio Junqueira de Azevedo. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado. RT750/116. 178 Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil.vol. III. Contratos. Pág. 13.
102
Considerando o Código que o regime da livre iniciativa, dominante na economia do País, assenta em termos do direito do contrato, na liberdade de contratar, enuncia regra contida no artigo 421, de subordinação dela à sua função social, condizente com a ordem pública, e atentando a que o contrato não deve atentar contra o conceito de justiça comutativa”.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery179 sustentam que a
função social do contrato decorre dos princípios inseridos no artigo 3º, inciso I da
Constituição Federal de 1988, quais sejam os valores da solidariedade180 e a
construção de uma sociedade mais justa:
Constituição Federal de 1988:
“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária.”
Para Silvio Rodrigues181, a função social do contrato, diz respeito ao
equilíbrio entre as prestações que cada um dos contratantes assume. Caso este
equilíbrio não ocorra, desde a constituição do negócio, poderá ser aplicado o artigo
157 do Código Civil, ao passo que, se o desequilíbrio é superveniente à constituição
179 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3ª ed. RT. Pág. 378. 180 Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil – Introdução ao direito civil constitucional. Pág. 37. “Os princípios da solidariedade e da igualdade são instrumentos e resultados na atuação da dignidade social do cidadão. Uma das interpretações mais avançadas é aquela que define a noção de igual dignidade social como o instrumento que confere a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões pessoais, assumindo a posição a estas correspondentes”. 181 Silvio Rodrigues. Direito Civil. Dos Contratos e das Declarações Unilaterais de Vontade. Pág.10.
103
do contrato, será possível sua resolução, aplicando-se os artigos 478 a 480 do
Código Civil.
Para esse doutrinador, o contrato é regido por princípios que lhe são
próprios e essenciais, tais como a autonomia da vontade, a relatividade das
convenções e o princípio da força vinculante dos contratos, e, por conseguinte, só
admite limitação ao exercício da autonomia da vontade por expressa imposição
legal.
Para Silvio Rodrigues, a função social do contrato não é compatível com a
concretização, que deve haver, em relação aos princípios que são inerentes aos
contratos. Por essa razão, chega a afirmar que a função social lhe parece ter um
sentido demagógico182, admitindo, porém que o legislador demonstrou acompanhar
uma tendência que se verifica no artigo 4º, inciso III, do Código de Defesa do
Consumidor183.
Segundo esse mesmo autor, no Código de Defesa do Consumidor, a função
social estaria atrelada ao princípio da harmonização dos interesses dos participantes
da relação jurídica, possibilitando o desenvolvimento econômico e, ao mesmo
tempo, a proteção da parte socialmente mais fraca.
182 Silvio Rodrigues. Pág. 10 obra já citada. “Noto certo sentido demagógico no dispositivo”. (ao referir-se ao artigo 421 do código civil). 183 Artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor: “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios. (...) III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica. (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
104
Desse modo, a função social estaria realizando a compatibilização de duas
necessidades para atingir o objetivo traçado no artigo 170 da Constituição Federal
de 1988.
Assim, observamos que qualquer que seja a corrente adotada para explicar
a origem constitucional da função social do contrato, todas elas reconhecem que,
além do conteúdo econômico, o contrato deve cumprir também uma missão social,
que fortalece o direito de liberdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal,
como uma das pedras fundamentais do nosso ordenamento jurídico.
4.2. UNIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES CIVIS E
COMERCIAIS.
Aspecto importante a ser observado diante da transformação que o novo
Código Civil traz à ordem jurídica, é o da unificação das obrigações civis e
comerciais.
O Código Civil adotou, parcialmente, a tese monista originada na Itália, que
unificou todo o direito privado, incluindo-se o direito do trabalho, já que, entre nós, a
unificação se deu somente quanto às obrigações civis e comerciais, sendo que, a
partir da vigência do novo Código, foi revogada a parte primeira do Código
Comercial.
Embora a tese monista tenha sido efetivada na Itália, foi Teixeira de Freitas,
o primeiro autor de expressão no mundo jurídico, a dizer que devia haver uma
unificação, pois entendia que a separação do Direito Comercial era arbitrária, já que
tudo faz parte do campo das obrigações.
105
Sylvio Marcondes, autor que coordenou a parte de Direito de Empresa do
Projeto do Código Civil vigente, afirmou que a dicotomia desse ramo do direito não
constitui embaraço à fórmula de unificação, muito embora reconheça que o direito
civil seja diferente do direito comercial.
Dessa forma, embora unificadas as obrigações, reconhecemos que se
tratam de campos diferentes de aplicabilidade do direito, mesmo sob o ponto de
vista que considere o fenômeno econômico presente nos contratos civis e nos
contratos empresariais.
Portanto, parece-nos conflituoso pensar em aplicação de todos os princípios
e cláusulas gerais que regem as relações particulares, aos negócios empresariais,
que exigem celeridade e acompanhamento da economia internacional.
A esse respeito, Miguel Reale assevera:
“O direito econômico não se basta por si mesmo, não pode ser autônomo face aos princípios, tem que se inserir nos princípios éticos, nos princípios gerais do direito e, portanto, se justifica que ele esteja submetido a um conjunto de normas em que os princípios da eticidade, da socialidade, da operabilidade o presidam”.
Quanto à aplicabilidade dos princípios em campos tão diferentes, o jurista
aduz:
“Não há, pois, que falar em unificação do Direito Privado a não ser em suas matrizes, isto é, com referencia aos institutos básicos, pois nada impede que do tronco comum se alonguem e se desdobrem, sem se desprenderem, ramos normativos específicos, que com
106
aquelas matrizes, continuam a compor o sistema científico do Direito Civil ou Comercial”.
Entre os estudiosos do direito empresarial, há aqueles que não concordam
com a unificação, e consideram esse fato um verdadeiro equívoco legislativo,
absolutamente prejudicial ao novo Direito Empresarial, por força de suas
características.
Para Luiz Antonio Guerra da Silva184, a unificação representa uma tentativa
de engessamento do direito mercantil, em prejuízo à internacionalização do direito
comercial.
Fernando Passos185, também contrário à unificação, entende ser impossível
a convivência harmônica entre essas duas áreas do direito, tendo em vista algumas
questões específicas, tais como o risco da atividade mercantil e o fato de o
empresário necessitar de proteção jurídica diferenciada, já que é ele quem provê a
sociedade de bens de consumo e de serviços.
Sob esse aspecto, justifica-se a preocupação da corrente contrária à
unificação, pois a atividade empresarial só existe em razão da possibilidade de lucro,
lembrando, inclusive, que aquele que vende sem lucro é punido pela própria
concorrência, sendo, ainda, necessário observar que as sociedades só se
desenvolvem através da lucratividade das empresas.
Dessa forma, sem nos aprofundarmos no tema, que não é o objeto desse
trabalho, julgamos importante uma reflexão a respeito da submissão dessa área do
184 Luiz Antonio Guerra da Silva. Revista Jurídica. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_78/artigos/Luiz_rev78.htm 185 Fernando Passos. O Direito Empresarial no Novo Código Civil Brasileiro. Pág.77.
107
direito aos princípios consignados no Código civil vigente, haja vista as
peculiaridades inerentes ao Direito Empresarial.
Por essa razão, entendemos ser de difícil compreensão pensar em função
social do contrato empresarial, uma vez que a empresa, ou seja, a atividade
empresarial, em si, já representa um ganho extraordinário, para toda a sociedade.
E, caso os contratos, nessa área, vierem a sofrer revisão ou anulação,
fundamentadas na subordinação aos princípios contratuais do direito civil, isso,
certamente, implicará em desestímulo para novos investimentos, transformando-se
em barreira para o desenvolvimento social.
4.3. FUNÇÃO SOCIAL E A LIMITAÇÃO DA LIBERDADE
CONTRATUAL.
É inconcebível pensarmos o contrato sem admitirmos a liberdade do
indivíduo186, um dos atributos da personalidade187.
Sabemos que o contrato é espécie de negócio jurídico e, para concretizar-
se, é necessário que haja acordo de vontades e, também, que o vínculo
obrigacional resultante desse acordo de vontades esteja em conformidade com o
ordenamento jurídico.
186 Francesco Santoro Passarelli. Teoria Geral do Direito Civil. Pág.50. “Temos que a liberdade contratual resulta em um paradoxo, pois a liberdade de contratar é um poder potencial do indivíduo, que conflui com outros poderes individuais para formar o contrato. A liberdade individual é núcleo de toda a sistemática contratual, que se pretende diferenciado de outras obrigações pelo fato de ser um acordo de vontades”. 187 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. Pág 82. “A idéia de personalidade está intimamente ligada à de pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações”.
108
Assim, dentro da concepção individualista do Código de 1916, bastava
somar, ao conceito de ato jurídico, o elemento vontade, disto resultando a definição
de contrato, ensinada pela doutrina de Clóvis Bevilacqua:
“Contrato é o acordo de duas ou mais vontades em conformidade com a ordem jurídica, destinado a regulamentar o interesse das partes, com o objetivo de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”.
Antes, porém, há que se estabelecer a vontade, entender-se como é
declarada, ou seja, como é revelada essa vontade, e, para tal, não se pode olvidar
que o negócio jurídico é conseqüência de uma realidade apreendida, a qual foi
disciplinada pela ordem jurídica.
Isso implica dizer que os valores apreendidos na realidade de determinado
momento histórico vão influenciar, diretamente, o conteúdo das normas existentes
em determinado ordenamento jurídico. Por essa razão, afirmamos que, para
alcançarmos o grau da importância da vontade nos negócios jurídicos, devemos
entender a sua concepção no momento histórico em que ela será contextualizada.
Relevante lembrarmos que, a respeito da autonomia da vontade, existiram
duas teorias marcantes188, as quais tiveram defensores de altíssima importância
para o mundo jurídico.
A primeira delas, conhecida sob a denominação de teoria da vontade,
também chamada Willenstheorie ou Willensdogma, afirma ser da essência da
autonomia da vontade, a vontade interna, que deve prevalecer, sempre, sobre a
188 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas Abusivas nas relações de consumo. Pág 44. “(...) Duas foram as teorias voluntaristas que pretenderam explicar o princípio da autonomia da vontade: a teoria da vontade (willenstheorie) e a teoria da declaração ( erklanrungstheorie).
109
vontade efetivamente declarada. Entre seus defensores está Savigny, personalidade
de grande importância para o mundo jurídico.
Essa teoria, tal como defendida, colocava em risco a segurança jurídica, já
que a prevalência da vontade interna poderia resultar na anulação de um contrato,
sendo que o outro contratante, que confiou na declaração apresentada, seria
injustamente prejudicado.
Dessa forma, surge então a segunda teoria, conhecida como ‘teoria da
declaração’, denominada Erklarungstheorie, a qual defende que a essência do
negócio jurídico está na declaração, que foi exteriorizada, expressada, ou seja,
naquela vontade que, efetivamente, foi declarada.
Fernando Noronha189 observa que ambas as doutrinas, ao pretenderem
criticar as teses voluntaristas, são defeituosas, porque ao tratarem o contrato como
questão absolutamente privada das partes contratantes, esqueceram, por completo,
de cuidar da função econômica e social, que é inerente ao contrato.
No final do século XIX, definitivamente, aceita-se que a vontade, sob o ponto
de vista de poder, origina-se do direito objetivo190 e não dela própria.
Cumpre, então, mencionar que, caso fossem consideradas objetivas ou
subjetivas essas manifestações de vontade, sobre as mesmas estaria fixada a tese
do voluntarismo191.
Nesse sentido, Orlando Gomes192 aduz:
189 Fernando Noronha. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. Pág.88. 190 Alfred Rieg. Lê role de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’après lês doctrines allemandes du XIXº siecle. Páginas 125-133. 191 Luis Renato Ferreira da Silva. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código de Defesa do Consumidor. Pág.21.
110
“Somente quando se passou a trabalhar com a idéia de confiança e do ‘treu und glauben’, na doutrina germânica, é que se sentiu um início de preservação da ordem jurídica até então sacrificada pela onipotência da vontade”.
Isso porque, como sabemos, somente no ano de 1900, com o Código
Civil Alemão - BGB (Burgerliches Gesetzbuch) - surgiram as normas de conteúdo
ético e social, embora esse diploma também tenha sua origem, sob a égide do
liberalismo.
Até meados do século XX, a vontade ainda tinha o condão de ser
elemento supervalorizado, e, no nosso ordenamento jurídico, temos numa primeira
concepção da chamada Teoria da Vontade, que diz respeito ao ato jurídico, tal como
adotado no Código Civil de 1916, e, não ao negócio jurídico, conforme adotado no
Código de 2002.
Essa vontade há de ser entendida, como sendo aquilo que nos
movimenta, com vistas à realização de um determinado fim, e, no dizer de Arruda
Alvim, representando aquilo que um ser humano racional quer193.
Percebemos, então, que a vontade deve ser revelada, para que ocorra ou
não a aceitação da outra parte, que, por sua vez, também deverá revelar a sua
vontade e, só assim, poderá existir o contrato.
A maneira pela qual se verifica a revelação da vontade é a declaração,
que, numa concepção adotada pelo legislador, teve um papel tão importante que
192 Orlando Gomes. Transformações Gerais do direito das Obrigações. Pág.9-14. 193 Arruda Alvim. RT 815 Setembro 2003. Pág.14.
111
resultou na denominada teoria da declaração, que consiste na busca e na
averiguação da verdadeira vontade, através daquilo que foi declarado.
Assim, devemos refletir sobre a opção feita pelo legislador194, pois, se o
negócio jurídico viesse a exigir a busca da intenção, como algo que vá ao encontro
do subjetivismo, isto colocaria em risco o alicerce do contrato, qual seja: a confiança.
Eis, aqui, uma visão de Arruda Alvim sobre o tema, que esclarece, de
forma cristalina, a questão, motivo pelo qual transcrevemos suas palavras, na
íntegra:
“Se se atribuísse valor e significação à vontade em detrimento da declaração que a albergasse, descartando-se em escala apreciável a declaração para concluir que a vontade (= vontade intima, estritamente subjetiva e não objetivada) é diferente da declarada, haver-se-á de questionar como ficaria a confiança daquele que na declaração confiou que, ademais, terá confiado de boa fé195”.
Nessa perspectiva, verificamos que, se na hipótese de desajuste entre o
sentido literal da linguagem e aquilo que foi literalmente declarado, o intérprete, na
sua atividade de descoberta, interpretar o negócio jurídico sob a invocação da teoria
da vontade, estaríamos prestigiando o declarante de má-fé.
Dessa forma, haveria prejuízos substanciais ao outro contratante, cuja
declaração de vontade, aceitando e aderindo à vontade anteriormente declarada, só
existiu em razão da confiança depositada na declaração que lhe foi apresentada.
194 Artigo 85 código civil 1916: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. Artigo 112 do código civil de 2002: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”. 195 Arruda Alvim. RT 815. Setembro 2003. Pág. 15.
112
Mais um motivo para entendermos que a opção do legislador, verificada no
Código Civil vigente, ao prestigiar a boa-fé, é a de tornar transparente a vontade,
através da declaração.
Portanto, constatamos que, em nosso ordenamento, existe preocupação
com a verdadeira intenção, mas esta deverá estar consubstanciada naquilo que foi
declarado.
Arruda Alvim196, nesse sentido assevera:
“Posso dar mais peso à vontade desde que isso seja extraível da declaração onde a vontade está consubstanciada, mas não posso transcender a declaração para buscar outra vontade que não tenha sido objeto de declaração”.
A vontade deve ser entendida como aquela que tenha sido declarada,
materializada na declaração e, por essa razão, é considerada elemento
fundamental, constitutivo do negócio jurídico.
Sabemos que, em regra, os contratos são consensuais, portanto, uma vez
que a vontade tenha sido expressada na declaração, estruturado estará, o contrato,
criando direitos e deveres para as partes envolvidas.
Essa é a razão pela qual afirmamos que o contrato cria norma jurídica
individual, a qual prevê a conduta que será atribuída aos contratantes e, no caso
dessa conduta ser contrária ao que ficou estabelecido, a sanção será imposta pela
norma jurídica geral.
196 Arruda Alvim. idem. Pág. 27.
113
A doutrina nos ensina que a norma jurídica criada a partir do acordo de
vontades não estatui sanção, mas sim uma conduta que, sendo fielmente assumida,
resultará no alcance do interesse pretendido pelos contratantes, e, havendo uma
conduta oposta, esta será o pressuposto da sanção, estabelecida e imposta pela
norma geral197.
Analisando o Código Civil em vigor, verificamos que a liberdade de contratar
traz em seu texto nada mais, nada menos, que três cláusulas gerais, conforme nos
ensina Nelson Nery Junior 198.
Como menciona o jurista, a primeira cláusula geral, consignada no artigo
421199 do Código Civil, é a autonomia privada, a qual significa liberdade de contratar,
a segunda cláusula é o respeito à ordem pública e a terceira a função social do
contrato.
Analisando a premissa acima referida, verificamos que cada cláusula geral
contém, em si, um princípio ético a orientar as partes e, também, o juiz, diante do
caso concreto, conforme já se verificou anteriormente nesse trabalho.
Lembramos, também, que diante da necessidade de intervenção do
judiciário para restabelecimento da conduta ética esperada, desde o início do
contrato, o juiz aplicará as cláusulas abertas ou gerais, como são chamados os
conceitos vagos, o que não significa, nem se confunde, com discricionariedade200.
197 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 3. Pág. 24. 198 Nelson Nery Junior. Código Civil Comentado 199 Artigo 421 do Código Civil vigente: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 200 Everaldo Augusto Cambler. Sobre a discricionariedade, tema abordado em aula no curso de mestrado na FADISP em 2006. “O juiz não tem discricionariedade, a qual pertence ao âmbito do direito admnistrativo. O arbítrio não está respaldado na norma, o que está respaldado na norma são os valores da sociedade”.
114
Sabemos que o contrato propicia a circulação de riquezas e, para que este
fim, objetivo maior, seja cumprido, é imperioso que as partes envolvidas tenham
liberdade plena para contratar.
Ademais, quanto à liberdade de contratar e à imposição de limites a essa
liberdade, pela ordem pública, cumpre colacionar o ensinamento de Daniel Martins
Boulos201:
“Se, por um lado, a ordem jurídica confere poderes e disponibiliza instrumentos para essa auto gestão de interesses dos particulares, por outro, ela própria estabelece parâmetros e limites para o exercício da faculdade de regulamentação”.
Nesse diapasão, liberdade de contratar não tem o mesmo sentido que
liberdade contratual, já que a declaração de vontade, que está materializada no
contrato e que consubstancia a intenção do contratante, está relacionada com a
liberdade de contratar.
A liberdade de contratar deve ser entendida como a vontade de assumir, ou
não, obrigações, de querer, ou não, ser parte em determinado contrato, para
realizarem contratos nominados ou, querendo, celebrar contratos inominados.
Ademais, o código civil vigente, em seu artigo 425202, permite às partes
realizar contratos atípicos203, desde que observadas as normas gerais, fixadas na
lei.
201 Daniel Martins Boulos. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo código civil. Pág.125.
115
Na sociedade contemporânea, essa liberdade também não é mais absoluta,
haja vista a grande quantidade de contratos, que, normalmente, a grande maioria
das pessoas realiza por necessidade, muito embora, em sentido amplo, a
possibilidade de não contratar exista, desde que o indivíduo, que tem possibilidade
de escolha, faça a opção de viver como o homem das cavernas.
O individuo comum, inserido na sociedade, necessita contratar, a exemplo
do contrato de seguro de automóvel, de prestação de serviços educacionais,
abertura de conta corrente, transporte, moradia, fornecimento de água, energia
elétrica etc.
Carlos Roberto Gonçalves204 assevera que a liberdade de contratar sofre
limitações em três aspectos: o primeiro é a faculdade de querer ou não contratar, o
segundo é a liberdade de escolha do outro contratante, que consiste, então, na
liberdade de contratar com quem quiser, e, o terceiro aspecto é o que determina
conteúdo do contrato, ou seja, a liberdade de contratar sobre o que quiser.
Como vemos, a liberdade de contratar, a liberdade de escolher a parte e a
liberdade de estabelecer o conteúdo do contrato não são absolutas, e, portanto, a
autonomia da vontade é limitada pelos preceitos de ordem pública, como bem
expressado no artigo 2.035 do Código Civil em vigor:
202 Código Civil de 2002. Artigo 425 – “É licito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”. 203 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. III volume. Pág. 21. “Contrato atípico é o que resulta de um acordo de vontades não regulado no ordenamento jurídico, mas gerado pelas necessidades e interesses das partes. É válido desde que estas sejam capazes e o objeto lícito, possível determinado ou determinável e suscetível de apreciação econômica. O contrato atípico requer muitas cláusulas minudenciando todos os direitos e obrigações que o compõem”. 204 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Volume III. Pág. 22.
116
Código Civil de 2002:
“Art. 2.035. (...)
Parágrafo Único - Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
Essa é a razão pela qual se verifica que, a partir do Código Civil de 2002, foi
dado um novo contorno à autonomia da vontade, diferente daquele que havia no
Código Civil de 1916, como preleciona Daniel Boulos205.
Nesse contexto, deve ser admitida a possibilidade de revisão contratual, o
que deve ser avaliado como algo extremamente saudável, no sentido de que essa
revisão está voltada à preservação do contrato, pois, conforme o ensinamento de
Ripert206, “Admitir a revisão daquilo que foi ajustado é afirmar o próprio contrato, pois
revê-lo é respeitá-lo”.
Se o contrato não respeita as normas de ordem pública ou se há
cometimento de abusos, que impliquem em vantagens desproporcionais as
obrigações assumidas, se a obrigação é excessivamente onerosa, ou, ainda, se o
contrato prejudica os interesses da sociedade, como, exemplificativamente, a
conservação do meio ambiente, haverá, como conseqüência da intervenção do
judiciário, a negação de efeitos à vontade que consta daquele instrumento.
205 Daniel Martins Boulos. Autonomia Privada, a função social do contrato e o novo código civil. Pág. 126. “Neste contexto, a evolução do Direito Civil no último século está amplamente refletida no Código Civil brasileiro de 2002, que, ao disciplinar, de forma inovadora, a figura do abuso de direito e ao estabelecer que o limite da liberdade contratual é a função social do contrato, traçou os contornos da autonomia privada de forma diversa daquela desenhada pelo legislador de 1916”. 206 Georges Ripert. A regra moral nas obrigações civis. Pág.81
117
Nessa perspectiva, podemos entender que, se os preceitos de ordem
pública são limites para a liberdade contratual e esses limites visam “assegurar a
função social do contrato”, então a “função social do contrato” já está consignada em
todas as normas de ordem pública que regulamentam os contratos.
Ademais, só assim poderíamos explicar a permissão legal para os casos em
que o contratante quer, voluntariamente, assumir os riscos advindos de força maior
ou caso fortuito, sem que, teoricamente, essa situação ensejasse revisão contratual,
já que somente uma das partes assume determinados riscos.
Dessa forma, entendemos que não será possível o pedido de revisão
contratual, baseado na função social do contrato, para toda e qualquer situação que
venha a impedir o cumprimento da obrigação, tal qual manifestada pelas partes,
quando da realização do negócio, se, nesse momento, foram observadas as regras
fixadas pelo Código Civil em vigor.
Da mesma forma, não deve ser permitida essa revisão, com pedido
fundamentado na função social do contrato, se o cumprimento da obrigação não
proporcionar, para um dos contratantes, o ganho que almejava, mesmo a obrigação
tendo sido fielmente cumprida, pois, se essa fosse a vontade do legislador, a lei não
permitiria, por exemplo, a realização de contratos aleatórios.
Como se sabe, a imposição de limites à liberdade contratual não surge com
o Código Civil vigente, o que se verifica é uma nova extensão nessa limitação, que
vai implicar naquilo que Miguel Reale207 chamou de socialidade, enquanto
interpenetração de interesses individuais e sociais.
207 Anteprojeto do Código civil.
118
Assim, embora a autonomia da vontade não tenha desaparecido, é notória a
transformação das regras contratuais, que deixaram de ser, como antes fora, regras
dispositivas, para, cada vez mais, serem, necessariamente, impositivas208.
Caio Mario da Silva Pereira209, a respeito dessa nova possibilidade diante da
função social do contrato, vaticina:
“A função social do contrato é um princípio moderno que vem a se agregar aos clássicos do contrato, que são os da autonomia da vontade, da força obrigatória, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade dos seus efeitos”.
A função social do contrato não será a grande vilã, no que diz respeito a
limitação contratual, da mesma forma que não será a ‘fada madrinha’, que
transformará os contratantes em realizadores de obras beneficentes em prol da
sociedade, porque o contrato não tem essa finalidade.
Essa cláusula geral deve ser entendida não só como um fundamento para
pedido de revisão contratual, mas, também, como uma possibilidade de, no futuro,
manter-se atualizado, ou, ao menos, preparado para proteger e regular as relações
208 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág.35. “O que ocorreu, crescentemente, ao longo do século XIX, e, mais acentuadamente neste século XX, é que, mesmo no âmbito do contrato clássico ou tradicional, aumentou o espectro das normas de ordem pública, e por isso mesmo, correlatamente, diminuiu o âmbito da livre manifestação dos contratantes. Pode-se acentuar que a razão em decorrência da qual aumentou o espectro das normas de ordem pública, foi, precisamente, a falência, aos olhos da sociedade, do modelo clássico ou tradicional, na sua originária (início do século XIX) e absoluta pureza. Desta forma, o que se verificou, mesmo em sede do contrato tradicional, foi a modificação paulatina – sem o desaparecimento da autonomia da vontade – do caráter intensamente dispositivo das regras atinentes aos contratos, passando a aumentar o número de regras imperativas.” 209Caio Mario da Silva Pereira. Op. Cit. Pág. 15.
119
contratuais que passarão a fazer parte do mundo dos negócios, até porque atualizar
um Código Civil não é tarefa das mais fáceis.
Finalmente, parece-nos que caberá aos nossos tribunais a missão de bem
demonstrar como se dará a harmonização entre livre manifestação de vontade210,
contrato, lei e sociedade, e para decidir se determinado contrato desempenha, ou
não, uma função social.
4.4. DA EFICÁCIA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.
Como vemos, a abrangência dos princípios constitucionais positivados no
Código Civil vigente alcança proporções que, além de limitarem a liberdade
contratual, podem limitar o desenvolvimento econômico.
Por essa razão, entendemos que, caberá aos contratantes, empresários e,
principalmente, aos nossos tribunais, a missão de não fazer da função social do
contrato apenas um discurso.
Nelson Nery Junior211, sobre a questão, nos ensina que:
“Como a função social é cláusula geral, o juiz poderá preencher os claros do que significa essa ‘função social’, com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais”.
(...)
210 Rafael chagas Mancebo. A função social do contrato. Pág. 50. 211 Nelson Nery Junior. Contratos no Código Civil. Pág.406-408.
120
“A norma do art. 421 é norma de ordem pública – Código Civil, artigo 2.035, parágrafo único - e assim sendo o juiz pode aplicar as cláusulas gerais em qualquer ação judicial, independentemente de pedido da parte ou do interessado, pois deve agir ex officio”.
Para os contratantes, que buscam satisfação própria, o contrato cumpre sua
função quando cada parte realiza o interesse que lhe motivou a contratar, o que, por
via reflexa, cumpre função social, pois os efeitos desse contrato implicam em
desenvolvimento social.
Dessa forma, cremos que, ao menos naquilo que diga respeito ao aspecto
pedagógico do contrato, a função social foi cumprida, ou seja, quando o contrato é
cumprido, naturalmente, dentro das regras impostas pelo ordenamento jurídico, toda
sociedade é beneficiada.
Nesse aspecto, acreditamos que os efeitos pedagógicos contribuam com o
desenvolvimento social, porque isso demonstra que os indivíduos que respeitam a
ordem jurídica e, portanto, o outro contratante, admitem que o contrato foi realizado
para ser cumprido.
A esse respeito, Mônica Bierwagen212 assevera:
“A função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social”.
212 Mônica Bierwagen. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. Pág.42-43.
121
E, tamanha é a riqueza que se extrai das cláusulas gerais, que o sistema
jurídico pátrio permite a revisão do negócio jurídico quando houver desequilíbrio
contratual, desproporção entre as prestações, quebra da base objetiva do negócio,
ofensa à boa-fé objetiva e, ainda, quando ocorrer quebra da função social do
contrato213.
Cabe destacar aqui o exemplo citado por Everaldo Augusto Cambler214, a
título de bem ilustrar a exigência de estar, o contrato, em conformidade com a
função social.
Trata-se de decisão proferida, ainda no período de vacatio legis, em acórdão
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, já demonstrando, nitidamente,
justificativa para a revisão de contrato que não atende à função social:
“Ora, se o contrato adquiriu função social, devemos adaptá-lo aos anseios constitucionais, notadamente o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e que pressupõe a eliminação da desigualdade monetária, que secundariza o proletariado diante do mega investidor. Nada mais adequado, portanto, que extirpar a cláusula abusiva (reajustamento) para que se restabeleça o equilíbrio das prestações”.
“Seria degradante obrigar um trabalhador a desembolsar, durante décadas, parte do salário que mal dá para atender as despesas básicas do orçamento familiar, para honrar mensalidades que dobram de valor a cada biênio, pela aquisição de um terreno de 125,00m², sem rede de água, esgoto e luz, que nunca vai compensar o pagamento. Como poderá um cidadão exercitar naturalmente as prerrogativas da cidadania com um custo desta ordem, sabendo que o sistema jurídico de sua sociedade valoriza os princípios da igualdade e solidariedade para combater a indignidade?!” (g.n.).
213 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado. 214 Everaldo Augusto Cambler. Comentários ao Código Civil Brasileiro. Vol. III. Coordenação Arruda Alvim e Thereza Alvim.Pág. 8.
122
Parece-nos que o acórdão bem explicitou o forte impacto, ou melhor, a
mitigação que sofreu o princípio da força obrigatória do contrato, reconhecido no
brocardo pacta sunt servanda, uma das marcas, talvez a mais forte, do
individualismo presente no Código Civil de 1916, diante dos princípios do Código
Civil vigente.
O acórdão nos permite também visualizar a possibilidade de revisão do
contrato que estabeleça uma prestação que exceda, manifestamente, os limites
impostos pelo seu fim econômico-social, pela boa-fé, ou pelos bons costumes,
exatamente como prevê o artigo 187 do Código Civil em vigor.
Sobre o artigo 187 do Código Civil em vigor, Nelson Nery Junior215 faz uma
advertência importantíssima, ao afirmar que “não há direito absoluto no
ordenamento brasileiro”, explicando que referida norma estabelece, como limite ao
exercício do direito legítimo (e não absoluto), a obrigatoriedade de estar esse
exercício em conformidade com os fins sociais e econômicos do direito exercitado,
bem como deverá, também, estar em consonância com a boa-fé e os bons
costumes.
De fato, é o que se pode inferir da leitura do artigo 187, in verbis:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
215 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante.
123
Sobre a riqueza contida nesse artigo, Ruy Rosado de Aguiar Junior216
assevera :
“Essa talvez seja, do ponto de vista do Direito Obrigacional, a cláusula mais rica do Projeto. Reúne, em um único dispositivo, os quatro princípios básicos que presidem o sistema: o abuso de direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. Bastaria acrescentar a ordem pública para tê-los todos à vista”.
Percebemos, claramente, que essa cláusula geral permite revisão dos
contratos, e, pelo fato de ser norma de ordem pública, poderá ocorrer que, mesmo a
parte tendo feito um pedido que não seja, por exemplo, modificação de percentual
de juros, o juiz poderá, ex officio, adequar o contrato à sua função social, sem ser
tachado de arbitrário, como afirma Nelson Nery Junior217.
Carlos Roberto Gonçalves218 adverte, ainda, sobre a responsabilidade que o
Código Civil vigente atribuiu aos juízes, ressaltando que, através das cláusulas
gerais, será possível, diante do caso concreto, exemplificativamente: (i) declarar a
nulidade do contrato, por fraude à lei imperativa; (ii) declarar sua inexistência, por
falta de objeto; (iii) convalidar os contratos, nos casos de anulabilidade; e, (iv)
determinar o pagamento de indenização ao prejudicado, por parte daquele que
desatendeu a função social do contrato.
Sob essa perspectiva, entendemos que está demonstrado, de forma
transparente, que o nosso legislador, ao positivar as cláusulas gerais, estava
216 Ruy Rosado de Aguiar Junior. Projeto do Código Civil – As obrigações e os contratos. RT 775/23. 217 Nelson Nery Junior. Contratos no Código Civil. Pág.416-417. 218 Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Volume III. Pág. 8.
124
imbuído do espírito de proporcionar meios para a realização da justiça nos contratos,
da mesma forma que deixa cristalino o objetivo maior de conservação do contrato219.
A fim de exemplificar a atuação do juiz, transcrevemos acórdão em que a
Ministra Nancy Andrighi220 fundamenta decisão na função social do contrato:
“RECURSO ESPECIAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. IMPUGNAÇÃO EXCLUSIVAMENTE AOS DISPOSITIVOS DE DIREITO MATERIAL. POSSIBILIDADE.FRACIONAMENTO DE HIPOTECA.CÓDIGO CIVIL DE 2002, ART. 1.488. APLICABILIDADE AOS CONTRATOS EM CURSO. INTELIGÊNCIA DO ART. 2.035 DO CC/02. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.(g.n)
-Se não há ofensa direta a legislação processual na decisão do Tribunal que revoga tutela antecipadamente concedida pelo Juízo de Primeiro Grau, é possível a interposição de Recurso Especial mencionando exclusivamente a violação dos dispositivos de direito material que deram fundamento à decisão.
-O art. 1.488 do CC/02, que regula a possibilidade de fracionamento de hipoteca, consubstancia uma das hipóteses de materialização do princípio da função social dos contratos, aplicando-se, portanto, imediatamente às relações jurídicas em curso, nos termos do art. 2.035 do CC/02.(g.n).
-Não cabe aplicar a multa do art. 538, parágrafo único, do CPC, nas hipóteses em que há omissão no acórdão recorrido, ainda que tal omissão não implique a nulidade do aresto.”
219 Enunciado nº. 22 aprovado na Jornada de Direito civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal – CFJ - realizado entre os dias 11 e13 de setembro de 2002, sob a coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. 220 STJ – REsp. 691.738/ SC (2004/0133627-7) Rel. Minª. Nancy Andrighi – Rcte. Administração, Construção e Incorporações de Imóveis Ltda. – Sant’Ana – Adv. Everaldo Luis Restanho e outro – Recdo. BESC S/A Crédito Imobiliário – Adv. Ivo Muller.
125
Como se verifica do acórdão, com absoluta adequação, deu-se a aplicação
do princípio da função social do contrato, pelas razões que, embora de maneira
superficial, passamos a observar.
Em primeiro lugar, ressaltamos que foi preservado o contrato e restabelecido
o equilíbrio entre as prestações, uma vez que o fracionamento da hipoteca não
implica em prejuízo para o credor, haja vista o mesmo não ter perdido a garantia
contratual, fixada quando da realização do negócio.
Ademais, o contrato realizado entre a incorporadora e o agente financeiro,
por si próprio, já revela a função social que realiza, proporcionando aos indivíduos o
acesso à moradia, razão pela qual o agente financeiro, que viabiliza os recursos
para a realização da construção, não poderia ver-se sem a garantia ajustada, qual
seja: a hipoteca.
De outro lado, o indivíduo que adquiriu o imóvel não pode ser privado de
realizar a transferência da propriedade, uma vez tendo cumprido a sua obrigação,
consistente no pagamento do preço estipulado, sendo, portanto, correta a decisão
que determina a liberação da hipoteca, que recai sobre esse imóvel, vale dizer, da
garantia hipotecária, inicialmente convencionada, o que consiste no seu
fracionamento.
Ainda nessa esteira, ressaltamos que não haveria razão para que a
incorporadora mantivesse um excesso de garantia, o que resultaria no prejuízo do
indivíduo, que adquiriu um imóvel para, certamente, sobre ele poder exercer todos
os direitos de proprietário.
126
Como vemos, a aplicação do princípio da função social do contrato permitiu,
no caso concreto, em apreciação, a conservação do contrato, a manutenção da
garantia do credor, bem como a preservação de direitos do terceiro de boa-fé que
adquiriu o imóvel.
Nesse sentido, é o entendimento da Ministra relatora do acórdão:
“O art. 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por traz dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro.” (g.n)
Dessa forma, podemos ver que somente a atuação do judiciário permitirá a
verificação da eficácia da aplicação das cláusulas gerais, no âmbito para o qual foi
criado, qual seja, o da realidade em que os negócios se realizam, não
permanecendo, apenas, no plano da abstração filosófica e do discurso.
Nelson Nery Junior221, com quem concordamos, atribui à cláusula geral em
questão, uma função instrumentalizadora, que consiste na atividade do juiz de dar
concretude à enunciação abstrata do artigo 421 do Código Civil de 2002, o que
221 Nelson Nery Junior. Comentário ao artigo 421 do Código Civil: “ Não é regra de interpretação, tampouco princípio geral de direito. Na prática, a cláusula geral de função social do contrato permite que o juiz faça a lei entre as partes, isto é, o juiz vivifica, no caso concreto, a norma abstrata e estática posta pela lei.
127
devemos entender como preenchimento da cláusula geral, através dos valores
jurídicos, econômicos, sociais e morais.
Assim, uma vez comprovado o desequilíbrio contratual, deverá ser aplicada
a norma de ordem geral, prevista no artigo 421 do Código Civil vigente, lembrando,
porém, o ensinamento de Everaldo Augusto Cambler222, com o qual concordamos
integralmente, no sentido de que: “A aplicação há de ser empregada com a cautela
necessária vez que a álea natural à essência de determinados contratos não pode
ser incluída nesta situação”.
Ainda sob esse aspecto, percebemos que a função social do contrato
deverá, sempre, ser observada pelas partes e pelo judiciário, o que significa que
essa cláusula geral não é apenas um instrumento de interpretação, tanto que, de
forma cristalina, nosso legislador expressa, no artigo 2.035, parágrafo único223, do
Código Civil em vigor, tratar-se de norma de ordem pública.
Nossa posição é de que o contrato tenha que ser cumprido, pois, para isso,
foi realizado. Assim, não podemos permitir que, sob o manto do reconhecimento da
função social, que foi atribuída ao contrato, seja admitida sua utilização para
esconder a má-fé, a fraude, os vícios ou o desejo de inadimplir com aquilo que foi
avençado.
A função social não pode ser uma afronta à segurança jurídica, sendo
importante ressaltar que, mesmo tendo sido minimizado o princípio da força
222 Everaldo Augusto Cambler. Comentários ao Código Civil Brasileiro. P.10. 223 Código Civil – artigo 2035, parágrafo único: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
128
obrigatória dos contratos, ao contrário do que se imagina, ele continua em vigor no
nosso ordenamento jurídico224.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão225 em que foi
relatora a Ministra Nancy Andrighi, assim se posicionou, em relação à aplicação do
princípio da função social do contrato:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E AGRÁRIO. COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA A PREÇO CERTO. ALTERAÇÃO DO VALOR DO PRODUTO NO MERCADO. CIRCUNSTÂNCIA PREVISÍVEL. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INEXISTÊNCIA.
- VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO, BOA-FÉ OBJETIVA E PROBIDADE. INEXISTÊNCIA.(g.n)
-A compra e venda de safra futura, a preço certo, obriga as partes se o fato que alterou o valor do produto agrícola não era imprevisível.
-Na hipótese afigura-se impossível admitir onerosidade excessiva, inclusive porque a alta do dólar em virtude das eleições presidenciais e da iminência de guerra no Oriente Médio – motivos alegados pelo recorrido para sustentar a ocorrência de acontecimento extraordinário – porque são circunstâncias previsíveis, que podem ser levadas em consideração quando se contrata a venda para entrega futura com preço certo.
-O fato do comprador obter maior margem de lucro na revenda,decorrente da majoração do preço do produto no mercado após a celebração do negócio, não indica a existência de má-fé, improbidade ou tentativa de desvio da função social do contrato.(g.n)
-A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Ao assegurar a venda de sua colheita futura, é de se esperar que o produtor inclua
224 Daniel Martins Boulos. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo código civil. Pág.127. “Assim, também ocorre com outro princípio do Direito Contratual, designadamente aquele segundo o qual os pactos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda), que, embora muito combatido na doutrina e limitado por normas e princípios ora existentes na legislação continuam a vigorar como corolário da segurança jurídica, indispensável ao comércio jurídico e ao desenvolvimento da sociedade”. 225 Recurso Especial Nº.803.481 – GO (2005/0205857-0) – Relatora Ministra Nancy Andrighi – Recorrente Cargill Agrícola S/A - Recorrido Luiz Ferreira Lima.
129
nos seus cálculos todos os custos em que poderá incorrer, tanto os decorrentes dos próprios termos do contrato, como aqueles derivados das condições da lavoura.
-A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal. Não tendo o comprador agido de forma contrária a tais princípios, não há como inquinar o seu comportamento de violador da boa-fé objetiva.
Recurso especial conhecido e provido por unanimidade – STJ 3ª turma -28/06/2007.(g.n).”
Esclarecedor o voto da Ministra, que, didaticamente, nos leva à elaboração
do conteúdo, que há no princípio da função social do contrato, ao aduzir que:
“A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas”.
Como se vê, a aplicação desse princípio, bem como das demais cláusulas
gerais, deverá estar sempre pautada no cumprimento daquilo que foi convencionado
no contrato, não permitindo que esse instrumento transforme-se em meio de
realização de assistencialismo, aos supostamente necessitados.
130
Assim, somos firmes em admitir que, entre particulares, no âmbito do
contrato civil, há que se ter muita atenção quando da aplicação dessa cláusula geral,
pois, como já mencionado, o interesse que prepondera é o particular, restrito às
partes.
Esse contrato só interessa à sociedade na medida em que servir como
paradigma226, nas situações assemelhadas, em seu aspecto pedagógico, quanto ao
cumprimento e nos efeitos que, certamente, serão refletidos pela circulação de
riquezas.
Ademais, o contratante que pleitear judicialmente a revisão do contrato, da
maneira como vimos no exemplo contido no acórdão antes referido, não estará
agindo de boa-fé, regra de conduta positivada no código Civil vigente, que exige
comportamento honesto e leal nas relações contratuais, mesmo após a execução da
obrigação.
4.4.1. A boa-fé objetiva.
Pelo que foi expendido, podemos afirmar que o Código Civil vigente tem a
característica de ser um sistema aberto, onde se originam algumas cláusulas gerais,
denominadas “conceitos vagos”, cujo conteúdo cabe ao juiz definir diante do caso
concreto.
226 Nelson Nery Junior. Contratos no novo Código Civil - apontamentos gerais. Pág. 427. “ O contrato não pode mais ser visto como um negócio de interesse apenas para as partes, porque interessa a toda a sociedade, na medida em que os standards contratuais são paradigmáticos para as outras situações assemelhadas.”
131
Por esse motivo, Silvio de Salvo Venosa, referindo-se ao artigo 422 do novo
Código Civil, afirma não concordar com a denominação ‘cláusula geral’, vez que o
seu conteúdo não é preciso227.
Sobre este aspecto, ousamos discordar do doutrinador, uma vez que o
significado literalmente expresso no dicionário da língua portuguesa228, acerca do
termo ‘geral’ é o de ‘vago e impreciso’, o que condiz, exatamente, com o que
pretendeu nosso legislador, ao enriquecer o novo Código Civil com essas cláusulas.
Assim, entre as cláusulas gerais, que orientam o direito contratual229, temos
a boa-fé objetiva, consignada, expressamente, no artigo 422 do Código Civil, que
transcrevemos in verbis:
Código Civil de 2002:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
É através da boa-fé objetiva que se verifica a essência da realização ética
nos contratos, como assevera Álvaro Villaça Azevedo230, afirmando que: “A
contratação de boa-fé é a essência do próprio entendimento entre os seres
humanos, é a presença da ética nos contratos”.
227 Silvio de Salvo Venosa. Op. Cit. Item 32. “Essa disposição constitui modalidade que a doutrina convencionou denominar cláusula geral. Essa rotulação não nos dá perfeita idéia do conteúdo. A cláusula geral não é, na verdade, geral”. 228 Houaiss – Dicionário da Língua Portuguesa. 229 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Pág. 378. “Diz-se que o novo Código constitui um sistema aberto, predominando o exame do caso concreto na área contratual”. 230 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos Contratos típicos e atípicos. Pág. 28.
132
A respeito dessa cláusula geral (talvez a mais importante do novo Código
Civil) e da riqueza do seu conteúdo, cumpre transcrever as palavras de Giselda
Hironaka:
“A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de desvantagens, que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente, a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais útil que deficiente, uma vez que por boa-fé, se entende um fato (que é psicológico) e uma virtude (que é moral).
“O homem de boa-fé, tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do termo. Vale dizer, é uma crença, ao mesmo tempo em que é uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se crê. É, também, o que se chama de sinceridade, ou veracidade, ou franqueza, é o contrário de mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé. 231”.
Essa cláusula geral, que não foi consagrada expressamente no Código Civil
de 1916, era prevista no Código Civil Francês, no italiano232, no português233 e,
também, no alemão234, que como sabemos serviu de inspiração para o nosso
legislador.
Como cita a doutrina, essa ênfase à boa-fé, que configura uma nova visão
do contrato, é uma tendência que se observa em vários países desenvolvidos, já
231 Giselda M. F. N. Hironaka.Conferência proferida em 21-9-2001. 232 Código Civil italiano, de 1942. Artigo 1.337 “os contratantes no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem comportar-se segundo a boa-fé”. 233 Código Civil Português de 1967, artigo 227: “Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”. 234Código civil alemão (BGB) § 242: “O devedor está obrigado a executar a prestação como exige a boa-fé, em atenção aos usos e costumes”. Código Civil alemão (BGB) § 157: “Os contratos interpretam-se como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes de tráfico”. Referência em português de Maurício Jorge Pereira da Mota. A pós-eficácia das obrigações. Pág.190.
133
que, além dos diplomas acima citados, esses princípios são consagrados, também,
no Código Civil holandês e no Código Civil de Quebec235.
Importante ressaltar que, embora não estivesse, literalmente, expressa no
Código Civil de 1916, a boa-fé objetiva era considerada, no nosso sistema jurídico,
como um princípio geral de direito236.
Reforçamos esse entendimento ao interpretar o artigo 85 do Código Civil de
1916 e o artigo 131, nº I, do Código Comercial de 1850, que, abaixo, transcrevemos:
Código Civil de 1916:
“Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem.”
Código Comercial de 1850:
“Art. 131. A inteligência simples e adequada, que for mais conforme a boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.”
Dessa forma, percebemos que o nosso ordenamento jurídico já repudiava
qualquer forma de deslealdade por parte dos contratantes, o que reafirma, por outro
lado, a exigência de um comportamento ético das partes.
Nesse sentido, entendemos que se o ordenamento jurídico determina um
comportamento ético por parte dos contratantes, da mesma forma impõe ao
aplicador da lei uma interpretação conforme o espírito que nela está contido.
235 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo código civil. Pág.74. 236 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código civil comentado.
134
Sobre este apaixonante tema, mesmo que não se queira adentrar nas
questões filosóficas, temos a inquietante presença da lei moral, desafiando as
abstrações teóricas, que se nos apresenta, sempre, como a demonstração ideal da
lógica jurídica.
Ripert237, ao tratar da questão da lei moral, nos ensina que: “Essa lei bem
precisa que rege as sociedades ocidentais modernas, e que é respeitada porque é
imposta pela fé, a razão, a consciência, ou simplesmente seguida pelo hábito ou
pelo respeito humano”.
A concepção de boa-fé tem sua origem no Direito Romano, a bona fides,
que tem um significado de conteúdo ético e não uma conotação de técnica jurídica
propriamente dita238.
A esse respeito, Caio Mario da Silva Pereira bem observou que cabe à
Roma o direito de sua criação, aliando a bona fides à aequitas239.
No Direito Alemão240, em que nosso legislador inspirou-se, a boa-fé é regra
objetiva, que deve ser observada nas relações jurídicas e se expressa na fórmula do
Treu und Glauben241, significando lealdade e confiança.
237 Georges Ripert. A regra moral nas obrigações civis. Pág. 134. 238 Bruno Lewicki. Panorama da Boa-fé objetiva. pág.58. “A fides seria antes um conceito ético do que propriamente uma expressão jurídica da técnica. Sua ‘juridicização’ se iria ocorrer com o incremento do comércio e o desenvolvimento do jus gentium, complexo jurídico aplicável a romanos e a estrangeiros”. 239 Caio Mario da Silva Pereira. Lesão nos contratos. Pág. 105. “(...)Roma que está em toda parte, aqui responde com a pureza do seu direito, sempre admirável, aliando-a àquela força criadora da aequitas, que trazia o sentido de humanidade ao ius romanum e o inspirava na grandeza de sua floração. 240 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado “(...) Código Civil Alemão, BGB, § 242, que mantém sua redação original, de 1896, que não menciona nem a fase pré-contratual nem tampouco a pós-contratual, e nem por isso a doutrina e a jurisprudência deixaram de incluir aquelas circunstâncias no âmbito de sua aplicação”. 241 Judith Martins Costa. A boa-fé no Direito Privado. Pág. 124. “ A fórmula Treu und Glauben demarca o universo da boa-fé obrigacional proveniente da cultura germânica, traduzindo conotações totalmente diversas daquelas que a marcaram no direito romano: ao invés de denotar a idéia de
135
Destacamos que a boa-fé, como se observa, está presente no Código Civil
de países culturalmente desenvolvidos, razão pela qual podemos concluir ser de
extrema valia a normatização com conteúdo ético242, o que evidencia uma
aproximação com a cultura desses países.
Através dessa cláusula geral, consignada no artigo 422 do Código Civil
vigente, os contratantes obrigam-se, desde o período pré-contratual, a adotar um
padrão de conduta de cooperação mútua, mantendo esse mesmo modo de agir na
consecução e após a execução da obrigação inserida no contrato.
Interessante observar que, mesmo não estando expressamente consignados
os termos que se referem à fase anterior e à posterior ao contrato, nas quais,
teoricamente, inexistem deveres jurídicos, sabemos da obrigatoriedade do
cumprimento desses princípios em todas as fases do negócio.
Isso porque, mesmo após o cumprimento do contrato, é possível que haja
algum efeito residual, ou seja, tanto a responsabilidade pré-contratual243, a
contratual, assim como a pós-contratual, serão interpretadas sob o enfoque da boa-
fé objetiva.
fidelidade ao pactuado, como uma das acepções da fides romana, a cultura germânica inseriu, na fórmula, as idéias de lealdade (itrue ou treue) e crença ( glauben ou glaube), as quais se reportam a qualidades ou estados humanos objetivados”. 242 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos contratos típicos e atípicos. Pág 28. “A aplicação do princípio da boa-fé traz para a ordem jurídica um elemento de Direito Natural, que passa a integrar a norma de direito”. 243 Judith Martins Costa. A boa-fé no Direito Privado. Pág. 517. “É no campo da responsabilidade pré-contratual que avulta a importância do princípio da boa-fé objetiva, especialmente na hipótese de não justificada conclusão dos contratos”.
136
Caio Mario da Silva Pereira244, a esse respeito, entende que o fato de não
estarem expressamente consignados esses deveres em todas as fases do contrato,
seja uma falha do legislador.
No nosso entendimento, o fato da não observação expressa não está
atrelado a uma falha do legislador, mas sim à força que está contida no espírito do
preceito, traduzindo a essência moral, realçada pela norma jurídica.
Em suma, a boa-fé objetiva exige que os contratantes tenham uma conduta
condizente com aquela que se espera de uma pessoa honesta no seu agir, de modo
a fazer tudo para que o contrato seja cumprido.
Sob este enfoque, podemos, então, distinguir a boa-fé objetiva da subjetiva.
Esta última, já existente no revogado Código Civil de 1916, diz respeito ao estado
psicológico, ânimo ou estado de espírito, vivido por aquele que, em determinada
situação, realiza um negócio, desconhecendo absolutamente o vício que possa
conter, a exemplo do que ocorre com o possuidor de boa-fé245, que, justamente, por
esse motivo recebe a proteção da lei246.
244 Caio Mario da Silva Pereira. Lesão nos Contratos. Pág. 159 e seguintes. 245 Código Civil 2002. Artigos 1.214, 1.217 e 1.219. 246 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos contratos típicos e Atípicos. Pág. 28. “Daí porque todos os códigos e todos os sistemas jurídicos são escudados no princípio da boa-fé, que supera, até, o princípio da nulidade dos atos jurídicos, pois os atos nulos, em certos casos, produzem efeitos, e até os atos inexistentes, para premiar a atuação de boa-fé, como é o caso da validade do pagamento ao credor putativo, a transmissão da herança ao herdeiro aparente, dos efeitos em favor do cônjuge de boa-fé no casamento putativo. Nestes casos, não vigora o princípio, segundo o qual o que é nulo não produz efeito”.
137
A boa-fé subjetiva está no estado de espírito247 do contratante que, por estar
predisposto a agir com lealdade, sente-se seguro e confia naquilo que lhe é proposto
pela outra parte, acreditando que o negócio esteja permeado de seriedade.
A boa-fé objetiva, como já mencionamos, pode ser traduzida em regra de
comportamento a ser observada pelos contratantes, cuja essência é absolutamente
ética, sendo exigível juridicamente e tendo por escopo garantir a estabilidade e a
segurança dos negócios jurídicos.
Podemos entender, também, que esta regra obriga o juiz a inteirar-se sobre
os usos e costumes habitualmente praticados para determinado contrato, além de
observar, atentamente, a condição sócio-cultural dos contratantes, o local e o
momento em que o contrato se realizou, para que possa proferir a sentença.
Dessa forma, o juiz, ao proferir sua decisão, com aplicação da cláusula geral
da boa-fé objetiva, prevista na regra contida no artigo 422 do novo Código Civil,
deverá buscar aquilo que seja considerado padrão de conduta do homem médio, ou
seja, o padrão de conduta condizente com o agir de forma leal e honesta, aceita de
forma geral, no tempo e no espaço, para aquele caso concreto.
Em suma, a boa-fé objetiva pode ser traduzida, ainda, como dever de
ostentação da lealdade contratual, além de ser, também, um limitador para a
autonomia da vontade.
247 Álvaro Villaça Azevedo. Teoria Geral dos contratos típicos e atípicos. Pág. 28. “A boa-fé é um estado de espírito que leva o sujeito a praticar um negócio em clima de aparente segurança. É a boa-fé subjetiva”.
138
O legislador nos premia com a boa-fé objetiva não só no artigo 422, mas,
também, no artigo 113, ao expressar a boa-fé como regra de interpretação, e, ainda,
no artigo 187, que disciplina a ilicitude do abuso de direito.
A cláusula geral da boa-fé serve de fundamento para a doutrina da base do
negócio jurídico248, criada por Oertmann e, posteriormente, desenvolvida por Larenz,
a qual se revela como evolução da teoria da imprevisão (originada no direito romano
– chamada cláusula rebus sic stantibus249).
Sobre a Teoria da Imprevisão, embora não seja o foco desse trabalho,
ressaltamos que a mesma seja, atualmente, considerada insuficiente para solucionar
todos os problemas advindos do desequilíbrio contratual e da desproporcionalidade
entre as prestações, posto que está estritamente vinculada ao fato superveniente e
extraordinário.
Considerando que o contratante deve agir com lealdade e honestidade em
todas as fases do contrato, e não somente durante a execução, a insuficiência, diz
respeito, exatamente, ao motivo de considerar apenas uma das fases do contrato.
A boa-fé objetiva supera as hipóteses de incidência previstas na lei, em
relação à aplicação de outros institutos que permitam a revisão do contrato,
justamente por trazer, em si, um comando ético-social que entendemos servir como
alicerce da lei, que orienta as condições gerais dos negócios jurídicos em qualquer
fase do contrato.
248 Nelson Nery Junior. Revista de Direto Privado 10/179. “Por base do negócio devem se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que, podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo”. 249 Revista Forense 98/97. “Se a segurança dos contratos reside na boa-fé das partes, a aplicação da cláusula rebus sic stantibus não a destrói, porquanto as circunstâncias que cercavam o ajuste se modificaram de tal sorte que a boa-fé que o presidiu reclama que, ante a prova cuidadosa dos autos, seja ele rescindido”.
139
Larenz250 nos ensina que a boa-fé objetiva, tal como se verifica no Código
Civil Alemão (BGB) § 242 e § 157, que, a título de ilustração, já mencionamos neste
trabalho, é mais que uma norma de direito positivo, tratando-se, na verdade, de um
princípio supremo, que orienta todas as outras normas.
Sendo o Código Civil Alemão a fonte inspiradora do nosso legislador, pode-
se afirmar que, da mesma maneira como ocorre na Alemanha, entre nós, trata-se
também de um princípio de suma importância, que exige a observação, tanto dos
contratantes, quanto do judiciário.
Seguindo esse raciocínio, entendemos que o negócio jurídico se realiza
sobre uma base que contém aspectos objetivos e subjetivos, que devem
permanecer, até que o contrato seja plenamente executado, o que inclui, também, a
fase pós-contratual, ou seja, até que sejam extintos, todos os efeitos do contrato, ao
que Nelson Nery Junior251 denomina “pós-eficácia”.
A base jurídica subjetiva, assim entendida aquela relacionada aos aspectos
psicológicos, situa-se no campo das invalidades, portanto, dizem respeito aos vícios
da vontade ou sociais do negócio jurídico, enquanto a base que contém aspectos
objetivos, refere-se às circunstâncias externas ao negócio.
250 Karl Larenz. Derecho de obligaciones. Tradução de Laime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958. t. I, p. 145-146. “El principio del § 242 es irrenunciable, ya que representa el precepto fundamental de la juridicidad. Pero se pergunta si el § 242 es solamente uma norma, que como otros preceptos jurídicos coativos rige también, como estós, junto a todas lãs demás normas ( dispositivas o coactivas) y tiene el mismo âmbito de aplicación o si representa un principio supremo del derecho de lãs relciones obligatorias, de forma que todas lãs demás normas han de medirse por él y em cueanto se lê opongan hande ser em princípio pospuestas. La jurisprudência se há decidido, hace ya mucho tiempo, por la segunda posición (...)” (grifos do autor). 251 Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. Código Civil Comentado. Comentários ao artigo 422.
140
A esse respeito, Nelson Nery Junior aduz que “A quebra da base objetiva do
negócio pode ensejar tanto a resolução do negócio jurídico252 como a revisão do
contrato253“.
Nelson Nery Junior254 nos ensina que, uma vez que o contratante requeira
judicialmente a revisão do contrato, o juiz avaliará a cláusula que causou a quebra
da base objetiva do negócio e, sendo necessário, determinará a redação da cláusula
que será substituída.
Para orientar a interpretação em relação ao artigo 422 do Código Civil
vigente, a título de ilustração, colacionamos alguns dos enunciados aprovados nas
Jornadas de Direito Civil:
“Enunciado 26255: – A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como comportamento leal dos contratantes.
Enunciado 27 – Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do código civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.”
(...)
252 Idem. Artigo 478 do Código Civil de 2002. 253 Idem. Artigos 317, 421, 422 e 478 do Código Civil de 2002. “As disposições legais invocadas pelo embargante não infirmam o acórdão, porque o negócio jurídico não se rege apenas pela vontade das partes, mas também pelas normas de ordem pública, entre as quais a que confere o direito À REVISÃO CONTRATUAL”.(2º TACivSP, 10ª Câm., EDcl 653999-1/7, rel. Nestor Duarte, j. 22.10.2003, v.u) g.n.” 254 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código Civil Comentado.Comentários ao art. 422. 255 Enunciados aprovados na I Jornada de Direito Civil, realizada no período de 11 a 13 de setembro de 2002.Sob a coordenação do ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior.
141
Enunciado 168256 - O princípio da boa-fé objetiva importa no reconhecimento de um direito a cumprir em favor do titular passivo da obrigação.
(...)
Enunciado 363257 - Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a existência da violação.
4.5. FUNÇÃO ECONÔMICA DO CONTRATO E A SEGURANÇA
JURÍDICA.
Sabemos que o fato humano e a lei estão presentes em qualquer
obligatio258, entendida aqui a obrigação no seu sentido estrito, e não no sentido de
dever geral fundado na lei.
Inegável que se deva reconhecer a importância do contrato para a geração
de riquezas, para a instrumentalização dos negócios nas empresas, para o
desenvolvimento da sociedade e, ainda, pela segurança jurídica que proporciona
aos negócios.
O contrato deve ser entendido como “centro da vida dos negócios”, como um
instrumento de circulação de riquezas e, por isso, um reflexo da instituição jurídica
da propriedade, uma vez que a idéia de contrato deve ser compreendida, em
256 Enunciado aprovado na III Jornada de Direito Civil. 257 Enunciado aprovado na IV jornada de Direito Civil. 258 Caio Mario da silva Pereira. Instituições de Direito Civil. Vol. III. Contratos. Pág. 2. “A obrigação nasce de um paralelogramo de forças cujos componentes são o fato humano e a lei, presentes na gênese de qualquer relação jurídica, porque é a vontade do Estado que amolda o comportamento individual permitindo que o fato do homem dê origem a uma prestação economicamente apreciável.”.
142
regimes que admitam a propriedade privada, conforme apreciação efetuada de
forma sucinta por Silvio Rodrigues259, com a qual concordamos integralmente.
O doutrinador enfatiza essa idéia, de forma clara e simples na apresentação,
mas rica em seu conteúdo, dos ensinamentos de Francesco Messineo260, concluindo
que a idéia de contrato deve ser compreendida em regimes que admitam a
propriedade privada.
E, uma vez que a vontade seja manifestada conforme a ordem jurídica, o
efeito será o surgimento de obrigações e direitos, sendo que, quando essa
manifestação coincide com a de outrem, estará constituído o negócio jurídico
bilateral.
Nesse sentido, Orlando Gomes261 nos ensina que: “É o contrato a fonte por
excelência das obrigações, é pelo consentimento livre e espontâneo que os homens
devem entender-se”.
Daí a definição de contrato, como sendo acordo de vontades, com a
finalidade de produzir efeitos jurídicos, vinculando, por essa razão, as pessoas, e
tendo, no seu fiel cumprimento, a finalidade da sua existência.
Defendemos, então, o entendimento de que o contrato vincula as partes e
deve ser cumprido fielmente, preservando o princípio da autonomia privada, bem
como o da própria liberdade contratual262, a fim de que cumpra sua missão.
259 Silvio Rodrigues. Obra já citada item 11. Pág.60. 260 Silvio Rodrigues. Obra já citada item 29. “Se não se admitisse a riqueza (propriedade) privada, esta não poderia circular e o contrato careceria inteiramente de função prática”. Cf. Doctrina general del contrato, trad. Esp. Fontanarrosa, Sentis Melendo e Volterra, Buenos Aires, 1952, CAP.I.n1. cit. Introdução, n.7. 261 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. Pág. 474.
143
Além da função econômica, o contato traz, em si, uma função educativa,
fixando objetivos a serem cumpridos, estabelecendo prazos e métodos,
possibilitando diálogo, e, a partir daí, a redução de diferenças, proporcionando o
respeito entre os contratantes, além da função psicológica, uma vez que vincula a
palavra à realização daqueles objetivos, que foram livremente estabelecidos.
Dessa forma, o consensualismo, advindo da autonomia da vontade, é regra
estabelecida para os contratos, fortemente presente no século XX, quando basta o
acordo de vontades, para que este se estabeleça como lei para as partes
contratantes.
Estamos nos referindo à força obrigatória dos contratos, conhecida no
brocardo “pacta sunt servanda”, princípio que determina que os acordos sejam
cumpridos integralmente, em qualquer situação, o que se traduz como a essência
dos contratos.
É visível que a segurança jurídica, para os contratos realizados nessa fase
histórica, tem seu fundamento na autonomia da vontade declarada livremente, isto é,
sem a existência de vícios.
Assim, quando o indivíduo possuía condições jurídicas para externar sua
vontade, consentindo livremente, presumia-se não só a igualdade entre os
contratantes, como também a harmonia social263 e o desenvolvimento econômico.
262 Orlando Gomes Contratos. Pág. 28. “Esta liberdade tem tríplice aspecto: a) a liberdade de contratar propriamente dita; b) liberdade de estipular o contrato; c) liberdade de estruturar o conteúdo do contrato”. 263 Claudia Lima Marques. Contratos no Código de defesa do Consumidor. Pág. 44. “(...) acreditava-se na época que o contrato traria em si uma natural equidade, proporcionaria a harmonia social e econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual. O contrato seria justo e eqüitativo por sua própria natureza.”
144
Essa igualdade, teoricamente existente, como já mencionado, referia-se
apenas ao aspecto formal, sendo que, somente quando o homem toma consciência
da necessidade de pensar no indivíduo, inserido na sociedade, e não apenas isolado
em si mesmo, o princípio da força obrigatória dos contratos, decorrente da
autonomia da vontade, vai perdendo sua força, refletindo uma nova forma de pensar
os acordos264.
Essa preocupação com o embasamento do contrato, apenas e tão somente
no consentimento das partes, já era constatada pela Igreja, representada pelo Papa
Paulo VI, que expressava, através da Encíclica “Populorum Progressio” nº. 59, a
lição de Leão XIII na “Rerum Novarum”, objetivando demonstrar que essa lição
permanecia absolutamente válida.
Essa lição consistia basicamente em manifestar que, se as partes
contratantes realizaram o contrato em situação desigual, esse consentimento não
pode ser traduzido em justiça no contrato, pois, para que se estabeleça o livre
consentimento, deve-se pressupor que esse esteja subordinado às regras impostas
pelo direito natural265.
No tocante a esse posicionamento da Igreja a respeito do contrato, cumpre
ressaltar que o modelo clássico contratual, que vigorou durante séculos, recebeu
fortes influências da própria Igreja, como ensina Arruda Alvim266.
264 Claudia Lima Marques. Op. Já cit. Pág. 126. “O postulado da força obrigatória dos contratos encontra-se muito modificado pelas novas tendências sociais da noção de contrato. O papel predominante agora é o da lei, a qual com seu intervencionismo restringe cada vez mais o espaço para a autonomia da vontade.” 265 Atílio Aníbal Alterini. Os contratos de consumo e as cláusulas abusivas. Revista de Direito do Consumidor. Pág. 5-19. 266 Arruda Alvim. Cláusulas abusivas e seu controle no direito brasileiro. Pág. 20-37. “Se o direito canônico contribuiu para a fisionomia e estrutura clássica do contrato, pelo valor e pelo respeito à vontade humana, de outra parte, no caso do século XIX, veio a se manifestar a Igreja, pelos seus
145
Mesmo recebendo influências da igreja, em relação às idéias que sugeriam
um papel social para o direito, o contrato não deixa de manter a sua essência, qual
seja, a de cunho patrimonial, pois, uma vez realizado o pacto, certamente haverá
alteração na condição econômica das partes267 .
O fato de realizar alterações patrimoniais, lembrando que o contrato
possibilita a circulação de riquezas, não significa que todo contrato seja
econômico268.
Compreendendo o contrato, como instrumento, que faz circular a riqueza,
por ser da sua essência, entendemos que cumpre uma função social, pois está
realizando o seu papel dentro da sociedade.
Ademais, não podemos esquecer que o contrato é, também, um instrumento
jurídico que protege valores, razão pela qual entendemos que o objeto contratual,
sob o ponto de vista de sua utilidade, é requisito objetivo do contrato, por ter uma
abrangência maior que a economicidade.
Nessa perspectiva, o objeto do contrato, sob o ponto de vista de utilidade, é
aquele que gera interesse, ao qual é atribuído um valor, que o transforma em bem
juridicamente tutelável.
Papas, decisivamente, e, com certo pioneirismo, no campo das idéias, em prol do papel social do direito”. 267 Rafael Chagas Mancebo. A Função Social do Contrato. Pág.89. “A doutrina se divide entre aqueles que entendem o acordo de vontades como o elemento caracterizador do contrato e aqueles que, além da vontade, entendem a ele inerente a natureza patrimonial. A economicidade do objeto como requisito do contrato não é estipulado no atual código civil”. 268 Idem. Pág. 91. “Se o contrato ocorre em ambiente econômico, relembramos que este ambiente insere-se num contexto mais abrangente, a sociedade, cuja complexidade possibilita acordos de vontades que versem sobre valores importantes ao substrato social, muitas vezes informadores, outras vezes estranhos ao senso estrito da economicidade.”
146
Em relação à segurança jurídica, entendemos que, de forma transparente, a
lei demonstra preocupação com a proteção dos negócios, haja vista a forma taxativa
com que o Código Civil trata a questão das nulidades e restringe as anulabilidades.
Quanto ao Código de Defesa do Consumidor, percebemos, nesse sentido,
uma vulnerabilidade269 maior, haja vista o extenso conteúdo do artigo 51, cujo teor
permite afirmar tratar-se de numerus apertus, bem como a referência, de forma clara
que faz a todo o sistema de consumo.
A esse respeito, Arruda Alvim270 manifesta opinião, com a qual
concordamos, de que a instabilidade do contrato, principalmente o de adesão no
Código de Defesa do Consumidor, é imensamente maior que a instabilidade, que
possa existir para o contrato de adesão previsto no artigo 423 do Código Civil
vigente.
Assim, entendemos que essa instabilidade, ou vulnerabilidade, atribuída aos
contratos civis, significa uma vulnerabilidade aceita pela sociedade e positivada pelo
legislador, como se verifica nas situações de estado de perigo, lesão, ou de
onerosidade excessiva, as quais ensejam alteração e, até mesmo, a resolução dos
contratos, conforme determinação legal.
Sob esse enfoque, podemos entender que essa vulnerabilidade, que
podemos chamar de insegurança, trata-se, na verdade, de uma insegurança
calculada e previsível, uma vez que, mesmo nessas situações, os contratantes estão
protegidos e a sociedade constata a eficácia da segurança jurídica.
269 Arruda Alvim. RT 815. pág. 24. “ Se os códigos de direito privado não podem conviver com um sistema extenso de nulidades, porque isso traria uma desestabilização do negócio jurídico e dos contratos, se fomos ler, nesse ponto, o Código do Consumidor, vamos ver que ele adotou um sistema manifestamente oposto. 270 Arruda Alvim. RT 815. pág. 24.
147
Reforçando esse entendimento, há que se enfatizar que os valores, que
adentram na sociedade e provocam mudanças no direito privado são, também,
visíveis no direito processual civil271, o que nos permite dizer, sem medo de errar,
que tão evidente é o reconhecimento desses valores, que se tratou de torná-los
possíveis de serem exercidos, atribuindo-se maior poder ao juiz.
Ademais, adequar as normas, contidas no ordenamento jurídico, às
exigências da sociedade contemporânea, bem como aceitar a relativização de
alguns conceitos, que foram considerados absolutos, não é tarefa das mais fáceis.
Essa é a realidade em que nos encontramos. Portanto, afirmar que houve
uma transformação na sociedade, a qual refletiu no ordenamento jurídico, é fato
incontroverso.
Aceitar a transformação e acompanhar a evolução será possível, desde que
os princípios éticos sejam preservados e que não se deixe de lado a segurança
jurídica, indispensável para o desenvolvimento pacífico da sociedade272.
Preservar a segurança jurídica é tão importante quanto preservar a própria
sociedade, razão por que há que se ter muita cautela com a interpretação que se
esteja utilizando para as inovações trazidas pelo Código Civil em vigor.
Nesse sentido, quanto à função social do contrato, não podemos concordar,
como querem alguns, que a sobrevivência dos contratos esteja em risco, até porque
271 Arruda Alvim. Idem. “O que se deseja sublinhar é que os referenciais valorativos do Direito alteraram-se em sua base, incluindo-se em mais de um ramo do Direito. O que se quer dizer é que a noção liberal de segurança não só informou o direito privado, como, também, informou o direito processual civil. Por exemplo, no Direito Processual Civil era impossível pensar em poder cautelar geral do juiz, por razões que se nos afiguram muito similares àquelas pelas quais não se podia cogitar de um maior enfraquecimento do contrato”. 272 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. Pág. 72.
148
isso implicaria no caos social, uma vez que o contrato, felizmente, ainda é,
inegavelmente, reflexo do reconhecimento da liberdade individual.
Ademais, a utilização das cláusulas gerais possibilita uma maior
harmonização no ordenamento jurídico, permitindo que o juiz possa decidir de forma
mais equânime quando, no caso concreto, aplicar, por exemplo, a boa-fé objetiva, ou
a função social, o que implica na operabilidade do sistema.
Sob essa perspectiva, visualizamos a vantagem do sistema aberto273, o que
não significa que possamos descuidar da segurança jurídica.
Neste sentido, reforçando o entendimento de que a segurança jurídica não
sofre nenhum abalo em decorrência da inserção de novos valores, como o da
função social, colacionamos o ensinamento de Arnold Wald274:
“Assim, os direitos contratuais, embora exercendo uma função social, constituem direitos adquiridos (art. 5º XXXVI) e gozam, nos termos da Constituição, da proteção do devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV). Em virtude do mesmo ninguém pode ser privado dos seus bens – e dos seus direitos que também se incluem entre os bens – sem o devido processo legal”.
273 Judith Martins Costa. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico. “Num ‘sistema aberto’, o ordenamento jurídico não se sujeita mais à lei como mera servidão formal. Juntamente com o direito positivo passam a conviver princípios gerais do direito, os postulados de direito natural, e o sentimento de justiça e a equidade experimentados pela sociedade à qual serve o magistrado, afastando a interpretação e a aplicação do direito a partir de si mesmo. Por outro lado é preciso atentar para o fato de que a extrema abertura do sistema não conduza à sua própria desaparição, porquanto tal caminho levaria a um estado de incerteza inconciliável com os próprios postulados da democracia: é preciso manter um determinado patamar de segurança nas relações jurídicas, seja ela na relação dos privados entre si, seja na relação entre estes e o Estado sob pena de ser instaurada a lei do mais forte, assentando que o princípio da certeza jurídica é essencial às funções de tutela e garantia às quais o direito se opõe.” 274 Arnold Wald. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. Pág.72
149
Lembramos, ainda, que, no Estado Democrático de Direito, os direitos
individuais devem ser reconhecidos e segurança jurídica é o mínimo, o básico, que o
Estado deve oferecer ao indivíduo.
Finalmente, não concordamos com a doutrina que prega o fim da força
obrigatória dos contratos, da mesma maneira que não concordamos com o discurso,
que se faz defendendo a revisão dos contratos, sob o fundamento de que a função
social coloca o interesse coletivo acima do interesse individual, como forma de
assegurar a dignidade da pessoa humana.
Ao contrario, entendemos que, através da segurança jurídica, se assegurará
a dignidade da pessoa humana, exatamente na medida em que o indivíduo possa
livremente contratar, com a certeza que esse negócio jurídico é válido e eficaz, o
que resultará em desenvolvimento social e convivência pacífica.
150
CAPÍTULO V - CLÁUSULAS ABUSIVAS
Consoante tudo o quanto se expôs, entendemos que o contrato nasce do
acordo de duas ou mais vontades que, atendendo aos limites impostos pela lei, vão
estabelecer as cláusulas, que deverão ser cumpridas nos seus exatos termos.
Como já mencionamos, ao tratar dos aspectos históricos do contrato, há
notícias de que no código de Hammurabi – período compreendido entre 1955 a 1913
a.C. - já estava consignado o repudio da sociedade perante a prática de abusos275,
no que tange a preços, quantidade e qualidade dos produtos.
Ruy Rosado de Aguiar Junior276 nos ensina que a Constituição de
Dioclesiano já consignava a idéia de lesão, como causa de rescisão contratual, o
que nos orienta para o alcance do que seja cláusula abusiva. Já em outra fase da
história, no período da modernidade, refere-se as Ordenações Filipinas, que também
mencionam o instituto da lesão.
As cláusulas abusivas não constituem novidade alguma para nós, ao
contrário, são nossas conhecidas já há bastante tempo, sob a denominação de
“cláusulas leoninas”.
Etimologicamente, o termo ‘leonino’(de leão), do latim leoninus, representa,
exatamente, a força e o poder desse mamífero, que o faz ser reconhecido como
‘temível rei da floresta’, no sentido de demonstrar que o contratante forte estabelece
no contrato aquilo que seja vantajoso para si, independentemente do desequilíbrio
contratual que se estabelece a partir desse ato.
275 Cristiano Heineck Schimitt. As cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor. Pág.164. 276 Ruy Rosado de Aguiar Junior. Cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor.Pág 15.
151
Dessa forma, entendemos que contratos leoninos277 sejam aqueles em que
a desproporcionalidade entre as obrigações assumidas seja gritante, resultando no
favorecimento somente de um contratante, restando visível a ausência de qualquer
demonstração de equidade frente à distribuição dos benefícios e dos encargos
oriundos do contrato.
As cláusulas abusivas estão atreladas, isto é, dizem respeito ao momento da
celebração do contrato278, muito embora os efeitos só possam ser conhecidos
quando da sua execução. Não se confundem com cláusulas ilícitas, uma vez que
mesmo sendo lícitas, caso provoquem desequilíbrio no contrato e vantagem para
apenas um contratante, serão abusivas.
Nesse contexto, ressaltamos que cláusulas ilícitas279 são as que tenham
objeto ilícito, cujo motivo determinante seja ilícito, ou, ainda, que tenha por objetivo
fraudar lei imperativa e, em geral, quando a lei proibir- lhe a prática, ou, ainda,
quando ofenderem qualquer princípio de ordem pública, conforme previsto no artigo
166, II, VI, e VII, do Código Civil vigente280.
277 Oscar José de Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. Pág. 173. “Cláusula Leonina. Assim se dirá a cláusula que, disposta em um contrato, tenha o objetivo de atribuir a uma ou a algumas das partes contratantes vantagens desmesuradas em relação às outras, seja concedendo-lhes lucros desproporcionais em relação à sua contribuição contratual, em face da contribuição também prestada pelas demais partes, seja porque as isenta de quaisquer ônus ou responsabilidades, somente se lhes outorgando direitos”. 278 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. Pág.84. “A existência de uma cláusula abusiva em um contrato é atual, isto é, a sua estipulação é concomitante à celebração do negócio, situação diferente daquela que ocorre por motivos ulteriores à pactuação.” 279 Fernando Noronha. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, e justiça contratual cláusulas abusivas. Pág. 299. 280 Código Civil – Artigo 166: É nulo o negócio jurídico quando: (...), II- for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; (...) VI- tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII- a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
152
Contribuindo para o desequilíbrio das relações contratuais, mas não se
confundindo com cláusula abusiva, temos as figuras do abuso de direito281 e da
lesão enorme282.
Como já mencionamos anteriormente, em meados do século XIX, ocorreu
uma transformação no mundo, devido ao crescimento industrial e mercantil,
ocasionando tanto a oferta, quanto a demanda por produtos, bens e serviços, numa
escala, até então, inimaginável.
Um dos fatores, a que se atribui esse crescimento em larga escala, foi a
explosão demográfica, responsável pelo surgimento de novas formas de aquisição
de produtos e, portanto, novas formas de contratação.
Em épocas passadas, os contratantes se conheciam, ou seja, a relação era
personalizada, e, em regra, os bens eram adquiridos, diretamente, dos produtores
ou fabricantes.
Posteriormente, os mesmos produtos passaram a ser adquiridos através de
comerciantes. Na sociedade atual, surgem os grandes distribuidores283, diante da
281 Claudia Lima Marques. Contratos no código de defesa do Consumidor. Pág. 404. “O abuso de direito seria a falta praticada pelo titular de um direito, que ultrapassa os limites ou que deturpa a finalidade do direito que lhe foi concedido. Assim, apesar de presente o prejuízo (dano) causado a outrem pela atividade (ato antijurídico) do titular do direito (nexo causal), a sua hipótese de incidência é diferenciada. O que ofende o ordenamento é o modo (excessivo, irregular, lesionante) com que foi exercido um direito, acarretando um resultado, este sim, ilícito.” 282 Cristiano Heineck Schimitt. Pág. 86. “A lesão enorme demonstra nítida preocupação econômica com a parte mais fraca do contrato podendo esgotar-se somente nesse aspecto”. 283 Cavalieri Filho. O direito do consumidor no limiar do século XXI. “ O direito do consumidor veio a lume para eliminar as desigualdades criadas nas relações de consumo pela revolução industrial, notadamente a partir da segunda metade do século XX, revolução essa que aumentou quase que ao infinito a capacidade produtiva do ser humano. Se antes era manual, artesanal, mecânica, circunscrita ao número familiar ou a um pequeno número de pessoas, a partir dessa revolução a produção em massa, em grande quantidade, até para fazer frente ao aumento da demanda decorrente da explosão demográfica. Houve também modificação no processo de distribuição, causando cisão entre a produção e a comercialização. Se antes era o próprio fabricante que se encarregava da distribuição dos seus produtos, pelo que tinha total domínio do processo produtivo, sabia o que fabricava, o que vendia e quem vendia, a partir de um determinado momento essa distribuição passou também a ser feita em massa, em cadeia, em grande quantidade pelos mega-
153
impossibilidade de se manter a estrutura anterior, face ao número cada vez maior de
indivíduos, que buscam os bens e serviços colocados à disposição de todos, em um
mercado cada vez mais competitivo, no qual todas as necessidades podem ser
supridas rapidamente.
Dessa forma, com esse distanciamento inevitável entre produtor e
consumidor, resultado de uma nova realidade, temos a constatação do fenômeno do
consumerismo, que tem como uma das características marcantes, justamente, a
despersonalização ou a impessoalidade, de sorte que os indivíduos, a partir de
então, são chamados consumidores.
Naturalmente, a explosão demográfica não ocorreu de forma planejada ou
estruturada, resultando em notável crescimento das diferenças sociais,
vocacionadas a ser cada vez mais gritantes, o que provocou a busca pelo
necessário equilíbrio nos contratos.
Diante dessa massificação, tanto dos produtores, ou melhor, dos
fornecedores, como dos adquirentes, agora denominados consumidores, surge a
necessidade de proteção jurídica para essa nova relação, incontestavelmente
diferenciada e desequilibrada284, nascendo o direito do consumidor, que passa a
regular as relações contratuais, dentro desse novo universo.
atacadistas, de sorte que o comerciante e o consumidor passaram a receber os produtos fechados, lacrados e embalados, sem nenhuma condição de conhecer o seu conteúdo.”. 284 Carlos Alberto Bittar. Direitos do Consumidor. Pág. 59. “Foi somente com o repúdio ao desequilíbrio contratual, decorrente da necessidade do consumidor na aquisição de determinados produtos, aliada à limitação da fixação do conteúdo do negócio pelo comerciante-fornecedor, que se pode alcançar um regime de proteção do consumidor”.
154
Como já tivemos oportunidade de mencionar, esses negócios ocorrem, na
maioria das vezes, no âmbito do denominado contrato de adesão, no universo das
relações de consumo285 .
O contrato de adesão, inserido na relação de consumo, está conceituado no
artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, tendo como característica marcante,
o fato de, unilateralmente, terem sido predispostas as cláusulas contratuais pelo
fornecedor de produtos ou de serviços.
Como adverte Fernando Noronha286, normalmente nos contratos de adesão
é que se verificam as cláusulas abusivas, tendo em vista a impossibilidade de o
aderente rejeitar as condições impostas pelo proponente, normalmente, detentor de
poder econômico, tudo isso, em conseqüência do progresso das sociedades
capitalistas.
Assim, os contratos de adesão podem ser, ou não, contratos de consumo e
traduzem uma manifestação jurídica da moderna vida econômica e social287, uma
vez que a padronização de cláusulas e simplificação na contratação possibilita a
intensificação dos negócios.
Exemplos de cláusulas que representam abusos nos contratos de adesão
são: cláusulas de exclusão de responsabilidade do predisponente; de fixação de
sanções desproporcionais; de perda do bem; perda da quantia paga; de eleição de
foro, que dificulte o acesso ao judiciário.
285 Cristiano Heineck Schmitt. Op cit. Pág. 31. “Uma das formas pelas quais esses abusos passaram a ser praticados consiste nas cláusulas abusivas, elementos inseridos nos negócios para garantir o predomínio econômico de um dos contratantes, notadamente o mais forte, representado pelo industrial, ou o grande comerciante, em detrimento do mais fraco, o cidadão comum.” 286 Fernando Noronha. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, e justiça contratual cláusulas abusivas.Pág. 299. 287 Carlos Alberto da Mota Pinto. Contratos de adesão. Pág.33.
155
Essas relações jurídicas, que tem como instrumento principal o contrato de
adesão, quando afetas ao consumo, são protegidas pelo direito do consumidor,
lembrando que, a partir do texto constitucional de 1988, a defesa do consumidor
passa a ser um direito fundamental.
No Código civil, conforme os artigos 423 e 424, a proteção para essa forma
de contratação prevê: (i) interpretação mais favorável ao aderente quando as
cláusulas forem ambíguas ou contraditórias; (ii) nulidade, quando as cláusulas
estipularem renúncia antecipada a direito resultante do negócio.
Consideramos cláusulas abusivas as estipulações que desequilibram a
relação entre direitos e obrigações, assumidos pelas partes, de forma que a boa-
fé288, base de todos os negócios jurídicos, seja violada.
Complementamos esse entendimento, com as palavras de Nelson Nery
Junior289 , esclarecendo que cláusulas abusivas “São aquelas notoriamente
desfavoráveis à parte mais fraca na relação de consumo. São sinônimas de
cláusulas opressivas, onerosas, vexatórias ou, ainda, excessivas”.
Em suma, a incidência das cláusulas abusivas resulta no desequilíbrio do
contrato e os fatores mais frequentemente, responsáveis pelo surgimento delas, são:
a obrigatoriedade de contratar, através do contrato de adesão, em razão da
necessidade de aquisição de determinados bens ou serviços; e, especificamente,
quanto ao consumidor, a falta de conhecimento ou inexperiência do contratante
vulnerável.
288 Eliseu Jusefovicz. Contratos – Proteção contra cláusulas abusivas. Pág. 13. 289 Nelson Nery Junior. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante. CDC, Art. 51. Pág.988.
156
Essa é a razão pela qual a tutela do consumidor, pelo Estado, é condição
básica para o equilíbrio das relações contratuais, já que o artigo 4º, I, do Código de
Defesa do Consumidor290 declara e reconhece, expressamente, a vulnerabilidade do
contratante ‘fraco’, na relação de consumo.
Dessa forma, percebemos que o reconhecimento da vulnerabilidade está
diretamente ligado à constatação de que, nessa seara, os contratos se realizam por
necessidade291.
Assim, independentemente da situação financeira e econômica do
consumidor, o mesmo aceita as condições impostas para a realização do negócio,
em razão de uma necessidade, muitas vezes vital, por determinado produto ou
serviço.
Ressalte-se que sua fragilidade não está adstrita à sua condição financeira,
mas sim à sua inexperiência, ou até mesmo impotência, diante do absoluto domínio
e conhecimento, que se presume tenha o fornecedor, em relação ao produto ou
serviço, que está sendo ofertado, no mercado, para o consumidor.
Nessa perspectiva, entendemos que a liberdade contratual não pode ser
ilimitada, o que, certamente, vem a favorecer a prática de abusos, exageros e
exploração do mais fraco pelo mais forte, que buscará, sempre, através do contrato,
obter vantagens que, socialmente, não podem ser aceitas. 290 Código de defesa do Consumidor – artigo 4º: A política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. 291 Darcy Bessone de Oliveira Andrade. Aspectos da Evolução da Teoria dos Contratos. Pág. 109. “Observa-se que a liberdade de contratar é muitas vezes, apenas teórica: Na locação de prédio, quando haja crise de habitações, o inquilino cederá às exigências do proprietário, ainda que desproporcionadas”. Na aquisição de gêneros alimentícios e utilidades em geral, o comerciante imporá o preço sempre que haja falta no mercado. “No mútuo o mutuário, de ordinário, deixar-se-á explorar, premido por invencíveis dificuldades do momento”.
157
Por essa razão, entendemos que são abusivas todas as cláusulas que, de
alguma forma, ofendam os princípios contratuais e, indiretamente, os princípios
constitucionais, já que esses estão refletidos em todo o ordenamento jurídico.
Naturalmente, em todos os contratos, as partes buscam benefícios e
vantagens com o negócio que estão realizando. A abusividade a que nos referimos,
consiste na obtenção de vantagem, que causa prejuízo para o outro contratante,
pelo fato de apenas uma das partes fixar, como queira, o conteúdo do contrato.
Arruda Alvim292, a esse respeito nos ensina:
“Ninguém poderia deixar de reconhecer que essa pré-formulação do conteúdo de documentos, submissa à vontade e aos interesses de quem os elabora, implica, essencialmente, que estão esses coordenadamente valorados e orientadamente dirigidos, precisamente, para o interesse de quem os pensa e quem os elabora”.
Percebemos que a abusividade pode ser vista como determinação de algo
que seja contrário ao princípio do solidarismo.
Fábio Comparato293 observa que o solidarismo social impõe deveres
positivos de colaboração entre as pessoas, de acordo com as suas diferenças, o que
dá um sentido de interdependência à vida humana, garantindo o exercício da
liberdade jurídica, de acordo com suas próprias aptidões.
292 Arruda Alvim.Cláusulas abusivas e seu controle no direito brasileiro. Pág. 34. 293 Fábio Konder Comparato. A Evolução Histórica e os Princípios Fundamentais dos Direitos Humanos. Texto de apoio para palestra no curso de Direitos Humanos, da Escola Paulista de Magistratura de São Paulo, outubro de 2000, p-10-11. Citado no texto de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, nota rodapé n.9.
158
O nosso ordenamento jurídico nunca permitiu a prática de cláusulas
abusivas na seara contratual, mas, é a partir do código de Defesa do Consumidor,
que verificamos essa proibição de forma literalmente expressa e estruturada, através
do rol exemplificativo do artigo 51.
Esse reconhecimento expresso demonstra uma evolução no nosso
ordenamento jurídico, uma vez que as cláusulas abusivas são também repudiadas
no ordenamento jurídico de países desenvolvidos294, a exemplo do que ocorre no
direito Inglês, no Norte-Americano e no Alemão.
É inegável que a contratação massificada, com cláusulas padronizadas, que
se torna, cada dia mais freqüente e mais necessária na sociedade contemporânea, a
exemplo dos contratos de cartões de crédito; de telefonia celular; de financiamento
habitacional; de prestação de serviço de educação; de serviços via internet; entre
outros, se realiza através dos contratos de adesão, em que, certamente, prevalece a
vontade da parte que detém o poder econômico.
Portanto, nas relações de consumo, não há como permitir que a liberdade
contratual seja absoluta, pois, além do poder econômico, pode ocorrer que o
contratante forte seja o detentor do monopólio de um serviço considerado essencial,
ou ainda, imprescindível para a realização do homem na sociedade
contemporânea295.
294 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág.36. “(...) designam-se por cláusulas abusivas, no direito inglês por Unfair Terms; no norte americano por unconscionable Contract or Clause e no direito alemão por Generalklausel.. 295 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág.34 “(...) ao lado do consumidor ter pressa, e, ainda, ser o consumidor continuadamente bombardeado pela propaganda, isso que implica uma verdadeira predisposição de sua parte para consumir, em decorrência de uma influência na sua psique, que, ademais, resta sintonizada com essa predisposição psíquica coletiva, o que conduz a que, além da vontade individual, é esta alimentada pela comparação com os demais membros da sociedade e, particularmente, da classe sócio econômica do consumidor, ainda, deve-se
159
Não é por outra razão, que o legislador concede proteção especial ao
consumidor no campo dos contratos de consumo, além de evidenciar, claramente,
através dos preceitos contidos na Lei 8.078/90, toda a carga principiológica
destinada a impedir a prática dos abusos, dentre as quais a literal proibição de
cláusulas que ameaçam o “equilíbrio contratual”, a “boa-fé” ou a “equidade”.
Caio Mario da Silva Pereira296 assevera que esses preceitos consistem em
forma de proteção contra ameaças ou afrontas ao princípio da justiça comutativa297.
A esse respeito, Georges Ripert298 assevera:
“Não se trata de um desfavor lançado em bloco sobre todos os contratos de adesão, pelo contrário, a generalidade, a permanência, a rigidez que se descobre nestes contratos são as mais seguras garantias da sua utilidade. A vontade que se afirma e atrai para si outras vontades representa um poder econômico indispensável à vida de um país....São os abusos deste poder econômico que é necessário impedir”.
Essa carga de princípios e regras de interpretação contratual que se
estabeleceu no Código de Defesa do Consumidor, inegavelmente foi um divisor de
águas, como menciona Silvio de Salvo Venosa299.
acentuar que o consumidor vive na contingência de ter de ser consumidor, diante das necessidades contemporâneas que, só podem ser, numa escala quase que absoluta, satisfeitas pela compra de coisas industrializadas, inclusive, no patamar mais primário de suas necessidades, a própria alimentação, bem como pela necessidade de utilização de certos e determinados serviços.” 296 Caio Mario da Silva Pereira. Lesão nos Contratos. Pág.212. “A norma genérica do respeito à comutatividade das prestações leva sempre a uma solução que reprime os excessos do individualismo, e prestigia a justa proporcionalidade das prestações, no negócio jurídico bilateral”. 297 Antonio Bento Betiolo. Introdução ao Direito. Lições de propedêutica jurídica. Pág. 387/388. ”A justiça comutativa, como princípio diretor das relações entre particulares, tem um campo amplo de aplicação, não se restringindo ao dos contratos. Ela preside, assim, tanto às relações de troca, como as demais relações entre particulares. A justiça comutativa versa, pois, sobre o que é de cada pessoa por direito próprio”. 298 Georges Ripert. Op. Cit. Item 18. Pág. 116.
160
A transformação, em matéria contratual, é considerada um marco, uma vez
que a proteção jurídica destinada ao consumidor é imensamente maior do que
aquela destinada ao contratante, nos negócios jurídicos regidos pelo Código Civil300.
O Código de Defesa do Consumidor confere maior poder ao juiz, que poderá
valer-se dos critérios de equidade, enquanto que, no Código Civil, essa possibilidade
é permitida apenas nas situações expressamente previstas na lei, como se verifica
no artigo 127 do Código de Processo Civil.
Outra razão que encontramos para essa proteção diferenciada, que se
depreende do Código de Defesa do Consumidor, consiste em que os bens tutelados
por esse diploma já nasceram marcados pelo interesse público, conforme comprova
a história do seu surgimento.
O conteúdo do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor possibilita
apreender dois comandos: o primeiro, consiste na limitação da vontade do
fornecedor, que fica impedido da prática de cláusulas consideradas abusivas, pois
sua utilização resultará em nulidade do negócio; o segundo, consiste na defesa do
interesse do consumidor, também através da limitação da sua vontade, pois, mesmo
que pretenda livremente concordar com uma cláusula abusiva, a conseqüência será
a declaração de nulidade.
Assim, tratando-se especificamente de relação de consumo, a vontade dos
contratantes não prevalecerá diante daquilo que o legislador considerou abusivo,
299 Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Vol.4. Responsabilidade Civil. 4ª ed. Atlas. “Pode-se dizer que o próprio direito contratual encontra um divisor de águas no Código de Defesa do Consumidor: após a edição desta lei, a interpretação dos contratos, não importando se dentro ou fora do âmbito consumerista, sofre verdadeira revolução no direito brasileiro”. 300 Arruda Alvim. Op. Cit. 7. “A proteção que é deferida ao consumidor é necessariamente maior do que aquela que possa ter sido reconhecida àquele que seja havido como contratante fraco, dentro do sistema do Código Civil”.
161
podendo ocorrer, tanto a declaração de nulidade301 de alguma cláusula, como de
todo o contrato.
Não resta dúvida da importância do artigo 51 do Código de Defesa do
Consumidor no combate às cláusulas abusivas, para os contratos de consumo, e,
pelo seu conteúdo axiológico, percebemos que a função social, que, expressamente,
só se verificou, a partir do Código Civil vigente, já estava contida no espírito da Lei
8.078/90.
Quanto às nulidades, como sanções, previstas no Código de Defesa do
Consumidor, ressaltamos que há, na doutrina, divergências302 quanto ao fato de
estarem inseridas dentro do instituto geral das nulidades, tratadas no Código Civil,
ou de pertencerem a um universo específico, para as relações de consumo.
Neste sentido, concordamos com a posição doutrinária, adotada por Nelson
Nery Junior303, que defende a existência de um sistema próprio, que abandonou a
dicotomia das nulidades absolutas e relativas, assumindo o reconhecimento da
nulidade de pleno direito.
301 Cristiano Heineck Schmitt. Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo. Pág. 63 “Em razão de ser contrária ao bom direito, a cláusula abusiva recebe a sanção da nulidade que no sistema jurídico brasileiro, é o mais alto grau de invalidade atribuível.”. 302 Ruy Rosado de Aguiar Junior.Cláusulas Abusivas no Código de Defesa do Consumidor.In: Claudia Lima Marques (coord) Estudos sobre a proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul.p.27 /30. “(...) as disposições que cominam a sanção de nulidade reunidas no micro-sistema do Código do Consumidor inserem-se dentro do instituto geral das nulidades, assim estruturado no Código Civil, com as peculiaridades que são próprias às relações de consumo. Não há razões para criar um novo sistema sobre nulidades cada vez que o legislador se defrontar com a necessidade de regulamentar um segmento das relações sociais. Portanto, a ‘nulidade de pleno direito’ a que se refere o art. 51 do CDC é a ‘nulidade’ do nosso Código Civil. Como tal, pode ser decretada de ofício pelo juiz e alegada em ação prevista para violação de preceito de ordem pública e interesse social (art. 1º)”. 303 Nelson Nery Junior. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante. Pág. 988/989. “ O CDC tem seu próprio sistema de nulidades, de modo que aos contratos de consumo não se aplicam, inteiramente, as disposições sobre nulidades do CC, CPC e de outras leis extravagantes. No micro-sistema do CDC as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito, porque ofendem a ordem pública de proteção do consumidor. No micro-sistema do CDC restou superado o entendimento de que as nulidades pleno iure independem de declaração judicial e de que as nulidades absolutas precisam de sentença para produzirem seus efeitos no ato ou negócio jurídico.”
162
Assim, mesmo sabendo que a origem dos vários institutos empregados na
regulamentação das relações de consumo esteja no Código Civil, é inegável que a
utilização desses institutos faça parte de outro universo, cujas regras são
específicas, a exemplo do que ocorre com a responsabilidade civil e com as regras
processuais nas ações coletivas.
Eis a razão pela qual o princípio da intangibilidade do contrato, que passou
por fortes modificações no decorrer do tempo, sofreu, no que se refere ao contrato
de consumo, uma transformação absoluta, uma vez que, para regular essa relação,
criou-se um sistema jurídico específico, que grande parte da doutrina denomina
micro-sistema.
Ressaltamos, porém, que, mesmo diante do reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor, sua declaração de vontade torna o contrato válido,
como se verifica nos artigos 51, §2º, bem como no artigo 6º, inciso V, do Código de
Defesa do Consumidor, cuja redação transcrevemos:
“Art. 6º: São direitos básicos do consumidor:
(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
“Art. 51. (...).
(...)
163
§2º. A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.”
Constata-se, dessa forma, a coexistência do princípio da conservação do
contrato, ao lado do princípio da intangibilidade304.
Nota-se que pela relevância social, que há nos negócios jurídicos realizados
dentro desse universo, determina-se que, sempre que possível, seja preservado o
contrato de consumo, prevendo a legislação que, nos casos em que for declarada a
existência de cláusula abusiva, possa ocorrer a revisão do contrato.
Justamente por premiar a boa-fé, e isto significa respeitar a vontade que foi
declarada, é que o legislador permite, no § 2º do artigo 51 do Código de Defesa do
Consumidor, que o juiz imprima todos os esforços numa interpretação integrativa305,
objetivando a manutenção do contrato.
Assim, mesmo diante da cláusula abusiva, que impõe nulidade, é possível,
através da análise do contexto contratual, e aqui entendemos ser cristalina a
presença da cláusula geral da função social do contrato, o restabelecimento do
conteúdo do contrato, sem a permanência da cláusula abusiva.
304 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág.55. “O princípio da conservação do contrato resta mantido, ao lado do princípio da intangibilidade (art.. 51, § 2º). Nem pelo fato de se ter percebido que o consumidor é “mais vulnerável” nas relações de consumo e em sede contratual, no setor, o contrato é válido enquanto nascido de manifestação de vontades (art. 6º, V do CDC), inexistindo razão para que deixe de ter validade.”. 305 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. Pág. 140. “Por outro lado , em caso de nulidade absoluta de determinada cláusula contratual, é possível ao juiz recorrer não só à lei supletiva da vontade das partes, o Código de Defesa do Consumidor, mas também ao próprio contexto do contrato e às demais cláusulas, obtendo, assim, a disposição que falta, criando uma nova cláusula contratual, numa autêntica interpretação integrativa, que é também uma interpretação pró-consumidor, prevista no art. 47 do CDC”.
164
Neste sentido, há, na doutrina, entendimento de que esta cláusula geral
proporcionou, ao direito, uma “teoria contratual com função social306”, realizando,
com equidade, a distribuição das obrigações contratuais.
Dessa forma, sendo possível, a declaração de nulidade, especificamente, da
cláusula declarada abusiva, entendemos que a aplicação das perdas e danos, para
a solução do conflito, deverá ocorrer apenas residualmente.
Na relação de consumo, o dever de observar a cláusula geral da boa-fé
objetiva assume fisionomia de verdadeiro princípio307, como se verifica do conteúdo
do art. 4º, inciso III308, cuja aplicação permite o controle da prática de cláusulas
abusivas, uma vez que o descumprimento dessa regra implica em reconhecimento
de prática de abuso na esfera contratual.
Quanto aos princípios contratuais, podemos observar que o Código de
Defesa do Consumidor, tutelando os bens que são, desde a sua origem, marcados
pelo interesse público, determina que a declaração de vontade do fornecedor, já o
torna vinculado ao negócio, enquanto que, no Código Civil, a declaração do
306 Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Pág. 104. “O direito desenvolve uma “teoria contratual com função social” quando deixa de lado o ideal positivista e dedutivo da ciência, reconhecendo a influência do social (costume, moralidade, harmonia, tradição), passando a assumir posições ideológicas, voltando-se para solução de problemas por meio da utilização de conceitos e princípios mais abertos, criando figuras jurídicas, como os conceitos indeterminados e as cláusulas gerais.” 307 Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Pág.286. “Trata-se do princípio da transparência, que significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor.” 308 Artigo 4º, inciso III Código de Defesa do Consumidor: “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios”: Inciso III: “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica. (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
165
proponente, em regra, só o vincula, quando houver aceitação do outro contratante,
haja vista que o Código Civil protege os bens, que são marcados pelo interesse
privado, em cujo âmbito prevalece, até certo ponto, a vontade das partes309.
Retomando a legislação civil, configuram-se, também, como abusivas, as
chamadas cláusulas leoninas, como já mencionamos, e as cláusulas potestativas.
Fernando Noronha observa que, impropriamente, usa-se o termo condição,
para tratar das cláusulas potestativas, disciplinadas na 2ª parte do artigo 122 do
Código Civil vigente e, a esse respeito, aduz que “São as estipulações que dão a
uma das partes a faculdade de modificar unilateralmente os termos pactuados,
assim atentando contra o princípio do acordo de vontades.”
Nas cláusulas chamadas leoninas, como já tivemos oportunidade de
mencionar, fica caracterizado o poder que o mais forte vai exercer sobre o mais
fraco, e o exemplo típico citado pela doutrina, está estampado no artigo 1.008 do
Código Civil, que considera nula a cláusula que exclua o sócio de participar dos
lucros e das perdas.
Note-se que, em ambos os casos, as cláusulas são nulas, mas, conforme o
artigo 184 do Código Civil vigente, não haverá prejuízo para todo o contrato,
permanecendo a parte considerada válida, previsão essa que foi seguida pelo
legislador, no artigo 51, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que o
Código Civil de 1916 já previa a mesma situação no artigo 153.
309 Daniel Martins Boulos. A autonomia privada, a função social do contrato e o novo Código Civil. Pág. 131. “Trata-se, bem analisada a questão, de um meio de que se vale o Estado para reconduzir a autonomia privada à sua matriz originária, desautorizando o seu exercício abusivo tendente a gerar, não os efeitos originariamente pretendidos na concepção estatal da autonomia privada, mas outros que o ordenamento jurídico repele”.
166
Como se vê, a preocupação com a prática de cláusulas abusivas não é
recente em nosso ordenamento jurídico, pois as cláusulas leoninas e as potestativas
já estavam consignadas no Código Civil de 1916.
Outro exemplo de norma destinada a conter o abuso está no artigo 1.428310,
do Código Civil vigente, cujo teor determina ser nula a cláusula que autoriza o credor
pignoratício, anticrético ou hipotecário, a ficar com o objeto da garantia, se a dívida
não for paga no vencimento, sendo certo que essa previsão também estava
consignada no Código Civil de 1916311, especificamente no artigo 765.
Cláudia Lima Marques, sobre a questão, aduz que “As cláusulas leoninas e
as condições meramente potestativas representam uma primeira tentativa de
combate às cláusulas consideradas abusivas”
No Código Civil, encontramos, também, a possibilidade de revisão judicial,
em razão de onerosidade excessiva, como se verifica nos artigos 478312 e 479313, e,
embora estejam atreladas a situações, que vão se verificar durante a execução do
contrato, e não no momento da sua formação, de qualquer maneira, podemos dizer,
são, também, de extrema importância no combate às clausulas abusivas.
Especificamente, quanto à onerosidade excessiva, o Código de Defesa do
Consumidor prevê a possibilidade de revisão judicial, em seu artigo 6º, V, 2ª parte,
310 Código Civil vigente – Art. 1.428 – É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. 311 Código Civil de 1916 – Artigo 765 – É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. 312 Código Civil de 2002 – Artigo 478 – Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos retroagirão à data da citação. 313 Código Civil de 2002 – Artigo 479 – A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
167
sem a exigência, que faz o Código Civil vigente, do fato superveniente ser
imprevisível.
Há, na doutrina consumerista, quem defenda a idéia de que, a exemplo da
questão de revisão judicial por onerosidade excessiva, o Código de Defesa do
Consumidor garanta maior efetividade, quando firma os princípios para atingir o
equilíbrio contratual, através da expressa narrativa dada às cláusulas abusivas,
demonstrando maior sentido de socialização do Direito314.
Há, também, aqueles que defendem a idéia de que o conceito de cláusulas
abusivas, desenvolvido no Código de Defesa do Consumidor seja tão perfeito, que
deva ser aplicado em outras áreas, fora do âmbito do consumo, tendo em vista a
insuficiência narrativa do Código Civil vigente, para a sua definição315.
No mesmo sentido, Nelson Nery Junior316 afirma que o artigo 51 do Código
de Defesa do Consumidor pode ser aplicado, por extensão, aos contratos de direito
privado (civil e comercial), tendo por finalidade coibir a prática de cláusulas abusivas.
Em que pese a autoridade do jurista, ousamos discordar, por entendermos
que as regras contidas Código de Defesa do Consumidor devam ser aplicadas
somente aos contratos de consumo, ficando restritas a esse universo contratual.
Ademais, lembramos que a proteção da lei, no campo dos contratos de
consumo, destina-se ao ‘consumidor’, que, justamente por estar nesse papel, é
314 Fabiana Rodrigues Barletta. A revisão contratual por onerosidade superveniente à contratação positivada no Código de Defesa do Consumidor sob a perspectiva civil-constitucional. Pág. 288. 315 Eliseu Jusefovicz. Contratos Proteção Contra Cláusulas Abusivas. Pág.148. 316 Nelson Nery Junior. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante. Pág. 989. “Dado que a ilicitude das cláusulas abusivas é matéria que não fica restrita às relações de consumo, pois pertence à teoria geral do direito contratual, o sistema do CDC, do art. 51 deve ser aplicado, por extensão, aos contratos de direito privado (civil e comercial)”.
168
considerado vulnerável e, nos contratos civis e empresariais, em nenhum momento,
esse protagonista entra em cena.
O Código Civil vigente, assentado nos pilares da socialidade, operabilidade e
da eticidade, consignando a riqueza contida nas cláusulas gerais, a exemplo da boa-
fé, não necessita socorrer-se do rol exemplificativo constante do artigo 51 do Código
de Defesa do Consumidor, para impedir a prática de cláusulas abusivas, nos
contratos civis.
O fato de não existir um capítulo, secção ou artigo, no Código Civil vigente,
para tratar, especificamente, de conceituar, ou estruturar, um rol de cláusulas
consideradas abusivas, que poderíamos batizar, por exemplo, de cláusulas “anti-
sociais”, ou ainda, cláusulas “descompromissadas”, em nada alteraria o propósito
que já está na lei.
Além do que, considerar que o Código Civil vigente seja insuficiente para
impedir abusos, é um absurdo, e contraria a própria concepção de eticidade, que foi
atribuída a ele.
Ademais, as cláusulas gerais estão aí para suprir as necessidades,
conforme forem surgindo, de modo que pensar em rol taxativo ou exemplificativo
para considerar situações de possíveis abusos, contraria a idéia consignada no
próprio sistema, que, como se sabe, é aberto. Dessa forma, não há que se pensar
em “engessar” um código que, certamente, foi projetado para acolher situações que,
hoje, passam muito longe da nossa imaginação.
169
Ressalte-se ainda que o Código Civil, além das cláusulas gerais que,
certamente, muito contribuirão na tarefa de combater os abusos, estabelece, de
forma cristalina, o repúdio ao enriquecimento sem causa317, trata da lesão nos
contratos318, entre tantas outras situações que, claramente, demonstram a estreita
consonância com a socialização.
Assim, percebemos que, quanto às cláusulas gerais, especificamente, a
boa-fé objetiva e a função social do contrato, há uma forte aproximação entre o
Código Civil Vigente e o Código de Defesa do Consumidor, muito embora as
relações contratuais, nesses dois universos, sejam absolutamente diferentes.
Claudia Lima Marques319, a esse respeito, assevera:
“Realmente, a convergência de princípios entre o CDC e o NCC/2002 é a base da inexistência principiológica de conflitos possíveis entre estas duas leis que, com igualdade ou equidade, visam a harmonia nas relações, civis em geral e nas de consumo ou especiais.”.
A autora320 observa ainda que, embora destinados a regular relação jurídica
inserida em universos diferentes, não existe conflito entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil em vigor, senão vejamos:
317 Código Civil 2002. Art. 884. “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. 318 Código civil 2002. Art. 157. “Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. § 1º- Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. § 2º - Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. 319 Claudia Lima Marques. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil: do “diálogo das fontes” no combate às cláusulas abusivas. Pág. 78. 320 Idem. Pág. 79.
170
“Subjetivamente, o campo de aplicação do CDC é especial, regulando a relação entre fornecedor e consumidor (arts. 1º, 2º, 3º, 17 e 29 do CDC) ou relação de consumo (arts. 4º e 5º do CDC), já o campo de aplicação do NCC/2002 é geral, regula toda a relação privada não privilegiada por uma lei especial. Um, o CDC, é um micro-sistema especial, um Código para agentes ‘diferentes’ da sociedade ou consumidores, em relações entre ‘diferentes’ (um vulnerável, o consumidor e um expert, o fornecedor). O outro, o NCC/2002, é um Código geral, um Código para os iguais, para relações entre iguais, civis e empresariais puras. Logo não haveria colisão entre estas duas leis, como expressamente prevê o art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que continua em vigor).”
Sob o aspecto de unidade do sistema jurídico, resta confirmada a existência
de coerência entre o Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90 e o Código
Civil vigente - Lei 10.406/2002, o que não poderia ser diferente, sendo oportuno citar
a lição de Norberto Bobbio321, de que “A coerência não é condição de validade, mas
é sempre condição para a justiça do ordenamento”.
Nesse sentido, Claudia Lima Marques322 sustenta existir um “diálogo”, fruto
de uma convergência principiológica, entre o Código Civil e o Código de Defesa do
Consumidor, já que ambos se interpenetram, com o objetivo de alcançar a ratio
contida em cada um deles, desde que o Código de Defesa do Consumidor não
extrapole o seu limite de atuação, caso contrário, não há possibilidade de diálogo,
tendo em vista que os protagonistas possuem linguagens que são próprias de cada
um.
321 Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico. Pág. 113. 322 Idem.Pág. 77. “Assim, em resumo, haveria o diálogo sistemático de coerência, o diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade em antinomias e o diálogo de coordenação e adaptação sistemática.
171
5.1. CONTROLE DAS CLÁUSULAS ABUSIVAS.
O controle sobre as cláusulas abusivas pode ocorrer de várias formas,
sendo uma delas preventiva, que tem o objetivo de impedir o cometimento do dano,
ou seja, impedir a sua concretização.
Impedindo a concretização da abusividade dessa forma, dizemos que o
controle se dá em abstrato, ou de forma antecipada.
Assim, uma vez constatada a existência de uma cláusula abusiva em
determinado contrato, mesmo que este ainda não tenha sido utilizado formalmente,
ou seja, antes de sua utilização pelos consumidores, poderá o Ministério Público
ajuizar a ação, para que seja declarada a nulidade da cláusula.
É o que se verifica do artigo 51, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor.
Veja-se:
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
§ 4º. É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.”
172
Nesse caso, o poder-dever de controle das cláusulas abusivas é atribuído ao
Ministério Público, conforme disposto nos artigos 82323, inciso I, e 81, parágrafo
único e incisos, todos do Código de Defesa do Consumidor, o que implica dizer que
a defesa dos interesses dos consumidores, nessa situação, será coletiva.
Ressalte-se que esse poder-dever, atribuído ao Ministério Público, deve ser
interpretado à luz do artigo 127 da Constituição Federal. Veja-se:
“Artigo 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
Portanto, isso nos permite afirmar que os legitimados, no artigo 51, § 4º, do
Código de Defesa do Consumidor, não podem exercer o controle das cláusulas
abusivas na forma abstrata.
Da mesma forma, o fato de existir um lesado, identificado como consumidor,
não é causa, por si só, suficiente para que se atribua ao Ministério Público, o dever
de defender esses interesses individuais324.
Além do controle abstrato, a doutrina325 aponta, também, os controles
concreto, interno, externo, antecipado, posterior, legislativo, administrativo e judicial.
323 Código de Defesa do Consumidor. Artigo 82. “Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente.I- o Ministério Público.” 324 Hugo Nigro Mazzilli.A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, e outros interesses difusos e coletivos.Pág. 93. “O Ministério Público só pode promover a defesa de interesses individuais homogêneos quando isso convenha à coletividade como um todo (como quando, embora individuais, se trate de interesses indisponíveis ou quando haja tal abrangência de lesados que se torne francamente proveitosa para a sociedade a substituição processual dos interessados pela Instituição). A não ser assim, estaria atuando o Ministério Público fora dos parâmetros de sua destinação institucional (art.127, caput da CF)”.
173
Quando o controle da cláusula se dá posteriormente à adesão do
consumidor, dizemos que o controle é concreto, repressivo, ou ainda, posterior,
casos em que, normalmente, pelas vias administrativas, são aplicadas as
penalidades previstas no artigo 56 326do Código de Defesa de Consumidor.
Cristiano Heineck Schimitt327 aduz que o controle interno é aquele realizado
pelo próprio consumidor, como prevê o artigo 46 do Código de Defesa do
Consumidor328, enquanto o controle externo incumbe aos órgãos particulares ou
estatais.
Será posterior o controle, quando se dê após a formação do contrato e,
nesses casos, normalmente, pelas vias administrativas, são aplicadas as
penalidades previstas no artigo 56 do Código de Defesa de Consumidor, lembrando
que essa forma de controle pode ocorrer, também, pela via judicial. Já o controle
legislativo é aquele cuja iniciativa pertence ao poder legislativo, que estabelecerá o
conteúdo do contrato.
Todas essas formas de controle apontadas pela doutrina, certamente,
contribuem com o estudo das cláusulas abusivas, porém, naquilo que diz respeito à
325 Cristiano Heineck Schimitt. Cláusulas Abusivas nas relações de consumo. Pág.146. 326 Código de Defesa do Consumidor. Artigo 56. “ As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas: I – multa; II – apreensão do produto; III – inutilização do produto; IV - cassação do registro do produto junto ao órgão competente; V – proibição de fabricação do produto; VI – suspensão do fornecimento de produtos ou serviços; VII – suspensão temporária de atividade; VIII – revogação de concessão ou permissão de uso; IX – cassação de licença do estabelecimento ou de atividade; X – interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade; XI- intervenção administrativa; XII – imposição de contrapropaganda. Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar antecedente ou incidente de procedimento administrativo.” 327 Cristiano Heineck Schimitt. As cláusulas Abusivas no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. Pág. 176. 328 Código de defesa do Consumidor. Artigo 46. “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.
174
eficácia, parece-nos que a classificação poderia ser resumida a duas espécies, a
administrativa e, obviamente, a judicial.
Com efeito, para o consumidor, o controle judicial pode lhe conferir maiores
benefícios, a exemplo da desconsideração da personalidade jurídica ou da inversão
do ônus da prova.
Por outro lado, há que se ressaltar, a importância dos órgãos
administrativos, das associações de consumidores, do CADE - Conselho
Administrativo de Defesa Econômica - e dos Procons, que muito contribuem com a
sociedade, não só, no controle das cláusulas abusivas, atuando como fiscalizadores,
como também, no aspecto educativo, uma vez que orientam e esclarecem os
contratantes, o que, certamente, possibilita que as relações sejam mais equilibradas.
Ao tratar da proteção contratual contra as cláusulas abusivas no artigo 51 do
Código de Defesa do Consumidor, verificamos que as nulidades escolhidas pelo
legislador não são exaurientes, tratando-se de um sistema de nulidades numerus
apertus.
Arruda Alvim329, analisando o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor,
afirma que “Há cláusulas abusivas não explicitadas ou não referidas nominalmente
no art. 51, mas compreendidas no sistema”:
O autor cita, ainda, alguns exemplos:
“1ª- Renúncia ou abdicação da regra da exceção de contrato não cumprido, ou cumprido deficientemente;
329 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 58
175
2ª- Renúncia ao direito de mover ação de resolução contratual;
3ª- Invalidade de cláusula de solve e repete.
4ª- Nulidade da cláusula em que, havendo fiança, haja renúncia ao ‘benefício de ordem’ (art. 1.491, CC 1916);
5ª- declaração do consumidor, constante de contrato de adesão, no sentido de que já recebeu um produto, a ele enviado, sem poder vir a fazer, esse consumidor, qualquer reclamação;
6ª- declaração, em circunstâncias similares, em relação a escala constante de croquis correspondente à realidade física do objeto a ser recebido: ou seja, o confronto terá sido feito em condições precárias;
7ª- Fixação do preço pelo fornecedor no dia da entrega;
8ª- modificação do conteúdo do contrato para um produto inferior, porque haja carência do tipo de produto desejado, sem a correlata possibilidade, que haja sido bilateralmente acertada, de redução do preço;
9ª- entrega da coisa por conta e risco do consumidor;
10ª- previsão de cláusulas penais severas a dano do consumidor;
11ª Há quem entenda ser absolutamente inviável a cláusula de eleição de foro”.
Reforça esse entendimento, o teor do inciso IV, do artigo 51,
especificamente, quando fica evidenciado o conteúdo valorativo consignado nas
palavras boa-fé e equidade330, o que implica em maior poder e responsabilidade
para o juiz, que deverá valorar esses elementos normativos.
Percebemos que, no Código Civil, esta atuação do juiz quanto à valoração
de elementos é, de certa forma, mais confortável naquilo que atine à segurança do
contrato, já que as nulidades são taxativamente definidas e insanáveis.
330 Código de defesa do Consumidor. Artigo 51, inciso IV. “Estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.
176
No Código de defesa do Consumidor, verificamos que as nulidades são de
pleno direito, como expressa o artigo 51, isso significa nulidade absoluta, porém,
pelo fato de estarem inseridas no Código de Defesa do Consumidor, podem vir a ser
sanadas, à exceção do inciso IV, pois, nesse caso, haveria afrontamento à
indisponibilidade de interesses, que se sobrepõem a qualquer outro.
Nesse sentido, é a lição de Ruy Rosado Aguiar Junior331:
“As nulidades instituídas a favor do consumidor não serão decretadas se provada a utilidade da cláusula para o beneficiário.”
“Consideram-se sanados os defeitos que admitem intervenção judicial corretiva, para modificar as cláusulas abusivas e expungir o vício, ajustando o contrato aos princípios informadores do sistema”.
Como se vê, o Código de Defesa do Consumidor, sendo norma de ordem
pública e de interesse social, tem como princípio a preservação332 do contrato.
A proteção, destinada ao consumidor, é ampla, em todos os aspectos.
Exemplo disso é o fato de ter o legislador estabelecido a responsabilidade objetiva,
pelos vícios do produto ou do serviço, considerando abusiva a cláusula que pretenda
exonerar o fornecedor dessa responsabilidade.
Da mesma forma, considera-se abusiva, a cláusula que determine renúncia
antecipada de direitos, embora saibamos que, em juízo, essa possibilidade é
admitida333.
331 Ruy Rosado Aguiar Júnior. Cláusulas abusivas no Código de Defesa do Consumidor. Pág. 28 a 30. 332 Código de Defesa do Consumidor. Artigo 51 § 2º. “A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.”
177
Como assevera Arruda Alvim334, é no artigo 51, incisos IV e XV, do Código
de Defesa do Consumidor, que encontramos os referenciais mais poderosos do
sistema.
A preocupação com a vigilância, constante e continuada, em prol da
proteção dos consumidores é tão grande que a Secretaria de Direito Econômico do
Ministério da Justiça, a fim de orientar o Sistema Nacional de Defesa do
Consumidor, está legitimada335 a complementar o rol do artigo 51 do Código de
Defesa do Consumidor, divulgando, anualmente, uma lista de Portarias,
mencionando novas cláusulas que sejam consideradas abusivas.
Finalmente, quanto aos contratos civis, o juiz, ao declarar abusiva uma
cláusula, quando não esteja, expressamente prevista no Código Civil, deverá
observar, atentamente, os Princípios do Direito Contratual e os Princípios
Constitucionais. A partir destes princípios, caberá ao magistrado preencher o
conteúdo das cláusulas abertas, construindo uma regra que permita a realização da
justiça, restabelecendo, no caso concreto, o equilíbrio entre os contratantes, o que
resultará na realização da função social do contrato.
333 Arruda Alvim. Cláusulas abusivas e seu Controle no Direito Brasileiro. Pág. 59. “No art. 51, I, 2ª frase, sucessivamente prescreve-se – valendo os mesmos tempos verbais – estarem vedadas cláusulas que ‘impliquem renúncia ou disposição de direitos”. Quaisquer modalidades – salvo numa escala absoluta diminuta (art. 54, § 4º) - de abdicação de direitos não podem validamente constar do contrato, mas, é possível renunciar a direitos ou deles dispor em outra sede, ulterior ao contrato, v.g., em juízo, numa transação, ou no âmbito de compromisso, ainda que a ‘utilização compulsória de arbitragem’ seja vedada. (art. 51, VII). Válido será o compromisso, propriamente dito, pendente o juízo. 334 Idem pág.61. 335 Decreto 2.181/1997. Artigo 22.
178
Sobre a possibilidade de realização da justiça material, Ruy Rosado de
Aguiar Junior336 assevera:
“É de se aplaudir o que representa de inovador na visão geral do contrato como um ato que deve atingir finalidade social, regulado pelos princípios da boa-fé, da moralidade, da lealdade, dos bons costumes, da ordem pública. Para o juiz civil forneceu os instrumentos necessários para a realização da justiça material”.
Arruda Alvim 337, com propriedade, resolve a questão explicando que: “É só
com a outorga de poderes ao juiz, não constantes de normas prenhes de elementos
definitórios, que possível será coarctarem-se cláusulas abusivas”.
Nessa esteira, não resta dúvidas de que caberá ao judiciário a tarefa de
concretizar os princípios que norteiam a relação contratual, definida pelo Código
Civil vigente. Tarefa que, em si mesma, não representa novidade para o judiciário,
pois, como já tivemos oportunidade de mencionar durante o desenvolvimento desse
trabalho, nosso ordenamento jurídico sempre repudiou a prática de abusos.
Maria Helena Diniz338, sobre o importante papel do judiciário para que ocorra
a concretização das normas, assim se manifesta:
“Deveras, a norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do magistrado, que é o intermediário entre a norma e a vida ou o instrumento pelo qual a norma abstrata se transforma numa disposição concreta, regendo determinada situação individual.”
336 Ruy Rosado Aguiar Junior. Projeto do Código Civil: as obrigações e os contratos. pág.18. 337 Arruda Alvim. Cláusulas Abusivas e seu controle no Direito Brasileiro. Pág. 33. 338 Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. Pág. 7.
179
Dessa forma, mesmo antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, ao
Judiciário já cabia a missão de decidir o caso em concreto, de forma que o equilíbrio
nas relações jurídicas fosse alcançado, o que, aliás, foi muito bem realizado, haja
vista os princípios que hoje vigoram ter suas bases fixadas não só em conceitos
filosóficos, como também na jurisprudência.
5.2. A IMPORTÂNCIA DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO
CIVIL NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS.
É certo que as cláusulas gerais, consignadas no Código Civil de 2002, são
instrumentos de inestimável valor para o intérprete e aplicador da lei, pois, como já
tivemos a oportunidade de mencionar, o sistema aberto permite atender às
necessidades atuais da sociedade, bem como as que estão para chegar com as
próximas gerações.
Confirmando essa possibilidade de atender as necessidades, que,
futuramente, a sociedade exigirá, Miguel Reale339 propugna que: “O ordenamento
Jurídico não pode ser desatento com as variáveis sociais”.
Daniel Martins Boulos340, nessa perspectiva, externa sua posição:
“Para além de promover a estabilidade jurídica que se espera de uma lei desta magnitude, o Código Civil, nos dias de hoje (em que a realidade social modifica-se com uma velocidade e intensidade
339 Miguel Reale. Filosofia do Direito. Pág. 386. 340 Daniel M. Boulos. Abuso do Direito no Novo Código Civil. Pág. 291.
180
jamais verificadas na história da humanidade), não pode ser composto por regras rígidas, oriundas de um positivismo exacerbado, que procuram desempenhar a impossível tarefa de tudo prever e disciplinar.”
Não menos certa é a afirmação de que, antes da entrada em vigor do novo
Código Civil, embora não positivados os preceitos éticos, morais e, mesmo os
sociais, já habitavam o nosso ordenamento jurídico.
De forma mais acentuada, isso ocorreu, como já dissemos, com a
promulgação da Constituição Federal de 1988 e, naquilo que, diretamente, tenha
afetado, ou transformado, a concepção de relação jurídica contratual entre
particulares, o grande divisor de águas, inegavelmente, se verifica, com o advento
da Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor.
Dessa forma, se alguns princípios, a exemplo da boa-fé objetiva, não
estavam positivados, o mesmo diga-se dos valores sociais, morais e econômicos
que habitavam o nosso ordenamento. Isso implica dizer que os mesmos eram
extraídos do ordenamento, através de interpretação doutrinária e da jurisprudência.
Pablo Stolze Gagliano, a esse respeito, aduz que: “A função interpretativa é
de todas, a mais conhecida por nossa doutrina.”
Essa função interpretativa, cumpre lembrar, revela uma estreita aproximação
com o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que dispõe: ”Na aplicação da
lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum”.
181
Como é sabido, a Lei de Introdução ao Código Civil é norma cogente,
aplicável a todas as leis, por orientar a obrigatoriedade, a interpretação, a integração
e a vigência da lei no tempo341.
Nesse sentido, entendemos que as decisões judiciais devem estar em
consonância com o conteúdo da consciência jurídica geral, com o espírito do
ordenamento.
Para completar esse raciocínio, Maria Helena Diniz, a respeito do “espírito”
do ordenamento, assim se manifesta:
“O espírito do ordenamento é mais rico do que a disposição normativa, por conter critérios jurídicos e éticos, idéias jurídicas concretas ou fáticas que não encontram expressão na norma de direito”.
O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil nos permite afirmar que a
premissa acima referida seja verdadeira, a determinar que: “Quando a lei for omissa,
o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
de direito”.
Nessa perspectiva, a exemplo do que pensava Hans Kelsen342, devemos
considerar “que tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido”.
Portanto, sem adentrar na questão pertinente a existência de lacunas no
ordenamento, ou ainda, no tema da completude ou incompletude do sistema, o que
não consiste em objeto desse trabalho, entendemos que o juiz, consubstanciando
341 Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. Pág. 4. 342 Hans Kelsen. Teoria pura do direito.
182
valores éticos na sua decisão, não terá elaborado a norma individual fora do
sistema.
Na busca do sentido da norma, há ainda a possibilidade de utilização da
equidade, elemento de integração, que permite adaptação da norma ao caso
concreto, diante das possíveis lacunas, uma vez esgotadas, as possibilidades,
previstas no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Parece-nos que instrumentos não faltarão aos nossos magistrados, para
serem utilizados, quando diagnosticada a cláusula abusiva, “anti-social” ou
“descompromissada”, que desequilibre a situação dos contratantes na relação
jurídica, para que, através do devido processo legal, o juiz possa restabelecer
equilíbrio no contrato, para que a função social seja cumprida.
Ressalte-se, ainda, que frente aos dispositivos sobreditos, há um
esvaziamento da tese, enfaticamente defendida pela corrente consumerista, com a
qual não concordamos, que sustenta a necessidade da aplicação da lei 8.078/90,
para solucionar as questões relativas às cláusulas abusivas, no âmbito dos contratos
civis e empresariais, sob o argumento de insuficiência e incompletude343 do Código
Civil vigente.
Ademais, pela clareza e utilidade, faz-se necessário registrar, através dos
apontamentos abaixo, a lição de Alípio Silveira:
“Pelo artigo 5º da Lei de Introdução deverá haver:
a) repulsa à exclusiva interpretação literal da lei ou à sua aplicação mecânica;
b) repúdio à busca da vontade do legislador, que deve ser substituída pela da ‘intentio legis’;
343 Eliseu Jusefovicz. Contratos proteção contra cláusulas abusivas. Pág. 189.
183
c) afastamento da idéia ‘in claris cessat interpretatio’, porque toda e qualquer aplicação de lei, inclusive em caso de integração de lacunas, deverá conformar-se aos seus fins sociais e às exigências do bem comum, sem embargo de sua aparente clareza;
d) predomínio do caráter valorativo, político-social, da interpretação e conseqüente alargamento desse conceito, com desenvolvimento vivo, quase uma segunda criação da norma já estabelecida pelo legislador;
e) atenuação do liberalismo individualista abstrato e do absolutismo dos direitos individuais.”
A par dos apontamentos referidos, verificamos que há, no artigo 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil, fórmulas valorativas que são o bem comum e o fim
social.
No Código Civil vigente temos o artigo 421, que expressa que o contrato tem
uma função social. Também aqui, há uma carga valorativa.
Como observa Tércio Sampaio Ferraz Jr.344, a função social, assim como o
fim social, são, na verdade e antes de mais nada, do direito, já que a ordem jurídica
existe, para tornar possível a sociabiliade humana.
Portanto, nenhuma norma, nenhum contrato e nenhuma cláusula poderão
ser anti-sociais, ou abusivas, mesmo que não haja previsão literalmente expressa,
em artigo de lei ou em rol exemplificativo!
Maria Helena Diniz345, sobre a questão, esclarece que: “Os fins a serem
atendidos são impostos à norma jurídica pela realidade social concreta.”
344 Tercio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito. Pág. 265. 345 Maria Helena Diniz. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. Pág. 172.
184
Quanto ao bem comum, assevera a autora que se trata de noção bastante
complexa, composta de vários elementos, que possibilitam várias definições, sendo
que, dentre esses elementos estão: a paz; a justiça; a segurança a solidariedade; a
utilidade social; concluindo que: “Todo sistema jurídico se inspira numa concepção
do bem comum, isto é, nos fins pelos quais a sociedade optou, porque ela os
considera bons.”
Assim, tendo em vista que caberá ao juiz a aplicação da lei, chega-se ao
entendimento, como bem assevera Tercio Sampaio Ferraz Jr346, de que “É a decisão
que deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum.”
Finalmente, pelo expendido, parece-nos não existir dúvidas de que os
valores, consignados no Código Civil vigente, através das cláusulas abertas, tais
como a boa-fé objetiva e, em especial, a função social do contrato, permitem que o
aplicador da lei possa, sem utilizar o Código de Defesa do Consumidor, identificar e
solucionar, na seara em que se realizam os contratos civis e empresariais, as
questões relativas à abusividade, restabelecendo o equilíbrio do contrato, para que
esse instrumento tão importante possa, efetivamente, contribuir para o
desenvolvimento da sociedade.
346 Tércio Sampaio Ferraz Junior. Introdução ao estudo do direito. Pág. 313.
185
CONCLUSÃO
1. O contrato sempre foi, e sempre será um instrumento precioso para a
sociedade, fato comprovado pela sua trajetória histórica que, passando
constantemente por transformações, exige a adequação desse instrumento às novas
necessidades negociais.
2. Nos últimos 20 anos, a sociedade brasileira sofreu transformações
radicais na política, na economia, além de avanços tecnológicos, que resultaram na
necessária transformação na forma de contratar e, por conseqüência, na ordem
jurídica, materializados com a promulgação da Constituição Federal em 1988.
3. Nossa Constituição estabeleceu uma quantidade significante de
princípios e direitos de cunho absolutamente sociais, dentre os quais, o
reconhecimento expresso da função social da propriedade e, por conseqüência, do
contrato, quando trata da ordem econômica e financeira.
4. Entre esses direitos e princípios constitucionais, que tornam
absolutamente transparente a intervenção do Estado na esfera da liberdade
individual, dando ensejo ao chamado Estado Social onde se constata o alargamento
das normas de ordem pública no lugar do Estado Liberal, tem destaque jurídico a
entrada em vigor, no ano de 1990, do Código de Defesa do Consumidor.
5. No ano de 2003, entra em vigor um novo Código Civil, cujas diretrizes
estão pautadas na socialidade, eticidade e operabilidade do direito, e onde se
verifica a positivação de princípios constitucionais. O Código Civil deixa de ser
reconhecido como “constituição dos direitos privados”, papel transferido para a
186
Constituição Federal, em razão do que ocorre o fenômeno que passa a denominar-
se “constitucionalização do direito civil”.
6. Dessa forma, toda a interpretação normativa na esfera
infraconstitucional, incluindo-se a disciplina contratual, deverá estar em harmonia
com os princípios da Lei Maior, observando-se, obrigatoriamente, os princípios
fundamentais, entre eles, o respeito à dignidade humana.
7. O principio da força obrigatória dos contratos, expressado no brocardo
pacta sunt servanda, sofre uma mitigação, já que o contrato não está mais inserido
no contexto do individualismo absoluto. A carga de valores, consubstanciada no
Código Civil, na disciplina contratual, se faz presente, também, através das
cláusulas gerais, que vão exigir a observância do cumprimento da função social,
conforme o artigo 421.
8. Nesse contexto, entendemos que o direito, naquilo que diz respeito à
seara contratual, deverá conciliar a liberdade individual dos contratantes com os
propósitos constitucionais de construção de uma sociedade justa e solidária.
9. Não se admite um contrato que, visando o interesse de particulares,
possa ofender interesses da sociedade, a exemplo da preservação do meio
ambiente, ou, ainda, que imponha cláusulas consideradas abusivas, que contrariem
normas de ordem pública, a exemplo das regras contidas no Código de Defesa do
Consumidor.
10. Nessa perspectiva, entendemos que a interferência do Estado na
relação entre os particulares deve ter a finalidade de evitar a prática de abusos, pela
imposição da vontade do contratante considerado forte em detrimento do contratante
187
vulnerável, nos contratos de consumo. Por essa razão, o legislador faz previsão
expressa, no artigo 51 da lei 8.078/90, de um rol exemplificativo de cláusulas
abusivas, as quais serão consideradas nulas, de pleno direito, se inseridas nos
contratos.
11. Pela extrema importância que o contrato assume na sociedade,
contribuindo para a realização do indivíduo, e, consequentemente, para o
desenvolvimento social, o legislador prevê, também, a possibilidade de revisão do
contrato e de suas cláusulas, para que se verifique a efetividade de um outro
princípio, qual seja, o da preservação do contrato.
12. Para os contratos civis, o legislador não faz previsão expressa de rol
exemplificativo de cláusulas abusivas, e não faltam, na doutrina, opiniões no sentido
de que há omissão e incompletude no Código Civil, devendo, portanto, ser aplicado,
a esses contratos, o rol do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor.
13. O Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, a nosso ver, são
destinados a universos absolutamente diferentes, embora, naturalmente, tenham em
comum o dever de estrita observância aos ditames Constitucionais.
14. Os contratos regidos pelo Código Civil também são protegidos contra a
prática de cláusulas abusivas a que nos referimos durante o trabalho, como
cláusulas “anti-sociais” ou “descompromissadas”, por estarem em desarmonia com o
objetivo constitucional de solidariedade e, também, a nosso ver, com o objetivo de
igualdade substancial entre os contratantes. Essa proteção encontra-se implícita no
Código Civil vigente, em todos os artigos que permitem a revisão ou, até mesmo, a
resolução do contrato, nas situações previstas pelo legislador.
188
15. Além disso, entendemos que, através das cláusulas gerais, ou da Lei de
Introdução ao Código Civil, será possível obter apoio para combater a prática de
abusos através dos contratos, em razão de que sustentamos não ser necessária a
aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Contratos Civis.
16. Finalmente, acreditamos que a revisão de cláusulas contratuais
consideradas abusivas, através da aplicação da cláusula geral da função social do
contrato, deva ser exercida pelo judiciário com extrema cautela, a fim de que o
contrato não sofra alteração da sua essência, que sustentamos ser econômica.
17. Da mesma forma, sustentamos que a função social do contrato não
poderá servir para mascarar inadimplentes, que não queiram assumir a álea normal
a qualquer contrato. A função social não poderá ser fator de desestímulo à iniciativa
privada, o que significa dizer que a segurança jurídica não pode ser deixada de lado,
daí, porque a função social não deva ser confundida com assistencialismo, pois
acreditamos que o contrato, quando cumprido, atinge sua finalidade social.
189
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Obrigações e Contratos. Projeto do Código Civil: As
Obrigações e os Contratos. São Paulo:RT 775/23, maio 2000.
________.Cláusulas abusivas no Código de defesa do Consumido. In Estudos sobre a
proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul. MARQUES, Claudia Lima (coord.).
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994.
ALTERINI, Atílio Aníbal. Os contratos de consumo e as cláusulas Abusivas. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 15, Pág. 5-19, jul.-set. 1995.
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense.Volume II. 6ª ed.
2003.
ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza; ARRUDA ALVIM, Eduardo; MARINS, James. Código do
Consumidor Comentado. São Paulo: RT. 2[ ed. 1995.
ALVIM, Arruda. Cláusulas abusivas e seu controle no direito brasileiro. Revista de Direito do
Consumidor. São Paulo. RT, n. 20, Pág. 25-70, out.-dez. 1996.
________. A Função Social dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: RT. 815, set.
2003.
ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Aspectos da evolução da teoria dos Contratos. São
Paulo: Saraiva, 1949. 165 p.
ANTUNES VARELA, João de Matos. O movimento de Descodificação do Direito Civil. In
Estudos Jurídicos em homenagem ao Prof. Caio Mário da Silva Pereira. RJ:Forense,
1984.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos. SP. Atlas. 2ª ed.
2004.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do Novo Direito Contratual e
Desregulamentação do Mercado.SP. RT 750/116.
190
BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual por onerosidade superveniente à
contratação positivada no Código de Defesa do Consumidor sob a perspectiva civil-
constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo. (Coord). Problemas de direito civil-
constitucional. RJ: Renovar, 2001.
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos Contratos no
Novo Código Civil. 2ª ed. SP: Saraiva, 2003.
BOBBIO, Norberto.Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C.J. Santos.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília. 9ª ed. 1997.
BODIN DE MORAES, Maria Celina. A caminho de um Direito Civil Constitucional. In Revista
de Direito Civil, nº 65, jul/set., 1993.
_________. Constituição e Direito Civil: Tendências. In Revista dos Tribunais, vol. 779, set
2000.
BORDA, Guillermo A. Manual de contratos. 14 ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1989.
BOULOS, Daniel Martins. A Autonomia Privada, a Função Social do Contrato e o Novo
Código Civil. In: ARRUDA ALVIM; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de; ROSAS,
Roberto (orgs.) aspectos Controvertidos do Novo Código Civil – Escritos em
homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: RT, 2003.
________. Abuso do Direito no novo Código Civil.São Paulo: Ed. Método. 2006.
CAMBLER, Everaldo Augusto; GONÇALVES, Carlos Roberto; MAIA, Mairan. Comentários
ao Código Civil Brasileiro.Direito das Obrigações (arts. 233 a 303) ARRUDA ALVIM;
ALVIM, Thereza Alvim.(coords.) Rio de Janeiro: Forense, 2003. Vol. III.
CAPPELLETTI, Mauro. Tutela de interesses difusos. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo.
Revista da Ajuris, n. 33 p. 169-182, mar. 1985.
CATELLI JUNIOR, Roberto, Andréa Montellato e Conceição Cabrini. História Temática. O
mundo dos Cidadãos. São Paulo: Ed. Scipione. SP. 2ª ed.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. São Paulo. Saraiva. 16ª edição. 2005.
191
COSTA, Judith Martins. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo. RT. 1ª edição, 2ª tir. 2000.
COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A Obrigação Como Processo. São Paulo: Bushatsky,
1976. Pág. 225.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. 1º vol.
São Paulo. Ed. Saraiva. 10º edição, 1994.
________. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 3. São Paulo: Ed. Saraiva. SP. 21ª ed.
2005.
________. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Ed. Saraiva.
12ª Edição, 2007.
DONNINI, Rogério Ferraz. A Constituição Federal e a Concepção Social do Contrato. In:
NERY, Rosa Maria de Andrade E, VIANA, Rui Geraldo Camargo. (Organizadores).
Temas Atuais de Direito Civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2000.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo, Atlas, 1988.
FERREIRA DA Silva, Luis Renato. Revisão dos Contratos: do Código Civil ao Código de
Defesa do Consumidor.Rio de Janeiro: Forense, 1999. 1ª ed. 2ª. tir.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil –
Obrigações. São Paulo. Ed. Saraiva. Vol. II. 2002.
________.Novo curso de Direito Civil – Contratos. Tomo 1. Vol. IV. Teoria Geral. São Paulo.
Ed. Saraiva, 2005.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Texto de Apoio – Jornada de Estudos, Direito dos
Contratos. Centro de Extensão Universitária.São Paulo,25 de outubro de 2003.
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro. Forense. 3ª ed. 1971.
________.Introdução ao Direito Civil.Rio de Janeiro. Forense. 3ª ed. 1971.
192
________.Transformações gerais do direito das obrigações.São Paulo: RT 1980.2ª ed.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva. Vol. III. 2004.
GRINOVER, Ada Pellegrini [et all]. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado
pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed., 1998.
GURGEL, Fernanda Pessanha do Amaral. Liberdade e Direito Privado. In: Função do Direito
Privado no atual momento histórico.Coordenação: NERY, Rosa Maria de Andrade. São
Paulo: RT. 2006.
HIRONAKA, Giselda M. F. N. Conferência de encerramento proferida em 21-9-2001, no
Seminário Internacional de Direito Civil, promovido pelo NAP- Núcleo Acadêmico de
Pesquisa da faculdade mineira de Direito da PUC/MG. Cedida e publicada na obra de
Pablo Stolze Gagliano.
________. Contrato: Estrutura Milenar de Fundação do Direito Privado. Palestra proferida no
5º seminário de Estudos sobre o novo Código Civil, promovido pela Escola judicial Des.
Edésio Fernandes e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais em
Uberlândia, em 23 de agosto de 2002. Estudos em homenagem ao acadêmico Ministro
José Carlos Moreira Alves.Fiúza Editores. SP. 2003.
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002. In
Revista de Direita Privado. São Paulo: RT. 2003. vol. 14.
J.M. LEONI, Lopes de Oliveira. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro. Ed. Lúmen
Júris.2ª ed. 2000.
JUSEFOVICZ, Eliseu.Contratos Proteção Contra Cláusulas Abusivas. Curitiba. Editora
Juruá.1ª ed. 2005. 2ª tir. 2006.
KELSEN, HANS. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado.SP: Martins
Fontes, 2000.
LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Espanhola e notas de Jaime Santos Briz.
Madrid: Revista de Derecho Privado, 1958. t. I, 548 p.
193
LEWICKI, Bruno. Panorama da Boa-fé objetiva, in Problemas de Direito Civil Constitucional,
coordenação de Gustavo Tepedino, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pág. 58.
LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. SP: RT.
2003.
LISBOA, Roberto Senise. Contratos Difusos e Coletivos. São Paulo: Rvista dos Tribunais,
1997.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo.
Ed. Saraiva.1991.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998. Tradução de Lãs normas fundamentales do direito privado.Traduzido
por Vera Maria Jacob de Fradera.
LOTUFO, Renan. A Descaracterização da Pessoa Jurídica no Novo Código Civil. In:
Inovações do Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Quartier Latin, verão 2004.
MANCEBO, Rafael Chagas. A Função Social do Contrato. São Paulo: Ed. Quartier Latin.
2005.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT,
1999. 3ª ed. 2. tir.
MARQUES, Claudia Lima. e TURKIENICZ, Eduardo. “ Caso Teka vs.Aiglon: em defesa da
teoria finalista de interpretação do artigo 2º do CDC”. Revista de Direito do Consumidor
36/221-240, São Paulo, out-dez. 2000.
________. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo código Civil: Do
“Diálogo das Fontes” no combate às cláusulas abusivas. Revista de Direito do
Consumidor. nº 45. São Paulo; RT. Janeiro-março de 2003.
MATTIETO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In:
Problemas de Direito Civil Constitucional, coordenação Gustavo Tepedino. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000.
194
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente
consumidor e outros interesses difusos e coletivos. São Paulo: RT. 16ª edição. 2003.
MENDES, Raimundo. A proteção do consumidor, segundo Hammurabi. In: Amaral, Luiz
(coord). Defesa do consumidor: textos básicos. 2. ed. Brasília: Conselho Nacional de
Defesa do Consumidor, jul.1982.
MENDONÇA, Jacy de Souza. [et al.] Princípios e Diretrizes do Novo Código Civil. In:
Inovações do Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Quartier Latin, verão 2004.
MONTEIRO, Washington de Barros. São Paulo: RT 200/369.
MONTESQUIEU, Charles de secondat, Baron de. O espírito das leis – As formas de
governo: a divisão de poderes. Introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. Contratos vol. 3. Rio de Janeiro: Forense. 1ª ed.
2005.
NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno – Em busca de sua formulação na
Perspectiva Civil-Constitucional. Pensamento Jurídico, Curitiba: Juruá, 2002, vol. II.
Pág. 109.
NERY JUNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos
Autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 8ª edição. 2004.
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria; Código Civil Comentado 3ª edição. RT. 2005.
________.Novo Código Civil e legislação extravagante anotados. São Paulo: RT, 2002.
NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil – apontamentos gerais. In: O novo
Código Civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale, Coord. De Domingos
Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Msrtins Filho.São
Paulo: LTr, 2003.
NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: RT. 2002.
195
NORONHA, Fernando. O direito dos Contratos e seus princípios fundamentais: autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva. 1994.
NOVAIS, Alinne Arlette Leite. Os novos paradigmas da teoria contratual: o princípio da boa-
fé objetiva e o princípio da tutela do hipossuficiente. In: TEPEDINO, Gustavo (coord).
Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. P. 17-54.
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: direito
material – artigos 1º a 54. São Paulo: Saraiva, 2000.
OLIVEIRA, J.M. Leoni Lopes de. Teoria Geral do Direito Civil. Editora Lúmen Juris. RJ. 2ª
ed. 2000.
PASSOS, Fernando. O Direito Empresarial no Novo Código Civil Brasileiro. In: Inovações do
Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Quartier Latin, verão 2004.
PEREIRA Caio Mario da Silva. Lesão nos contratos. Ed. Forense. RJ. 6ª edição. 2001.
________.Instituições de Direito Civil. Contratos. Vol.III. atualizador: REGIS FICHTNER. Rio
de Janeiro: Forense. 11ª ed.2004.
________. Instituições de Direito Civil. Contratos. Vol.III. atualizador: REGIS FICHTNER.
Rio de Janeiro: Forense. 12ª ed.2006.
PEREIRA DA MOTA, Maurício Jorge. A pós-eficácia das obrigações. In: TEPEDINO,
Gustavo. (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Ed. Renovar. RJ .2000.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 1 ed. rev. e ampl.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Pág. 55.
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Contratos de adesão. RJ: Revista Forense.
Nº. 257, 1977.
PLÁCIDO E SILVA, Oscar José de. Vocabulário Jurídico. Ed. Forense. RJ. 20ª edição. 2002.
REALE, Miguel. Estudos Preliminares do Código Civil.São Paulo. RT. 2003
196
________. Visão Geral do Projeto de Código Civil. Revista Literária de Direito. 23/5/1998. ________. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva. 5ª. ed. 2005
RIEG, Alfred. Le role de la volonté dans la formation de l’acte juridique d’après lês doctrines
allemandes du XIXº. Siècle. Archives de Philosophie du Droit, Paris, n.4. pág. 125-133,
1957.
RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis.Trad.Osório de Oliveira. São Paulo:
Saraiva. 3ª ed. 1937.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Dos Contratos e das Declarações Unilateriais de
vontade.São Paulo: Ed. Saraiva. 29ª ed. 2003.
________. Direito Civil. Vol.3. 28 ed. SP: Saraiva. 2002.
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomer. Coimbra:
Almedina, 1988:64.
SANTORO-PASSARELLI, Francesco. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra, Atlântida
Editora. 1ª ed. 1967.
SILVA, Luiz Antonio Guerra. Revista Jurídica.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_78/artigos/Luiz_rev78.htm
SCHMITT, Cristiano Heineck.Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo. São Paulo:
RT. 2006. Biblioteca de Direito do Consumidor – v. 27.
________. As cláusulas abusivas no Código de defesa do Consumidor. Revista de Direito
do Consumidor. SP: RT. n. 33 - janeiro-março – 2000.
SOARES, Mário Lucio Quintão e Lucas Abreu Barroso. Os Princípios Informadores do Novo
Código Civil e os Princípios Constitucionais Fundamentais: Lineamentos de um conflito
hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Brasileira de Direito Privado.
n. 14, abril/junho 2003.
197
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004.
VECCHIO, Giorgio Del. Evoluzione ed Involuzione del Diritto. Roma 1945. pág.11.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo: Ed. Atlas, 4ª ed. Vol. IV. 2004.
________. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. Vol. II,
São Paulo: Ed. Atlas, 3ª ed. 2003.
________. Direito Civil. Responsabilidade Civil. Vol. IV, São Paulo: Atlas, 3ª ed. 2003.
WALD, Arnold. O Contrato: Passado, Presente e Futuro. Revista Cidadania e Justiça. Rio de
Janeiro: Publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros, 1º semestre de 2000.
________. A evolução do contrato no terceiro milênio e no novo Código Civil, In: ARRUDA
ALVIM; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de; ROSAS, Roberto (orgs.) aspectos
Controvertidos do Novo Código Civil – Escritos em homenagem ao Ministro José
Carlos Moreira Alves. São Paulo: RT, 2003.