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A REFORMA
PROTESTANTE ECCLESIA REFORMATA SEMPER REFORMANDA.
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A REFORMA PROTESTANTE
ECCLESIA REFORMATA SEMPER REFORMANDA.
INTRODUÇÃO.
A Reforma Protestante do século XVI foi o maior evento restaurador da
igreja cristã. Atingiu a dimensão de tornar o Protestantismo nascente a
maior força propulsora na história da civilização moderna. A partir
desse evento, o Cristianismo passou a possuir dois ramos: o Catolicismo
e o Protestantismo. O Catolicismo ficou caracterizado pelo Cristianismo
legalista, que serviu às nações bárbaras da Idade Média, sendo ritualista,
tradicional, hierárquico, conservador e governado pelo princípio da
autoridade. Já o Protestantismo é Cristianismo evangélico,
correspondendo à era da independência humana, sendo bíblico,
democrático, espiritual, progressivo e defensor do princípio da legítima
liberdade. Além disso, o objetivo do Protestantismo desde o seu início
foi trazer cada pessoa à comunhão com Deus, através de Jesus Cristo, o
único e todo suficiente Senhor e Salvador do pecado e da morte eterna.
Na verdade, a Reforma foi um movimento de profundas repercussões
culturais, sociais e políticas, porém, nesse estudo desejamos destacar
também os seus fundamentos teológicos e, em especial, a doutrina da
salvação dos reformadores.
De qualquer que seja a perspectiva, todos os cristãos evangélicos são
herdeiros da Reforma Protestante do século XVI. Daí, ser de grande
proveito que continuemos a estudar em que consistiu essa herança.
A AURORA DA REFORMA.
Cerca de 150 anos antes da Reforma (1375), John Wycliff na Inglaterra
entrou em luta com o papado. Ele era o mais culto e destacado professor
da Universidade de Oxford, ao mesmo tempo em que atuava como
padre na paróquia de Lutterworth. Suas posições políticas e doutrinárias
consistiam em ser contra a cobrança de impostos pelo papa à Inglaterra,
achava que não deveria haver distinções de classes dentro da igreja e era
contrário à transubstanciação.
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Apesar de ter sido declarado herege, as autoridades eclesiásticas nada
fizeram contra ele devido à sua posição e à credibilidade perante todos.
Wycliff traduziu a Bíblia (Vulgata Latina) do latim para o inglês,
escreveu inúmeros tratados e preparou um grande número de pregadores
itinerantes, os quais percorreram toda a Inglaterra instruindo o povo.
Formavam a ordem dos sacerdotes pobres, também chamados,
pejorativamente pelos seus inimigos, de lolardos (termo derivado de
uma palavra holandesa que quer dizer murmuradores). Os lolardos
cresceram grandemente em número e se constituíram numa força
poderosa na disseminação do Evangelho. Apesar de terem sido
perseguidos e martirizados no século XV, continuaram sua missão até o
tempo da Reforma.
Os ensinos de Wycliff inspiraram John Huss na Boêmia, o que conduziu
a um movimento de maior revolta contra a Igreja Romana. Huss, além
de sacerdote, era um homem muito culto e de grande influência na
Universidade de Praga. Também era estimado pregador, assim como
contava com a simpatia e o respeito de todo o povo devido a sua vida de
pureza e caráter. Na verdade, era um grande líder nacional.
Ensinou ao povo as ideias elaboradas por Wycliff, pelo que foi
condenado como herege. A história demonstra que seu julgamento foi
uma grande farsa. Condenado à fogueira, sofreu martírio na cidade de
Constança. Como resultado, os boêmios se revoltaram com grande ira,
iniciando uma guerra contra o imperador alemão e defendendo,
inclusive, a sua independência.
O AMBIENTE RELIGIOSO E SOCIAL.
A Alemanha vivia uma situação religiosa e econômica bastante crítica
no início do século XVI. A Igreja Romana agia com bastante opressão,
cobrando elevados impostos e ingerindo sobre assuntos de nomeação.
Além disso, a administração eclesiástica desenvolvida pela cúria papal
era corrupta e onerosa: a postura dos clérigos era repreensível, os
mosteiros estavam desvirtuados, o clero era isento de impostos, havia
proibição de aplicação de juros, uma elevada mendicância estava nas
ruas, havia muitos dias santos e uma incerteza religiosa quanto à
obtenção da salvação. Daí, muitos se sentiam submetidos a grandes
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temores, ansiedades e insegurança.
Era um tempo de rápidas mudanças sociais, quando o sistema feudal se
desgastava sob o impacto de novas forças emergentes. Nessa época 90%
das pessoas trabalhavam a terra e dela tiravam o seu sustento. Os
camponeses, que tinham sido oprimidos por séculos, se rebelavam mais
frequentemente à medida que o sistema feudal perdia parte do seu
poder. Novas cidades iam surgindo, nas quais uma nova classe social
composta por artesãos, banqueiros, homens de negócios, advogados,
professores etc., constituíam uma classe média.
Além disso, a invenção da imprensa por Gutemberg tornou acessível às
pessoas que viviam fora dos mosteiros e de outros círculos o
pensamento do passado e toda a sua riqueza literária.
Enquanto isso, a religião oficial sustentava todo um sistema de
dominação e opressão, nos seguintes aspectos:
1. A própria Igreja Católica era parte integrante dos sistemas
econômico e político, usando sua influência religiosa para apoiá-
los;
2. Boa parte da teologia da Igreja Medieval contribuía para
sacralizar o sistema, dando legitimidade divina;
3. O verdadeiro poder de dominação que sustentava o sistema era
exercido dentro da esfera espiritual através do sistema
hierárquico-sacramental.
Considerando o fato da Igreja estar no centro da sociedade, fazendo com
que a religião estabelecesse o ambiente no qual as pessoas viviam e se
moviam, a luta pela mudança necessariamente tinha de ser religiosa.
Esta é a razão porque Martinho Lutero surgiu como o grande libertador
na Europa do século XVI.
Além disso, a vida da Igreja Romana era indigna. Nela ocorriam muitos
abusos financeiros, o alto clero (papas, cardeais e bispos) demonstrava
uma vida escandalosa e de despreparo religioso, vivendo cercados de
luxo e interessados mais em questões políticas e financeiras do que em
valores espirituais. Por exemplo, o papa Inocêncio VIII (1484/1492)
criou novos cargos de secretário apostólico para arrecadar mais dinheiro
e casou seu filho com a filha de Lourenço de Médicis, governante de
Florença, que em recompensa teve um filho de apenas 13 anos nomeado
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cardeal. Já o papa Leão X (1513-1521), pontífice da época inicial da
Reforma, dedicava seu tempo às artes, festas, caças e teatro. Por outro
lado, o baixo clero, formado pelos curas e vigários das paróquias, era
pouco instruído e muito pobre, sobrevivendo às custas do aumento das
taxas para a celebração de batizados, casamentos, funerais etc. Muitos
deles trabalhavam administrando lojas ou albergues e, não raro, eram
dados aos jogos e à bebida, vivendo também em concubinato. Convém
destacar, também, que o número de padres e bispos que não sabia
ministrar os sacramentos, rezar a missa e apresentar aos fiéis a
mensagem do evangelho era cada vez maior.
A REFORMA PROTESTANTE.
Na época da Reforma a Alemanha representava as terras do Reno até as
fronteiras da Hungria e da Polônia, excluindo a Suíça. Não era, contudo,
uma nação unificada com um poder central, como a Inglaterra, a França
e a Espanha. O Santo Império Romano, o Império Alemão,
compreendia muitos territórios separados de variados tamanhos. Em
cada território governava, com relativa independência, os príncipes,
também chamados de Eleitor, Landgrave ou Margrave, todos sob a
liderança do imperador, o senhor feudal. A Dieta, como poder central,
consistia numa assembleia formada pelos príncipes e pelos nobres.
O monarca que mais se envolveu com a Reforma foi Carlos V, que era
de sangue alemão e espanhol. Ele era um homem da Idade Média que,
apesar de desejar uma reforma da Igreja, resistia a qualquer mudança de
doutrina. Não era subserviente ao papa, mas admitia que um concílio
geral representava a mais alta autoridade na Igreja. Possuía como rival,
às vezes inimigo e às vezes aliado, Francisco I, o ambicioso rei da
França.
Martinho Lutero (1483-1546) nasceu em Eisleben, na Saxônia,
descendente de uma família de camponeses. Aos 18 anos ingressou na
Universidade de Erfurt, a mais famosa da Alemanha, a fim de tornar-se
advogado. Era um estudante aplicado, estudioso, orador fluente e
polemista, que gostava de música e da convivência com as pessoas.
Quando estava para ingressar na vida profissional, mudou a sua direção,
fazendo-se monge no Convento dos Agostinianos. Foi considerado um
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monge de vida modelar, tentando seguir o caminho da salvação segundo
o ensino da Igreja Medieval, excedendo-se em jejuns, vigílias,
flagelações e confissões. Apesar dessa intensa batalha espiritual, não
encontrou a paz e a segurança de alguém que está no caminho de Deus.
O ensino da Igreja Medieval dizia que o ser humano pode alcançar a
salvação pelas obras e pelos sacramentos que ela prescrevia, como
entidade divinamente autorizada. Lutero, contudo, tinha uma alma que
ardia com o sentimento de pecado e de estar debaixo da ira de Deus. Na
sua busca pela certeza da salvação, ele recebeu a orientação do seu
vigário geral, Staupitz, que afirmava que Deus era misericordioso e não
apenas justo. Além disso, leu sobre a graça divina nos escritos de
Bernardo de Claraval e na própria Bíblia. Livrou-se dessa angústia
quando, enquanto lia a Carta aos Romanos (Rm 1.17), encontrou que o
justo viverá pela fé. Isso inflamou seu coração, trazendo a luz da
compreensão de que a salvação lhe pertencia simplesmente pela
confiança, pela fé em Deus através de Jesus Cristo.
Por um pouco mais de quatro anos Lutero ensinou na Universidade de
Wittenberg sem romper com a Igreja, tornando-se, inclusive, um líder
da sua Ordem. Suas aulas e preleções na Universidade tinham uma nova
orientação, compreendendo explicações aprofundadas das Escrituras e
aplicação contextualizada à vida, ao invés de repetições dos pais e dos
doutores da Igreja. Esses ensinos atraíam multidões ao salão de
conferências.
Em 1517, Tetzel, um enviado do arcebispo da Mogúncia, apareceu nas
regiões próximas de Wittenberg vendendo indulgências emitidas pelo
papa, que eram pagamentos para redução das penas do purgatório ou
perdão dos pecados. Lutero indignou-se contra as indulgências. Naquela
época era costume afixar-se em lugares públicos a defesa ou o ataque de
opiniões, chamadas de teses, nas quais se debatiam as ideias e se
convidavam os interessados para o debate. Assim, em 31 de outubro de
1517, véspera do Dia de Todos os Santos, quando uma enorme multidão
afluiu à Igreja do Castelo em Wittenberg, Lutero afixou nas portas dessa
igreja as 95 Teses que combatiam as indulgências. O conteúdo dessas
teses afirmava que o cristão arrependido obtinha o seu perdão
diretamente de Deus, sem a intervenção de indulgências. Porém, as
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teses traziam também a negação do pretenso poder da Igreja Católica
Romana de ser mediadora entre o ser humano e Deus e de conferir
perdão aos pecadores. Cópias dessas teses foram impressas, vendidas e
disseminadas por toda a Alemanha. Como consequência o papa da
época, Leão X, começou a agir contra esse monge rebelde. Como
primeiro passo intimou Lutero a comparecer perante as autoridades em
Roma, o que significaria morte certa. Frederico, o Eleitor da Saxônia,
contudo, protegendo Lutero, ordenou que seu caso fosse discutido na
própria Alemanha. Diversas conferências aconteceram com os enviados
do Papa, sendo que em uma delas, a de Leipzig, Lutero declarou,
baseado em seus estudos das Escrituras, duas coisas de destaque:
1. Que o papa não tinha autoridade divina;
2. Que os concílios eclesiásticos não eram infalíveis.
Essas afirmações significaram o rompimento definitivo e irrevogável de
Lutero com a Igreja. A partir daí, Lutero prossegue com grande
coragem e rapidez, desenvolvendo uma intensa atividade literária,
divulgando e ensinando o povo alemão as virtudes do Evangelho. Seu
livro À Nobreza Cristã da Alemanha era uma convocação a toda a
Alemanha para unir-se contra Roma.
Por outro lado, Lutero expunha os desvios da Igreja Romana, que
ensinava que o papa e o clero tinham poderes sobrenaturais. Negou que
somente o papa pudesse interpretar a Bíblia. Denunciou a corrupção do
papado, suas ambições e extorsões. Adicionalmente, ele traçou um
plano para organização de uma igreja nacional alemã, independente e
reformada.
A reação de Roma consistiu em sentenciar Lutero e seus simpatizantes à
excomunhão. A bula papal de excomunhão é apresentada a Lutero em
1520, trazendo o conteúdo de se não se retratassem, seriam tratados
como hereges, isto é, seriam presos e condenados à morte. O jovem
Felipe Melanchton, professor e companheiro de Lutero, anunciou ao
povo um grande acontecimento público: a queima dos decretos papais e
de escritos dos teólogos escolásticos. Esta cena representa uma nova era
na história humana, pois se traduz no rompimento com todo o sistema
medieval.
Entretanto, a bula papal de excomunhão para ter efeito necessitava do
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poder civil. O caso foi levado à Dieta de Worms, em 1521, sob a
presidência do Imperador Carlos V. Lutero chega à Dieta com o apoio
do povo e dos nobres. Perante o imperador e de todos os eleitores das
províncias, clérigos e leigos, inclusive quatro cardeais, Lutero falou
vagarosa, calma e confiantemente, com um poder que emocionou todos
os corações, recusando alterar a sua posição. A Dieta dissolveu-se em
meio a grande confusão: enquanto os espanhóis gritavam para levar
Lutero à fogueira, os alemães empunhavam suas armas e, ladeados a
Lutero, o conduziram para fora da audiência. O Édito de Worms
condenou Lutero e seus simpatizantes à destruição, mas nenhuma
tentativa séria foi feita para levar a efeito a sentença. O povo alemão
zombava do referido decreto. Lutero estava condenado, mas se
encontrava seguro, como líder do movimento religioso nacional.
O movimento se propagou através dos ensinos reformados. A maioria
dos monges deixou o claustro para pregar as boas novas do Evangelho.
Muitos sacerdotes das paróquias se tornaram luteranos, seguidos dos
seus fiéis. Vários bispos foram favoráveis às novas doutrinas. Nos
templos, quando não se encontravam clérigos para pregar, os leigos o
faziam. O movimento se espalhou como um forte reavivamento
espiritual.
Outro movimento de reforma surgiu na Suíça alemã, sob a liderança de
Ulrico Zuínglio. Assim, na Dieta de 1526, os luteranos e zuinglianos
dominaram a assembleia, assegurando a decisão de que cada governo
podia escolher a religião do seu domínio. Já na Dieta de 1529, em Spira,
os católicos estavam mais organizados e conseguiram aprovar a decisão
de impedir qualquer propaganda da Reforma. Contra isso, os partidários
da Reforma elaboraram um protesto formal. A partir daí os seguidores
do Cristianismo reformado foram chamados de protestantes.
Objetivando pôr fim a disputa religiosa entre católicos e protestantes foi
realizada a Dieta de Augsburgo, em 1530. Nela, os luteranos
apresentaram uma declaração de princípios, denominada de Confissão
de Augsburgo, que teve como principal redator Melanchton. Não houve
acordo na Dieta e os católicos declararam guerra aos protestantes.
Lutero faleceu antes que viesse a guerra.
Muitas coisas Lutero realizou, mas o seu legado consistiu
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principalmente de:
1. Grande número de livros escritos;
2. Preparação de pregadores;
3. Tradução das Escrituras das línguas originais para a língua do
povo alemão;
4. Composição de vários hinos, sendo o mais conhecido Castelo
Forte, considerado a Marselhesa da Reforma.
5. Instituição de escolas conjugadas com as igrejas.
6. Influências em muitos países, tais como Boêmia, Hungria,
Polônia, Inglaterra, Escócia, França, Países Baixos,
Escandinávia e mesmo a Espanha e a Itália.
A guerra do imperador Carlos V contra os protestantes foi iniciada em
1546, tendo a princípio vitória a seu favor. Porém, Maurício da Saxônia
o expulsou da Alemanha, fazendo abandonar o trono. Na Dieta de 1555
foi acordada a Paz de Augsburgo, reconhecendo o protestantismo como
movimento legal e ficando para cada príncipe escolher a religião do seu
território.
A DOUTRINA CENTRAL DA REFORMA.
A Igreja Medieval exercia o sacerdócio entre as pessoas e Deus. A
Reforma rompe com essa posição reafirmando o princípio bíblico de
que como indivíduos, todos os cristãos são igualmente sacerdotes. Esse
é o sacerdócio daqueles que, pela fé, foram unidos com Cristo (IPd 2.5 e
9). Isso quer dizer, também, que cada membro individual tem comunhão
pessoal direta com a Cabeça Divina, possui responsabilidade imediata
diante dele e que diretamente dele é que obtém perdão e adquire força.
Lutero ao proclamar o sacerdócio universal de todos os crentes (IPd 2.9
e Ap 1.6) tornou impossível para um grupo na igreja manter outros em
posição inferior, ao mesmo tempo que recolocou todos os fiéis,
incluindo os considerados mais baixos, à condição privilegiada de
sacerdote. Todos estão nivelados perante Deus.
Como cada crente é um sacerdote, então cada um é capaz de fazer com
que o Evangelho e seus benefícios estejam disponíveis para os outros.
Entretanto, pessoas são vocacionadas por Deus para ministérios
específicos, a fim de fazer a igreja funcionar efetivamente e assumir
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uma administração em seu favor. Tais ministérios devem ser vistos
como chamados a proclamar uma mensagem doadora de vida e
transformadora do mundo, para servir, ao invés de ter poder sobre
outros. Desse modo, Lutero rompeu decisivamente com a divisão
tradicional da igreja nas classes de clero e laicato.
Essa doutrina não quer dizer que devemos abolir o ministério pastoral
como ordem distinta dentro da igreja, como fizeram os quacres. Nem
tampouco que cada crente é seu próprio sacerdote, possuindo o direito
do julgamento privado. Na verdade, a doutrina do sacerdócio universal
de todos os crentes quer dizer que todo cristão é sacerdote de alguém, e
somos todos sacerdotes uns dos outros (GEORGE, 1994, p. 96).
O sacerdócio de todos os crentes é ao mesmo tempo um privilégio,
quanto uma responsabilidade; uma posição, quanto um serviço. Duas
consequências práticas daí surgem:
1. Ninguém pode ser um crente sozinho, vivendo sua fé na solidão.
Não podemos servir a Deus sozinhos. Isso conduz a definição de
igreja como a comunhão dos santos, onde os creem em Cristo é
que são os santos. Portanto, a igreja não é o conjunto dos
supercristãos que estão na glória celeste, em cujos méritos se
pode conseguir ajuda para os caminhos da vida. Além disso, não
é a comunhão de uns para com os outros que vai formar a Igreja.
A base fundamental é a comunhão com Cristo que, sendo
comum a todos, produz comunhão entre os irmãos. Quando
individualmente uma pessoa passa a ter comunhão pessoal com
Cristo, no mesmo momento e por essa causa, passa a ter
comunhão também com todos os que já a possuem. Cristo é o
nosso ponto de encontro e de identificação.
2. A igreja é o povo. São as pessoas que formam a igreja, com suas
próprias vidas, e não os aspectos associativos dela em sua
organização e programas. Igreja é a gente da Igreja, não as
formas de seu agrupamento. Desse modo, em sentido bíblico
mais profundo, não formamos a Igreja, mas somos pessoalmente
a Igreja, se Deus é que nos está chamando, Cristo congregando,
o Espírito aperfeiçoando e a Palavra orientando e ensinando.
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QUATRO GRANDES POSTULADOS DA REFORMA.
1. SOLA GRATIA.
Os reformadores ensinaram que o pecador é justificado unicamente pela
graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo. Aqui, a graça é o favor
divino que o ser humano não merece, mas que, em sua soberania e
bondade, Deus quer lhe dar. Desse modo, a salvação é obra de Deus,
não da pessoa (Ef 2.8-9; Rm 11.6). O ser humano não está em condições
de dar, mas Deus o capacita a receber. Simplesmente a pessoa estende a
mão vazia para receber, não a mão cheia para oferecer, pois não possui
nada que possa ofertar em troca da salvação. Nem ao menos pode
cooperar com a graça divina para salvar-se. Sua situação é de morte (Ef
2.1-3), estando apenas disponível para receber o favor de Deus.
Esse conceito de só pela graça é um golpe contundente no orgulho
humano, pois confronta a nossa própria miséria espiritual e moral. Não
há, portanto, lugar para a autossuficiência, nem para a arrogância de
quem pretende salvar-se a si mesmo e a outros, mesmo por meio de
esforços que, na perspectiva da sociedade, pareçam nobres e heroicos. A
ideia de que o ser humano é bom por natureza e que pode auto-levantar-
se cai por terra ante a manifestação da doutrina de só pela graça de
Deus.
O ser humano é pecador por herança, pecador por natureza, pecador por
pensamento, palavra e ação; pecador como indivíduo, pecador como
ente social, criador de estruturas corruptas e perversas, a serviço das
forças demoníacas que operam neste universo. A sociedade total está
enferma. Esse é o quadro sombrio e deprimente que devemos
considerar, a fim de percebermos melhor o significado da graça de Deus
e pregar fielmente o Evangelho.
Por outro lado, devemos observar que a graça também revela o valor
imenso que o ser humano possui diante de Deus. O ser humano tem sua
origem em Deus e leva em si, ainda que afetada pelo pecado, a imagem
do seu Criador. Isto lhe concede uma dignidade especial que o eleva
bem acima das outras criaturas do mundo e lhe permite exercer domínio
sobre a natureza. É especialmente objeto do amor de Deus (Jo 3.16).
Deus é sempre o Deus de toda a graça (IPd 5.10). O Protestantismo,
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assim, nega todos os esquemas de salvação que promovem o homem e
suas atividades e cerimônias religiosas como meio de vida eterna e
perdão. Insiste ainda que a salvação vem através do puro e imerecido
favor de Deus.
2. SOLA CHRISTUS
A mensagem dos reformadores era de Cristo, sobre Cristo e centrada em
Cristo (Jo 1.17; IICo 9.15; Jo 14.6; At 4.12). Essa mensagem que ainda
ressoa é ao mesmo tempo inclusiva e exclusiva: inclui todos os que
recebem a Cristo como único mediador entre Deus e os homens, e
exclui todos que resistem à graça de Deus. Portanto, não nos cabe
incluir o que Deus não incluiu nem excluir o que Ele não excluiu. Só
Cristo salva! Mas, que Cristo?
1. O Cristo Deus, associado eternamente com o Pai e o Espírito Santo;
2. O Cristo Histórico, manifestado no tempo e no espaço da
plenitude da história humana;
3. O Cristo Humano, participante da carne e do sangue,
identificado plenamente com a humanidade;
4. O Cristo Pobre, que nasceu, viveu e morreu em profunda
pobreza, como os pobres de seu povo;
5. O Cristo Profeta, arauto de Deus Pai, intérprete da Divindade,
revelador da vontade divina para o seu povo e para humanidade;
6. O Cristo Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo através
da entrega total para a nossa redenção;
7. O Cristo Vivente, que destrói por meio da morte o império da morte,
e triunfa sobre o sepulcro através da ressurreição;
8. O Cristo Sacerdote, que está à direita da Majestade intercedendo
por nós;
9. O Cristo Rei, que virá, glorificador da sua Igreja, Rei dos reis e
Senhor dos senhores.
3. SOLA FIDE.
A descoberta de Lutero de que o justo vive pela fé (Rm 1.17) chegou a
ser um grito de batalha na Reforma: só a fé. A fé é a mão que recebe a
dádiva de Deus em Jesus Cristo. É por meio da fé que fazemos nossos
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os benefícios do Cristo crucificado e ressuscitado, fazendo com que
nossas almas e a nossa segurança eterna de salvação repousem.
Essa fé, contudo, não é cega e nem é mera credulidade. Tampouco é um
assentimento à verdade revelada. Pelo contrário, a fé se traduz em
confiar, abandonar-se nas mãos de Jesus Cristo, reconhecendo a
enormidade de nossa culpa e a totalidade de nossa incapacidade para
nos libertarmos por nós mesmos do pecado. É admitir que os méritos
humanos são inúteis para fins de justificação, lançando mão do valor
infinito da pessoa e obra do Filho de Deus. Ter fé em Jesus Cristo é
deixar-se salvar por ele.
A fé implica também em obediência (At 6.7; IITs 1.8). Quando a pessoa
crê que o Evangelho é a verdade, sente-se na obrigação de obedecê-lo.
Os reformadores afirmaram que a fé que justifica a pessoa não é uma fé
estéril e vazia, mas se harmoniza com as obras. Portanto, não somos
salvos por obras, mas, sim, para boas obras (Ef 1.10). Essas boas obras
são fruto da salvação, não a causa dela. Desse modo, a fé será mostrada
não apenas em palavras, mas também em atos que glorificam a Deus e
beneficiam o próximo e a sociedade.
Crer em Jesus Cristo significa também entrar em sério compromisso
com Ele e com a sua Igreja. Assim, depois de adquirirmos a nossa
apólice de seguro para a eternidade, somos compelidos a demonstrar um
excelente caráter ético.
4. SOLA SCRIPTURA.
Foi sob a declaração de só a Escritura que os reformadores e a igreja
oficial daqueles tempos dividiram os seus caminhos. Aceitaram os
reformadores a supremacia das Escrituras Sagradas sobre todas as
questões de fé e prática, proclamando a Bíblia como sua norma objetiva
e eficaz. Fizeram com que o assim diz Jeová e o escrito está
ressonassem poderosamente no âmbito de toda a comunidade cristã. Os
reformadores advogaram não a livre interpretação, mas o livre exame
das Escrituras. Isso sugere que devemos retirar do texto o significado
que o escritor sagrado quis imprimir dentro de um contexto cultural
determinado. Daí, faremos todo esforço possível para aplicar este
significado à nossa própria vida e à realidade que nos rodeia,
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perguntando ao texto o que tem ele para dizer-nos nesta situação
sociocultural. Por outro lado, também levaremos ao texto as nossas
perguntas, deixando que ele mesmo nos responda, sem fazer com que o
texto seja distorcido para trazer palavras que adocem os nossos ouvidos
ou ofereça apoio às nossas posturas doutrinárias preconcebidas.
Desse modo, necessitamos reafirmar nossa confiança na integridade e
na eficácia da Bíblia, renovando nosso compromisso de obediência à
autoridade das Escrituras. Além disso, devemos nos submeter ao
ministério do Espírito Santo, que pode nos guiar a toda verdade, assim
como nos mantermos dentro da comunhão dos santos, a fim de sermos
instruídos, exortados e edificados por nossos irmãos na fé, os quais têm
também a Palavra de Deus e nos quais também mora o Espírito da
Verdade e do Amor. Os reformadores fizeram o máximo para
transformar as Escrituras no fundamento e na autoridade para toda a
doutrina que criam e ensinavam. Esse zelo pela autoridade suprema da
Bíblia é uma das grandes heranças da Reforma.
OUTRAS CONSIDERAÇÕES.
A Reforma Protestante provocou na Igreja Católica inúmeras
modificações internas, fazendo-a abrir novas ações de serviço, na
tentativa de recuperar os povos e regiões que estava perdendo na
Europa. A América, descoberta alguns anos antes do início do processo
reformador, foi a mais importante área para a expansão do Catolicismo.
O objetivo fundamental da Contra Reforma foi a contenção da expansão
do protestantismo na Europa. Desse modo, a Igreja Católica reuniu-se
na cidade de Trento, no final do ano de 1535, e após muitas hesitações e
desentendimentos entre o Papa, bispos e reis, editou um documento
contendo as principais medidas que julgava, no momento, necessárias.
O Concílio de Trento reforçou o poder do Papa, criou o Índex (relação
de livros proibidos à leitura dos cristãos), eliminou a comunhão de
ambos os tipos (pão e vinho), mantendo apenas a comunhão do pão.
Além disso, obrigou os bispos a residirem em suas sedes, conservou os
sete sacramentos, reforçou o Tribunal da Inquisição, afirmou que
somente a Igreja poderia interpretar a Sagrada Escritura e fixou regras
para a formação e a vida dos padres.
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A fundação da Companhia de Jesus foi a principal arma utilizada pela
Contra Reforma Católica. Essa companhia, fundada pelo nobre militar
espanhol Ignácio de Loyola, adotou uma estrutura militar, chegando
mesmo a ser conhecida como o Exército de Cristo. Ao contrário das
antigas ordens religiosas, não se afastavam do mundo, mas atuavam
nele, procurando ter o apoio dos governantes europeus na sua luta
contra o Protestantismo, fundando escolas e catequizando os nativos dos
novos mundos surgidos com a expansão marítima.
Atualmente, o escândalo da pedofilia (envolvimento sexual com
crianças) que avassala a Igreja Católica dos Estados Unidos tem sido
tratado pelo Vaticano como um acontecimento circunscrito ao
excepcionalismo americano, produto de uma comunicação social hostil
à Igreja e de uma sociedade dominada por advogados obcecados pela
rapina das indenizações.
A Igreja Católica não tem nos EUA o poder que tem, por exemplo, na
Europa ou na América Latina. Implantada com os imigrantes irlandeses
em meados do século 19, a Igreja Católica dos EUA conheceu, ao longo
do século 20, um grande desenvolvimento, mas a sua implantação social
foi sempre superior à política. Sendo uma igreja que se tem mantido
distante das cruzadas mais recentes da política norte-americana, sejam
elas a Guerra do Golfo, a política pró-israelita, a luta contra o terrorismo
ou a pena de morte, é uma instituição politicamente vulnerável e os seus
críticos não deixarão de capitalizar o seu descrédito. O que se passa na
igreja norte-americana é a versão dramática de um mal-estar moral e
institucional que atravessa todo o mundo católico.
O mal-estar se assenta em dois fatores principais. O primeiro é a
falência, cada vez mais evidente, de um modelo institucional autoritário
e arrogante, que não aceita a efetiva participação da comunidade dos
crentes no governo da igreja, da gestão pastoral à gestão financeira; que
se assenta no trato secreto dos problemas, principalmente a respeito da
má conduta de bispos e padres para tornar possível a combinação de
cumplicidade com impunidade.
A imposição do celibato, a partir do século 12 e dos Concílios de
Latrão, foi motivado pelo medo do Vaticano de que os filhos dos padres
viessem a herdar os bens da igreja.
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Os problemas atuais da Igreja Católica não têm, aparentemente, nada a
ver com o sacro negócio da compra e venda de bulas e indulgências, que
tanto revoltou Lutero. Mas, no fundo, estamos diante do mesmo abuso
de uma posição de autoridade privilegiada, que trafica com a
ingenuidade ou a indefensabilidade das pessoas a quem vende Deus
para delas receber o corpo e a dignidade.
CONCLUSÃO.
A Reforma Protestante ocorrida no século XVI foi, na verdade, a
oportunidade mais promissora e importante de libertação que ocorreu na
Europa Ocidental na época. Consistiu numa resposta dinâmica dada
pelo poder do Espírito Santo à situação humana, através do Evangelho
que demonstrou o seu poder transformador. Assim, o Cristianismo,
muitas vezes feito prisioneiro de estruturas causadoras de falência e
desfiguração, foi portador de Boas Novas para o amanhã, recriando as
respostas necessárias para os novos desafios.
Muitos fatores tornaram a Reforma inevitável. A relutância da Igreja em
aceitar as mudanças sugeridas pelos teólogos, líderes conciliares e
humanistas e a fixação na tradição e no passado, indiferente às forças
dinâmicas de uma nova sociedade emergente, a tornou uma Igreja
alienada da realidade. Assim, a Reforma foi para o católico romano
apenas como uma revolta de protestantes contra a Igreja de Roma; para
os pensadores seculares, um movimento revolucionário, mas para o
protestante ela fez com que a vida religiosa voltasse aos padrões do
Novo Testamento.
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Apêndice 1.
ALGUMAS DOUTRINAS QUE NÃO TEM APOIO NA BÍBLIA.
Ano – Apostasia
310 – Reza pelos Defuntos
320 – Uso de Velas
375 – Culto aos Santos
394 – Instituição da Missa
431 – Culto à Virgem Maria
503 – Doutrina do Purgatório
528 – Extrema Unção
606 – Bonifácio III se declara Bispo Universal “Papa”
709 – Obrigatoriedade de beijar os pés do “Bispo Universal”
754 – Doutrina do Poder Temporal da Igreja
783 – Adoração das Imagens e Relíquias
850 – Uso da Água Benta
890 – Culto a São José (Protodulia)
993 – Canonização dos Santos
1003 – Instituição da Festa dos “Fiéis Defuntos”
1074 – Celibato Sacerdotal
1076 – Dogma da “Infalibilidade da Igreja”
1090 – Invensão do Rosário
1184 – Instituição da “Santa Inquisição”
1190 – Vendas de “Indulgências”
1200 – O Pão na Comunhão foi substituído pela Óstia
1215 – Criou-se a Confissão Auricular
1215 – Dogma da Transubstanciação
1220 – Adoração da Óstia
1229 – Proibição da Leitura da Bíblia
1245 – Uso das Campainhas na Missa
1316 – Instituição da Reza da “Ave Maria”
1415 – Eliminação do Vinho na Comunhão
1546 – Doutrina que Equipara a Tradição com a Bíblia
1546 – Introdução dos Livros Apócrifos
1600 – Invenção do Escapulário (Bentinhos)
1854 – Dogma da Imaculada Conceição de Maria
1864 – Condenação da Separação da Igreja do Estado
1870 – Dogma da Infalibilidade Papal
1908 – Pio X anula qualquer Matrimônio Efetuado sem Sacerdote Romano
1950 – Dogma da “Presença Real e Corporal de Maria no Céu” (Ascenção de Maria)
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BIBLIOGRAFIA.
GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Mundo Cristão, 1994. GONZALES, Justo L. A era dos reformadores. São Paulo: Mundo Cristão, 1983. LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo – Tomo 2. 5.ed. El Paso, EUA: Casa Bautista de Publicaciones, 1983. NICHOLS, Robert Hastings. História da igreja cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1979. NÚÑEZ, Emílio Antonio. Herdeiros da Reforma. In: CLADE II. O presente, o futuro e a esperança cristã. São Paulo: ABU, s.d. SHAULL, Richard. A Reforma Protestante e a teologia da libertação. São Paulo: Pendão Real, 1993. WALKER, Williston. História da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1983.