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A PROMESSA

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XXIX – A ver vamos

Em Março de 1831, eram muitas as bulhas diárias entre ‘portugueses’ e

‘brasileiros’ nas principais cidades e terras desse novo país chamado Brasil.

Muitos desses ‘brasileiros’ eram homens e mulheres que apesar de nascidos em

Portugal, não tinham nenhumas boas memórias das terras lusas e que agora,

esperançosos, queriam construir um país novo e muito diferente do que aquele que

tinham abandonado. Também muitos dos ‘portugueses’ haviam nascido no Brasil,

mas não se imaginavam fora de um território que não fosse português. Por outro

lado, ninguém esquecia que a nobreza que fugira aos franceses ocupara o melhor

pedaço do Brasil.

O sentimento de ‘azia portuguesa’ nos brasileiros foi crescendo e com a

interferência do imperador D. Pedro I na política interna de Portugal, ninguém

esquecia que o imperador era português.

Ao D. Pedro I incomodavam todas as notícias que vinham de Portugal.

Mordia-se quando sabia que os territórios ultramarinos eram roubados por

holandeses, franceses e ingleses, por culpa dos próprios portugueses. Conspirava

com todos os liberais exilados e apoiava os que nessa altura resistiam nos Açores.

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Ver estragar dava-lhe cabo do juízo. E de tanto se preocupar com Portugal, os

brasileiros forçaram-no a abdicar a favor de D. Pedro II no dia 7 de Abril de 1831.

Sentindo-se traído, D. Pedro rumou aos Açores, mas antes abriu os bolsos e

contratou mercenários de todas as partes para que pudesse invadir Portugal.

As notícias espalharam-se e depressa chegaram a Portugal, onde o Governo

Absolutista fazia diariamente purgas, prisões, enforcamentos e julgamentos

sumários, muitas vezes, com juízes populares que nem sabiam ler.

Em 1831, D. Francisca e Sebastião eram já pais de três crianças. O João

Augusto era o mais velho e chegado às saias da mãe. Lento, medroso, mas bastante

inteligente. Devorava livros e apesar de muito calado escrevia imenso. Seguia-lhe

Maria José, que era muito prendada, trabalhadora e a segunda senhora da casa, a

seguir a D. Francisca. Mandona como os Monteiros, cresceu depressa. Por se

impor e ser senhora do seu nariz, parecia muito mais velha. Finalmente, Ana

Cândida era uma delícia de menina, que a todos fazia bem e nela estava presente

muito da alma enorme de D. Francisca.

Em 1831, Eduardo ‘Bandarra’, padrinho de Sebastião, esteve empenhado na

reconstrução da Ermida de Nossa Senhora do Socorro, em Biscoitos, na Calheta.

Também na ilha Terceira, a 5 de Março desse ano assistiu à inauguração da

primeira escola de educação para jovens do sexo feminino, em Angra. Mas, a paz

perene voltou a abandonar os Açores em Abril e Maio. Primeiro, foi o naufrágio de

uma escuna da armada liberal que provinha da ilha do Pico. Depois, o

desembarque das tropas de D. Pedro, a 10 de Maio, em São Jorge. Gente de várias

nações que custaram organizar e entender, movidos pelo belicismo e pagos a ouro

e pedras preciosas. Até 8 de Agosto, os liberais tomam conta dos Açores, criam um

Governo e uma moeda própria, denominada de ‘Malucos’.

A 12 de Setembro, em São Luís do Maranhão deu-se a revolta contra os

portugueses, que fez mais de trezentos mortos. Seguiu-se-lhe a ‘Setembrada’ no

Recife. No final desse ano de 1831, nasceu o filósofo Hegel e a única princesa do

Brasil, Maria Amélia de Bragança, que morreria com vinte e um anos, no

Funchal, da mesma doença que vitimou D. Pedro.

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Foi na ilha Terceira que Eduardo voltou a encontrar o amigo Luís de

Mendonça Arrais, vindo este de Plymouth. Lá, Arrais conheceu o famoso gato

Romanov, que o amigo tanto gabava em cartas. No dia seguinte ao encontro dos

dois amigos, uma carta chegou para Eduardo, com ordens de ‘Chalaça’.

Era importante que Eduardo partisse para Portugal e organizasse todos os

contactos para um futuro desembarque no Norte de Portugal, dos homens de D.

Pedro.

A operação de espionagem foi denominada de ‘Aqui d’El Rey’ e Eduardo,

conhecido nos planos apenas por ‘Peregrino’, chegou com a ajuda do ‘Mosca’ à

praia dos Ladrões, na madrugada do dia 9 de Junho de 1832. Esperavam-no

‘irmãos’ da Maçonaria e um espanhol, também maçon, de nome Juan Mendizábal.

Essa operação foi uma operação auxiliar da operação ‘Desembarque no Mindelo’,

local escolhido por Francisco José da Silva, natural de Paiço, freguesia da Lavra,

homem também da confiança de “Chalaça”.

Eduardo atravessou o oceano por baixo de uma tempestade de chuva e vento,

sobre um manto de ondas agitadas, mas o perigo maior surgiu mesmo à chegada.

Assim, dez minutos depois de colocar os pés sobre areia lusa, foi perseguido com os

companheiros. Outro espião do lado miguelista, informou que D. Pedro

desembarcaria naquela noite, com o nome de código ‘Peregrino’. O tal espião era

conhecido e ele próprio foi usado para transmitir informações erradas sobre o

desembarque. Antes de partirem dos Açores, o próprio D. Pedro se encarregou de

eliminar o homem de D. Miguel.

Cercados em Labruge, conseguiram escapar a nado e ao alcançarem terra,

roubaram cavalos e depressa chegaram e desapareceram nas ruas do Porto.

Nesses dias, o ‘Pina’, como era conhecido o filho de Maria, mergulhava com

outros miúdos na Ribeira do Porto, num rio Douro mais limpo e perigoso do que

os dos dias de hoje, numa corrente de água forte que assustava os graúdos, mas

que atraía os irresponsáveis. Um rio único com oitocentos e cinquenta quilómetros

e que nasce nos Picos de Urbión, a dois mil e oitenta metros de altitude. Um rio que

era o prazer e o divertimento dos filhos dos pobres, que descansos e quase nus,

tinham ali as suas maiores alegrias.

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Maria era então criada, governanta e confidente dos donos do palacete azul

da Cedofeita, amigos da família Mendonça Arrais e também de vários ingleses do

Douro, como Warre. Cortara quase todo o contacto com Loriga e apenas o Zé da

Cabeça a visitava, quando se deslocava a Vila do Conde. Nesse palacete foi

crescendo também a única filha de Eduardo, que o rosto do pai poucas vezes viu,

pelas confusões militares e políticas em que se envolveu.

Eduardo correu muitas vezes perigo de vida até que, na noite de 7 de Julho

de 1832, levou uma série de homens das Caxinas, liberais e maçons, para a praia

dos Ladrões. Juntaram molhos de madeira e atearam fogueiras ao anoitecer do dia

8, da praia do Mindelo à praia dos Ladrões, actual praia da Memória. Juan

Mendizábal, conseguiu muitos cavalos com a ajuda dos ingleses do Douro e de um

irmão de Fernandes Thomaz, na Figueira da Foz. Puros sangues lusitanos que

esperaram D. Pedro nas areias do Minho.

Em Nevogilde, no nascer da Aurora do dia 8, as tropas miguelistas avistaram

as luzes dos barcos, dos quais deram sinal e ficaram em pânico. Depois, um barco

aproximou-se da costa, pela hora do almoço, com o major Bernardo de Sá

Nogueira. Pretendia negociar a rendição dos miguelistas, mas foi ameaçado com o

fuzilamento.

Ao regressar à galera ‘D. Amélia’ e depois de conversar com D. Pedro, Sá

Nogueira acompanhou e ouviu D. Pedro gritar, “Soldados! Aquelas praias são as

do malfadado Portugal!"

Sete mil e quinhentos homens ficaram conhecidos por ‘Bravos do Mindelo’,

dos quais seis mil e seiscentos eram estrangeiros. De entre os portugueses, estavam

Luís de Mendonça Arrais, Henrique da Silva Fonseca, António Pedro Brito,

Joaquim António Aguiar, Almeida Garrett, Alexandre Herculano.

Dali, os ‘Bravos’ depressa chegaram à invicta cidade do Porto, vazia das

tropas de D. Miguel. Mas no mesmo dia, O general Manuel Gregório de Sousa

Pereira de Sampaio, pelos realistas, cavalgou para Vila Nova de Gaia. Ordenou de

lá bombardear os ocupantes. D. Pedro albergou-se no palácio do ‘Carrancas’,

alcunha do cristão-novo Manuel Mendes de Morais e Castro e proprietário desse

belo edifício, que actualmente é conhecido por Museu Soares dos Reis. Dali deu

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ordens e organizou tropas. Logo no dia 10, o tenente-coronel João

Schwalbach atravessou o corajosamente rio e ocupou a Serra do Pilar, em Gaia.

Avançou até ao Alto da Bandeira e os Carvalhos. Obrigou os absolutistas a recuar

até Oliveira de Azeméis. Somaram-se combates e a morte cruel de inocentes, como

aconteceu no dia 18 de Julho em Penafiel, batalha em que participou Eduardo.

Seguiu-se a batalha da Ponte Ferreira, perto de Valongo, no mesmo dia dos

Combates de Formiga, em Ermesinde. Tanto sangue derramado e os que se

rendiam eram fuzilados ou enforcados, se não fugissem.

Cercados por miguelistas, foram acarinhados por uma população que não

temia o Diabo, se ele aparecesse. A sua resistência ultrapassou os possíveis. Nunca

uma cidade resistiu assim e depois de tão cercada ainda sair vitoriosa.

As mulheres do Porto tornaram-se enfermeiras, médicas, mães para feridos

que morriam, acudindo como podiam. Panelas grandes preparavam refeições.

Orações que começavam no morro da Penha Ventosa, dentro da Catedral a Nossa

Senhora da Vandoma e que acabam na Nossa Senhora da Conceição, Rainha de

Portugal.

Do lado dos Absolutistas, durante um tempo, esteve o general Póvoas que

pediu a espiões que encontrassem Luís de Mendonça Arrais. Pediu-lhes que o

convencessem de mudar de campo e caso não o fizesse o matassem ali. Os espiões

tentaram, mas no Porto grassava e desgraçava a peste, a cólera e o tifo que

chegaram e levaram muitos dos que escaparam aos ataques dos homens de D.

Miguel.

Nenhum absolutista se atrevia a entrar no Porto e a ordem era matá-los ou

deixá-los morrer a todos em agonia.

Entre a doença, a fome, a confusão e a desunião, muitos eram os que fugiam

da cidade. Deixou de haver dinheiro para pagar aos soldados estrangeiros, que

constituíam oitenta por centro da tropa liberal e que sem dinheiro, desertavam ou,

pior do que isso, faziam estragos na cidade.

Muitos foram os estragos e os sustos numa cidade que não se rendia, que não

esquecia o tempo dos franceses e os milhares de vítimas das baionetas de Soult na

desgraça da Ponte das Barcas, no malfadado dia de 29 de Março de 1809.

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Os tripeiros passaram pelo Inferno no Cerco do Porto, mas não perderam

nunca o sorriso dos lábios e em todos os momentos, por pior que fosse a sorte,

lutaram até mais não poderem. Assim doze mil liberais venceram setenta mil

absolutistas.

Cercando o Porto, D. Miguel deixou o país deserto de tropas. Naquilo que

seria considerado uma loucura, a 1 de Julho de 1833, sob o comando de Charles

John Napier, oficial do almirantado inglês, contratado por Palmela, conhecido em

terras lusas por ‘Carlos de Ponza’, por não ter autorização dos seus superiores

para lutar por um país estrangeiro, deixou o Porto e navegou com dois mil homens

até ao Algarve. Dali começou a reconquistar o país.

Os realistas pensaram que a saída daqueles homens era o sinal da enorme

fraqueza do Porto e atacaram a cidade, quatro dias depois, mas foram ferozmente

recebidos e muitas foram as baixas entre o exército de D. Miguel.

Vários eram os edifícios destruídos e só muito mais tarde reconstruídos,

como o convento dos franciscanos que é agora o belo Palácio da Bolsa, assim como

a imagem de Nossa Senhora da Vitória, que seria novamente recriada pelo grande

escultor Soares dos Reis.

Mas aos tripeiros podem tirar tudo que não lhes levam a alma. Apesar de

tudo e de tudo conseguirem vencer, Maria morreu sem o filho por perto, isolada

entre outros doentes, com a cabeça rapada e sem pelo no corpo, vítima de tipo,

numa tenda de um hospital improvisado. No mesmo dia, desse triste mês de Julho,

um dia depois do dia 24 de Julho, em que os liberais tomaram o controlo do Tejo e

de Lisboa, Saldanha venceria uma das mais espectaculares batalhas contra o

marechal de Bourmont. Contou-se que D. Miguel no alto do Monte de S. Gens

na Senhora da Hora, atirou ao chão o óculo, pois aguardava uma vitória

estrondosa.

Warre teve conhecimento da morte de Maria e cuidou de ‘Pina’ como se

fosse mais um filho, mas os tempos estavam difíceis e o miúdo era um revoltado.

Assim, colocou-o ao cuidado de pescadores de Vila do Conde, descendentes de

gente de Unhais da Serra e de Loriga. Ali ele poderia ser livre, ganhar para algum

sustento e longe dos perigos do Porto.

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Depois da tomada de Lisboa, a 20 de Agosto de 1833, depois de muita dor, o

Porto gritou com a alegria a sua própria liberdade e Saldanha aclamado

justamente como herói.

Nessa semana, o Zé da Cabeça abriu uma carta lacrada por Warre e

prontamente enviou outro envelope ao inglês. Todos os meses, o serrano

prontificou-se a enviar algum dinheiro ao inglês para que o miúdo pudesse ter uma

vida melhor. Warre não viveu por muito tempo, mas o dinheiro passou a ser

enviado para um advogado do Porto que o reenviou durante meia dúzia de anos ao

miúdo.

O Zé ainda avisou Sebastião do falecimento de Maria, mas Sebastião não

quis saber. Sentiu mesmo um enorme alívio, pois a história antiga podia acabar

com o casamento, a vida e o bom nome de Sebastião.

Em 1835, a 3 de Maio, nasceu António Luís Monteiro de Pina e a família de

Sebastião e de D. Francisca prosperava. A lã vendia-se cada vez mais e o preço não

parava de aumentar.

A 31 de Maio de 1835, o Zé recebeu uma carta do advogado do Porto. ‘Pina’

recebera algum dinheiro, mas avisara que partia para o Brasil.

Na viagem, ‘Pina’ conheceu uma família de minhotos simpáticos que tendo

conhecimento das suas infelicidades e tristezas, o acarinharam. A viagem para o

Brasil demorava meses e a maioria não chegava com vida. Nessa altura, o rio de

Janeiro crescia diariamente em casas e habitantes, na sua maioria escravos, que

constituíam oitenta por cento da população. Entre os portugueses, os minhotos

eram a maioria. Muitos já tinham um parente por lá que os abrigava por uns dias.

A população branca era pouco amistosa com os portugueses. Viam-nos como novos

colonos que lhes iriam tirar o pão da boca.

Quando não eram minhotos, eram licenciados e baixareis de Coimbra e do

Porto que fugiam das lutas liberais e de uma vida onde só se saía roubando ou

nascendo rico.

Era uma vida muito dura para quem não tivesse estudos, mas o Pina’ não

perdeu a esperança, pois tinha fugido de uma guerra terrível e sobrevivido a ela.

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Apesar de tudo, depois de dez anos de sacrifícios e quando a vida parecia

começar a sorrir, um dia fartou-se e decidiu voltar ao Porto. Estava decidido a

saber mais sobre si, sobre a mãe e todas as suas raízes. Sentia que, sem saber mais

sobre o seu passado, não poderia construir o seu futuro.

Quanto aos acontecimentos do Cerco do Porto, as palavras de Luz Soriano,

de Silva Gayo e de tantos outros, espelham um povo com um enorme heroísmo,

coragem e grau de sofrimento que bem justificam toda a boa fama que lhe dão.

D. Pedro acabou por morreu novo em Queluz, de Tuberculose, mas deixou

ordens escritas para que ao morrer o seu coração fosse arrancado e oferecido à

cidade do Porto e assim foi feito. Está depositado na igreja da Lapa. Os restantes

restos mortais partiram para o Brasil e hoje descansam no Monumento do

Ipiranga ou Altar da Pátria, na maior cidade da América do Sul.


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