1 A morte de Jesus e seu impacto na histoacuteria
A morte de cruz de Jesus eacute um fato O significado da cruz de Jesus e seu
valor salviacutefico eacute um dos pontos que a reflexatildeo cristoloacutegica nos uacuteltimos anos tem
procurado interpretar Este tema continua atualmente como eixo de grandes
debates onde notadamente destacam-se tendecircncias que se opotildeem em sua
expressatildeo Haacute os que veem a morte de Jesus como desiacutegnio divino para trazer a
salvaccedilatildeo como tambeacutem haacute os que afirmam que a morte de Jesus foi
consequecircncia de sua praacutexis Tais afirmaccedilotildees quando vistas isoladamente em
desarmonia podem correr o risco de desviar o sentido originaacuterio da cruz de
Jesus
Em 1979 a Comissatildeo Teoloacutegica Internacional reuniu-se para tratar de
Questotildees Seletas de Teologia dentre elas a anaacutelise da produccedilatildeo cristoloacutegica
principalmente europeacuteia dos vinte anos antecedentes com o intuito de ldquodiscernir
como harmonizar a verdade sobre Jesus Cristo transmitida pelo Novo
Testamento e os dogmas eclesiais cristoloacutegicos com a presente situaccedilatildeo em
que se deu uma nova ecircnfase agrave verdadeira humanidade de Cristo e seu caraacuteter
salviacuteficordquo11
A reflexatildeo teoloacutegica tem a preocupaccedilatildeo de apresentar o dogma com um
olhar atual mas sem perder o seu significado original Implicitamente ressalta-se
o objetivo de transmitir as verdades da feacute em Jesus Cristo com eloquecircncia e com
uma linguagem atual e mais proacutexima do dado biacuteblico Por muitos seacuteculos foram
mais exaltados os aspectos da divindade de Cristo e como consequecircncia isto
trouxe certo distanciamento entre Jesus e o ser humano em suas relaccedilotildees
Na Ameacuterica Latina a Cristologia e toda a teologia em geral foi um reflexo
da europeacuteia por muito tempo As afirmaccedilotildees dogmaacuteticas que sublinhavam mais
a divindade de Cristo do que a verdadeira humanidade eram aceitas sem
questionamentos e se enfatizava mais o seu significado salviacutefico individual e
transcendente do que o histoacuterico Nas devoccedilotildees da religiosidade popular o
destaque foi dado sobretudo ao Cristo sofredor onde o povo sentia maior
11
SOBRINO J Jesus na Ameacuterica Latina p 17
18
proximidade a Deus em seus sofrimentos12 A partir de Medelliacuten a reflexatildeo
cristoloacutegica ganha rosto na Ameacuterica Latina e a teologia comeccedila a ser
desenvolvida a partir do seu ldquoproacuteprio poccedilordquo13 isto eacute nasce uma teologia fonte
Metodologicamente o momento do Jesus histoacuterico foi ressaltado dentro
da totalidade de Jesus Cristo14 Sua pessoa atividade atitudes processualidade
e destino que satildeo acessiacuteveis agrave investigaccedilatildeo histoacuterica e exegeacutetica foram
privilegiados
A Cristologia latino-americana entende por Jesus histoacuterico a totalidade da
histoacuteria de Jesus e a finalidade de comeccedilar com o Jesus histoacuterico eacute a de que se
prossiga sua histoacuteria na atualidade15 ldquoO interesse que os latino-americanos tecircm
demonstrado pelo Jesus histoacuterico natildeo proveacutem do mero interesse exegeacutetico e
histoacuterico mas porque veem nele o modo mais adequado e mais teoloacutegico de
enfocar os diversos temas da teologia da libertaccedilatildeordquo16
Uma das reflexotildees da Cristologia latino-americana eacute a de Jon Sobrino
Para ele eacute necessaacuterio sublinhar que natildeo se pode conceber nem chegar ao
absoluto senatildeo atraveacutes da histoacuteria17 Um dos temas centrais de sua reflexatildeo eacute a
cruz de Jesus como ponto fundante do seu seguimento
Desde os primeiros seacuteculos da Igreja o escacircndalo da cruz de Jesus foi
motivo de grandes debates e de natildeo aceitaccedilatildeo por muitos pois a concepccedilatildeo de
um Deus que sofre eacute contraditoacuteria Poreacutem temos aqui o nuacutecleo que nos
12
Cf Ibid p17 Exemplo tiacutepico das devoccedilotildees ao Cristo sofredor eacute ecircnfase dada na Sexta-feira Santa onde a participaccedilatildeo do povo eacute maior do que nos outros dias do Triacuteduo pascal Aleacutem disso em determinadas regiotildees privilegia-se a procissatildeo do Senhor morto Haacute tambeacutem inuacutemeras letras de hinos que enfatizam a morte de Cristo na cruz como expiaccedilatildeo de nossos pecados dentre elas destacamos Por que Ele vive ldquoDeus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar na cruz sofreu por meus pecadosrdquo 13
Expressatildeo utilizada por G Gutierrez no tiacutetulo de sua obra Beber em seu proacuteprio poccedilo 14
Cf SOBRINO J op cit p 87 15
A cristologia europeacuteia iniciou a busca do Jesus histoacuterico no seacutec XVII Nesta primeira fase foram vaacuterias as tentativas de escrever a vida de Jesus para chegar ao Jesus histoacuterico isto eacute ao que os evangelhos afirmam de Jesus que natildeo seja interpretaccedilatildeo de feacute Nos seacuteculos seguintes houve uma reaccedilatildeo agrave busca do Jesus histoacuterico onde se procurou aceitar o Cristo da feacute sem os dados histoacutericos O principal expoente dessa reaccedilatildeo foi R Bultmann Contrapondo Bultmann deu-se iniacutecio em 1953 uma segunda fase na busca do Jesus histoacuterico denominada New Quest Logo apoacutes em 1985 iniciou-se a terceira etapa Third Quest Sobrino apresenta o significado do Jesus histoacuterico nessas cristologias em SOBRINO J Jesus o libertador pp 78-82 Ao falar da diferenccedila entre voltar a Jesus na Europa e na Ameacuterica Latina Sobrino cita J L Gonzaacuteles Faus ldquoNa Europa o Jesus histoacuterico eacute objeto de investigaccedilatildeo ao passo que na Ameacuterica Latina eacute criteacuterio de seguimento Na Europa o estudo do Jesus histoacuterico pretende estabelecer as possibilidades e racionalidade do fato de crer ou natildeo crer Na Ameacuterica Latina a apelaccedilatildeo ao Jesus histoacuterico pretende levar ao dilema de converter-se ou natildeordquo (Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 82) Em relaccedilatildeo ao nosso tema sobre a morte de Jesus podemos citar as seguintes obras da Third Quest The Death of the Messiah (A Morte do Messias) de Raymond Brown Who Killed Jesus (Quem Matou Jesus) de John Dominic Crossan e El destino de Jesuacutes su vida y su muerte de H Schuumlrmann 16
SOBRINO J El Jesus histoacuterico crisis y desafio para la fe p 202 In ECA abril 1975 n 318 pp 201-224 17
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p16
19
diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e
tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um
primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a
partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta
sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses
Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma
finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso
trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de
outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a
diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias
europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental
importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a
cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de
libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra
Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje
crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia
ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na
verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-
teoloacutegica da vida e morte de Jesus
Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus
Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus
Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado
como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja
A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A
realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos
nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos
ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que
ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo
24
18
Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19
Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21
Cf Ibid p 11 22
Cf Ibid p 22 23
Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192
20
Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu
violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais
especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua
paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam
morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a
cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos
histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz
a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus
25
Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem
distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute
relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam
Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte
ldquopor que Jesus morrerdquo26
Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon
Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder
ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da
libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que
igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um
acaso Segundo Sobrino
ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo
27
Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca
iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia
25
Id Jesus o libertador p288 26
Cf Ibid p 287 27
Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
21
11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz
Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz
Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que
houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e
rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa
ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo
28
A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de
pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses
e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados
podiam ser decapitados
Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal
judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no
madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e
assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus
ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30
Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de
Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a
eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais
quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como
um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte
Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave
cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos
processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo
O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada
relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio
enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio
Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos
evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas
28
KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29
Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30
Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31
THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
18
proximidade a Deus em seus sofrimentos12 A partir de Medelliacuten a reflexatildeo
cristoloacutegica ganha rosto na Ameacuterica Latina e a teologia comeccedila a ser
desenvolvida a partir do seu ldquoproacuteprio poccedilordquo13 isto eacute nasce uma teologia fonte
Metodologicamente o momento do Jesus histoacuterico foi ressaltado dentro
da totalidade de Jesus Cristo14 Sua pessoa atividade atitudes processualidade
e destino que satildeo acessiacuteveis agrave investigaccedilatildeo histoacuterica e exegeacutetica foram
privilegiados
A Cristologia latino-americana entende por Jesus histoacuterico a totalidade da
histoacuteria de Jesus e a finalidade de comeccedilar com o Jesus histoacuterico eacute a de que se
prossiga sua histoacuteria na atualidade15 ldquoO interesse que os latino-americanos tecircm
demonstrado pelo Jesus histoacuterico natildeo proveacutem do mero interesse exegeacutetico e
histoacuterico mas porque veem nele o modo mais adequado e mais teoloacutegico de
enfocar os diversos temas da teologia da libertaccedilatildeordquo16
Uma das reflexotildees da Cristologia latino-americana eacute a de Jon Sobrino
Para ele eacute necessaacuterio sublinhar que natildeo se pode conceber nem chegar ao
absoluto senatildeo atraveacutes da histoacuteria17 Um dos temas centrais de sua reflexatildeo eacute a
cruz de Jesus como ponto fundante do seu seguimento
Desde os primeiros seacuteculos da Igreja o escacircndalo da cruz de Jesus foi
motivo de grandes debates e de natildeo aceitaccedilatildeo por muitos pois a concepccedilatildeo de
um Deus que sofre eacute contraditoacuteria Poreacutem temos aqui o nuacutecleo que nos
12
Cf Ibid p17 Exemplo tiacutepico das devoccedilotildees ao Cristo sofredor eacute ecircnfase dada na Sexta-feira Santa onde a participaccedilatildeo do povo eacute maior do que nos outros dias do Triacuteduo pascal Aleacutem disso em determinadas regiotildees privilegia-se a procissatildeo do Senhor morto Haacute tambeacutem inuacutemeras letras de hinos que enfatizam a morte de Cristo na cruz como expiaccedilatildeo de nossos pecados dentre elas destacamos Por que Ele vive ldquoDeus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar na cruz sofreu por meus pecadosrdquo 13
Expressatildeo utilizada por G Gutierrez no tiacutetulo de sua obra Beber em seu proacuteprio poccedilo 14
Cf SOBRINO J op cit p 87 15
A cristologia europeacuteia iniciou a busca do Jesus histoacuterico no seacutec XVII Nesta primeira fase foram vaacuterias as tentativas de escrever a vida de Jesus para chegar ao Jesus histoacuterico isto eacute ao que os evangelhos afirmam de Jesus que natildeo seja interpretaccedilatildeo de feacute Nos seacuteculos seguintes houve uma reaccedilatildeo agrave busca do Jesus histoacuterico onde se procurou aceitar o Cristo da feacute sem os dados histoacutericos O principal expoente dessa reaccedilatildeo foi R Bultmann Contrapondo Bultmann deu-se iniacutecio em 1953 uma segunda fase na busca do Jesus histoacuterico denominada New Quest Logo apoacutes em 1985 iniciou-se a terceira etapa Third Quest Sobrino apresenta o significado do Jesus histoacuterico nessas cristologias em SOBRINO J Jesus o libertador pp 78-82 Ao falar da diferenccedila entre voltar a Jesus na Europa e na Ameacuterica Latina Sobrino cita J L Gonzaacuteles Faus ldquoNa Europa o Jesus histoacuterico eacute objeto de investigaccedilatildeo ao passo que na Ameacuterica Latina eacute criteacuterio de seguimento Na Europa o estudo do Jesus histoacuterico pretende estabelecer as possibilidades e racionalidade do fato de crer ou natildeo crer Na Ameacuterica Latina a apelaccedilatildeo ao Jesus histoacuterico pretende levar ao dilema de converter-se ou natildeordquo (Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 82) Em relaccedilatildeo ao nosso tema sobre a morte de Jesus podemos citar as seguintes obras da Third Quest The Death of the Messiah (A Morte do Messias) de Raymond Brown Who Killed Jesus (Quem Matou Jesus) de John Dominic Crossan e El destino de Jesuacutes su vida y su muerte de H Schuumlrmann 16
SOBRINO J El Jesus histoacuterico crisis y desafio para la fe p 202 In ECA abril 1975 n 318 pp 201-224 17
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p16
19
diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e
tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um
primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a
partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta
sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses
Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma
finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso
trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de
outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a
diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias
europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental
importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a
cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de
libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra
Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje
crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia
ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na
verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-
teoloacutegica da vida e morte de Jesus
Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus
Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus
Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado
como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja
A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A
realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos
nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos
ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que
ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo
24
18
Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19
Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21
Cf Ibid p 11 22
Cf Ibid p 22 23
Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192
20
Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu
violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais
especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua
paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam
morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a
cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos
histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz
a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus
25
Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem
distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute
relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam
Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte
ldquopor que Jesus morrerdquo26
Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon
Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder
ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da
libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que
igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um
acaso Segundo Sobrino
ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo
27
Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca
iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia
25
Id Jesus o libertador p288 26
Cf Ibid p 287 27
Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
21
11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz
Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz
Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que
houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e
rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa
ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo
28
A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de
pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses
e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados
podiam ser decapitados
Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal
judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no
madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e
assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus
ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30
Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de
Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a
eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais
quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como
um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte
Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave
cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos
processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo
O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada
relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio
enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio
Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos
evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas
28
KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29
Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30
Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31
THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
19
diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e
tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um
primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a
partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta
sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses
Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma
finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso
trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de
outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a
diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias
europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental
importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a
cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de
libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra
Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje
crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia
ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na
verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-
teoloacutegica da vida e morte de Jesus
Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus
Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus
Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado
como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja
A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A
realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos
nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos
ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que
ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo
24
18
Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19
Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21
Cf Ibid p 11 22
Cf Ibid p 22 23
Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192
20
Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu
violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais
especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua
paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam
morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a
cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos
histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz
a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus
25
Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem
distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute
relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam
Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte
ldquopor que Jesus morrerdquo26
Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon
Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder
ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da
libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que
igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um
acaso Segundo Sobrino
ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo
27
Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca
iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia
25
Id Jesus o libertador p288 26
Cf Ibid p 287 27
Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
21
11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz
Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz
Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que
houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e
rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa
ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo
28
A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de
pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses
e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados
podiam ser decapitados
Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal
judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no
madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e
assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus
ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30
Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de
Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a
eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais
quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como
um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte
Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave
cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos
processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo
O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada
relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio
enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio
Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos
evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas
28
KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29
Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30
Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31
THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
20
Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu
violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais
especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua
paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam
morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a
cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos
histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz
a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus
25
Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem
distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute
relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam
Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte
ldquopor que Jesus morrerdquo26
Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon
Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder
ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da
libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que
igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um
acaso Segundo Sobrino
ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo
27
Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca
iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia
25
Id Jesus o libertador p288 26
Cf Ibid p 287 27
Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
21
11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz
Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz
Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que
houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e
rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa
ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo
28
A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de
pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses
e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados
podiam ser decapitados
Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal
judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no
madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e
assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus
ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30
Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de
Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a
eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais
quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como
um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte
Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave
cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos
processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo
O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada
relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio
enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio
Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos
evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas
28
KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29
Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30
Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31
THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
21
11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz
Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz
Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que
houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e
rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa
ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo
28
A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de
pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses
e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados
podiam ser decapitados
Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal
judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no
madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e
assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus
ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30
Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de
Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a
eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais
quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como
um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte
Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave
cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos
processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo
O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada
relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio
enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio
Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos
evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas
28
KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29
Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30
Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31
THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
22
informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios
judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da
crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs
liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33
As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o
objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo
descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo
completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim
encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores
e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus
como uma morte criminosa e escandalosa34
Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que
Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute
condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer
Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para
os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as
causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada
por Sobrino
Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam
a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que
tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como
justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel
portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que
salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo
estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de
corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado
sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um
ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os
outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total
desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses
33
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35
Cf Ibid p 216 36
Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37
Ibid
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
23
etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes
Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos
O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na
casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave
noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos
detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na
parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo
sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os
liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo
estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum
motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um
dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo
sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus
blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo
Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio
bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟
(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito
que levasse agrave morte42
Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo
de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E
Schillebeeckx e de Boismard43
Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram
contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o
condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de
Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute
estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44
ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo
45
38
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39
Cf BOFF L op cit p52 40
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42
KESSLER H op cit p 256 43
Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44
Cf Ibid p 301 45
SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
24
Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito
e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado
diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para
condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam
contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo
E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus
aos romanosrdquo47
Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir
48
Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece
pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos
doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049
O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado
com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de
Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50
Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer
destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da
sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram
religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51
Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide
com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino
Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais
centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica
social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava
Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome
de um deus53
46
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47
SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48
SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49
Cf BOFF L op cit pp 53-54 50
Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51
SOBRINO J op cit p 302 52
Cf Ibid 53
Cf Ibid
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
25
A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do
procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas
em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo
em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus
aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu
crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos
judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para
confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a
troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado
a ele
Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem
para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos
poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base
agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55
Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos
de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que
se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-
15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo
A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem
politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a
pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus
apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a
Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei
poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de
que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56
Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu
nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a
pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque
acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave
morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo
eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo
1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus
eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o
porquecirc matam Jesus
54
Cf Ibid p 303 55
Cf Ibid 56
Cf ibid pp 304-305 57
Cf Ibid pp 305-306
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
26
As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo
58
Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta
entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta
entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas
mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos
mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus
e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que
natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se
opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60
Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com
o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos
perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a
partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira
radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao
inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de
Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo
poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os
outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns
pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam
sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava
proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um
seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns
disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas
Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do
templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o
mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos
atos de espiacuterito zelota
58
Ibid p 300 59
TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60
Cf SOBRINO J op cit p 307 61
Ibid
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
27
Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos
sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores
por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os
seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)
como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da
espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia
claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do
reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo
armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus
natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era
diferente 62
O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de
nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos
zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente
da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63
Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus
por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O
anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas
estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27
Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas
populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64
Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que
satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores
(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de
Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O
escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria
Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses
aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino
transpassadordquo66
62
Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63
Cf Id Jesus o libertador p314 64
BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65
SOBRINO J op cit p 294 66
Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo
pp 345-357
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
28
12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes
As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder
ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato
aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo
Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus
concedeu a salvaccedilatildeo
Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e
algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se
desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da
histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo
objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades
natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo
encontra-se no niacutevel teoloacutegico
ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado
soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras
da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =
crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento
como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de
aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da
ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da
cruz69
Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave
pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No
primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele
se justifica a morte de Jesus
Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de
Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os
judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo
Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos
profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave
rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e
67
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68
KESSLER H op cit p374 69
Ibid p 269 70
Cf SOBRINO J op cit pp 321-323
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
29
os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus
verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)
Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a
morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre
mas apenas esclarece por que matam Jesus
Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute
judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim
natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos
de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que
ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus
interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931
1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte
de Jesus
Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios
da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo
(Lc 2426 Mc 831)
Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus
Segundo Sobrino
apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus
71
A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus
apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus
portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar
assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e
como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72
A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros
questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um
Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da
pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute
de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que
71
Cf Ibid p 322 72
Cf Ibid pp 322-323
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
30
pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-
15 1Tm 26 Jo 651)73
Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir
sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem
atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela
cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais
e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer
tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro
ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos
acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro
niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico
pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74
O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo
Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os
principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave
nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de
Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo
Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se
manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a
cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da
cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a
salvaccedilatildeo75
O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma
religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter
a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo
ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute
estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus
pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da
criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a
oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus
Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus
relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro
pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo
que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue
73
Cf Ibid pp 323-324 74
Cf Ibid p 324 75
Cf Ibid pp 324-325 76
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
31
derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt
2628 Lc 2220)77
Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara
abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto
critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do
sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute
que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por
Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por
Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio
e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no
dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro
(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-
14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute
perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O
sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute
totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a
ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo
A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo
entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de
derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a
Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb
afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr
3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de
Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres
humanos
A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a
cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6
504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do
servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva
identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou
dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo
explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus
Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute
mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a
77
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78
Cf Ibid p 326 79
Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
32
cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que
satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80
Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se
esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs
judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos
Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e
sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)
Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois
constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e
aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo
como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico
da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em
riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo
(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo
explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei
eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a
forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria
condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a
lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da
maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83
Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras
comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos
confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo
vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute
salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do
sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor
gratuito e isto revela o amor de Deus84
80
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81
Cf Ibid p 330 82
Cf Ibid 83
Cf Ibid p 331 84
Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes
1977 pp 89-107
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
33
13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica
Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria
da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do
escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais
interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade
de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a
antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o
sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como
sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica
grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz
e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86
Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da
Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus
fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto
natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de
Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados
Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas
vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo
poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o
abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo
Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina
de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a
natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente
o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o
abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo
desesperordquo87
Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus
homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de
Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a
cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88
A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o
judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma
85
SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86
Cf Ibid pp 202-206 87
Cf Ibid pp 202-203 88
Cf KESSLER H op cit p 325
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
34
redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus
Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus
tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a
vida ao mundo89
No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens
90
Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse
senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a
Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige
reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve
pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a
vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser
humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar
dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo
peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano
que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio
que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a
diacutevida dos pecadores91
A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute
comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus
Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo
Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino
temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que
celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo
lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade
vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz
vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico
natildeo foi acentuado92
89
Cf KESSLER H op cit p 325 90
SOBRINO J op cit p 203 91
Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92
Cf SOBRINO J op cit p204
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
35
De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz
93
A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do
pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste
pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu
sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto
um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de
perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso
a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que
Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94
Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que
Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser
sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica
Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os
tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma
delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo
como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo
Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para
noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo
Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por
pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser
descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge
apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o
aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus
o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico
a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave
pena95
A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais
da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com
93
SOBRINO J op cit p 205 94
Cf ibid p 206 95
Cf KESSLER H op cit pp 329-330
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
36
Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre
junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto
assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por
exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na
proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais
difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita
Christi de Ludolfo da Saxocircnia96
A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma
protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que
buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado
existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou
Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem
o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia
Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela
coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser
desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97
Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas
outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor
que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo
A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na
tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo
contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute
que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser
confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos
excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as
crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o
caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99
Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho
portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento
humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre
eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico
Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da
96
Cf KESSLER H op cit p 331 97
O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98
A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto
sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99
Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento
37
reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta
traduzi-la para a Ameacuterica Latina102
A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de
Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a
presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na
presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho
Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de
sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A
segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais
Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e
o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees
messiacircnicas106
Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte
de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma
Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da
teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107
100
Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101
Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102
Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na
introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104
Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105
Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106
Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107
MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210
38
No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina
da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo
deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108
Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de
1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de
Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim
elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109
O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e
eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas
reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de
Moltmann110
Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia
111
Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do
Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que
orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de
toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente
cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113
Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria
pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da
histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa
humanidade de Deusrdquo 114
ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo
115
108
Cf Ibid p 210 109
Cf Ibid p 210 110
Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111
BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112
Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113
Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114
Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115
Cf Ibid p 516
39
No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra
onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte
de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a
Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus
apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de
Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual
eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica
apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que
se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser
humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto
eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas
converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria
vidardquo120
A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-
americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina
com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no
sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento
humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da
realidade que experienciam Para Leonardo Boff
ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo
122
Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a
opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras
pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da
libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria
por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos
poderes poliacuteticos e religiosos
Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em
116
Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117
Cf Ibid p 384 118
Cf Ibid p 390 119
Cf Ibid p 394 120
Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121
Cf MOINGT J op cit p 512 122
BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141
40
situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social
123
Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade
das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os
aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o
sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e
ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em
nosso contexto
Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a
crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como
analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela
exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de
Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e
com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees
podem apresentar perigos como
primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo
125
Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo
encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de
2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino
Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en
Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que
natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos
metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a
divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus
123
BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124
Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125
SOBRINO J Jesus o libertador p 325
41
Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da
sua morte126
Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois
tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da
feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves
formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados
neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128
Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com
a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice
Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da
Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129
a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas
afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as
afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da
reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo
Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um
126
Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127
Ibid 128
Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129
Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73
42
fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical
130
b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a
sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os
modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto
ao texto do NT
c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a
exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas
hoje
Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como
nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria
etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita
Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de
maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente
pelo NT132
A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e
confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as
principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente
apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino
V Balthasar afirma que
Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo
133
Para Moingt
Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera
134
130
SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131
Cf SCALIA F op cit p 72 132
Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133
SCALIA F op cit p 68 134
MOINGT J op cit p 350
43
Segundo Schillebeeckx
ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo
135
Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes
formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como
morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e
assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo
poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou
publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees
do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado
no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder
expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna
investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em
Jesus
Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o
Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees
soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia
como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute
mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte
sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137
Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de
Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de
Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em
continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade
do anuacutencio da basileia feito por Jesus
Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-
existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em
1972138 demonstra que
a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a
135
SCHILLEBEECKX op cit p 297 136
Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137
Cf Ibid p133 138
Cf KESSLER H op cit p 267
44
paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)
139
Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas
reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann
desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente
Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua
relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus
Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto
daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza
o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de
Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a
ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e
nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha
acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino
de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira
ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)
A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum
141
A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo
Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de
basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de
basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma
proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o
abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era
uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a
compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua
originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143
A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando
139
SCHUumlRMANN H op cit p 204 140
KESSLER H op cit p363 141
SCHUumlRMANN H op cit p 22 142
Cf Ibid p 151 143
Cf Ibid p 34
45
de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia
144
O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel
para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo
Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de
Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute
concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se
esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio
e uma humilhaccedilatildeordquo145
A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal
forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe
em missatildeo
O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as
frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam
uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um
ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e
estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses
havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar
suspeitas de uma revolta popular
Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava
tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma
ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus
pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo
como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu
proacuteprio infortuacutenio possiacutevel
Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte
violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o
reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que
se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o
princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute
havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)
ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva
144
Ibid p 29 145
Ibid p 118
46
Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo
146
Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua
mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do
reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de
modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua
atuaccedilatildeo anterior147
O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O
que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego
eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-
existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo
ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus
ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos
disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria
morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda
a vida de Jesus
Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute
absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo
vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o
questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino
de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148
No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de
Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim
poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann
Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre
basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino
tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e
Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a
presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a
histoacuteria com ele isto eacute
ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo
149
146
Ibid p 250 147
KESSLER H op cit p254 148
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60
47
Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua
morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma
reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio
expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas
comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte
ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo
150
Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente
acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo
judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as
escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua
consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus
foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a
morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo
preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes
transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte
apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por
muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua
morte salviacutefica
Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A
questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute
Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte
de Jesus
O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer
151
150
SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151
Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90
48
14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis
Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de
Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades
primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida
por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino
demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de
Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea
afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153
Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a
encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de
Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas
histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados
O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces
de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e
trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o
Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de
Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade
uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a
realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser
compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir
de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente
Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a
histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155
152
Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153
ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit
49
Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer
de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da
exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus
ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que
a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo
157
Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino
acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele
diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo
e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os
homens tenham a vidardquo158
Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus
concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da
libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de
concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159
Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e
que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos
pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo
todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os
pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se
defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de
opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo
Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser
escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e
solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma
comunitaacuteria160
ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas
o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no
156
Ibid 157
SCALIA F op cit p 86 158
SOBRINO J op cit p150 159
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160
Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978
50
tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os
destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O
reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no
presente da histoacuteria
Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real
162
Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em
plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de
outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163
Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras
e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de
misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma
perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande
trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus
satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a
morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de
uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se
encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute
antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida
encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de
Deus164
Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o
fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e
morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica
representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e
161
Ibid p 188 162
Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162
Ibid p150 163
Ibid p150 164
Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165
Ibid p 309
51
indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha
consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo
cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a
cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo
ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e
morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a
histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que
nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a
avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra
Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168
Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que
suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus
havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em
seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo
para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio
com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois
tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para
ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito
com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e
sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos
esperada por Jesus169
As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com
os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome
de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse
mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os
deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se
uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos
anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As
mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores
(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra
mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos
ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo
166
Ibid p 288 167
Ibid 168
Cf Ibid 169
Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170
SOBRINO J Jesus o libertador p 289
52
contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como
um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo
permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute
palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas
e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172
Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da
perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui
que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a
perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente
Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas
acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem
consciente disso173
No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem
no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute
preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem
anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a
anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus
com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos
Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus
Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais
Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a
discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos
mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas
(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)
a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175
No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute
dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos
sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam
mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de
Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus
queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os
milagres por ele realizados (Jo 9221153)
171
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172
GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173
Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174
Cf Ibid 175
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172
53
O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo
um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando
isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social
religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino
mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se
sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos
sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder
econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar
etc176
Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo
criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano
original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando
os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida
estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso
desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute
privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo
anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas
formas179
Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a
sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de
seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes
religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de
qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida
Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus
responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis
satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora
e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e
desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal
praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180
Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que
Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-
existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem
do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-
176
Cf Id Jesus o libertador p 293 177
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178
Ibid p166 179
Cf Ibid p159 180
Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I
54
existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar
para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de
Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada
Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do
amor de Deus182
A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute
o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus
serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade
de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do
reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟
portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo
bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no
amorrdquo183
Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os
pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na
cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras
comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os
modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184
15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz
de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto
eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois
suas cruzes remetem agrave de Jesus
Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos
significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido
original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e
religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave
morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas
181
Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182
GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183
SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184
Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63
55
mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um
processo contra o seu Deus
A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades
cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato
ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas
que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por
noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos
que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original
da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute
salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do
amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus
O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas
perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do
abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas
interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos
seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo
vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando
algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz
Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave
presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da
Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos
buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann
com sua obra Deus crucificado
Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para
ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute
um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua
trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino
experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em
conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte
Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para
responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e
mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem
uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o
triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o
seguimento