1º Encontro
5 e 10 Novembro 2018
A IGREJA É MISSIONÁRIA POR NATUREZA (AG 2)
Recuperar a nossa identidade e a nossa missão
• A nossa grande crise é uma crise de identidade: esquecemo-nos
de quem somos e do que somos chamados a fazer enquanto
Igreja.
• Não é a Igreja que tem uma missão, mas é a Missão que tem
uma Igreja.
• Lamentamos a tragédia da perda da fé, da secularização, das
igrejas fechadas e por aí adiante, mas não nos decidimos a pegar
nos remos e remar.
1. A Missão
• Então, se existimos para a Missão, qual é a Missão da Igreja? Para
responder a esta questão, temos de olhar para os últimos versí-
culos de São Mateus, a passagem conhecida como ‘o envio em
missão’. Os discípulos hesitantes recebem esta ordem: «19Ide,
pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, 20ensinando-os a cumprir
tudo quanto vos tenho mandado.» (Mt 28)
• As traduções variam ligeiramente, mas o que é inegável é que
Jesus confia quatro missões à sua Igreja nascente: ide, fazei, bap-
tizai e ensinai. São quatro verbos, mas há um que é o centro gra-
matical da frase e o seu centro teológico. E é o verbo ‘FAZER’:
‘fazer discípulos’. Esta missão é o coração do envio em missão e
à sua volta que todos os outros aspectos missionários da Igreja
se articulam: ir, baptizar, ensinar.
2. Fazer discípulos
• Que queremos dizer com ‘fazer discípulos’? O termo ‘discípulo’ é
tão importante no chamamento de Jesus que devemos saber o
seu significado. Significa ‘aprender’. Ser discípulo de Jesus é, por-
tanto, ser aprendiz, é comprometer-se num estudo contínuo de
e sobre Jesus, o Mestre, Jesus, o ensinante/ensinador. Discípulo
sugere que o processo de aprendizagem não é aleatório, mas
intencional e regulado. Tornar-se discípulo é comprometer-se
num processo de crescimento.
3. Como fazer discípulos?
• Se um discípulo é um aprendiz que deseja ardentemente crescer
e que está ávido de conhecimentos, como fazer? Ser encontrado
e encontrar-se com JESUS: é Ele o Evangelho, a Boa Nova. Ele é o
Caminho, a Verdade e a Vida. «Ao início do ser cristão, não há
uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo hori-
zonte e, desta forma, o rumo decisivo.” (DCE,1)
4. De discípulos a apóstolos
• No entanto, ser uma Igreja de discípulos representa apenas uma
parte da nossa missão. Esta Igreja de discípulos deve ‘ir’ e ‘fazer
discípulos’ de todas as nações, de todas as pessoas.
• Os discípulos têm, portanto, de tornar-se apóstolos. É por isso e
para isso que estamos aqui: para sermos discípulos e nos dei-
xarmos enviar tornando-nos apóstolos.
5. Algumas conclusões, desde já
• Uma das coisas importantes que devemos saber acerca da Igreja
é que a Igreja não tem uma razão última e definitiva de ser!
• O objectivo da Igreja é antes fazer referência para lá de si
mesma, ser uma comunidade que proclama, vive e dá testemu-
nho do reinado de Deus. A Igreja não caminha para si mesma,
para se tornar grande, mas para o Reino. Ao fazer assim, a Igreja
partilha e continua, pelo poder do Espírito de Deus, a obra do
seu Senhor, Jesus Cristo. «Como evangelizador, Cristo anuncia
em primeiro lugar um reino, o reino de Deus, de tal maneira im-
portante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser
"o resto", que é "dado por acréscimo". Só o reino, por conse-
guinte, é absoluto, e faz com que se torne relativo tudo o mais
que não se identifica com ele.» (EN 8)
• A Missão – ou Evangelização – é um processo complexo e dinâ-
mico através do qual a Igreja, só pela força do seu divino Mestre,
“procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e co-
letiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam, e a vida
e o meio concreto que lhes são próprios”. (EN 18)
Como?
• Em primeiro lugar, “esta Boa Nova há-de ser proclamada, antes
de mais, pelo testemunho”. (EN 21)
• Em segundo lugar, “não haverá nunca evangelização verdadeira
se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o reino, o mistério
de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem anunciados”. (EN
22)
• Em terceiro, a Missão é comunitária, melhor, eclesial: faz-se em
nome da comunidade cristã e conduz à incorporação nessa co-
munidade. “Uma tal adesão, que não pode permanecer abstrata
e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada
visível numa comunidade de fiéis. (…) Assim, aqueles cuja vida se
transformou ingressam, portanto, numa comunidade que tam-
bém ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de
vida: é a Igreja, sacramento visível da salvação. Mas, a entrada
na comunidade eclesial, por sua vez, há de exprimir-se através
de muitos outros sinais, que prolongam e desenvolvem o sinal
da Igreja. No dinamismo da evangelização, aquele que acolhe o
Evangelho como Palavra que salva, normalmente, o traduz de-
pois nestas atitudes sacramentais: adesão à Igreja, aceitação dos
sacramentos que manifestam e sustentam essa adesão, pela
graça que eles conferem”. (EN 23)
2º Encontro
12 e 17 Novembro 2018
ACTOS DOS APÓSTOLOS:
O SURGIMENTO DA IGREJA EM MISSÃO
Sete passos da Missão nos Actos
Hoje, vamos tentar compreender as origens da Igreja tal como ela vai sur-
gindo no Novo Testamento, especialmente no segundo volume da obra de
Lucas, os Actos dos Apóstolos.
Os Actos dos Apóstolos, mais claramente do que qualquer outro livro do
Novo Testamento, mostram como a origem da Igreja é o compromisso com
a actividade missionária. A finalidade da obra de Lucas, em dois volumes,
foi mostrar que a missão de Jesus de pregar, servir e dar testemunho do
reino de Deus era autenticamente partilhada e continuada pela comuni-
dade que surge no período posterior à sua morte e que experimentou a
ressurreição do seu Senhor. «Para Lucas, o que faz a Igreja é a missão, e o
que está realmente no coração da Igreja é o impulso do Espírito para o
crescimento da palavra.» (Legrand)
Primeiro passo: ANTES DE PENTECOSTES
Ainda que as origens da Igreja tenham as suas raízes no ministério e pes-
soa de Jesus, a sua missão foi a de proclamar, servir e dar testemunho do
Reino de Deus, e não a de estabelecer uma comunidade separada de Israel.
Jesus e o seu ‘movimento’ são um dos muitos movimentos contemporâ-
neos de renovação dentro do Judaísmo.
Todos concordam também que é impossível compreender aquilo que Jesus
entendeu por ‘Reino de Deus’ numa definição precisa e nítida. Como sabe-
mos, Jesus pregou o Reino de Deus principalmente através de parábolas,
relatos curtos e cheios de vitalidade que narravam o quase inacreditável
amor misericordioso de Deus e a sua proximidade iminente.
Segundo passo: PENTECOSTES O relato de Pentecostes conta com detalhe o facto de aqueles que escuta-
vam o sermão de Pedro naquela manhã serem pessoas de todas as partes
do mundo: «partos, medos, elamitas…». A verdade é que são todos judeus
ou prosélitos – gentios convertidos ao Judaísmo. A função do discurso de
Pedro é mostrar, sobretudo, que o que aconteceu é a realização plena do
próprio Judaísmo.
A noção de uma missão geral e sistemática para os gentios e que o segui-
mento de Jesus implique uma ruptura radical com a tradição judaica ainda
estava muito longe da mentalidade dos discípulos.
Terceiro passo: ESTÊVÃO No começo do capítulo 6, a melodia idílica dos cinco primeiros capítulos
interrompe-se bruscamente e Lucas, quase em surdina, faz entrar a pri-
meira nota discordante da história da Igreja de Jerusalém: o não fazer caso
das ‘viúvas helenistas’ na distribuição diária dos alimentos, em comparação
com as ‘viúvas hebraicas’. A verdade é que os sete escolhidos eram todos
helenistas, a julgar pelos nomes e seriam os líderes do grupo helenista da
comunidade de Jerusalém.
A narração continua com o caso de Estêvão, que é preso e levado diante
do Sinédrio. Estêvão é apedrejado fora da cidade (como Jesus) enquanto
confessa Jesus como Senhor e imita o perdão de Jesus aos seus verdugos.
Quase incidentalmente, Lucas diz que os que apedrejavam Estêvão depu-
seram as suas capas aos pés de um jovem chamado Saulo (7,58), que apro-
vava a sua morte (8,1). E assim está introduzido na narração o personagem
Saulo/Paulo a quem Lucas dará um papel tão importante, na segunda parte
do relato. Grandes coisas estavam reservadas para ele e para a Igreja.
Quarto passo: SAMARIA E O EUNUCO ETÍOPE O capítulo 8, dos Actos, centra-se no ministério de Filipe, um dos sete diá-
conos. Os estudiosos dizem que este capítulo, juntamente com o seguinte
– que conta a conversão de Saulo – são ‘capítulos-ponte’ para aquilo que
Lucas considera um avanço importantíssimo destes primeiros anos: a ver-
dadeira missão aos gentios que vai levar a comunidade a tomar consciên-
cia de ser a Igreja.
Depois começa o relato do eunuco etíope. E também este relato mostra
que Deus está a levar a comunidade para lá das suas fronteiras, tal como
Estêvão, companheiro helenista de Filipe, tinha dito que Deus fizera cons-
tantemente na história de Israel.
Quinto passo: CORNÉLIO E A SUA FAMÍLIA
O capítulo 9 podia descrever-se como uma espécie de entreacto no drama
que Lucas está a desenvolver. Narra a assombrosa conversão de
Saulo/Paulo e também faz sair Pedro de Jerusalém para o levar para a Ju-
deia e enfrentar, no seu lugar de primeiro da comunidade, a fase mais crí-
tica da expansão do povo de Deus: a conversão de Cornélio.
Um autor (Dunn) chama a toda esta secção (10,1-29) a «conversão de Pe-
dro». De facto, ao narrar a conversão de Cornélio, mostra-se como, a um
nível completamente diferente, Pedro, e com ele toda a comunidade de
Jerusalém, vai ser transformado.
Diz um teólogo que ‘este episódio da conversão de Cornélio é uma verda-
deira ruptura’ (Tannehill). Deus está a mostrar novos caminhos e a comu-
nidade vai-se deixando guiar por Deus. Com a conversão de Cornélio co-
meça uma redefinição da própria religião.
Sexto passo: ANTIOQUIA
Continua o processo, e a narração de Lucas empurra a consciência da co-
munidade ainda para mais longe. O relato de Cornélio termina a meio do
capítulo 11 inicia-se um novo episódio, de apenas 21 versículos, mas muito
importante. Um autor qualifica-o ‘como o primeiro encontro real da fé
cristã com o mundo pagão’ (Andrew Walls).
De modo diferente do de Cornélio, em que Lucas pôs grande empenho em
mostrar a dignidade de todos, aqui, em Antioquia, uma das mais importan-
tes cidades do império romano, fica-se com a impressão de que a pregação
é mais inclusiva, mais programaticamente orientada para os gentios. Anti-
oquia foi ‘onde teve lugar o avanço definitivo para uma missão aos gentios’,
onde os judeus e gentios viviam lado a lado.
A verdade é que a prioridade de uma missão de largo alcance, que tem o
objectivo do mundo inteiro aparece com uma clareza sempre maior.
Sétimo passo: A MISSÃO AOS GENTIOS Os restantes 17 capítulos dos Actos (12-28) oferecem o quadro de uma cons-tante expansão da missão aos gentios, ainda que Lucas seja cuidadoso em mostrar a continuidade deste movimento com as raízes judias da comuni-dade, mais que a sua descontinuidade. A partir do capítulo 13 começa a se-gunda parte do livro, na qual as luzes se vão incidir sobre Paulo e a sua missão. Paulo não vai deixar de se dirigir aos judeus, mas a verdade é que os judeus recusam recebê-la e os gentios acolhem-na. O futuro (para Paulo e talvez também para Lucas, com tristeza) está nos gentios, e o reconhecimento desta realidade e a resposta à missão que isso implica vai significar o apa-recimento pleno da ‘Igreja’. Os Actos terminam olhando o futuro e convidando a Igreja a continuar com a obra de Paulo, no seu próprio tempo e contexto, justamente como Paulo – e antes Estêvão, Filipe e Pedro – continuou a obra de Jesus.
Conclusão O objectivo deste capítulo era mostrar como à medida que a comunidade de Jesus responde ao apelo do Espírito para continuar a missão de Jesus por novo e imaginativos caminhos, é nessa medida que se converte em Igreja. Acreditamos que a leitura dos Actos mostra que a origem da Igreja está intimamente ligada com a sua consciência da missão que se abria di-ante dela, e que, deste modo, Actos pode oferecer, com verdade, uma forte fundamento bíblico para a afirmação de que a Igreja é «missionária, por natureza» (AG 2). O que se percebe é que o que foi considerado essencial para a identidade cristã não foi a ‘ortodoxia’ rígida, mas o reconhecimento de uma identidade na diferença, uma unidade na diversidade. E foi a compreensão da relevân-cia universal de Jesus Cristo e um sentido de urgência para pregar, servir e dar testemunho do Reino de Deus. Se ser Igreja é estar em missão, estar em missão é responder às exigências do Evangelho em contextos concretos, a Igreja ser capaz de se «reinventar» continuamente a si mesma para lutar e enfrentar as novas situações, novos povos, novas culturas e novos desafios. A existência do Cristianismo parece que está sempre vinculada à expansão para lá de si mesma, atravessando fronteiras geracionais, culturais, etc. A urgência da missão está vinculada à urgência da mudança, adaptação e tradução, ao contexto. Sendo fiel a cada contexto, a Igreja continua a ser pro-vocada pelo seu Senhor a partilhar e continuar a sua missão. O que constitui um sinal na maioria dos casos não é o velho, que se con-serva, mas o novo, que acontece e surge.
3º Encontro
19 e 24 Novembro 2018
«VÓS SOIS TESTEMUNHAS DESTAS COISAS» Constantes na missão da Igreja
Como já vimos, cristãos judeus (vindos do Helenismo) pregaram a gregos, em
Antioquia. A cultura helenística, na qual viviam esses cristãos foi o ambiente
através do qual o mundo do império romano compreendeu o Cristianismo.
Quando caiu a civilização antiga, a vitalidade do Cristianismo continuou na cul-
tura da Irlanda, cujos monges evangelizaram a Europa. E a evangelização eu-
ropeia do mundo que tinha colonizado desembocou na última fase do Cristia-
nismo, com o surgimento de uma Igreja mundial. Esta ligação histórica man-
tém-se pela continuidade da visão missionária do Cristianismo. Como já disse-
mos, a Igreja é missionária por natureza; mantém-se como Igreja ao continuar
a missão de Jesus, pregando, servindo e dando testemunho do Reino de Deus,
já inaugurado, mas que ainda está a caminho da consumação, crescendo e
mudando, e deixando-se transformar nesse processo.
O segundo nível, é a persistência de algumas constantes: ao responder a con-
textos diferentes, o Cristianismo mantém uma ‘continuidade essencial’, que lhe
permite permanecer idêntico a si mesmo, ao mesmo tempo que se vai trans-
formando no processo da aventura missionária. Apesar da variedade de lin-
guagem, contexto e cultura, persistem certas constantes que definem o Cristi-
anismo na sua natureza missionária. São fundamentalmente duas, essas cons-
tantes: a da cristologia e a da eclesiologia.
A estas duas constantes – a centralidade de Jesus Cristo e a natureza eclesial
de toda a actividade missionária – podiam acrescentar-se outras quatro: a es-
catologia (quando se inaugurará plenamente o Reino de Deus? O Reino de
Deus transformará esta terra e levá-la-á à plenitude?); a Salvação (a pregação
do Evangelho implica afastar-se do mundo e procurar uma vida totalmente es-
piritual, fora do mundo e contra ele? Ou a salvação em Cristo refere-se a uma
mudança e transformação das estruturas?); a Antropologia (a identidade do
Cristianismo implica sempre uma atitude e uma compreensão do que é o Ho-
mem); a Cultura (a cultura humana pode ser veículo ou obstáculo para a co-
municação do Evangelho?).
A resposta a estas questões acerca de Jesus, da Igreja, do futuro, da salvação,
da natureza humana e da cultura variaram certamente durante os dois mil
anos da história cristã, à medida que a Igreja foi respondendo à sua natureza
missionária nos diferentes contextos. E permanecem como questões sempre
presentes e sempre urgentes, porque a maneira como lhes respondermos de-
termina como é que o Cristianismo encontra a sua identidade concreta e como
se constitui a si mesmo na fidelidade à missão de Jesus.
Temos então seis constantes, seis questões às quais o Cristianismo constante-
mente deve dar resposta, seis questões que conformam o modo como a Igreja
pregará, servirá e dará testemunho do Reino de Deus: 1) Quem é Jesus Cristo
e qual é o seu significado? Qual é a natureza da Igreja cristã? Como considera
a Igreja o seu futuro escatológico? Qual é a natureza da salvação que proclama?
Como valoriza a Igreja a pessoa humana? Qual é o valor da cultura humana
como contexto no qual se proclama o Evangelho?
Teologia tipo A: A Missão como salvação das almas e expansão da Igreja
Esta teologia tem as suas origens no norte de África, em Cartago, onde encon-
tramos, no final do século II, uma comunidade cristã florescente. Tertuliano é
um dos pensadores cristãos de maior influência a quem se pode atribuir as
origens deste tipo de teologia de muita influência.
A palavra Direito podia ser o termo mais apropriado para caracterizar o pensa-
mento de Tertuliano (que provavelmente terá sido um homem do direito) e ca-
racterizar também o tipo de teologia: nos escritos de Tertuliano, Deus é descrito
como legislador e juiz, a criação é concebida como completa e ordenada na sua
totalidade, o pecado é descrito como ir contra esta ordem e transgredir a lei.
Cristologia de tipo A
Em relação à Pessoa de Cristo, a tendência da Cristologia de tipo A pensa a
obra salvadora de Jesus em termos jurídicos. Tertuliano introduz a palavra sa-
tisfação, que pode vir do seu uso no Direito Romano, onde significa reparar um
dano por não ter cumprido uma obrigação.
Na discussão teológica actual, no contexto do pluralismo das religiões do
mundo, distinguem-se habitualmente três posições: uma cristologia
excludente, que confessa Jesus como único Salvador; uma cristologia inclu-
dente, que entende a graça de Deus em Cristo implicitamente presente nou-
tras religiões, e uma cristologia pluralista, que reconhece Jesus como um entre
muitos caminhos de salvação. A cristologia de tipo A, provavelmente sentir-se-
ia mais cómoda com a posição excludente.
Eclesiologia de tipo A
Como se percebe neste tipo de teologia, a Igreja é o único agente e protector
– pelo menos aquele que oferece os meios normais – da fé em Cristo. Para a
teologia de tipo A, a máxima atribuída a Cipriano (de Cartago), extra ecclesia
nulla salus (fora da Igreja não há salvação), é levada à letra.
A eclesiologia de tipo A põe a ênfase num modelo de Igreja mais hierárquico e
jurídico. Antes do Vaticano II, a eclesiologia católica destacava a ideia de que a
Igreja era uma sociedade perfeita, com direitos diante dos Estados, e com di-
reito a regular a sua vida interna de acordo com as suas próprias leis. O modelo
institucional centra-se na hierarquia – bispos, sacerdotes ou pastores – que
administram os sacramentos para proporcionar os meios de salvação e que
fazem cumprir as leis através das quais os cristãos podem viver as suas vidas
na fidelidade à lei de Deus. A eclesiologia de tipo A tende a considerar a finali-
dade da actividade missionária como expansão da Igreja.
Para esta eclesiologia e teologia, no fim dos tempos terá lugar o julgamento de
Deus sobre o mundo, os bons serão premiados e os maus serão castigados. O
mundo e a história humana não têm importância no esquema da salvação.
A teologia de tipo A considera os seres humanos mergulhados no pecado e,
entregues a si mesmos, estão condenados ao castigo e à condenação eterna.
Através da satisfação vicária e redentora de Cristo, as gentes poderão ‘safar-se’
e viver de tal modo que garantam a vida eterna. A salvação é entendida mais
como algo que acontecerá depois da morte e fora deste mundo. Por isso, se
insistia na ‘salvação das almas’, e numa perspectiva individualista.
A missão, no contexto deste tipo de teologia, pode caracterizar-se como o es-
forço para salvar almas e espalhar a Igreja. A cultura, não tendo nenhum signi-
ficado religioso por si mesma, poderia ser usada para tornar mais aceitável o
Cristianismo, para se poder comunicar melhor o Evangelho ou para ajudar os
cristãos a expressar melhor a sua fé.
Teologia de tipo B: A Missão como descoberta da verdade
O autor situa o início do desenvolvimento da teologia de tipo B na cidade egíp-
cia de Alexandria, que era, depois de Roma, a maior cidade do império e centro
intelectual do pensamento helenístico. Era também centro de uma grande va-
riedade de correntes de pensamento, especialmente de correntes religiosas,
para além de ser o centro do pensamento platónico (da filosofia de Platão).
Orígenes é o teólogo que melhor exemplifica este tipo de teologia.
Quer a razão quer a revelação eram os meios que Deus tinha dado à humanidade
para recuperar a santidade original e eram compatíveis uma com a outra. A intuição
básica de Orígenes em relação ao Cristianismo foi esta perfeita compatibilidade en-
tre razão e revelação, filosofia e fé, e ele propôs-se demonstrar isso mesmo.
Se a palavra-chave de Tertuliano era Direito, a de Orígenes é Verdade.
Cristologia de tipo B
No contexto da filosofia platónica que determinou o clima intelectual da anti-
guidade, a preocupação principal da teologia de tipo B a respeito de Jesus é a
sua divindade, como na de tipo A, mas com uma perspectiva bastante dife-
rente. A teologia de tipo B implica uma cristologia, ‘a partir de cima’.
Para Orígenes, o papel principal de Jesus na história da salvação é a sua função
reveladora. É Ele que, como imagem do Deus inefável, revela à humanidade
quem é Deus. Ainda que, evidentemente, Orígenes não negue a verdadeira hu-
manidade de Jesus, a impressão que se tem é que sua humanidade importa
apenas como instrumento através do qual o mistério divino se torna visível.
Para a teologia de tipo B, a obra de Cristo que culmina sua morte e ressurreição
não é, como na de tipo A, uma obra de satisfação ou de pagamento de uma
dívida. É antes uma obra de revelação suprema através da qual Deus nos en-
sinou de modo perfeito. A morte e ressurreição de Jesus revelaram a profun-
didade do amor de Deus pela humanidade de um modo que não tinha podido
mostrar pelo seu nascimento.
A actividade missionária é de importância vital para impedir que pereçam para
toda a eternidade os que não escutaram a Boa Nova.
Eclesiologia de tipo B
Se a cristologia de tipo B nos leva à iluminação e à revelação, a eclesiologia de
tipo B poderia caracterizar-se como a comunidade dos que sabem, dos que
foram iluminados, dos que se apoiam mutuamente para se agarrarem firme-
mente à visão e estão chamados a dar testemunho dessa visão a toda a huma-
nidade em todas as partes do mundo.
A Igreja é o corpo de Cristo. E se o corpo humano de Cristo é a porta para a
união com a divindade, a Igreja visível, concreta, estruturada, pecadora e santa
ao mesmo tempo, é a porta para Cristo, o caminho onde hoje se encontra
Cristo. A imagem paulina da Igreja como corpo de Cristo foi a imagem preferida
da Igreja do período patrístico. O Vaticano II preferiu a imagem de povo de
Deus, ainda que os documentos mantenham a imagem do corpo de Cristo (LG
7). Primeiro, a imagem de povo aponta para a radical natureza comunitária da
Igreja. Em vez de entender a sua natureza a partir da perspectiva institucional
de sociedade perfeita, o Concílio começa a sua reflexão sobre a Igreja reconhe-
cendo a sua natureza como mistério: ‘uma realidade imbuída com a presença
escondida de Deus’, como dirá Paulo VI. Em segundo lugar, essa comunidade
partilha uma igualdade fundamental: o povo de Deus existe antes de qualquer
determinação ministerial ou hierárquica (LG 32). Terceiro, a imagem de povo
de Deus é descrita em termos que incluem todos os povos; ainda que se con-
sidere que os cristãos católicos estão mais plenamente incorporados no povo
de Deus, outros cristãos estão ‘unidos por vários vínculos’ (Lg 15). Inclusiva-
mente os que ainda não receberam o evangelho estão ‘relacionados com o
povo de Deus por vários motivos’ (LG 16). Finalmente, a imagem de povo de
Deus presta-se a uma certa abertura ao futuro. No capítulo VII da LG descreve-
se a Igreja como peregrina, caminhando para o futuro e cujo cumprimento está
no céu. As ramificações missionárias desta imagem apontam tanto para a mis-
são da Igreja ad intra como ad extra. Antes de tudo, a Igreja deve empenhar-
se a alcançar aquilo a que está chamada a ser e aquilo que é na sua natureza
mais profunda. A Igreja precisa constantemente de empenhar-se na qualidade
da sua comunidade, na vitalidade da sua vida espiritual, na integridade das
suas estruturas internas: esta é a sua missão ad intra, a sua missão para si
mesma. A qualidade, vitalidade e integridade internas não são, porém, cultiva-
das para benefício de si mesma, são cultivadas, antes, para que a Igreja possa
ser instrumento credível e atraente do evangelho no mundo. Quando a Igreja
vive segundo o modelo que prega e se empenha, em consequência disso, no
mundo, então está a levar a cabo a sua missão ad extra, para o mundo.
Em relação à Escatologia de tipo B, sublinhe-se apenas o seu optimismo fun-
damental ou, para ser teologicamente mais preciso, a sua grande esperança,
quer a respeito da história universal quer da vida humana individual (para Orí-
genes até o diabo se salvará).
Para Orígenes, no contexto do platonismo, a salvação que Cristo traz é, ao
mesmo tempo, espiritual e intelectual. A humanidade está encarcerada na ma-
téria e a salvação é a sua iluminação espiritual. A Boa Nova de Jesus Cristo de-
via ser pregada de modo que a humanidade possa ser libertada das limitações
do mundo material e as inteligências escurecidas possam ser iluminadas pela
luz da divina verdade. A salvação de tipo B, como na de tipo A, centra-se na
salvação da alma.
O pensamento platónico que subjaz ao pensamento de Orígenes é o funda-
mento para uma visão dualista da pessoa humana, composta de corpo e alma,
de matéria e espírito: basicamente imperfeita e até má a primeira (corpo) e
sede da verdadeira personalidade a segunda (alma). Ser humano era elevar-se
acima do corpo na contemplação das formas espirituais e imutáveis. Esta an-
tropologia é muito diferente da antropologia contemporânea.
A missão, tendo por trás esta antropologia, tem a forma de educação – guiar/con-
duzir para diante (ex/educere) –, trazer para a luz, ajudar a nascer o que está em
gestação. A Cultura é considerada como algo bom e digno de confiança, como um
contexto onde se pode encontrar o divino. A teologia de tipo B pretende mostrar
que o Cristianismo é compatível com a cultura humana e capaz de a iluminar.
A missão é o convite a descobrir a Verdade. Na Verdade encontra-se a salvação hu-
mana, já realizada e já presente na experiência e na cultura humanas. A Igreja em
missão é o grande sacramento do que supõe ser humano; é a comunidade na qual
a pessoa tem acesso ao mistério e comunicação com Deus. As preocupações dos
nossos dias acerca da teologia da inculturação nos diversos contextos assentam na
confiança na experiência humana na qual aposta a teologia de tipo B.
Teologia de tipo C: A Missão como compromisso de libertação e transformação Este tipo de teologia C assenta as suas raízes na Ásia Menor, aquilo que hoje é a
Turquia e a Síria, na cidade de Antioquia, uma das cidades mais importantes do
Império Romano e, talvez, o primeiro lugar onde a comunidade de Jesus reconhe-
ceu a sua identidade plena como Igreja, como vimos. A pessoa que melhor articula
este tipo de teologia C não foi um residente nesta área, foi Ireneu, bispo de Lyon.
Escreveu apenas dois livros que possuímos inteiros, mas foram duas obras de
grande influência para a perspectiva teológica que contrasta com as de tipo A e B.
Se o tipo A se pode caracterizar pelo DIREITO e o tipo B pela VERDADE, a perspec-
tiva de Ireneu da teologia de tipo C podia caracterizar-se da melhor maneira pela
palavra HISTÓRIA, não no sentido de narração fidedigna de eventos do passado,
mas no sentido de que tudo tem lugar no tempo e é guiado para o futuro de Deus.
Em contraposição às teologias de tipo A e B, a História, na teologia de tipo C, faz
parte do plano de Deus, desde as origens e não o resultado de uma queda (pe-
cado) de algum estado eterno de perfeição ou contemplação.
A teologia de tipo C sempre teve uma perspectiva eminentemente pastoral e foi fun-
damento para que a natureza missionária da Igreja se manifestasse numa rica gama
criativa de expressões. Trata-se de uma perspectiva que se centra no Mistério de
Cristo, ao mesmo tempo que reconhece a importância e dignidade do humano.
Cristologia de tipo C Ireneu fala de Jesus e do Espírito Santo como as duas mãos de Deus. Ainda que
esta linguagem possa soar antropomorfa, González diz que ela serve para ressal-
tar como, para Ireneu, Deus se relaciona directamente com o mundo tanto através
de Cristo como do Espírito Santo. A frescura desta ideia vê-se mais claramente
quando se contrasta com as noções mais filosóficas de algumas das expressões
das teologias de tipo B. Para Orígenes, por exemplo, a Palavra e o Espírito tendem
a ser usadas como maneira de salvaguardar a distância entre Deus e a criação.
Aqui, é o contrário: Deus compromete-se com a história do mundo através da
obra do Espírito Santo e da encarnação do Filho. Não se dá uma verdadeira espe-
culação filosófica acerca de como o mistério se torna visível ou tangível. Deus entra
na história e deste modo manifesta-se de modos radicalmente históricos.
Ireneu e a teologia de tipo C não vêem a obra redentora de Jesus como paga-
mento de uma dívida ou oblação para uma maior oblação, como fariam Tertu-
linao (A) e Orígenes (B). pelo contrário, Jesus é aquele cuja vida, morte e res-
surreição nos libertaram da nossa escravidão de Satanás, uma escravidão que
não nos permite agir livremente e impede o desenvolvimento humano que
Deus quis. A obra redentora de Jesus é o cumprimento da nossa libertação.
Eclesiologia de tipo C Para Ireneu, a Igreja é, literalmente, o corpo de Cristo. Se em Adão e Eva toda
a humanidade se converteu em escrava do pecado, em Cristo, novo Adão, to-
dos são unidos a Cristo como participantes da sua vitória. Cristo, pela sua res-
surreição, já goza da plenitude da vida ressuscitada; como nossa cabeça, foi à
nossa frente; no tempo devido, quando tudo for plenamente restaurado n’Ele,
também nós ressuscitaremos. Como corpo de Cristo, a Igreja é um meio se-
guro de graça: «Onde está a Igreja, ali está o Espírito de Deus; e onde está o
Espírito de Deus, ali está a Igreja e toda a espécie de graça».
O compromisso com a história da teologia de tipo C atingiu o pleno floresci-
mento no século XX. A eclesiologia do Concílio Vaticano II foi influenciada de
várias maneiras pela teologia de tipo B. A revolução do Concílio consistiu em
passar de uma compreensão da Igreja como hierárquica e sociedade perfeita
(eclesiologia de tipo A) a uma compreensão da Igreja como comunidade, o
povo de Deus unido misticamente a Cristo (eclesiologia de tipo B). As sementes
da teologia de tipo C, no entanto, estavam já semeadas com a definição de
Igreja, no primeiro documento do Concílio sobre a Igreja como sacramento,
como sinal e instrumento da unidade entre Deus e a humanidade, e dos ho-
mens e mulheres entre si. Estas sementes vieram a dar fruto em dois docu-
mentos que foram terminados no final da última sessão do Concílio e que, na
opinião de vários teólogos, representam a verdadeira trajectória do pensa-
mento do Concílio: o decreto «Ad gentes» sobre a actividade missionária da
Igreja e a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo actual.
A Escatologia de tipo C é a que toma a história com extrema seriedade entende a
plenitude escatológica não como o final do processo histórico e a inauguração de
um estado espiritual e atemporal, mas como a transformação e plenitude da
história que já começaram. O seu interesse, sem negar as realidades do céu, in-
ferno e purgatório, centra-se mais nas preocupações gerais e cósmico-escatológi-
cas.
A vida, morte e ressurreição de Jesus inauguraram o Reino de Deus, ainda que
a consumação final do Reino se encontre no futuro. Esta consciência do Reino
de Deus já inaugurado, mas que ainda não alcançou a sua plenitude, confere
uma visão específica à missão da Igreja: preocupação pelo ‘penúltimo’ em vez
do ‘último’, pelo que ‘está à mão’ em vez do que será. Trabalhar pela libertação
económica e política, pelo reconhecimento dos direitos humanos e igual digni-
dade de todos, tudo faz parte da missão da Igreja na perspectiva da teologia
de tipo C, que vê a acção salvadora de Deus acontecendo no meio da história
e não prometendo a sua plenitude fora dessa história.
A salvação é a plenitude humana e cósmica; é radicalmente intramundana,
mas não consiste simplesmente no bem-estar material ou prosperidade; trata-
se de salvação, porque o mundo e a humanidade foram feridos pelo pecado.
A teologia de tipo C oferece uma base para uma valorização dos seres huma-
nos, assumindo ao mesmo tempo uma postura crítica acerca do fracasso e pe-
cado humanos. Representa o equilíbrio entre a perspectiva de tipo A e a de
tipo B. É uma visão surpreendentemente actual (cf. GS, 12 a 17).
A missão da Igreja é anúncio, serviço e testemunho da e para a plenitude da huma-
nidade. A tarefa da missão será desmascarar os aspectos escravizadores e desuma-
nizadores da cultura e confrontá-los com a realidade salvadora do Evangelho.
A história (a cultura) é ‘lugar teológico’, mas está também marcado pela ambi-
guidade. A missão é o compromisso dos cristãos para a libertação e transfor-
mação efectiva da humanidade e do mundo.
Conclusão Ao nosso estudioso extra-terrestre, a comunidade Jerusalém pode parecer-lhe
muito diferente da Igreja do Concílio de Niceia, da Igreja dos monges irlande-
ses no século VII ou da Igreja dos nossos dias. Mas ela sempre foi a mesma,
porque sempre respondeu ao chamamento de Deus para a missão, e porque
essa resposta sempre esteve articulada na centralidade de Jesus, experimen-
tado como Igreja, pregado como significado definitivo e último da vida, e fun-
dado na compreensão da natureza humana e da natureza da história. Ainda
que colorida por diferentes influências (direito romano e germânico, por exem-
plo), a Igreja sempre pôde ser reconhecida como cristã porque sempre foi mo-
vida por uma Cristologia, uma Eclesiologia, uma Escatologia, uma noção de Sal-
vação, uma Antropologia e um reconhecimento da Cultura. Umas vezes conse-
guiu ser ela mesma, outras vacilou.