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PolticaEntrevista - Jess de Souza
"A herana dos ltimos 15 anos foi a ascenso
dos excludos"
Presidente do Ipea critica os vcios do pensamento brasileiro
por Miguel Martins publicado 01/01/2016 04h05, ltima modificao 01/01/2016 08h02Marcelo Carnaval/Ag. O Globo
De Gilberto Freyre a Srgio Buarque de Holanda, ningum escapa
Atual presidente do Instituto de Pesquisa
Econmica Aplicada (Ipea), o socilogo Jess
de Souza conhecido pelo pensamento agudo e a argumentao desassombrada. Seu
novo livro,A Tolice da Inteligncia Brasileira, confirma essas caractersticas. Ao analisar o
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desenvolvimento do pensamento no e sobre o Pas, Souza no poupa ningum, nem
mesmo Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda. Segundo ele, o pensamento
culturalista brasileiro tornou-se um instrumento das elites para influenciar a classe mdia na
demonizao das instituies e da classe poltica, o que esconderia a verdadeira inteno
da parcela mais rica do Pas: apropriar-se novamente do Estado brasileiro.
Na entrevista a seguir, Souza tambm critica o conceito de nova classe mdia criado por
seu antecessor no Ipea, Marcelo Neri. Os setores mdios tradicionais, argumenta, possuem
privilgios no materiais inacessveis aos novos trabalhadores. Essa classe mdia
tradicional, acrescenta, um dos trs pilares da atual gramtica do golpe. Os outros dois
so a mdia e a Justia, que substituiu as Foras Armadas nesta aliana.
CartaCapital: No livroA Tolice da Inteligncia Brasileira, o senhor critica a perenidade dos
mitos nacionais. A busca dessa identidade teria reforado preconceitos sobre o brasileiro
ser corrupto, levar tudo no jeitinho, ser hospitaleiro e amvel, entre outros esteretipos.
Neste ano de recrudescimento conservador no Pas, os mitos esto mais fortes?
Jess de Souza: Os jornalistas, os professores e os livros no Brasil ainda recorrem a
intelectuais que moldaram nossa interpretao em torno dessas questes. So ideias
equivocadas, no valem um vintm do ponto de vista cientfico, mas convencem e mandam
no Pas. Sempre que um governo popular chegou ao poder, as elites recuperaram opensamento culturalista formulado desde 1933.
CC: O ano do lanamento de Casa-Grande e Senzala.
JS: Exato. A genialidade de Gilberto Freyre foi interpretar o Pas em uma comparao com
os Estados Unidos, o grande outro do Brasil. Ele valorizou o encontro de raas e o
classificou como um encontro de culturas. Como sempre perdamos na comparao com os
norte-americanos, era preciso criar um mito positivo, algo que a populao pudesse aceitare incorporar. Formulou-se ento um mito que valoriza nosso corpo, sentimento e
sexualidade. Embora absurdo, tendemos a aceitar que os norte-americanos e os europeus
representam o esprito, a racionalidade, so mais produtivos e confiveis, no so
corruptos. Em Freyre, isso ainda ambguo.
Quando Sergio Buarque de Holanda reproduz esse mito no homem cordial, acaba por
absorver apenas a parte negativa do antecessor, ao opor o homem cordial brasileiro aohomem racional norte-americano. Para pintar o Brasil como o pas do atraso, os conflitos
reais tm sido postos na sombra em nome de uma disputa entre Estado e mercado que
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passa a ser incensada. No existe esse conflito. Cria-se esse falso certame para silenciar a
luta de classes, na qual quem monopoliza o conhecimento e domina o capital cultural so
as elites e a classe mdia.
CC: Embora no se veja dessa forma, a classe mdia brasileira privilegiada?
JS: Sem dvida. Apesar de no ter acesso ao capital econmico do 1% mais rico, a classemdia tem uma herana invisvel, como estmulos emocionais e a capacidade de
concentrao, algo que os pobres no tm. Muitos entram na escola como potenciais
analfabetos funcionais, antes mesmo de sua trajetria escolar. O liberalismo defende que a
escola pode resolver os problemas sociais. A questo no , porm, apenas a qualidade do
ensino, mas toda uma construo emocional, sentimental, de estar aberto ou no ao
pensamento abstrato, ao clculo, ao pensamento prospectivo. Nada disso natural, um
privilgio. A classe mdia tem tempo para planejar sua carreira ao longo da vida. Por
batalharem demais no presente, os trabalhadores precarizados no tm essa perspectiva.
A dita classe mdia se une mdia e Justia, substituta dos militares/ Crditos: Paulo Pin
Pblicas
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CC:H uma crtica no livro prevalncia do economicismo nas anlises de Marcio
Pochmann e Marcelo Neri, seus antecessores no Ipea, sobre a ascenso social dos ltimos
anos. Esse foco excessivo na criao de empregos e na distribuio de bens materiais tem
pago um preo neste momento de crise econmica?
JS:Esse o ponto principal. At 2010, s se falava em nova classe mdia. Passei a
defender ento o conceito de nova classe trabalhadora precarizada. Os trabalhadores
tradicionais tm diminudo, enquanto o capitalismo financeiro ergue uma classe
trabalhadora para suas prprias necessidades, no somente no Brasil, mas na China, na
Rssia, em todos os locais onde h quem se disponha a fazer de tudo por muito pouco. E
so esses precarizados que cresceram entre ns.
Os governos petistas no fomentaram a formao de uma nova classe mdia. Os
batalhadores continuam sem qualquer privilgio de nascimento. A grande herana desses
ltimos 15 anos foi a manuteno desse processo de ascenso dos excludos para uma
classe trabalhadora, mesmo precarizada. H incluso no mercado, emprego formal e a
possibilidade de investimento em educao para os filhos dos batalhadores. preciso
mudanas consequentes para se formar uma classe trabalhadora qualificada com alta
produtividade, o grande desafio para o Brasil deixar de ser um exportador de matria-
prima.
CC: Muitos dos novos trabalhadores tm ficado alheios atuao sindical, e explicam sua
ascenso social mais por mritos prprios ou pela interveno divina do que pelo sucesso
de polticas pblicas. Isso fragiliza a base de apoio a um governo popular?
JS: Se a esquerda no construir uma alternativa, a nica narrativa vlida para os
batalhadores ser o pentecostalismo, que atrela em grande medida essa classe aos
interesses de mercado. Isso no , contudo, chapado. No Nordeste, essa classe percebe a
relao da ascenso com os programas sociais, at porque l a misria anterior era muito
maior. Sabem que devem a Lula. No Sudeste, a viso de que Deus ou o mrito pessoal
foram mais relevantes mais forte. Tm uma viso egosta de mundo, atrelada a interesses
de mercado. Essa prpria classe no percebe quem so seus aliados polticos. O que
mostra a pobreza de narrativa da prpria esquerda.
CC: Sobre as manifestaes de junho de 2013, seu livro afirma que o dia 19 foi a grande
virada, com a formao de um novo pacto conservador. Como o senhor interpreta a atual
crise poltica em face desse pacto?
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JS:Existe uma estrutura, uma gramtica do golpe no Brasil. Ele mudou, modernizou-se,
mas mantm a mesma estrutura. O golpe precisa do bumbo tocado pela imprensa
conservadora, do suporte da classe mdia e de um elemento constitucional para dar a
aparncia de legalidade captura da soberania popular. Nos governos democrticos de
Getlio Vargas e Joo Goulart, esse elemento eram os militares, pois a Constituio previa
a interveno das Foras Armadas em caso de desordem. Essa gramtica modernizou-se:
no est ancorada mais na botina do general, mas na toga da lei. O elemento constitucional
atual so as agncias de controle, a Polcia Federal, os juzes justiceiros, postos para alm
do bem e do mal.
CC: Vivemos um momento crucial?
JS: uma esquina da nossa histria. Ou aprofundamos o que conquistamos nos ltimos 15
anos, um processo abortado h 60 anos, ou voltamos a um Brasil governado para 20%,
aquele erguido pelo golpe de 1964.
*Entrevista publicada originalmente na edio 876 de CartaCapital, com o ttulo "O
demolidor"