Departamento de Direito
A GESTÃO DE RISCOS ATRAVÉS DA CLÁUSULA DE
RENEGOCIAR
Aluno: Enrico Mazza Coelho Pereira
Orientador: Aline Miranda de Valverde Terra
Sumário: Introdução – 1. Justificativa para o surgimento da cláusula de renegociar – 2.
Aspectos estruturais da cláusula de renegociar – 2.1 Pressupostos da renegociação – 2.2
Procedimento de renegociação – 3. Aspectos funcionais da cláusula de renegociar – 3.1
Manutenção do equilíbrio e preservação dos contratos – 4. Mecanismo de gestão negativa
dos riscos – 5. Cláusula de renegociar e contrato incompleto: semelhanças e diferenças – 6.
O momento da renegociação – 6.1 Incidência da boa-fé in executivis – 6.2 Consequências
do insucesso renegociativo – 6.3 Possibilidade de intervenção judicial – Conclusão
Introdução
Repete-se à exaustão que contratar é, em si, um ato de risco. Não há como
desvincular as duas ideias, tendo em vista que todo contrato é um “ato de
comprometimento do futuro” e, portanto, está sujeito aos efeitos perturbadores trazidos
pelo fator-tempo1. O período compreendido entre a conclusão e a efetiva execução do
contrato, que varia desde a instantaneidade até longos protraimentos temporais, está a todo
tempo imbuído da possibilidade de alterações mais ou menos significativas no equilíbrio
pré-estabelecido pelas partes. A essas alterações dá-se o nome de “álea normal” do
contrato, ou seja, aquelas perturbações previsíveis e até mesmo esperadas, qualificáveis
como tal de acordo com a fattispecie de que se trata2.
Apesar de ser notória a existência do risco em toda espécie contratual, o legislador
do Código Civil de 2002 dispôs de pouquíssimos artigos voltados à sua regulação. Ainda,
quando o fez, fê-lo desprovido de tecnicidade, tratando do “risco” sempre em sentido
genérico3. Fica, então, relegada às partes, no pleno exercício de sua autonomia privada, a
gestão dos riscos contratuais, visando à construção de um projeto negocial apto a promover
os interesses por elas concretamente buscados4.
1 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa
duração. in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 7, n. 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-
jun./2010. p. 12. 2 Para os diversos conceitos de risco, inclusive a diferenciação entre risco econômico e risco jurídico, cf.
BANDEIRA, Paula. Contratos aleatórios no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 7 e ss. 3 Idem. p. 11 4 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e parâmetros
funcionais para a sua fixação. 2015. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015, p. 51.
Departamento de Direito
Contudo, o acertamento das partes deve sempre atentar não apenas aos limites
impostos à própria autonomia privada 5 , mas também aos princípios reguladores dos
contratos. Em matéria de gestão de risco, tem especial relevo o princípio do equilíbrio dos
contratos, devendo aqui ser entendido não em sua dimensão meramente econômica, mas na
sua conjugação com a dimensão normativa. Deve-se falar, portanto, não de equilíbrio
econômico das prestações, mas sim de equilíbrio de posições jurídicas6.
Na prática, existem riscos que escapam à álea normal do contrato, riscos cujos
efeitos podem acarretar o total desequilíbrio do contrato, com a quebra do sinalagma
genético 7 inicialmente pactuado. A esses riscos chama-se de “álea extraordinária” do
contrato 8 . Nesses casos, de modo a impedir que as partes sofram os efeitos deste
desequilíbrio, a legislação civil fornece remédios que se ocupam de promover o
reequilíbrio da relação prejudicada. Nada obstante, podem ainda as partes, no exercício de
sua autonomia privada, avençar remédios negociais que tratem de mitigar os efeitos
negativos do desequilíbrio9.
Dentre estes últimos, destacam-se, para os fins deste trabalho, as cláusulas de
adaptação do contrato: cláusulas que têm como finalidade a readequação das previsões
contratuais diante de uma situação de desequilíbrio. De acordo com o mecanismo
escolhido para a adaptação, as cláusulas subdividem-se em: (i) automáticas, quando
preveem a priori todos os critérios para a adaptação, sem que seja necessária a intervenção
posterior pelos contratantes; (ii) semi-automáticas, como as que preveem, por exemplo, a
adaptação mediante oferta mais favorável (“cláusula de melhor cliente”); e (iii) não-
automáticas, quando impõem às partes a renegociação10.
Interessam a este estudo, então, as cláusulas de adaptação não-automáticas, por meio
das quais as partes conferem à sua autonomia privada, em exercício de renegociação do
contrato ou de parte dele, o absoluto controle sobre a repartição dos efeitos de certos
5 De acordo com a metodologia civil-constitucional, a autonomia privada deixa de ser um valor em si
próprio, sendo tutelável apenas e na medida em que promova os valores fundamentais do ordenamento
jurídico, em especial a dignidade da pessoa humana. Sobre o tema, cf. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil
na Legalidade Constitucional. trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. pp. 334-418 6 Sobre o tema, cf. BENEDETTI, Giuseppe. L’equilibrio normativo nella disciplina del contratto dei
consumatori. in: FERRONI, Lanfranco (coord). Equilibrio delle posizioni contrattuali ed autonomia privata.
Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002. pp. 39-46 7 A diferenciação que aqui se faz entre sinalagma genético e sinalagma funcional é para fins didáticos. Em realidade, o sinalagma é único durante toda a relação obrigacional. Porém, como tal, o sinalagma também é
um processo, em constante transformação entre a gênese e o extinção da relação contratual. 8 NICOLÒ, Rosario. Alea. in: Enciclpedia del diritto, vol. 1. Milão: Giuffré, 1958. pp. 1025-1026. 9 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo:
Marcial Pons, 2015. p. 592 10 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship... cit. pp. 14-15.
Departamento de Direito
eventos sobre a economia contratual originalmente pactuada, de modo a manter ou
restaurar o equilíbrio de posições existentes no momento de sua conclusão.
Metodologia e Objetivos
A execução deste projeto deu-se a partir da análise e discussão de doutrina,
jurisprudência e legislação nacionais. Para fomentar e aprofundar a discussão, trouxe-se
ainda doutrina estrangeira, em especial a portuguesa e italiana, dada a proximidade
dogmática do tema estudado. A partir deste material-base, procedeu-se à análise dos perfis
estrutural e funcional da cláusula de renegociar, a fim de compreender o fenômeno da
cláusula mencionada e como ela exerce a função de gestão dos riscos contratuais.
Resultados
1. Justificativa para o surgimento da cláusula de renegociar
No Direito interno, desde o final do século XX, a Teoria Geral dos Contratos sofreu
um enorme abalo em sua estrutura tradicional. Esse movimento é atribuível, em grande
parte, à constitucionalização do Direito Civil e sua permeação por novos princípios, em
especial a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o equilíbrio das prestações11.
Aliado a isso, houve o desenvolvimento e proliferação dos chamados “contratos
relacionais”, entendidos não como um novo tipo contratual, mas como um grupo de
características, como cooperação, flexibilidade e duração no tempo, presentes, em maior
ou menor grau, em todos os contratos12.
Paralelamente, no âmbito dos contratos internacionais em um mundo cada vez mais
globalizado, constatou-se a existência de diversos riscos que eram específicos do ambiente
supranacional em que estes eram celebrados, como a instabilidade política, as oscilações
cambiais, a diferenças de cultura, língua e até mesmo de regime jurídico13, além daqueles
inerentes a qualquer negócio, como o de inadimplemento14.
11 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 119. 12 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... cit. pp. 368-369. 13 CESÀRO, Vincenzo Maria. Clausola di rinegoziazione e conservazione dell’equilibrio contrattuale.
Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000. p. 14. 14 Sobre os diversos tipos de risco que atingem um contrato, cf. FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar
Mayer. O contrato como regulador e como produtor de riscos. in: Prima Facie – Direito, História e Política,
v. 12, n. 22, p. 64-85, 2013. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/primafacie/article/view/4507>. Acesso em: 14 jul. 2016.
Departamento de Direito
É nesse duplo contexto que a autonomia privada concebeu as cláusulas de
renegociar: visando à conservação, por meio da atuação das próprias partes, de operações
econômicas grandes, complexas e dificilmente substituíveis15. A cláusula de renegociar,
então, é
um modelo convencional já vinculante para os contraentes, mas não
definido num conteúdo rígido e esquematizado, por meio do qual as
partes se obrigam a renovar uma relação já constituída, para renová-la no seu ponto crítico, valendo-se de uma solução não preventivamente
individuada, mas adotando-se uma coerente com a composição originária
de interesses.16
De maneira a preservar estas relações, nas quais foram dispendidas enormes quantias
de dinheiro e tempo, os contratantes avençam dever de renegociar os termos do contrato
diante de certos pressupostos, de modo a evitar que a solução à situação de desequilíbrio
seja a resolução ou revisão judicial do vínculo contratual ou, caso estejamos tratando de
contratos internacionais, fiquem estes à mercê das soluções propostas por jurisdições
alienígenas.
2. Aspectos estruturais da cláusula de renegociar
Tentar traçar um estudo exaustivo da estrutura das cláusulas de renegociar seria um
trabalho impossível, dado o sem-número de formas que esta pode apresentar, fruto da
autonomia privada no concreto regulamento de interesses17. Não obstante, no estudo das
cláusulas de renegociar, pode-se perceber a presença genérica de dois elementos
principais: os pressupostos da renegociação e o procedimento renegociativo18.
2.1 Pressupostos da renegociação
Em primeiro lugar, é preciso que as partes delineiem quais são os eventos que
suscitarão para os contratantes o dever de renegociar, seja o contrato todo, seja parte dele.
É comum, nesse momento, encontrar cláusulas que se valham tanto de redações amplas e
15 MONTEIRO, António Pinto; GOMES, Júlio. A ‘hardship clause’ e o problema da alteração das
circunstâncias. in: VAZ, Manuel Afonso; LOPES, J. A. Azeredo (coord.). Juris et de jure: nos vinte anos da
Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 20 16 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 21. No original: “(...) modello convenzionale già vincolante per i
contraenti, ma non definito in un contenuto rigido o schematizzato, attraverso il quale le parti, (...), sono
obbligate ad accertane la consistenza e la rilevanza sul rapporto già costituito, per rinnovarlo nel punto critico
ponendo mano ad una soluzione non preventivamente indivituata, ma adottandone una coerente con
l’originaria composizione di interessi.” 17 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 133 18 MONTEIRO, António Pinto; GOMES, Júlio. Op. cit. p. 22.
Departamento de Direito
genéricas, quanto de elaborações taxativas das hipóteses que concretizam a obrigação de
renegociar. Ambas as técnicas de redação apresentam vantagens e desvantagens: se, por
um lado, as cláusulas abertas conferem maior espaço para que as partes possam gerir, em
um maior número de casos, os efeitos da implementação dos riscos, por outro lado, a
generalidade de sua redação pode ser fonte de abusos19.
O exemplo mais recorrente na doutrina de cláusula de renegociar é a cláusula de
hardship. Por hardship, entende-se o evento superveniente, a ser definido pelas partes, que
afete substancialmente o equilíbrio contratual ao ponto de criar um “rigor excessivo” para
que uma das partes cumpra sua prestação20. Entende-se que o acontecimento que pode
caracterizar o hardship prescinde da imprevisibilidade – justamente porque as partes o
previram no contrato –, bastando que seus efeitos sejam imprevisíveis ou, no máximo, que
fujam ao controle das partes21.
No entanto, não é necessário que o equilíbrio seja significantemente alterado,
podendo as partes convencionar, por exemplo, que a renegociação deverá acontecer após
um certo período de tempo, durante o qual pode ter havido, ou não, alguma mudança no
sinalagma genético22.
O resultado comum a todos os pressupostos é a criação de lacunas supervenientes e
intencionais23 no regulamento contratual. Ao não alocar ex ante os efeitos dos riscos,
relegando sua gestão ao momento de sua efetiva implementação por meio da renegociação
dos termos contratuais, as partes se vinculam a um regulamento originariamente, mas não
definitivamente, completo24.
2.2 Procedimento renegociativo
Não basta, entretanto, que as partes se limitem a estabelecer quais são os
pressupostos que darão azo à renegociação: na quase totalidade dos casos, os contratantes
também estabelecem os parâmetros e os valores sobre os quais devem ser conduzidas as
19 Esses abusos podem ser perpetrados por qualquer dos contratantes: tanto o contratante em posição de
vantagem, ao tentar descaracterizar a situação como ensejadora do dever de renegociar; quanto pelo
contratante que percebe modificações, ainda que irrelevantes, em sua prestação e pretende lançar mão, ainda
que desnecessariamente, da renegociação (CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit., p. 125 e ss., notadamente p.
129.) 20 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. São Paulo: Atlas, 2015. p. 71 21 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship... cit. p. 22. 22 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. pp. 135-136 23 Por lacuna, entende-se que certos “elementos foram deixados em branco, sujeito à determinação futura, a
partir de critérios fixados de antemão pelos contratantes” (BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. p.
50) 24 Idem. p. 54.
Departamento de Direito
tratativas, a fim de evitar distorções na execução da obrigação de readaptar e facilitar a
conservação do acerto de interesses25.
Antes de mais nada, cumpre destacar a importância da delineação desses critérios
para caracterizar a relevância jurídica da obrigação de renegociar. A positivação de uma
cláusula de renegociar sem o estabelecimento de regras procedimentais mínimas para sua
execução, poderia levar a situações que, em última análise, esvaziariam a própria
cláusula 26 . Exemplificando: havendo plena liberdade para tocar as tratativas, um
contratante poderia elaborar, a qualquer tempo, qualquer tipo de proposta, estando o outro
contratante livre para refutar a proposta, sem qualquer motivo.
Superada essa questão, no estabelecer do procedimento, podem as partes promover a
readaptação por suas próprias mãos ou delegar a tarefa a um terceiro imparcial 27 . É
comum, ainda, a previsão de um “mecanismo multietapas de solução de controvérsias”
(multi-tiered dispute resolution system), por meio do qual se prevê um escalonamento de
métodos para a resolução de controvérsias oriundas do contrato, cuja etapa inicial é a
negociação pelas partes, podendo desembocar, ao fim e ao cabo, na arbitragem, caso não
se chegue a um consenso amigável28.
Por fim, devem as partes estabelecer o critério que norteará as tratativas de
renegociação. A escolha aqui será, essencialmente, entre critérios objetivos e subjetivos.
Como na delimitação dos pressupostos da renegociação, optar por qualquer um dos dois
traz vantagens e desvantagens, que deverão ser sopesadas pelas partes contratantes no
arranjo contratual. Por um lado, enquanto critérios objetivos (exemplo: a restauração do
equilíbrio econômico-jurídico do contrato) são dotados de maior certeza e segurança, sua
escolha pode acabar por engessar em moldes muito estreitos a readaptação do contrato. Por
outro lado, sustentar-se em critérios subjetivos, como “lealdade” ou “equidade”, pode abrir
margem para arbitrariedades – isso sem contar a incerteza técnica quanto a esses conceitos,
principalmente quando o pacto renegociativo está inserido num contrato internacional,
como muitas vezes ocorre. Nada obstante, dar maior espaço para as partes lidarem com a
renegociação a partir de critérios mais amplos permite que busquem, no exercício da
25 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 171 26 Idem. pp. 49-50 27 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. p. 71. 28 PINTO, José Emílio Nunes. O mecanismo multietapas de solução de controvérsias. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4510>.
Acesso em: 06 jul. 2016.
Departamento de Direito
renegociação, outros parâmetros que não somente aqueles baseados no próprio contrato:
podem seguir, portanto, parâmetros técnicos ou econômicos de natureza diversa29.
Na prática, contudo, caso os convenentes se omitam acerca do procedimento a ser
seguido no momento da renegociação, atrair-se-á a incidência da boa-fé objetiva30, que
atuará em sua função integrativa como “standard de comportamentos”31. A atuação da
cláusula geral – rectius: a criação dos deveres a serem observados no proceder da
renegociação – será temperada à luz do equilíbrio econômico-jurídico originalmente
pactuado, limitando-se a discricionariedade das partes, que estarão adstritas ao reequilíbrio
do contrato de acordo com a relação de comutatividade fixada quando de sua elaboração32.
3. Aspectos funcionais da cláusula de renegociar
Determinada a estrutura, passe-se à análise de como esta se mostra capaz de realizar
a função da cláusula de renegociar. Por função, entende-se a “síntese dos efeitos
essenciais” de um fato juridicamente relevante33. Apesar de o legislador não ter positivado
a função entre os elementos de validade do contrato, como fez o italiano, a doutrina
destaca sua importância na qualificação do fato jurídico e, por conseguinte, na definição da
disciplina a ele aplicável34.
Grosso modo, a doutrina atribui quatro funções à cláusula de renegociar, a ver:
(a) assegurar a preservação do equilíbrio econômico e a continuação do
contrato (...); (b) atuar como meio de repartição, entre os contratantes, dos custos resultantes do evento superveniente e incerto, (...); (c) impedir
a extinção contratual devida à resolução por excessiva onerosidade de um
contrato que ainda pode ser útil, (...); (d) encontrar um novo regime adaptado aos mútuos interesses (...).35
Para que este trabalho se mantenha fiel ao seu escopo, será dada especial atenção às
duas primeiras funções mencionadas, até mesmo porque as outras duas são
autoexplicativas e dispensam grandes aprofundamentos. As próximas páginas, então, se
ocuparão em discorrer sobre como a cláusula de renegociar atua na manutenção do
29 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. pp. 172-174 30 Idem. p. 179 31 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984. p. 632 32 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 191 33 SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos; MENDES, Heitor Mendes. Função, funcionalização e função social.
in: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (coord.). Direito Civil Constitucional. São Paulo:
Atlas, 2016. p. 99 34 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. pp. 118-119 35 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship... cit. p. 20.
Departamento de Direito
equilíbrio do contrato. A questão do pacto renegociativo enquanto mecanismo de gestão de
riscos, por ser o ponto nodal deste trabalho, será tratada em capítulo separado.
3.1 Manutenção do equilíbrio contratual
Como já dito no capítulo 1, o movimento de constitucionalização do Direito Civil
trouxe consigo três novos princípios contratuais, que vieram contrabalancear o
voluntarismo subjetivista vigente por todo o século XIX e começo do século XX. São eles:
a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o equilíbrio do contrato. Enquanto os dois
primeiros foram positivados no diploma civil como cláusulas gerais (artigos 421 e 422,
respectivamente), a existência do princípio do equilíbrio é retirada da interpretação de
diversos mecanismos legais que tratam de reprimir a desproporção excessiva entre os
valores das prestações36.
Essa confusão causada pelo Código Civil acaba por relegar ao princípio uma “função
decorativa”, sendo utilizado pelos tribunais apenas para corroborar a aplicação de algum
instituto autônomo, o qual não necessitaria, em tese, de uma justificação principiológica37.
No entanto, a importância do princípio do equilíbrio extrapola, e muito, a parca função que
lhe costuma ser atribuída. É ele que garante a justiça contratual, garantindo aos
acertamentos de interesses o juízo positivo necessário para que possa ser tutelado pelo
ordenamento jurídico.
Ao se falar de equilíbrio contratual, deve-se superar a ideia de que o contrato
equilibrado é aquele que encontra, nas prestações, perfeita correspectividade econômica,
cingindo-se o princípio a uma mera equivalência material. Seguindo os ensinamentos da
doutrina italiana, a análise do equilíbrio contratual deve levar em consideração a dimensão
econômica (o valor das prestações) e a dimensão normativa (conjunto de direitos e
obrigações oriundos daquela fattispecie) para verificar se há ou não alguma patologia
naquele programa contratual. O exame a partir desta perspectiva pode mostrar que um
contrato que, em tese, parece desequilibrado, pode estar em perfeito equilíbrio38.
Em suma: ao criar o conjunto de normas que regulará sua relação, as partes
concordam em se vincular a um programa complexo de vantagens e concessões mútuas,
que fazem com que o contrato equilibrado se afaste da imagem clássica da balança para se
36 SCHREIBER, Anderson. Op cit. p. 121. 37 Idem. p. 120. 38 BENEDETTI, Giuseppe. Op. cit. p. 41
Departamento de Direito
assemelhar mais a um móbile, em que todos os fatores contribuem para o equilíbrio final
do todo39.
É esse equilíbrio, do qual até aqui se tratou, que a cláusula de renegociar cuida de
manter. Como a implementação da álea extraordinária pode afetar esse equilíbrio ao ponto
de se tornar excessivamente oneroso, ou até mesmo impossível40, para que uma das partes
execute sua prestação, a inserção no programa contratual da obrigação de renegociar o
contrato, sempre baseado na boa-fé objetiva, oferece uma alternativa extremamente
favorável à resolução do contrato pela perda do equilíbrio41.
4. Mecanismo de gestão negativa dos riscos
No curso do século XX, o mundo experimentou mudanças e avanços significativos,
em especial no plano da economia e das ciências, que mitigaram por completo a
“estabilidade” vigente no início do século, característica que já se estendia desde o século
XIX. Nesse sentido, a sociedade contemporânea passou a ser pautada pela ideia do “risco”,
que permearia todos os setores da vida. Na esteira desses avanços, o contrato passou a ter
cada vez mais importância, se tornando o principal instrumento da economia, por se
configurar apto a promover a gestão dos riscos inerentes às operações que nele eram
concretizadas42. O “risco” de que aqui se trata, é o risco meramente econômico, negativo –
ou seja, a possibilidade de perda, de diminuição patrimonial43.
A gestão dos riscos pode se dar de duas formas. De um lado, as partes podem
escolher alocar os efeitos do risco para uma ou para a outra, atribuindo a esta parte a
responsabilidade por seu implemento, no que se caracteriza como a gestão positiva dos
riscos, alargando ou diminuindo o escopo do que seria a álea normal daquele contrato44. É
39 A imagem aqui é de Judith Martins-Costa. (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... cit.
p. 594) 40 Aqui entendido no sentido técnico-jurídico, “não se demandando do devedor esforços maiores do que os
razoáveis para o adimplemento da obrigação” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Op. cit. p. 89.) 41 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 126 42 TERRA, Aline de Miranda Valverde; BANDEIRA, Paula Greco. A cláusula resolutiva expressa e o
contrato incompleto como instrumentos de gestão de risco nos contratos. in: Revista Brasileira de Direito
Civil, vol. 6, out.-dez./2015. p. 10. Disponível em: < https://www.ibdcivil.org.br/rbdc.php>. Acesso em 14
jul. 2016 43 BANDEIRA, Paula. Contratos aleatórios no direito brasileiro. cit. p. 11. 44 TERRA, Aline de Miranda Valverde; BANDEIRA, Paula Greco. Op. cit. p. 14
Departamento de Direito
o exemplo da cláusula penal, que já fixa de antemão o valor a ser pago a título de
indenização, em caso de inadimplemento45.
Em contraposição à gestão positiva, as partes podem optar pela gestão negativa dos
riscos contratuais. Nessa modalidade, os contratantes deliberadamente optam por deixar
lacunas, sejam elas originárias ou supervenientes, no arranjo contratual, de modo a permitir
a distribuição dos efeitos econômicos da implementação do risco num momento posterior,
que se afigure mais apropriado46. O exemplo mais corrente na doutrina é do contrato
incompleto, cuja aproximação com o objeto deste estudo será explorada em momento
posterior.
A inserção de cláusula de renegociar no contrato consagra a opção dos convenentes
pela gestão negativa dos riscos contratuais. Pode-se afirmar isso pois as partes, ao regular
seus interesses no programa contratual, estabelecem que algumas premissas podem causar
o desequilíbrio do contrato a tal ponto que se torna necessário reabrir a fase de tratativas.
Reabertas as negociações, a distribuição dos prejuízos causados pelo acontecimento do
risco será realizada a posteriori. Ou seja, as partes só alocarão os distúrbios causados pelo
risco quando e se o risco se concretizar47.
A opção pela gestão negativa para os casos de desequilíbrio superveniente do
contrato, quando ainda há interesse das partes na manutenção do vínculo contratual,
afigura-se a mais apropriada. Muitas vezes não é conveniente, ou sequer possível, que as
partes aloquem a priori, ou – adotando a terminologia deste trabalho – positivamente, os
riscos econômicos do desequilíbrio, atribuindo-os a uma ou a outra parte. É necessário que
o evento se manifeste para que, a partir de suas consequências econômicas concretas, as
partes readaptem o contrato tendo em vista o atual panorama da relação.
5. Cláusula de renegociar e contrato incompleto: semelhanças e diferenças
Nesse ponto, aproxima-se muito a cláusula de renegociar ao contrato incompleto.
Este é entendido como o regulamento contratual em que as partes optam pela “não
alocação voluntária do risco econômico”48, estabelecendo o procedimento através do qual,
45 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. 3. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
pp. 141-142 46 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. p. 51 47 TERRA, Aline de Miranda Valverde; BANDEIRA, Paula Greco. Op. cit. p. 22 48 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. p. 142.
Departamento de Direito
em um momento posterior, uma das partes, ambas ou um terceiro estabelecerão a
repartição dos efeitos da álea normal àquele contrato49.
Contudo, ambas as figuras se afastam em alguns pontos. O primeiro deles é o fato de
que, conforme já dito, o contrato incompleto se ocupa necessariamente da gestão da álea
normal do contrato. Ou seja, não querendo sujeitar-se aos efeitos econômicos previsíveis,
porém ainda incertos, daquele contrato, as partes optam por alocá-los ex post, quando e se
o evento se verificar. Já a cláusula de renegociar, via de regra50, se preocupa com os efeitos
do que se convencionou chamar “álea extraordinária”: aqueles eventos imprevisíveis, ou os
eventos previsíveis, cujos efeitos são imprevisíveis ou que escapam do controle das partes,
que podem acarretar no total desequilíbrio econômico-jurídico do contrato. Visa, grosso
modo, a impedir que esse desequilíbrio leve à resolução de um contrato que ainda pode ser
útil ou cuja substituição seja muito difícil.
Outro ponto de substancial importância na diferenciação entre a cláusula de
renegociar e o contrato incompleto é o momento em que se verifica a lacunosidade do
arranjo. No contrato incompleto, a lacuna é genética, originária, tendo em vista que a
opção das partes foi por “decidir não decidir”51 como será a alocação dos efeitos da álea
normal. Já a cláusula de renegociar, ao contrário, está inserida num contrato perfeitamente
completo desde sua gênese. A lacunosidade que existe, portanto, é superveniente e
existente apenas caso se concretize algum dos pressupostos da renegociação, abrindo-se o
regulamento contratual à renegociação de um contrato originariamente, embora não
permanentemente completo52.
Nada obstante, perceba-se que ambas as diferenças mencionadas acima atinem a
aspectos estruturais das figuras comparadas. Ao fim e ao cabo, a função exercida pela
cláusula de renegociar é idêntica àquela exercida pelo contrato incompleto: a gestão
negativa dos riscos contratuais, corroborando a tese já explorada de que uma mesma
função pode se dar através de várias estruturas distintas. Partindo da premissa de que é a
49 Idem. p. 51. 50 Como já dito, mas que ora se repete por conveniência, o suporte fático da cláusula de renegociar é matéria relegada à autonomia privada. Nada impede, portanto, que se insira no suporte fático da cláusula de
renegociar a própria oscilação da álea normal, apesar de esta não afetar o equilíbrio econômico-jurídico do
contrato, cuja manutenção é a principal função da cláusula em estudo (CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit.
pp. 153-154). 51 BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit. p. 142. 52 Idem. p. 54.
Departamento de Direito
função exercida pelo instituto jurídico que define a disciplina legal a ele aplicável, pode-se
afirmar que a cláusula de renegociar é modalidade de contrato incompleto53.
6. O momento da renegociação
Além de abordar os aspectos estruturais e funcionais da cláusula de renegociar, cabe
levantar algumas considerações acerca de situações relevantes que surgem no decorrer do
procedimento de readaptação do contrato. Esta última parte do estudo da cláusula de
renegociar mostrará como a boa-fé objetiva tem um papel decisivo como standard de
comportamento das partes e, consequentemente, como “termômetro” do inadimplemento.
Em momento posterior, aprofundar-se-á o estudo do inadimplemento da obrigação de
renegociar e suas consequências, em especial, a possibilidade de intervenção de terceiros,
seja o juiz estatal ou o árbitro, no procedimento de renegociação. Apesar dessas três
situações estarem intrinsicamente ligadas, sua análise será dividida para fins didáticos e de
melhor compreensão.
6.1 Incidência da boa-fé in executivis
Após mais de uma década de vigência do Código Civil, já está mais do que
assentado, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, que a boa-fé objetiva, prevista no
art. 422 da mencionada lei54, atua em todas as fases contratuais, ou seja, desde a fase pré-
contratual de negociações, passando pela conclusão e pela execução, produzindo efeitos
mesmo depois de finda a relação contratual, seja pelo adimplemento, seja pela resolução,
seja pela declaração de invalidade do contrato55. Oriunda do direito germânico e positivada
no Treu und Glauben do §242 do BGB, a boa-fé objetiva “impõe às partes o dever de
colaborarem mutuamente para a consecução dos fins perseguidos com a celebração do
contrato”56.
A doutrina costuma dividir sua atuação em três funções: função interpretativa,
função vedatória; e função integrativa ou criadora. A função interpretativa não suscita
53 A conclusão que aqui se chega em relação à cláusula de renegociar já havia sido atingida pela doutrina em
relação às cláusulas de hardship, tratadas no item 2.1, supra (BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. cit.
p. 79). 54 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,
os princípios de probidade e boa-fé. 55 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Op. cit. p. 632. 56 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa do Consumidor e
no novo Código Civil. in: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Obrigações: Estudos na Perspectiva Civil-
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 32
Departamento de Direito
grandes discussões, haja vista que decorre expressamente do art. 11357 do Código Civil,
que manda que os negócios jurídicos sejam interpretados à luz da boa-fé objetiva e dos
usos do lugar onde foi celebrado. Das três funções supracitadas, esta é a que afeta da
maneira menos direta o concreto regulamento de interesses.
A função vedatória foi incorporada no art. 187 do Código Civil58 e, como o próprio
nome sugere, cuida de impedir que os contratantes exerçam seus direitos, ainda que lícitos,
de maneira abusiva. Ou seja: “ela reduz a margem de discricionariedade da actuação
privada, em função de objectivos externos”59. A expressão “objetivos externos” a que se
alude nada mais é do que, justamente, a legítima expectativa que o outro contratante nutre,
em decorrência daquele contrato e do interesse que ele visa a concretizar a partir daquele
acordo de vontades60.
Por fim, a terceira função exercida pela boa-fé é a função integrativa ou criadora de
deveres laterais. Esta é a função que atua de forma mais pungente sobre o concreto
regulamento de interesses, tendo em vista que, de maneira heterônoma, por exigências do
sistema, impõe-se às partes deveres acessórios de conduta que deverão ser observados em
todas as fases contratuais61. Serão deveres de informação, cuidado, lealdade e mais um
sem-número de outros a serem verificados no caso concreto, a partir do próprio contrato e
das exigências que se põem a que este traga a máxima satisfação aos envolvidos62. É por
isso que se afirma que a disciplina encontrada no contrato é apenas preliminar, pois não se
esgotam ali os deveres e os direitos atribuídos a cada um dos contratantes63 – é preciso
levar em consideração, ainda, aqueles criados pela boa-fé objetiva.
No momento da renegociação, em que se está executando a obrigação de renegociar,
a boa-fé atua através das três funções que, de maneira interligada, norteiam o
comportamento das partes nas tratativas. Note-se, aqui, que, dado o caráter de
relacionalidade que existe nesse momento, a boa-fé incide de maneira bem mais forte64.
Através da função interpretativa, permite depreender os parâmetros e objetivos da
renegociação. Pela função vedatória, impede que as partes ajam, ainda que dentro dos
57 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração. 58 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 59 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Op. cit. p. 649. 60 SPADAFORA, Antonio. La regola contrattuale tra autonomia privata e canone di buona fede: prospettive
di diritto europeo dei contratti e di diritto interno. Torino: G. Giappichelli, 2007. p 239 61 MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Op. cit. p. 607. 62 SPADAFORA, Antonio. Op. cit. p. 238 63 Idem. p. 238 64MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado... cit. p. 370.
Departamento de Direito
parâmetros, de maneira a frustrar as negociações. Por fim, a função integrativa informa
como as partes devem se comportar na renegociação, isto é, cumprindo com as obrigações
de cuidado, lealdade e informação para com seus contratantes.
Por isso, a boa-fé in executivis exige que as partes formulem “proposições de forma
séria e correta”, em vista do equilíbrio originário do contrato e de suas atuais
circunstâncias econômicas 65 . O comportamento discricionário e abusivo das partes na
renegociação não encontra guarida no ordenamento jurídico, como também não encontra
na fase pré-negocial, tendo em vista que a boa-fé in executivis serve precisamente para
endireitar seu comportamento66. O comportamento contrário à boa-fé objetiva, portanto,
poderá ser sancionável como ilícito contratual67, nos limites que se passa a analisar.
6.2 Consequências do insucesso renegociativo
É através do procedimento estabelecido no contrato, lido à luz da boa-fé objetiva,
bem como dos demais deveres e limitações impostos pela mesma, que devem ser
analisadas as consequências do insucesso renegociativo. Ou seja, será a partir da disciplina
estabelecida pela cláusula de renegociar, bem como da atuação da tríplice função da boa-fé
in executivis, que verificar-se-á se o insucesso renegociativo é imputável a uma das partes,
gerando para esta a responsabilidade pelo inadimplemento da obrigação de renegociar68.
Em primeiro lugar, é importante destacar a natureza jurídica da obrigação de
renegociar. Para tanto, é de extremo relevo traçar a diferença entre as obrigações de meio e
de resultado. As primeiras são obrigações que exigem, como objeto da prestação, apenas
que o devedor empregue seus melhores esforços e diligência na consecução do resultado,
que é a utilidade econômico-social da prestação ao credor; este, no entanto, não integra o
objeto do vínculo obrigacional. As segundas, ao contrário, exigem que devedor atinja o
resultado para que fique caracterizado o perfeito adimplemento69.
Desse modo, percebe-se que a obrigação de renegociar insere-se melhor na categoria
de obrigação de meio do que na de resultado, tendo em vista que às partes é exigido apenas
que envidem seus melhores esforços na consecução de uma renegociação que atenda aos
seus legítimos interesses, não sendo obrigatório, contudo, que esta seja frutífera – “o mero
65 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship... cit. p. 26. 66 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p 53 67 Idem. p. 57 68 Idem. p. 243 69 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense,
1978. p. 525-530
Departamento de Direito
insucesso das renegociações não desencadeia qualquer responsabilidade”70. Ou seja, caso
as partes empreguem toda sua diligência e boa vontade na renegociação e, mesmo assim,
não cheguem a um acordo, não haverá inadimplemento. Essa conclusão é de vital
importância na verificação da imputabilidade de responsabilidade para algum dos
contratantes.
Portanto, para que fique caracterizado o inadimplemento de qualquer das partes, é
necessário que fique provado que esta violou o procedimento estabelecido contratualmente
para a renegociação, ou, ainda que agindo de acordo com este, violou a boa-fé que se
espera das partes na execução do contrato71. Exemplificando: a parte que se recusa a dar
início às tratativas; ou que, mesmo dando início, não oferece proposições sérias; ou
apresenta recusas injustificadas. Todos são casos de inadimplemento imputável a uma das
partes, que, caso seja grave ao ponto de render todo o contrato inútil72 à outra parte,
permitirá que esta busque no Judiciário o remédio resolutório 73 , que poderá ser
acompanhado, ainda, da tutela ressarcitória.
6.3 Possibilidade de intervenção jurisdicional
Por fim, indaga-se acerca da possibilidade de, frustradas as renegociações, um juiz
ou árbitro intervir diretamente no conteúdo contratual, substituindo-se às partes e à sua
declaração de vontade, em lugar da tutela resolutória. Tal possibilidade não parece ser
negada no caso das já mencionadas cláusulas escalonadas (multi-tiered dispute resolution
systems), tendo em vista que é de sua própria estrutura submeter a disputa a um terceiro, na
maior parte das vezes por meio de arbitragem, como o próximo passo necessário em caso
de insucesso da renegociação, seja ele imputável ou não a um dos contratantes.
Porém antes de adentrar no tema da possibilidade de intervenção judicial no contrato,
há que se fazer uma ressalva quanto ao princípio da conservação do negócio jurídico.
Como o nome sugere, é o princípio que ordena seja priorizada, sempre, a preservação dos
negócios jurídicos, em detrimento de sua extinção, de modo a valorizar a autonomia
privada das partes. Sustenta a doutrina que “dar-se prioridade à sua preservação, em
70 MONTEIRO, António Pinto; GOMES, Júlio. Op. cit. p. 24 71 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p 242 72 O conceito de utilidade da prestação envolve justamente a capacidade daquele bem de satisfazer os interesses concretamente buscados pelo credor, ou seja, de suprir a necessidade que o levou a ingressar
naquela relação obrigacional. Sobre o tema, cf. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos
por incumprimento do devedor (resolução). Rio de Janeiro: AIDE, 1991. pp. 130-144. 73 Poderá a parte, ainda, incluir o descumprimento culposo da obrigação de renegociar no suporte fático da
cláusula resolutiva expressa, prescindindo, assim, do socorro judiciário para que o vínculo contratual se
extinga. Sobre o tema, cf. TERRA, Aline de Miranda Valverde. Op. cit. p. 89
Departamento de Direito
algumas situações – o que pressupõe uma análise casuística –, representa potencializar a
sua autonomia”74. Como o princípio do equilíbrio, este não foi positivado no Código Civil,
mas sua existência é inferida de dispositivos como os art. 157, parágrafo único (que trata
da lesão), art. 170 (acerca da conversão do negócio nulo), art. 317 (atinente às oscilações
de valor nas obrigações pecuniárias) e arts. 479 e 480 (que tratam da revisão judicial),
encontrados no diploma civil – todos priorizando, de um modo ou de outro, a manutenção
do vínculo contratual em oposição à sua extinção.
É nesse contexto que se deve explorar a possibilidade da ingerência judicial sobre o
pacto que prevê a renegociação. Em primeiro lugar, parece altamente insatisfatório, sem
mencionar contrário à vontade das partes, que, prevendo a renegociação para os casos de
desequilíbrio, o insucesso renegociativo leve diretamente à resolução do vínculo
contratual. Ora, parece evidente que, ao pactuar a cláusula de renegociação, os contratantes
deixam bem clara sua vontade de conservar, e não extinguir, o liame contratual diante de
situações supervenientes75.
Seria possível, então, consentir que o juiz ou o árbitro, em face do princípio da
conservação dos negócios jurídicos e da manifesta vontade das partes de manutenção do
vínculo contratual, atuem diretamente sobre o conteúdo do contrato desequilibrado,
quando as próprias partes não o conseguem fazer? A resposta parece ser afirmativa, em
algumas situações.
Deve-se, de logo, afastar a hipótese de alteração arbitrária no conteúdo contratual. É
dizer: a atuação jurisdicional sobre o contrato só é legítima quando houver a previsão
contratual dos parâmetros e procedimentos que devem orientar a renegociação76. Desse
modo, a atuação do terceiro na adaptação do contrato não estará vilipendiando a autonomia
privada das partes, mas sim consagrando-a, pelo respeito àquilo que foi livremente
pactuado, cessando a insatisfação que, conforme já dito, poderia advir da resolução do
vínculo77. Não o havendo, não poderá o terceiro agir como se parte naquele contrato fosse,
a partir de seu próprio arbítrio, pois aí sim se estaria forçando uma parte a se submeter a
regulamento com o qual não concordou78.
74 NITSCHKE, Guilherme. Revisão, resolução, reindexação, renegociação: o juiz e o desequilíbrio superveniente de contratos de duração. in: Revista Trimestral de Direito Civil, ano 13, vol. 50, abr.-
jun./2012. p. 141 75 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 244 76 MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship... cit. p. 28-29 77 CESÀRO, Vincenzo Maria. Op. cit. p. 244 78 SCHREIBER, Anderson. Op cit. p. 145
Departamento de Direito
Conclusão
Ao fim das considerações que foram feitas a partir da análise estrutural e funcional
da cláusula de renegociar, é possível traçar breves conclusões acerca dos principais temas
que a revolvem. A referida cláusula, surgida no âmbito dos contratos chamados
“relacionais” e tendo especial relevo na esfera dos contratos internacionais, costuma
estabelecer, em sua estrutura, basicamente dois momentos de crucial importância: os
pressupostos que dão azo à renegociação e o procedimento que deve ser seguido pelas
partes.
A partir dessa estrutura, a cláusula de renegociar consegue exercer suas duas
principais funções: a manutenção do equilíbrio contratual danificado e a gestão dos riscos
oriundos da álea extraordinária do contrato. Em relação à essa segunda função, pode-se
dizer que a cláusula de renegociar é exemplo de mecanismo de gestão negativa dos riscos
contratuais, tendo em vista que as partes não alocam ex ante os efeitos da superveniência,
mas preferem deixar para fazê-lo a posteriori, quando e se o risco se implementar. Nesse
ponto, a cláusula de renegociar se aproxima do contrato incompleto, regulamento
permeado por lacunas intencionais, a serem preenchidas em momento posterior, com a
implementação dos eventos abarcados pela álea normal do contrato. É possível chegar a
dizer, portanto, que a cláusula de renegociar é modalidade de contrato incompleto, já que
ambos tem, como função, a gestão negativa dos riscos.
Iniciada a renegociação, as partes estão adstritas a se comportarem, como nas demais
fases contratuais, à luz da boa-fé objetiva, que atua com especial força nesse momento,
devido à cooperação que é necessária para o sucesso na renegociação. Porém, o insucesso
renegociativo, per se, não gera a responsabilidade para uma ou ambas as partes, haja vista
que a obrigação de renegociar é uma obrigação de meio, não exigindo, portanto, mais do
que os melhores esforços das partes para seu perfeito adimplemento. No entanto, violado o
procedimento renegociativo ou o comportamento exigido pela boa-fé objetiva, está a parte
inadimplente, podendo o vínculo contratual ser resolvido, com a devida indenização por
perdas e danos, ou então sofrer a alteração por parte de um juiz ou árbitro, desde que os
parâmetros que devem ser seguidos na renegociação estejam contratualmente
estabelecidos.
Enfim, por tudo que até agora foi dito, pode-se afirmar que a cláusula de renegociar é
mecanismo eficiente na gestão dos riscos contratuais, pois permite que as partes, por meio
de sua própria autonomia privada, administrem e distribuam as consequências econômicas
Departamento de Direito
oriundas de certos eventos que podem desequilibrar a economia estabelecida na conclusão
do contrato. Por meio da gestão negativa, os contratantes permitem que o arranjo
contratual seja reaberto, em momento posterior, a fim de que o desequilíbrio possa ser
combatido e o contrato seja preservado, enquanto instrumento legítimo e capaz de
promover os interesses daqueles que se encontram a ele vinculados.
Referências
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do
devedor (resolução). Rio de Janeiro: AIDE, 1991.
BANDEIRA, Paula. Contrato incompleto. São Paulo: Atlas, 2015.
________________. Contratos aleatórios no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar,
2010.
BENEDETTI, Giuseppe. L’equilibrio normativo nella disciplina del contratto dei
consumatori. in: FERRONI, Lanfranco (coord). Equilibrio delle posizioni contrattuali ed
autonomia privata. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002. pp. 39-46
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de
Janeiro: Forense, 1978.
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. O contrato como regulador e como
produtor de riscos. in: Prima Facie – Direito, História e Política, v. 12, n. 22, 2013.
Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/primafacie/article/view/4507>.
Acesso em: 14 jul. 2016.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação.
São Paulo: Marcial Pons, 2015.
______________________. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos
contratos de longa duração. in Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 7, n. 25. São
Paulo: Revista dos Tribunais, abr.-jun./2010.
MENEZES CORDEIRO, António Manuel. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra:
Almedina, 1984.
MONTEIRO, António Pinto; GOMES, Júlio. A ‘hardship clause’ e o problema da
alteração das circunstâncias. in: VAZ, Manuel Afonso; LOPES, J. A. Azeredo (coord.).
Juris et de jure: nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica
Portuguesa – Porto. Coimbra: Coimbra Editora, 1998.
NICOLÒ, Rosario. Alea. in: Enciclpedia del diritto, vol. 1. Milão: Giuffré, 1958.
Departamento de Direito
NITSCHKE, Guilherme. Revisão, resolução, reindexação, renegociação: o juiz e o
desequilíbrio superveniente de contratos de duração. in: Revista Trimestral de Direito
Civil, ano 13, vol. 50, abr.-jun./2012.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. 3. 27. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2015.
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. trad. Maria Cristina
de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
PINTO, José Emílio Nunes. O mecanismo multietapas de solução de controvérsias.
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4510>. Acesso
em: 06 jul. 2016.
SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos; MENDES, Heitor Mendes. Função, funcionalização
e função social. in: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (coord.). Direito
Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.
SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013.
SPADAFORA, Antonio. La regola contrattuale tra autonomia privata e canone di buona
fede: prospettive di diritto europeo dei contratti e di diritto interno. Torino: G.
Giappichelli, 2007.
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A Boa-fé Objetiva no Código de Defesa
do Consumidor e no novo Código Civil. in: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Obrigações:
Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa: regime jurídico e
parâmetros funcionais para a sua fixação. 2015. Tese (Doutorado em Direito Civil) –
Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
TERRA, Aline de Miranda Valverde; BANDEIRA, Paula Greco. A cláusula resolutiva
expressa e o contrato incompleto como instrumentos de gestão de risco nos contratos. in:
Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 6, out.-dez./2015. p. 10. Disponível em: < https://www.ibdcivil.org.br/rbdc.php>. Acesso em 14 jul. 2016.