Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”
ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013
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GT 10. Teoria política marxista
A “cena política”: teoria e operacionalização do conceito
Edilson Montrose de Aguiar Júnior
Resumo: No presente artigo é exposto o conceito de cena política, trabalhado teoricamente pelo cientista político marxista Nicos Poulantzas a partir da leitura que o autor efetuou das obras históricas de Marx, em especial o 18 Brumário. Num segundo momento, fazemos um balanço de como o conceito cena política é trabalhado teoricamente por dois pesquisadores brasileiros – Armando Boito Jr. e Adriano Codato – em que são diferenciadas as ênfases de cada um acerca de um par de elementos – ocultação X manifestação – presentes no conceito. Num terceiro momento, expõe-se como o conceito foi empiricamente operacionalizado por outros pesquisadores – Décio Saes e Lúcio Flávio de Almeida – em relação a conjunturas da formação social brasileira. A partir desse sucinto estado das artes acerca do conceito cena política é então apresentada uma proposta da pertinência da utilização do conceito para uma pesquisa em curso que pretende se debruçar sobre a conjuntura do governo Lula. Palavras-chave: cena política; Poulantzas.
1. Introdução
A expressão de cena política, presente já em Marx em uma das suas obras da
maturidade - 18 Brumário de Luís Bonaparte -, é tratada de modo mais elaborado por Nicos
Poulantzas, cientista político marxista greco-francês na obra “Poder Político e Classes
Sociais” (Poulantzas, 1977). Neste livro, Poulantzas delimita o que seria a cena política e a
relaciona a outros conceitos, como bloco no poder, forma de Estado, frações de classe.
Primeiramente, faremos uma exposição de como isso se dá na teoria de Poulantzas para, a
seguir, expor como o conceito de cena política foi trabalhado teoricamente por cientistas
políticos marxistas brasileiros – Armando Boito Jr. e Adriano Codato – que têem enfoques
distintos acerca do assunto. Numa terceira seção mostraremos exemplos de operacionalização
da expressão cena política em análises concretas da formação social brasileira e teceremos
Mestrando em ciências sociais (ciência política) pela PUC-SP, membro Neils (Núcleo de estudos de Ideologias
e Lutas Sociais) Email: [email protected].
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comentários acerca da pertinência de se utilizar tal noção de cena política para uma pesquisa
em curso que estamos empreendendo ainda em fase inicial.
2. A Cena Política em Poulantzas
O conceito de cena política foi elaborado pelo cientista político marxista Nicos
Poulantzas a partir de sua compreensão acerca de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, uma
das obras históricas do Marx maduro. De acordo com Poulantzas, para se compreender a cena
política há que primeiramente entender o que é o bloco no poder. Este é uma unidade
contraditória de classes e frações politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica
que tem o Estado como organizador de tal unidade política (POULANTZAS, 1977). O bloco
no poder seria o campo das práticas políticas das classes dominantes e é congruente a
determinadas estruturas que se referem à forma de Estado. Assim sendo, alterações
importantes na hegemonia do bloco no poder acarretariam transformações na forma de
Estado. O bloco no poder é também a periodização em estágios da fase alargada de
reprodução de um determinado modo de produção dominante em certas formações sociais.
Em relação à instância/nível especificamente político haveria uma periodização
singular e que se relaciona com as estruturas propriamente políticas. Uma ilustração dessa
definição, segundo Poulantzas é quando Marx no 18 Brumário discorre acerca dos eventos
que se deram no período de 1848 a 1852. Em todo o período há alterações no bloco no
poder/forma de Estado. Por sua vez, o que ocorre especificamente no período de 29 de maio
de 1849 a 2 de dezembro de 1851, período da República Constitucional/Assembleia Nacional
Legislativa, é uma periodização de outro campo. Segundo Poulantzas os eventos que se dão
nesse último período não se referem a transformações de grande vulto entre o político e
econômico, mas sim, ao jogo da representação partidária após a instituição do sufrágio em
estruturas políticas cobertas pelo conceito forma de regime. A cena política seria então o
espaço onde se dão as lutas das forças sociais organizadas em partidos políticos. As metáforas
que aludem ao teatro são para dizerem que os partidos representam classes e/ou frações de
classes. Uma classe social distinta ou fração autônoma necessariamente tem que ter efeitos
pertinentes no nível político, contudo, há que se distinguir entre tais efeitos nas práticas
políticas – que é o determinante – dos efeitos de presença na cena política, presença específica
da organização de uma classe e/ou fração em partido político e que passa a ter uma ação
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declarada ou aberta. Pode-se ter efeitos pertinentes no nível político sem estar presente na
cena política. Esta se constitui assim segundo Poulantzas no lugar da representação partidária
das classes organizadas em partidos políticos e que pode ter uma série de defasagens em
relação aos interesses e práticas políticas das classes representadas. Para esclarecer o porquê e
como se detectar tais defasagens, há que se recorrer ao conceito de bloco no poder
anteriormente citado.
O encadeamento argumentativo de Poulantzas é o de que a configuração do bloco no
poder (periodização específica em estágios e prática política) está conjugada com a forma de
Estado (estrutura política). A forma de Estado determina a forma de regime. Por sua vez, a
forma de regime (periodização específica da estrutura política) é congruente com a
configuração concreta das classes em partidos políticos. O bloco no poder e a forma de Estado
que lhe organiza fixa os limites da luta entre os aparatos organizados (partidos políticos) das
classes sociais. Sendo assim para se decifrar o significado real do embate entre os partidos
políticos, há que se analisar a composição das relações estabelecidas no bloco no poder, pois,
do contrário pode-se tomar o que uma organização diz ao invés de atentar para o que ela
realmente faz.
Um exemplo corrente segundo Poulantzas é o de classes e/ou frações ausentes na cena
política, mas que, contudo, permanecem no bloco no poder inclusive podendo ser a classe
e/ou fração hegemônica. As classes que estiverem na cena política seriam classes reinantes,
contudo não o seriam as classes politicamente dominantes ou hegemônicas, estas de fato, as
detentoras do poder político em última instância. Desse modo, é bem possível que classes
reinantes representem consciente ou inconscientemente os interesses das classes politicamente
dominantes/hegemônicas. Poulantzas ainda elenca mais um caracterização que dê conta das
classes e/ou frações que se encontram presentes na burocracia do aparelho de Estado, tais
seriam as classes detentoras, que assim como as reinantes, podem aparentar ter o poder,
contudo não o tem. O exemplo histórico evocado é o da Inglaterra vitoriana, período em que a
aristocracia é a detentora dos cargos da burocracia/aparelho de Estado, mas o poder político
propriamente dito já pertence à burguesia. Há a possibilidade pela própria estrutura do tipo de
Estado capitalista e sua autonomia relativa, de que haja uma total incongruência entre as
classes e/ou frações: politicamente/hegemônica dominantes, reinante, detentora. Ao fim e ao
cabo, as duas últimas classes e/ou frações atuam em prol da primeira.
A sofisticação teórica de Poulantzas em relação a tais conceitos é o de que permite ao
cientista político analisar as situações concretas das conjunturas políticas das formações
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sociais. A análise estrutural de Poulantzas se sai melhor do que outras, como por exemplo o
instrumentalista que é morfológica e foca na origem social dos ocupantes da cena política e da
burocracia de Estado. O analista que se guia por tal abordagem pode avaliar a chegada ao
governo por parte de partidos socialistas como se, de fato, o poder político estivesse
conquistado. Pode escapar a tal análise o fato de que os partidos políticos das classes
dominadas mesmo sendo dominantes na cena política e na burocracia de Estado, estejam a
serviço das classes dominantes, já que o tipo de Estado não se alterou. Semelhante deslize de
análise se dá nas correntes dominantes da ciência política, o institucionalismo, por exemplo,
ao desprezar a análise das classes sociais, toma os partidos políticos presentes na cena política
como organizações auto-representativas e conscientes de seus lemas ou então, descreve como
se dão os procedimentos dos locais específicos da cena política – regimentos e normas
parlamentares – sem, contudo, se perguntar a quem na sociedade beneficiam tais arranjos
institucionais.
3. Cena política em Boito Jr. e Codato
3.1 Boito Jr.: Cena política como dissimulação de interesses classistas
Em artigo intitulado Cena política e interesses de classe na sociedade capitalista: a
análise de Marx (BOITO JR., 2007a), Armando Boito Jr. expõe o que seria seu entendimento
acerca da noção de cena política presente no 18 Brumário. Para o autor, a cena política tem
como característica principal a dissimulação de interesses classistas. De modo subordinado
ela tem a função de representar e articular os interesses de classe.
Segundo Boito Jr., uma operação teórica presente no marxismo, mas não exclusivo
deste, é a que distingue na existência social uma realidade aparente/superficial e outra,
profunda/substancial. Convém ao analista revelar o que de oculto e real há sob as vestes do
aparente. Na análise política convém distinguir o que se proclama como princípios e valores
dos reais interesses que embasam estes, ou seja, distinguir o que partidos e correntes de
opinião proclamam dos interesses classistas que de fato representam. Contudo, desde a década
de 70 tal análise caiu em desuso na ciência política. Com o intuito de retomar tal operacional
analítico, o autor remonta ao 18 Brumário, texto no qual Marx trata a cena política como
sendo o local onde partidos e organizações políticas têem embate. Para Boito Jr. a cena
política seria a superestrutura (realidade superficial) que tem como base/infraestrutura as
classes e suas frações (realidade profunda). Os interesses de tais classes/frações é o que
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compete ao cientista político desvelar, pois não são manifestos, haja vista que as formações
sociais capitalistas se apresentam como sociedades anônimas, fruto do direito burguês –
universal e igualitário – e do burocratismo – que premia via meritocracia, não interditando
classe alguma – o que contrasta com formações sociais onde vigoram modos de produção pré-
capitalistas onde não há a aparência universalista do Estado. Sendo assim, ao analista político
marxista compete investigar os laços que unem os partidos políticos – que se dizem
representar a todos - às classes e ou frações que de fato representam. Centrar a análise
somente no que se fala, não atentando para suas práticas, é tomar os nomes e objetivos que os
partidos se dão como se de fato fossem o que representam. Portanto, quando organizações se
apresentam como correntes de opinião – esquerda x direita, desenvolvimentistas x neoliberais
– representam, na realidade, classes e frações distintas, ou seja, têem enraizamento social.
Segundo a distinção apontada então por Boito Jr., há que se operar analiticamente em
dois planos: objetivo, correlacionando programas e práticas dos partidos com interesses
classistas; subjetivo, na identificação de classes/frações com partidos. A resultante é que a
cena política de formações sociais capitalistas “deve ser pensada por referência a algo que se
encontra fora dela” (BOITO, 2007a, p.143). Um dos exemplos mais ilustrativos que o autor
elenca do 18 Brumário é o do embate entre as duas dinastias monarquistas: legimitistas e
orleanistas. Mais do que casas dinásticas distintas, o que de fato as diferencia são as bases
sociais sobre as quais se apoiam: os legitimistas são os representantes dos grandes
proprietários de terra; os orleanistas, do grande capital/burguesia (comercial, industrial e
financeira). Ou seja, mais do que princípios de legitimidade a quem deveria ocupar o trono
francês, os litígios de ambas se davam sobre suas distintas condições materiais de existência.
Também segundo Boito Jr., a cena política teria outra função, mas subordinada, a
saber: representação e articulação de interesses classistas. Para Boito Jr., superestrutura da
cena política e sua aparência têem sua realidade no fato de que os nomes dos partidos e
entidades políticas unificam e/ou organizam classes e/ou frações. Contudo, tais entidades
políticas estão sempre subordinadas aos interesses reais. Tanto assim que recorda Boito Jr.,
acerca da crise institucional que se abate sobre a república francesa, quando os representantes
tomam medidas que os representados julgam contrárias aos seus interesses, estes abandonam
aqueles e clamam pela solução ditatorial em nome da salvaguarda do capital.
Por fim, caberia ressaltar a diferenciação teórica do marxismo para outras análises
presentes na ciência política quando se analisa a cena política. Sendo assim, o liberalismo
analisaria a cena política como sendo composta de partidos que são o que dizem ser e que se
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apresentam a indivíduos racionais que escolhem segundos seus valores e princípios. Para o
elitismo, a cena política é opaca, os indivíduos não têem suficiente capacidade cognitiva para
escolher entre partidos que não são nada mais do que representantes de si próprios, minorias
politicamente organizadas as quais são denominadas elites ou classes políticas. O marxismo
diferiria de ambos: converge com o elitismo com o diagnóstico de que a cena política é opaca
– e nisso é crítico ao liberalismo, contudo, diverge do elitismo porque, ao contrário deste, não
vê os partidos e políticos profissionais como representantes do próprio interesse, mas
vinculados a classes ou frações de classes enraizadas socialmente, notadamente no ciclo de
produção do capital. Eis o que se encontra presente na análise de Boito Jr.
3.2 Codato: espaço político ao invés de cena política
O cientista político Adriano Codato no artigo intitulado O Espaço político segundo
Marx tem como objetivo dar uma visão alternativa a que historicamente o marxismo
estrutural inspirado em Poulantzas, vê a política institucional. Ao invés da ênfase no
ocultamento dos interesses de classe, Codato propõe realçar a manifestação de tais interesses.
Para isso propõe a substituição da expressão cena política por outra, espaço político.
Primeiramente Codato esposa duas teses que se harmonizam com o que historicamente foi
atribuído ao conceito cena política: há pertinência para o uso da mesma se lembrarmos que
Marx tinha como adversários destinatários a combater, analistas políticos liberais e não
liberais, pois tanto uns como outros não atentavam para os interesses classistas e os embates
daí decorrentes. Numa segunda afirmação, Codato reconhece o caráter de ocultamento
propiciado pela política institucional e a pertinência da noção de cena política tal como se
apresenta nos escritos históricos de Marx. Como estão presentes nas outras análises
“poulantzianas”, somos sucintos em relação a elas, centrando a análise nas outras duas teses, a
saber: a terceira tese - cena política como metáfora problemática, que focaliza os limites das
análises que se utilizam da cena política; a quarta tese, que propõe a ideia de forma-política e
espaço político, e que tem o intento de substituir a expressão cena política para se referir ao
que transcorre na política institucional.
Segundo Codato, Marx ao se referir a episódios da conjuntura francesa ou a
assemelhados em outras formações sociais, tem como intento apreender não somente o que
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está “atrás do palco”, por assim dizer, como se o que se apresenta no palco fosse algo sem
importância. Pelo contrário, o que se apresenta é mais expressivo do que aquilo que está
oculto. Tal situação ocorre em períodos em a que essência vem à tona, ou seja, quando os
interesses classistas se revelam claramente, como foi o caso da ditadura parlamentar do
partido da ordem, em que as frações de classe – latifúndio e capital – governaram
conjuntamente sob nomes republicanos. Sendo assim, as lógicas próprias do político e de suas
instituições revelam os conteúdos classistas. Desse modo, o entendimento da cena política
como local de mascaramento, ocultação de interesses, é um termo inexato. Em apoio a tal
ideia, Codato lança mão da tese de que assim como a forma-mercadoria é importante, produz
efeitos pertinentes no ciclo do capital, também é o espaço político que pode funcionar como
mediação entre o econômico e o político. Tal argumento parece evocar um diálogo com
outros autores (BOITO, 2007a; SAES, 1998) que também se utilizam do fetiche da
mercadoria para pensar o par essência/aparência na cena política. Contudo, avaliamos que há
duas ênfases no raciocínio de Codato: a de que no espaço político, os partidos respondem a
uma lógica própria das instituições políticas e a forma-política tem a função de produzir
efeitos pertinentes não apenas de mascaramento, mas sim de ativação de comportamentos
políticos.
3.3 Conclusões parciais acerca do conceito cena política
O que se depreende das análises de Boito Jr. e Codato, é, a princípio, uma homologia
no que se refere à caracterização da cena política como um lugar de ocultação de interesses
não confessados. Em que pese Boito Jr. (2007a, p.145) admitir que também se exerça na cena
política a representação e coesão de interesses, dá-se mais ênfase sobre a função de ocultação
da cena política. Por sua vez, Codato, enfatiza o oposto: desvelamento dos interesses
classistas na cena política (2011, p.146) e evoca em seu favor a forma-política que teria os
mesmos atributos da forma-mercadoria, quais sejam: não uma oposição simples entre falso e
verdadeiro, mas sim, uma parte deste último. Tal semelhante analogia entre fetichismo da
mercadoria e cena política também o fez Boito Jr. (2007a, p.138), contudo acentuando que
mais do que uma alusão, se tem uma ilusão, algo fundamental na sociedade de aparências que
são as formações sociais onde predomina o modo de produção capitalista.
Outra conclusão de Codato (2011, p.158) é que “uma vez que os interesses sociais
assumem uma forma-política no espaço político, eles passam a existir conforme os princípios
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e a lógica desse espaço.” Tal afirmação para ser melhor compreendida há que ser relacionada
a outras análises nas quais Codato faz a defesa do uso do conceito de elite para se referir a
classes politicamente organizadas. Mesmo reconhecendo que a “junção de conceitos tão
heterogêneos quanto possível de classe social e elite política” (CODATO; PERISSINOTTO,
2011, p.254) traz muitos problemas fruto de “incontáveis diferenças em suas problemáticas
originais” (2011, p.255), Codato avalia que o conceito de elite tem capacidade explicativa de
dizer como se dá a atuação de classes sociais nas específicas instituições políticas. Avaliamos
que o uso da noção de elite por parte de Codato, em que pese a sofisticação e refinamento que
o autor demonstra nas análises, deixa lacunas interpretativas próprias da teoria das elites: a
ausência de uma teoria do Estado lembrada por vários marxistas “poulantzianos” (SAES,
1994; MARTUSCELLI, 2007) e a função que o mesmo Estado tem na organização do bloco
no poder das classes dominantes. O nosso entendimento é de que a teoria das elites descura da
função organizadora que tem o Estado junto às frações das classes dominantes num nível
político mais geral, compensando a fraqueza organizativa dos partidos políticos de tais
frações na cena política, algo já tematizado por Poulantzas (1977, p. 296), em que o Estado é
o fator de unidade política do bloco no poder. Também nos parece prescindível utilizar o
conceito de elites para se referir a classes sociais politicamente organizadas quando existem
conceitualmente e em concreto, os partidos políticos como expressões de classes organizadas.
Sendo assim, as frações dominantes são organizadas no nível político mais geral pelo Estado
e, na cena política caso inexistam partidos para sua representação, esta se fará por partidos de
outras classes, constituindo-se estas em classes reinantes (POULANTZAS, 1977, p. 244).
Poderá se objetar que partindo de tais pressupostos a política de Estado será sempre pró-
burguesia, “engessando” e antecipando as conclusões em detrimento da investigação. Talvez,
mas há que se perguntar se é razoável supor que alguma política de Estado possa alterar o tipo
de Estado capitalista? Temos a impressão que não. Além do mais, mesmo tendo o
pressuposto de que o Estado continuará a ser do tipo capitalista, compete ao analista político
identificar quais frações burguesas são beneficiadas pela política de Estado, qual o efeito das
lutas de classes – dominantes x dominadas – têm sobre a cena política, entre questões outras.
Por fim, uma última ressalva a se fazer na concepção de cena política esposada por
Codato é que convém lembrar-se dos efeitos ideológicos que adquire a cena política nas
formações sociais onde o tipo de Estado capitalista vigora com forma democrática. Nesta, os
representantes políticos tenderão quase sempre a se mostrarem como representantes do povo-
nação cujo efeito é o de unificar agentes de produção num coletivo despolitizado sem
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antagonismos de classe (SAES, 1994, p.32) e, ademais, o modo de funcionamento da
representação nas instituições políticas burguesas se pauta pela noção de mandato fiduciário,
portanto, que não é vinculante, nem imperativo (BOBBIO, 2009, p.58-59). Os representantes
eleitos por um grupo de indivíduos (digamos uma fração de classe) passam a representar a
todos mesmo que não tenham votado nestes – já que são representantes dos cidadãos do povo-
nação e não de uma classe -, o que reforça ainda mais a noção ideológica da cena política,
algo que e nosso ver não é suficientemente explorado por Codato. O que depreendemos da
argumentação do autor é que, ao destacar a importância da lógica institucional (2011, p.158) e
trazer para o interior da teoria a noção de elites, suas análises seguem um fio condutor que a
nosso ver, tendem a descurar do papel social e estatuto teórico das classes sociais e do Estado.
Isso aproxima a análise de correntes outras da ciência política como, por exemplo, o
institucionalismo, que, como a teoria das elites, é formalista. Uma se pergunta como se
tomam as decisões (institucionalismo), a outra questiona quem toma as decisões (teoria das
elites); contudo, nenhuma indaga quem se beneficiam das decisões, o que nos parece ser mais
importante. Para tanto, na seção seguinte através de diagnósticos de diversos pesquisadores
que operacionalizaram empiricamente o conceito de cena política, tentaremos ilustrar como se
deram respostas satisfatórias à pergunta: quem se beneficia das decisões?
4. Operacionalizações empíricas da cena política e proposta de pesquisa
Nesta seção iremos expor sucintamente como pesquisadores usaram o conceito de cena
política para o diagnóstico de eventos que ocorreram na formação social brasileira. A
primeira análise a ser elencada é a de Décio Saes que ao analisar o bloco no poder pós-64
afirma a tese de que pari passu à hegemonia do capital industrial monopolista (estrangeiro e
nacional), vai se constituindo a hegemonia do capital bancário que se consolida ao final do
período e prossegue no período de democracia liberal. Contudo, o capital bancário enquanto
fração de classe não constitui no período nenhum partido que o represente na cena política.
Para efeito de comparação, os industriais, que também carecem de um partido orgânico, ao
menos se manifestam publicamente através de suas associações civis e sindicais. De acordo
com o autor, tal invisibilidade da fração bancária se deve ao caráter improdutivo da atividade
bancária, em antagonismo à atividade dos grandes proprietários rurais e industriais que tem
um caráter produtivo (SAES, 2001, p.60). Ou seja, pode-se estar ausente da cena política e
até não ser a fração hegemônica junto às classes dominadas – papel exercido pela fração
industrial, contudo, a fração bancária é a hegemônica no seio do bloco no poder. Na cena
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política, classes reinantes atuam sem o saber como representantes dos interesses da fração
hegemônica: capital bancário.
Numa conjuntura mais recente, especificamente durante o governo Lula, Lúcio Flávio de
Almeida num artigo que se propõe a analisar os limites da democracia liberal brasileira,
atenta para um acontecimento político de intensa repercussão na mídia: o caso do mensalão.
Este é apresentado por cientistas políticos não marxistas, como sendo um evento de teste para
o regime político brasileiro, um experimento para saber o quão consolidada estava nossa
democracia liberal. E o resultado é que a engenharia institucional ficou de pé. Contudo, isso
não deveria causar surpresa, haja vista que a dita crise ocorreu na cena política onde se
apresentam os partidos, não entre as frações do bloco no poder que é onde se concentra o
poder político (ALMEIDA, 2009, p.16). O grande capital que é a base das frações
dominantes que estão no bloco no poder estava sendo contemplado pelo governo Lula e de
acordo com Almeida (2009, p.16), “não tinha qualquer interesse em descartar um governo (e
um presidente) cuja política assegurava extraordinária rentabilidade para os investimentos
capitalistas...”. Desse modo, os debates de representantes políticos na CPI1 que investigava a
compra de votos por parte do governo foram fatos que se circunscreveram a eventos da cena
política, não tendo ligação alguma com as frações de classe do bloco no poder, já que estas
tinham seus interesses bem contemplados pelo governo e, portanto, não tinham interesse na
desestabilização deste. Muito pelo contrário, pois como diz Almeida (2009, p.17) “Façam
suas artes no playground (congresso, grandes meios de comunicação), mas não arrebentem a
cozinha, refeitório e salão de festas....Mas sem esta de “Fora Lula”. Configura-se assim uma
situação de divórcio entre representantes e representados, algo que se assemelha à conjuntura
da cena política e do bloco no poder descritos por Marx no 18 Brumário, especificamente no
período próximo ao golpe de Luís Bonaparte. Naquela conjuntura, os representantes políticos
da burguesia tentam salvaguardar as liberdades liberais e o parlamento, enquanto as frações
que eles representam querem o sufocamento de tais liberdades e sua forma de estado
democrática em favor da salvaguarda de seus interesses classistas, mesmo que para isso tenha
que instalar uma forma ditatorial de Estado.
Os exemplos de operacionalização empírica do conceito de cena política que acabamos de
citar são análogos aos quais temos a intenção de realizar numa pesquisa ainda em curso.
Nela, pretendemos investigar como foram atendidos os interesses de uma fração do grande
1 Comissão Parlamentar de Inquérito.
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capital, a bancário-financeira2, na cena política – notadamente nas duas casas legislativas
federais (câmara e senado) – durante a vigência dos mandatos Lula (2003-2010). A pesquisa
terá como foco o posicionamento dos parlamentares em relação a determinadas leis que
favoreçam a citada fração burguesa. Tal legislação e atos legislativos - emenda constitucional
40/2003, que suspende a regulamentação do sistema financeiro; 56/2007, que prorroga a
DRU3, contingenciando recursos de políticas sociais e direcionando os mesmos para o
pagamento da dívida pública cujos bancos são os maiores detentores; lei de falências
11.101/2005, que prevê aos bancos deterem o segundo lugar no recebimento de créditos; CPI
da Dívida Pública de 2009 – tiveram a fração bancário-financeira como beneficiária, e,
segundo o que apuramos até o momento, tanto os parlamentares da coalizão partidária
oposicionista (capitaneada na época pelo PSDB) quanto a coalizão partidária governista
(capitaneada pelo PT) votaram a favor de tais medidas que beneficiaram a fração bancário-
financeira. Tal constatação parece corroborar pesquisadores que se utilizaram do instrumental
teórico poulantziano e que afirmam ser a fração bancário-financeira a detentora da
hegemonia no bloco no poder nos últimos vinte anos no Brasil (BOITO JR., 2007;
GARRAGORRY, 2007; PINTO, 2011).
As análises citadas acima focaram a política econômica do Estado que é o indicador de
hegemonia de uma fração e o seu consequente posicionamento no bloco no poder. A pesquisa
que estamos a empreender tem como objetivo averiguar a cena política, notadamente o palco
mais insigne desta e verificar como os parlamentares das duas coalizões partidárias – governo
e oposição – que votaram a favor das medidas, justificaram sua aprovação, ou seja, quais
valores e/ou princípios elencaram para que tais interesses fossem atendidos. Avaliamos tal
estudo é pertinente, pois diz respeito à dimensão ideológica, algo presente na cena política do
Estado capitalista, e que é primordial para que uma classe ou fração possa ser consequente na
sua hegemonia (colocar seu interesse específico como se fosse geral) junto às classes
dominantes (bloco no poder) e às classes dominadas. Nossa hipótese principal é a de que as
duas coalizões partidárias atuaram como classe reinante em prol da fração bancário-
financeira. Esta não teria nenhum partido orgânico, tal qual observado por Saes (2001, p.59),
ou seja, estaria fora da cena política, mas uma classe reinante atuaria em prol dela,
2 Denominamos aqui de fração bancário-financeira pois compreenderia notadamente os bancos, contudo há um
rico debate acerca de existência ou não na formação social brasileira de um capital financeiro (fusão de bancos e
indústria) ou de uma financeirização de diversas atividades que poderiam no limite eclipsar o fracionamento da
burguesia. Por ora, haja vista o caráter embrionário da pesquisa não podemos avalizar em positivo ou negativo
tais assertivas. 3 Desvinculação das receitas da união.
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configurando-se assim a situação de uma classe ausente da cena política, mas presente e
hegemônica no bloco no poder. Pensamos também que a citada invisibilidade da fração
bancário-financeira, citada por Saes (2001, p.60), tem a ver com essa singularidade da fração
ser ausente da cena política. Além disso, trabalhamos com outra hipótese que seria a de que
noções ideológicas como “estabilidade”, “responsabilidade”, “credibilidade”, “combate a
inflação”, “não ao calote”, entre outras, foram verbalizadas como princípios e/ou valores para
se justificara aprovação de medidas que atendessem aos interesses da fração bancário
financeira. Pode-se depreender que esta nossa hipótese trata a cena política mais como um
local de ocultação/mascaramento de interesses do que manifestação dos mesmos, em
consonância ao salientado por Boito Jr. (2007a).
Por fim, avaliamos que o conceito de cena política e suas relações com os demais
conceitos poulantzianos (fração de classe, bloco no poder) são de muita valia num debate
para se travar com a corrente teórica que domina a ciência política no Brasil e que
negligencia as classes sociais em suas análises. Um trivial exemplo é o de abalizados
pesquisadores institucionalistas como Figueiredo e Limongi (2002, p.313), que ao se
debruçarem sobre a peça orçamentária da união, constatam que o artigo 166 da constituição
federal veta ao congresso retirar recursos orçamentários destinados ao pagamento da dívida
pública. Contudo, os pesquisadores não se perguntam se tal medida visa ao atendimento de
alguma classe social. Em nossa opinião o arsenal teórico marxista de Poulantzas é funcional
para responder a tais perguntas.
5. Conclusão
Procuramos no presente artigo apresentar de modo sucinto um conceito que nos parece
muito útil na análise política que é o de cena política, tal como o mesmo foi elaborado por
Poulantzas a partir das leituras das obras históricas de Marx. A partir disso expusemos como o
conceito foi diversamente compreendido por dois pesquisadores: ênfase sobre a função de
ocultamento de interesses (Boito Jr.); ênfase sobre a função de manifestação de interesses
(Codato). Concluímos que a tese de ocultação de interesses – esposada por Boito Jr. – é mais
adequada para a compreensão das formações sociais em que vigora a forma democrática de
um tipo de Estado capitalista.
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Posteriormente demonstramos como o conceito cena política foi operacionalizado por
outros pesquisadores, como Almeida e Saes. As exposições de ambos tiveram o intuito de
ilustrar o quão eficaz é o conceito para uma análise adequada de qualquer conjuntura. Por fim,
expusemos como pretendemos trabalhar com o conceito a fim de contribuir para um
entendimento mais adequado de uma conjuntura recente – governo Lula – da formação social
brasileira, que, a nosso ver, possui maior capacidade explicativa do que o institucionalismo,
teoria que vigora de modo hegemônico na ciência política brasileira.
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