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brasilde 16 a 22 de junho de 20114

Joana Tavaresda Redação

DE UM LADO, representantes de banca-das religiosas atacam os homossexuais e seus direitos como cidadãos. De outro, a apropriação da palavra bíblica no lema da parada LGBT (lésbicas, gays, bissexu-ais, travestis e transexuais) de São Pau-lo: “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia”. Apesar de recentes e cons-tantes demonstrações de intolerância religiosa contra as pessoas que se atra-em pelo mesmo sexo, nem sempre a re-ligião e a homossexualidade estão de la-dos opostos.

Promovido pela Rede Ecumênica de Juventude (Reju), pela entidade Koino-nia – Presença Ecumênica e Serviço, pela Paróquia Anglicana Santíssima Trindade e pela Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, um ato inter-religio-so e um painel foram dedicados ao tema “Religião e homoafetividade”, nos dias 9 e 10 de junho. Um grupo de igrejas cris-tãs organizaram uma petição pública em apoio ao PLC 122, que criminaliza a dis-criminação por orientação sexual e iden-tidade de gênero e tramita atualmente no Senado. Na programação ofi cial do 15º Mês do Orgulho LGBT de São Paulo – que culmina com a parada, dia 26 - di-versas atividades colocam a relação entre religião e sexualidade em discussão. Um dos blocos previstos na marcha é dos re-ligiosos contra a homofobia.

“O amor lança fora todo medo”Com esse tema bíblico, um luterano

doutor em teologia, um padre e teólogo católico e uma mãe de santo se sentaram à mesma mesa para debater as concep-ções das religiões e a relação com a ho-mossexualidade e a homofobia.

Anivaldo Padilha, membro da Igre-ja Metodista e militante do movimento ecumênico desde a década de 1960, fez a mediação da mesa, apontando que ne-

Religiosidade sem preconceitoDIREITO LGBT Setores religiosos marcam posição contra homofobia para mostrar que conservadorismo não é unanimidade entre fi éis

nhum religioso com posições contrárias aceitou participar do debate. “A homofo-bia muitas vezes é justifi cada por argu-mentos teológicos. No entanto, os con-servadores não representam todos os re-ligiosos”, apontou.

Iya Maria Emilia d´Oyá, da Casa de Culto ao Orixá Ventos de Oyá (candom-blé da tradição Ketu), presidente da As-sociação Federativa da Cultura e Cul-tos Afro-Brasileiros de São Bernardo do Campo e assistente social da prefeitura da mesma cidade, apontou que as religi-ões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, possuem uma relação dife-rente com o sagrado em relação às religi-ões cristãs. Para essas religiões, os orixás são a ligação com os sentimentos e com a natureza. “Não temos livros sagrados.

Nossa tradição é oral. A sexualidade é vi-vida e experimentada de maneira muito tranquila. A relação sexual é vista como uma troca de energia, sem indicação de formas”, disse.

Mãe Emília, como é conhecida, com-plementa que há homossexuais fazen-do parte dos cultos de candomblé e um-banda porque são religiões que os aco-lhem. “Quem já é excluído na sociedade, se sente confortado”, aponta. Ela coloca que o grande desafi o é colocar a questão para diálogo, dentro e fora dos templos de qualquer religião. “A religiosidade, de qualquer tipo, pode ser uma grande ar-ma para enfrentar a discriminação”.

James Alison, padre e teólogo católi-co, apresenta as bases da doutrina pa-ra explicar a tensão entre a Igreja e a ho-mossexualidade, colocando a relação en-tre a natureza e a graça. “A graça aperfei-çoa a natureza. Chegamos a ser fi lhos de deus sendo o que a gente é; no fl oresci-

da Redação

Enquanto representantes conserva-dores das bancadas evangélica e cató-lica protestam contra a ampliação dos direitos da população LGBT, estudio-sos de teologia afi rmam que o Estado deve separar a dimensão religiosa e ci-vil, garantindo o bem comum. Recen-temente, a Câmara dos Deputados in-deferiu um Projeto de Decreto Legisla-tivo, proposto pela Frente Parlamentar Evangélica, que visava derrubar a deci-são do STF de legalizar as uniões está-veis homoafetivas.

“Em geral, os fundamentalistas assu-mem postura seletiva na leitura do tex-to bíblico: escolhem os versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e ol-vidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras fortes contra o homosse-xualismo e o condena, ensina o amor ao próximo”, aponta o reitor da Faculdade Jesuítica de Filosofi a e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG), padre Jalde-mir Vitório, doutor em Exegese Bíbli-ca. Ele aponta ainda que os direitos da população LGBT devem ser respeita-dos. “O Estado não pode se identifi car com os interesses de grupos particula-res, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interes-se de todos e não a este ou aquele gru-po”, afi rma.

Brasil de Fato – Como o senhor vê a questão dos direitos da população LGBT e das políticas para garanti-los, como a decisão do STF de reconhecer as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo?Jaldemir Vitório – A população LGBT é formada por cidadãos e cidadãs cujos direitos devem ser respeitados. Se se sente ameaçada, deverá ser protegi-da pelo Estado. Jamais poderá ser dei-xada à própria sorte, com o risco de ser vítima da intransigência de grupos into-lerantes. Nas últimas décadas, tem bus-cado reconhecimento, lutando para ga-

A leitura seletiva da Bíblia e suas consequênciasSó interpretação fundamentalista do texto religioso cristão pode explicar a postura de certos religiosos, diz especialista

rantir seu espaço no amplo espectro da realidade social, política, econômica, re-ligiosa e, também, legal. Nesse sentido, a decisão do STF vai ao encontro dos anseios dos LGBT. Cabe perguntar se o STF é a instância competente para diri-mir pendências no campo da união es-tável homoafetiva. Quanto à política do Estado, é preciso considerá-la sob o as-pecto ético-cultural. É função do Esta-do promover políticas que ajudem os ci-dadãos a viver melhor, de modo que to-do o corpo social cresça e se desenvolva de maneira harmônica, sem privilegia-dos e preteridos. Assim, a política do go-verno deve ser efetivada, tendo em vis-ta a superação da discriminação, do pre-conceito e do ódio contra os LGBT. Por outro lado, é preciso considerar um da-do cultural brasileiro, no tocante à cons-tituição da família. Se se mantiver a dis-tinção entre matrimônio e união estável, a decisão do STF poderá ter maior aco-lhida. Se houver equiparação, a sensibi-lidade cultural poderá ser afetada. Lar-ga faixa da sociedade brasileira não es-tá madura para pensar, com serenidade, a questão.

Qual sua opinião em relação ao programa “Escola sem homofobia”?

Seria bom que o governo, muito antes de levar adiante essa campanha, promo-vesse outras, do tipo “Escola sem pro-fessores mal remunerados”. Ou promo-vesse campanhas que tocassem na raiz da homofobia, ou seja, a intolerância e a violência que tomaram conta da socie-dade, a ponto de escapar ao controle do Estado. E, em muitas circunstâncias, te-

rem agentes do Estado como seus cau-sadores. Não só os homossexuais estão com medo e vivem acuados. A “fobia” é uma espada de Dâmocles que pende so-bre a cabeça da sociedade em geral. Ca-be ao Estado, em primeiro lugar, en-frentar essa grave situação.

Como o senhor vê a polêmica que se deu com alguns congressistas religiosos que são contra a implementação de políticas públicas voltadas para os LGBT?

Por um lado, a moral dos grupos re-ligiosos vale, em primeiro lugar, para seus membros. Quando pretendem im-pô-la ao conjunto da sociedade, extra-polam seus direitos. O Estado não po-de se identifi car com os interesses de grupos particulares, religiosos ou não, nem se submeter a eles. Visa ao bem comum e ao interesse de todos e não a este ou aquele grupo. Por outro lado, as igrejas têm o direito de participar do debate democrático, defendendo seus pontos de vista, dialogando e intera-gindo com a variada gama de entida-des e movimentos que compõem o te-cido social. Entretanto, julgando-se re-vestidas de autoridade divina, podem cair na tentação de se considerarem com acesso direto à verdade. E, com is-so, quererem impor seus pontos de vis-ta. Tal equívoco mostrou-se, historica-mente, inconveniente. Articuladas em contexto democrático, as igrejas de-vem aprender a arte do diálogo franco e aberto, com a possibilidade de preva-lecerem pontos de vista contrários aos seus. Tenho, porém, uma crítica a fazer aos congressistas religiosos. Em geral, são pessoas de duvidosa qualidade po-lítica, articulados em torno de interes-ses corporativistas ligados às respecti-vas igrejas, quando não de baixa esta-tura moral, embora assumam postu-ras moralistas. Quiçá cumprissem me-lhor seu papel de religiosos se se lan-çassem na defesa dos pobres e se em-penhassem na promulgação de leis que benefi ciassem as parcelas desfavoreci-das da população.

Há algum argumento bíblico que justifi que a discriminação contra os homossexuais?

Só uma leitura fundamentalista e ana-crônica da Bíblia pode fundamentar a postura de certos religiosos, que recor-rem a ela, a cada passo, para justifi car seus pontos de vista. A sociedade e a cul-tura da época eram muito distintas da nossa. Por isso, antes de se afi rmar que a Bíblia ensina isso ou aquilo para os fi éis de hoje, é preciso fazer um longo percur-so hermenêutico. São muitas as pergun-tas a serem, previamente, respondidas:

quando o texto foi escrito? Em que con-texto histórico, social, político, religioso etc.? O texto bíblico não tem um sentido imediato, à mão do leitor. Em geral, os fundamentalistas assumem postura se-letiva na leitura do texto bíblico: esco-lhem os versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e olvidam tudo mais. A mesma Bíblia que tem palavras for-tes contra o homossexualismo e o con-dena (cf. Levítico 18,22; 20,13) ensina o amor ao próximo (cf. João 15,12). Quem, hoje, em nome da Bíblia, insiste em con-denar os homossexuais ao fogo do infer-no, deve considerar com atenção as pala-vras de Jesus: “Não julgueis e não sereis julgados. Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e com a medida com que tiverdes medi-do, também vós sereis medidos” (Mt 7,1-2). Com a mesma Bíblia na mão, é possí-vel encontrar muitos textos para conde-nar os juízes dos homossexuais. Portan-to, muito cuidado ao se servir da Bíblia no embate em torno de questões polêmi-cas, para as quais os consensos estão lon-ge de serem encontrados. (JT)

“Os fundamentalistas assumem postura seletiva na leitura do texto bíblico: escolhem os versículos que lhes interessam, apegam-se a eles e

olvidam tudo mais”

“A moral dos grupos religiosos vale, em primeiro lugar, para seus membros”

mento da graça”. Ele explica que até mui-to recentemente – há menos de 50 anos – não havia confl itos entre a população LGBT e a doutrina da Igreja católica por-que não havia reconhecimento dessa po-pulação. “Não era reconhecido o ser das pessoas, eram apenas atos homossexu-ais”, aponta.

Com a visibilidade da causa gay e o reconhecimento de que não se poderia confundir o ser e o ato, o Vaticano fi nal-mente se pronunciou sobre o assunto, re-conhecendo que a orientação sexual não é pecado, apesar de que algumas práticas ligadas a ela podem ser assim considera-das por membros do clero. “Compreen-de-se que ser gay não é ser um heteros-sexual defeituoso; é criação de Deus. Aí vem o problema da inércia clerical, em fazer valer o entendimento que ser gay é algo que algumas pessoas simplesmente são”, coloca.

Sequestro simbólicoO luterano André S. Musskopf, doutor

pela Escola Superior de Teologia, argu-menta que a questão está ligada ao con-trole dos corpos e do desejo das pesso-as, para o controle da riqueza e do poder. “Religião, sexo, política e poder não po-dem ser separados. É através desse con-trole que se mantém o status quo”, apon-ta. Ele reforça que a escolha do tema da Parada LGBT foi muito oportuna, pois salienta que a palavra de Deus pertence ao povo, não a instituições religiosas que promovem um “sequestro” dos bens ma-teriais e simbólicos.

“O ‘amai-vos’ tem uma dimensão polí-tica e civil, da garantia de direitos, mas também uma dimensão teológica e reli-giosa, na medida em que o amor é o que nos move em direção aos outros, o que nos motiva na vida. Precisamos parar de ter medo dos fantasmas e entender que a homossexualidade não precisa ser jus-tifi cada, é algo comum e próximo de to-dos”, afi rma.

Apesar de recentes casos de intolerância religiosa, nem sempre a religião e a homossexualidade estão de lados opostos

“A homofobia muitas vezes é justifi cada por argumentos teológicos. No entanto, os conservadores não representam todos os religiosos”

“Religião, sexo, política e poder não podem ser separados. É através desse controle que se mantém o status quo”

“Precisamos parar de ter medo dos fantasmas e entender que a homossexualidade não precisa ser justifi cada, é algo comum e próximo de todos”

Lideranças religiosas se unem em ato inter-religioso em apoio aos direitos da população LGBT

Silvia Fernandes

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