EXPERIÊNCIA COM TEXTOS DE CLARICE LISPECTOR: O PROJETO A
HORA DE CLARICE NA SALA DE AULA1
Rodrigo Nunes de SOUZA2
Grupo de Pesquisa: Ensino de Literatura e Formação de Professores
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
Resumo: O trabalho com textos de Clarice Lispector na sala de aula, muitas vezes, é
tratado de modo pouco representativo, fazendo com que alunos enxerguem a autora de
modo obscuro e fragmentário (o que os levam, recorrentemente, a compartilhar apenas
trechos, cuja autoria pertence ou é atribuída erroneamente à escritora, nas redes sociais).
Este trabalho visa destacar como os textos de Clarice foram trabalhados no âmbito escolar,
destacando como as produções da autora podem ser levados para a sala e construir leitores
mais próximos dos escritos de Clarice, permitindo que os alunos vejam e sintam que,
aquilo que normalmente é associado aos textos lispectorianos – hermetismo, de difícil
assimilação, difícil –, muitas vezes precisa, apenas, de um caminho a ser traçado. O foco
desta experiência nasceu durante o componente Estágio Supervisionado IV, disciplina em
que a intervenção na sala de aula se deu por meio da aplicação de um projeto intitulado A 1 Este artigo é dedicado à Mirla Farias Pereira (in memorian). Amiga e companheira, com quem pude
desenvolver e aplicar o projeto A Hora de Clarice, em 2014, durante o nosso Estágio Supervisionado IV –
Literatura. Ela que, com sua amizade, foi, como disse Clarice, ‘’matéria de salvação’’, apoiou-me e,
reciprocamente, deleitamo-nos com a concretização deste que, sem dúvida, foi uma das nossas mais
enriquecedoras experiências. Do alto da minha saudade, continuo amando-a incomensuravelmente.
2 Discente do programa de Pós-graduação em Linguagem & Ensino, da Universidade Federal de Campina
Grande, na área de Estudos Literários. Sua pesquisa destaca os estereótipos voltados à mulher-negra na
literatura moçambicana e brasileira, com ênfase nas obras de Lília Momplé e Conceição Evaristo, bem como
o trabalho na desconstrução desses estereótipos na sala de aula, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Marta
Nóbrega. Bolsista do Programa de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES,
Brasil.
Hora de Clarice, cujo propósito foi, justamente, abarcar meios de desconstrução e
aproximação de alunos do 3º ano do Ensino Médio com textos de Clarice. Os encontros
foram conduzidos com base na Estética da Recepção e, também, por meio daqueles que,
através de seus estudos, puderam trilhar caminhos e apresentar horizontes para o trabalho
com o texto literário, tais como ZILBERMAN (1989), COSSON (2009), FERRARI
(2009), AMARAL (2010), JOVER-FALEIROS (2013), TONICO (2013) e outros que se
preocupam com a Literatura no âmbito escolar.
Palavras-chave: Clarice Lispector. A Hora de Clarice. Estética da Recepção. Literatura na sala de
aula.
1- INTRODUÇÃO
O ensino de Literatura figura, nos dias atuais, como um grande desafio entre alunos e
professores. O docente, muitas vezes, é levado a despertar em sua sala de aula o gosto, a
atenção dos alunos para os textos literários que estão sendo trabalhados em sala. Os alunos
tentam se prender a aula, mas muitos professores possuem uma metodologia que, ao invés
de convidar, despertar o gosto do aluno para a aula, afugenta-os, transformando estes
“encontros literários” em aulas de história ou até mesmo em uma superficialidade literária.
Considerando esta situação, formulamos uma Sequência Didática que buscou
despertar, nos alunos, a atenção, o foco e o desejo (fruição) de ler, sensibilizar-se e
compreender textos literários. Para isto, os dez encontros desta sequência didática foram
embasados com textos da escritora Clarice Lispector (1920 – 1977), a fim de que os alunos
se “entregassem” ao projeto e pudessem compartilhar emoções, críticas e análises dos
contos, crônicas e romances da autora.
Escolhemos a autora de Perto do Coração Selvagem por ela se encaixar em um dos
parâmetros do mundo jovem de hoje: os trechos de Clarice constam entre os mais
compartilhados nas redes sociais. A intervenção e aplicação do projeto se deu no
componente Estágio Supervisionado IV, em uma turma de 3° ano e a composição da sala
era de jovens que, ao saberem que nossa intervenção seria com textos de Clarice Lispector,
passaram a vivenciar nossos encontros e permaneceram sempre muito atentos ao que
estávamos explanando sobre a escritora.
Este artigo busca discutir o papel da Literatura na sala de aula através do projeto
intitulado A Hora de Clarice, que visou apresentar vida e obra da escritora brasileira
Clarice Lispector. Busca-se, também, evidenciar o modo como os textos clariceanos foram
trabalhados em sala de aula utilizando, para tanto, as Teorias da Estética da Recepção e os
meios artísticos que comportamos para manter um dialogismo entre os textos trabalhados e
as ferramentas que, além de fazer parte do cotidiano dos alunos, serviram para que a turma
3° ano “A”, da Escola Estadual da Prata, pudesse compreender com mais exatidão os
objetivos da Sequência Didática – Literatura.
2- LITERATURA & SALA DE AULA: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO DA
PRÁTICA LITERÁRIA NA ESCOLA
É sabido que o ensino da Literatura, nos dias atuais, enfrenta diversas condutas práticas
que, por muitas vezes, afasta o aluno do texto, fazendo com que este encare o texto
literário como mera ferramenta para a aula. Estas aulas, corriqueiramente, abordam a
Literatura como objeto de preenchimento de aulas sobre análise sintática e outros
conteúdos que acabam desvencilhando o real objetivo da aula de Literatura.
Muitos professores não utilizam os textos literários com o intuito de despertar em seus
alunos o gosto, o interesse por tais textos de cunho literário. Isso contribui com que os
jovens do ensino médio encarem as práticas literárias como aulas “insossas”, “chatas” e
que mais parecem “aulas de história” do que Literatura.
A má formação de docentes no âmbito literário desperta a atenção de muitos
estudiosos. Ao afirmarem que as aulas de Literatura fogem, muitas vezes, de seu propósito
inicial, os alunos fogem das aulas que são ministradas com a conduta que muitos
professores possuem. Isto implica dizer que as aulas de Literatura não conseguem
despertar nos alunos sentimentos diversos como, por exemplo, a sensibilidade, a comoção,
o humor. Muitos professores utilizam suas aulas de Literatura para contextualizar épocas,
autores e obras, seguem livros didáticos que exploram apenas resumos, fragmentos de
textos literários e não relacionam textos de diversas etapas pelo fato de os livros e/ou o seu
planejamento apenas englobar determinadas escolas literárias.
2.1 - ENSINO DE LITERATURA & ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
Formulada por Hans Robert Jauss em meados de 1960, na Alemanha, a Teoria da
Recepção concebe o ensino da Literatura através de um diálogo com outras fontes
artísticas para que o público-leitor possa assimilar, associar e absorver o texto literário de
um modo mais representativo. Ao passo que o texto literário passe a ser um instrumento de
mais fácil compreensão e entendimento.
Perpassando pelas teses construídas por Jauss, a Estética da Recepção visa contemplar
os leitores com uma visão mais centrada do texto com que se trabalha em sala. Tais teses
englobam fatores de compreensão por parte do leitor, fazendo com que este enxergue
outras possíveis interpretações ou meios de entendimento do texto literário.
Durante a nossa intervenção no componente Estágio Supervisionado IV, nós
procuramos despertar os conhecimentos prévios dos alunos levando para a sala textos de
autoria da própria Clarice Lispector (o conteúdo de nossa sequência didática contempla os
gêneros narrativos da autora), poemas, músicas, documentários e peças teatrais que se
remetem a obra e/ou a vida da escritora.
Ao formularmos nossos encontros a partir das Teorias da Estética da Recepção, o
horizonte de expectativa dos alunos pôde evidenciar a compreensão da sala a cada aula
ministrada. Os encontros eram apresentados através de temáticas que buscavam despertar
uma maior acepção por parte do público-ouvinte.
A sequência didática construída a partir dos gêneros narrativos de Clarice Lispector nos
fez refletir o que de tão misterioso a autora tem. Nossa preocupação inicial era de como
trabalhar textos clariceanos em uma turma de ensino médio mesmo sabendo de toda
complexidade que envolve os textos da autora. Sobre a complexidade de textos literários,
Maria Amélia Dalvi diz que:
Desta forma, baseamo-nos nos passos seguidos por Ana Maria Ferrari que propõe um
trabalho com textos literários a partir da Estética da Recepção. Ferrari evidenciará a
O estudante precisa ser incentivado a ter contato com formas, textos, estéticas mais sofisticadas (o que está longe de querer dizer “mais elitizadas”), que exigirão seu esforço in(ter)ventivo como leitor, sem, contudo, deixar de lado essa compreensão situada da literatura. (DALVI, 2013, p. 74).
importância de fazer os alunos recepcionarem o texto literário de forma mais coerente, ao
passo que eles podem evidenciar suas concepções através de um entendimento mais direto,
profícuo e satisfatório.
2.2- HORIZONTE DE EXPECTATIVAS: UMA EVIDÊNCIA DO PROJETO A
HORA DE CLARICE
Após selecionarmos os textos e evidenciar perante a escola o que trabalharíamos
com a turma 3° ano ‘’ A’’, formulamos o projeto denominado A Hora de Clarice. Este
projeto teve como principal objetivo apresentar a vida e obra da escritora Clarice Lispector
(1920 – 1977). No total de dez encontros, as aulas que compuseram este projeto foram
ministradas com o auxílio de contos, crônicas e romances de autoria de Clarice e, para
dialogarmos com estes gêneros, levamos para a sala outras fontes artísticas que mantém
uma relação dialógica com os textos da autora, como, por exemplo, peças teatrais,
documentários, poemas e músicas.
Cada encontro englobava uma temática e os textos lispectorianos trabalhados nestas
aulas foram devidamente pensados para que pudéssemos despertar o senso crítico dos
alunos, tivemos em mente ‘’ um ponto de partida que permita, ao fim e ao cabo, a
retomada dessa produção da indústria cultural sob um viés muito mais crítico. ’’ (DALVI,
2013). Desde o primeiro encontro, portanto, deixamos claro em sala que os textos de
Clarice seriam apresentados e analisados através de um modo crítico.
Por isso, ao levarmos para a sala de aula textos de diversas temáticas, os alunos
entraram em contato com diversos textos clariceanos (muitas vezes trabalhados em sua
integridade) o que nos permitia uma melhor explanação dos encontros formulados na
sequência didática.
Outro fator muito relevante foi a escolha de Clarice Lispector para abordamos em
sala de aula: por ser uma autora muito recorrente entre os jovens, o trabalho com as
produções de Clarice fez com que nossa sequência didática fosse aplicada com mais
objetividade e os alunos dedicaram-se a este projeto lendo, debatendo e participando das
aulas que lhes eram apresentadas.
Para Regina Zilberman (1989), a compreensão é o ponto de partida para o processo
de leitura e os meios de recepção deste processo de leitura resultará em meios de
entendimento mais aplicáveis aos conteúdos apresentados em sala. Zilberman ainda
formula três passos para que este processo de leitura possa, de fato, ser entendido:
- 1° Horizonte: este primeiro passo englobará a leitura inicial do texto. Também chamado
de Horizonte Progressivo de Experiência Estética, o aluno faz sua primeira leitura e desta
leitura inicial o aluno apresentará a sua compreensão do texto. Para tanto, o texto deve
fazer parte da experiência do aluno enquanto leitor e o jogo linguístico deve estar ao
alcance do aluno.
- 2° Horizonte: nesta segunda etapa, denominada Horizonte Retrospectivo da
Compreensão Interpretativa, o aluno reconhece a forma do texto, mas ele volta ao texto
para que a compreensão se caracterize de fato. O aluno faz uma releitura para que os
pontos considerados duvidosos possam ser eliminados ou reforçados.
- 3° Horizonte: agora, o aluno entrará em contato com os conhecimentos históricos que o
texto apresenta. Este terceiro horizonte, apresentado como Leitura Reconstrutiva,
determinará a época do texto, as mudanças por qual passou e a maneira como foi
assimilado dentro de uma tinha do tempo.
Ao associarmos estes Horizontes apresentados por Zilberman, aproximamos os
textos de Clarice à realidade do aluno. A grande maioria dos alunos conheciam apenas
fragmentos de textos da autora e, a cada encontro, aumentávamos as propostas textuais
trabalhadas a partir dos textos lispectorianos. A importância de transformar estes textos em
acessíveis para os alunos é destaca por Dalvi, porque tais textos devem:
Os gêneros narrativos de Clarice Lispector trabalhados durante a nossa intervenção
no componente Estágio Supervisionado IV contemplaram textos que despertassem uma
Tornar o texto literário “acessável” e “acessível’”: é necessário que
a literatura não apenas esteja disponível em todos os lugares da
escola, mas que seja tornada compreensível, discutível, próxima.
(DALVI, 2013, p. 81)
participação mais ativa dos alunos. Contos, crônicas e romances despertaram a criticidade
e questionamentos das leituras efetuadas em sala de aula.
3- SEQUÊNCIA DIDÁTICA & A HORA DE CLARICE: CLARICE
LISPECTOR NA SALA DE AULA
Com o objetivo de apresentar vida e obra da escritora Clarice Lispector, a sequência
didática formulada para esta apresentação contemplou dez encontros com temáticas que se
aproximavam. Os textos que compõem cada encontro contemplaram vários gêneros com o
intuito de familiarizar os alunos com as produções narrativas que seriam trabalhadas. Os
suportes e os modos que estes textos foram apresentados (filme, documentário, peça
teatral, música etc.) também foram pensados para que os receptores dos textos de Clarice
pudessem compreender, com mais avidez, os objetivos da sequência.
Cada encontro contemplava textos (contos, crônicas e trechos de romances) de
Clarice Lispector. A preocupação inicial era de como abordar tais textos perante os alunos.
Inicialmente, objetivamos quebrar o estigma de misteriosa, difícil, incompreensível da
escritora. Feito isso, os alunos começaram a entrar em contato com diferentes textos de
Clarice para que eles passassem a compreender com mais vigor os textos que eram
apresentados nas intervenções do Estágio Supervisionado.
A seleção dos textos se deu através de critérios que privilegiassem o horizonte de
mundo os alunos. Ou seja: os textos de Clarice tinham o objetivo de alcançar os alunos por
aquilo que eles conhecessem da autora. Seja através de trechos de obras da autora e/ou por
aquilo que eles ouviram falar sobre a escritora. A cada aula nós contemplávamos textos
que comportassem e respeitassem este horizonte de mundo dos alunos. Contos, crônicas e
trechos do romance A Hora da Estrela foram os escolhidos para a construção dos
encontros que seriam apresentados nas intervenções.
Estes gêneros narrativos encaixavam-se dentro das temáticas que eram levantadas a
cada encontro. Estas temáticas serviram como auxílio para o acompanhamento e
compreensão por parte dos alunos. Os gêneros apresentados nas aulas dialogavam, direta
ou indiretamente, com os textos e/ou com as temáticas apresentadas nos encontros. Isto fez
com que os alunos enxergassem os textos de Clarice como algo a mais: eles passaram a ler
Clarice com outros fins. Rildo Cosson enfatizará que ela relação leitor-autor constrói uma
relação pessoal, já que:
Portanto, os objetivos iniciais da sequência didática foram além dos propostos e
apresentados para os alunos. Percebemos que a nossa intervenção fez com que os alunos
levassem os conteúdos apresentados para um viés pessoal, ao ponto de compartilhar os
textos, os vídeos e os outros meios artísticos apresentados, nas redes sociais. Para Rildo
Cosson (2006) esse percurso de formação de leitores, em conjunto ou individualmente,
depende de uma organização de leitores, o que engloba a posição das obras, as formas
legitimadas de ler, o valor cultural dos textos e outros métodos de recepção que visem
despertar o gosto pela leitura.
Lançadas as propostas de intervenção, com os objetivos e os encontros formulados,
buscamos um método recepcional para que os textos de Clarice Lispector fossem melhor
absorvidos pelos alunos. Baseando-nos, como já mencionamos, nos passos seguidos por
Ana Maria Ferrari a partir dos métodos receptivos formulados por Hans Robert Jauss e
analisados por Regina Zilberman. As etapas deste método de recepção contemplam os
seguintes passos:
1° - Determinação do Horizonte de Expectativas: a elaboração da sequência didática foi
construída no componente Estágio Supervisionado III.
2° - Atendimento do Horizonte de Expectativas: os contos, crônicas e os trechos do
romance A Hora da Estrela atendiam o nível de entendimento dos alunos. Inicialmente,
apresentamos os contos e crônicas (trabalhados em sua integridade) e, com o decorrer dos
encontros, apresentamos o viés romancista da autora.
3° - Ruptura do Horizonte de Expectativas: após a apresentação dos textos de Clarice para
criar uma afinidade nos alunos, a partir do terceiro encontro nós passamos a apresentar
Um primeiro aspecto a se considerar nesse modo de leitura é a
relação íntima e pessoal que o leitor estabelece com o texto. Sem
esse contato, que pode e deve ser promovidos de várias maneiras,
ele não tem condição de se efetivar. É esse engajamento do leitor
com a obra que move esse modo de leitura. (COSSON, 2009 p. 43)
mais de um texto de Clarice para que, assim, pudéssemos manter uma relação de
aproximação ou contraponto dos textos apresentados.
4° - Questionamento do Horizonte de Expectativas: as discussões levantadas em sala foram
além do que nós planejamos e esperávamos. Em alguns encontros, os alunos enxergavam
algo além daquilo que nós pretendíamos discutir.
5° - Ampliação do Horizonte de Expectativa: com o passar dos encontros, levamos contos
com um grau mais elevado e apresentamos a Clarice romancista. Com isso, nós buscamos
aprofundar as análises que estavam sendo feitas dos textos clariceanos e os alunos
passaram a participar mais das aulas, explorando aquilo que foi devidamente
compreendido.
Após seguir estas etapas recepcionais, ficou evidente a compreensão dos alunos.
Esta compreensão se tornou um elemento muito importante para a aplicação dos conteúdos
nas aulas de intervenção. Ressaltamos que nós, os estagiários, ajudamos os alunos a
desvendar os sentidos que os textos de Clarice poderiam apresentar. Para Luciano Amaral
Oliveira seguir estes passos se torna fundamental, por que:
4- GÊNEROS NARRATIVOS & OUTROS MEIOS ARTÍSTICOS: UMA
ABORDAGEM LISPECTORIANA NA SALA DE AULA
São chamados de gêneros narrativos todos os textos que objetivam contar uma
história. Utilizando-se dos elementos narrativos para apresentar as histórias, os gêneros
narrativos escolhidos para aplicarmos nossa sequência didática foram o conto, a crônica e o
romance. Sendo estes de autoria de Clarice Lispector.
Fica claro o papel crucial do professor: ajudar seus alunos na leitura
de uma obra que provavelmente apresentará dificuldades, caso você
considere realmente importante que eles leiam a obra. Aliás,
encontrar dificuldades na leitura não é um problema em si mesmo.
Isto é até bom, porque força o aluno a encontrar meios de superá-las
e, assim, construir conhecimentos. O problema é não ter como
superá-las sozinho. (OLIVEIRA, 2010, p. 176)
Pertencentes a diversos livros, os contos trabalhados nas aulas buscavam
familiarizar a sala com a escrita e a linguagem de Clarice. Os encontros de nossa sequência
didática foram divididos em temáticas e isto facilitou a abordagem do gênero conto em
nossas aulas. Sobre o trabalho com contos de Clarice em sala de aula, a pesquisadora Olga
de Sá diz que é muito importante que o professor inicie seu trabalho com Clarice em sala
pelos contos, pois os romances da autora são muito complexos para quem está iniciando
sua jornada pelo universo lispectoriano. “Os contos são maravilhosos para isso. Não se
deve começar nunca pela A Maçã no Escuro, que é uma floresta de signos de difícil
abordagem. ” (SÁ, 2013)
Contos como Ele me bebeu, Uma Galinha, O Crime do Professor de Matemática,
O Búfalo, Macacos, entre outros, foram fundamentais para que os alunos pudessem
compreender o rico universo temático da autora. Por exemplo: com o conto Ele me bebeu,
pertencente ao livro de contos A via crucis do corpo, de 1974, foi o auxílio necessário para
apresentarmos e trabalharmos características da prosa de Clarice, tais como fluxo de
consciência, epifania e a introspecção. A partir da leitura destes e de outros contos, as
discussões partiram para além do planejado: os alunos passaram a ver outros sentidos além
dos apresentados pelos estagiários. Sobre as formas de recepção e entendimento do texto
literário em sala de aula, Rita Jover-Faleiros nos diz que:
Para nos auxiliar nestas discussões e para que os alunos pudessem compreender
melhor o que estava sendo abordado sobre Clarice Lispector em sala, nos utilizamos de
textos da própria autora para exemplificarmos melhor: as crônicas que Clarice escreveu em
jornais nas décadas de 1960/70. As crônicas clariceanas são carregadas de muita
subjetividade e isto fez com que os alunos enxergassem o que a autora realmente queria
apresentar em seus contos. Por exemplo: com o conto Felicidade Clandestina, nós
podemos com o auxílio da crônica As grandes punições, apresentar a infância da autora no
recife.
Entrar em contato com a experiência da leitura, dar voz ao texto do
leitor e compartilhar essa experiência como forma de conhecimento
em contexto didático é eminentemente pedagógico. (FALEIROS,
2013, p. 132)
No dia 22 de junho de 1968, em uma crônica publicada no Jornal do Brasil, Clarice
assume o lado subjetivo de suas crônicas, revelando para os seus leitores:
Deste modo, os textos de Clarice foram peças fundamentais para a compreensão
dos assuntos trabalhados em nossos encontros. Ao trabalharmos com seus textos, pudemos
aliar com mais exatidão os objetivos de nossa sequência didática. Promovemos, assim,
uma condição maior de entendimento através das crônicas de Clarice para o Jornal do
Brasil já que estas, como a autora bem frisou, apresentam uma forte carga pessoal. Estas
experiências com as crônicas em sala de aula foram muito positivas porque os alunos
passaram a observar uma relação mútua entre texto-autor-leitor, como enfatiza Tonico
(2013, p. 140): “na medida em que, mais que a obra, ele “lê”, por meio dela, o (s) mundo
(s) do autor e dele próprio, leitor. ” Ressaltando, assim, na forma que os textos de Clarice
eram assimilados e recebidos pelos alunos.
Também foi apresentado para os alunos o viés profissional de Clarice: o seu papel
de jornalista na imprensa brasileira. Além das crônicas, apresentamos, também, as colunas
femininas e uma Clarice entrevistadora (repórter). Iniciamos nosso trajeto no jornalismo
clariceano distribuindo para os alunos os conselhos de moda, bem-estar, dicas de beleza e
etiqueta que a autora publicava nos periódicos da época de 1950/60, sob os pseudônimos
Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares. Logo após, contextualizamos a época e a
forma que Clarice enveredou para o jornalismo brasileiro. Foram apresentadas outras
páginas femininas (com colunas das três ‘’ personalidades’’ que Clarice adotou), crônicas e
uma entrevista que autora realizou com o cantor e compositor Chico Buarque de Holanda.
Sobre este viés jornalístico da autora, a pesquisadora Aparecida Maria Nunes frisa que:
E também sem perceber, à medida que escrevia para aqui [Jornal do
Brasil], ia me tornando pessoal demais, correndo o risco daqui em
breve de publicar minha vida passada e presente, o que não
pretendo. (...) Não é que desagrade mudar, pelo contrário. Mas
queria que fossem mudanças mais profundas e interiores que então
viessem a se refletir no escrever. (LISPECTOR, 1998, p. 113)
O lado romancista de Clarice Lispector foi apresentado para os alunos através de
seu último romance publicado em vida: A Hora da Estrela. Lançado em 1977, à história da
nordestina Macabéa foi apresentada nos dois últimos encontros de nossa sequência
didática, após a sala se familiarizar com a escrita da autora.
Como se trata de um gênero narrativo mais extenso, selecionamos os trechos
considerados mais importantes para a turma pudesse compreender o livro. Dentre os
fragmentos selecionados, apresentados as descrições das quatro personagens principais:
Macabéa, Olímpico, Glória e Madama Carlota. Além das descrições apresentadas, nós
intercalamos a leitura dos fragmentos com trechos do filme de 1985, baseado no romance
de Clarice e com a atriz paraibana Marcélia Cartaxo no papel da imigrante nordestina.
Evidenciamos para a sala o caráter social da obra. Pela primeira vez a autora
adentrava no social dentro da literatura. José Castello enfatiza que este lado social na obra
de Clarice foi fundamental para que:
A Hora da Estrela foi responsável por despertar nos alunos o lado sensível,
emotivo. Ao lermos os fragmentos (principalmente aqueles que se referiam à Macabéa) os
alunos evidenciavam seus sentimentos de compaixão pela personagem. Afinal a literatura
Afinal, ao lado da literatura, a imprensa sempre fora uma constante
na vida da escritora. O fato é que, naquela ocasião, Clarice buscava
na imprensa veículo para divulgação de seus escritos literários. E,
por isso, com certa impetuosidade, ia ter com editores de
importantes revistas literárias da capital. (NUNES, 2012, p. 23)
Ao contrário: o oitavo romance de Clarice é uma magistral reflexão
a respeito não só da complexidade do real, mas de nossa
incapacidade para fisga-lo. Como ela mesma disse certa vez, na
esperança de capturar a realidade, lançamos a palavra como isca;
mas ao puxar o anzol da língua, a palavra já incorporou a coisa, e
tudo o que temos é, mais uma vez, a palavra – isto é, uma
representação da Coisa, e nada mais. (CASTELLO, 2011, p. 209)
possui o esforço que une autor e leitor que produz, portanto, o objeto concreto e imaginário
que é a obra do espírito (BAKTHIN, 2003).
Para nos ajudar a fixar os conteúdos abordados sobre Clarice, utilizamos como
suporte meios artísticos que dialogassem com os assuntos que expusemos durante a
vigência do Estágio Supervisionado. Estes meios foram fundamentais para que as análises
dos gêneros narrativos fossem melhor recepcionados pelos alunos. Para que estas
percepções práticas provocassem um bom resultado, nós selecionamos peças teatrais,
filmes, documentários e poemas que pudessem manter uma relação de proximidade com as
obras que foram trabalhadas e que pertencem à Clarice Lispector. Robson Coelho Tonico
destaca que este trabalho dialógico entre texto literário e meios artísticos de comunicação
faz com que os alunos busquem um novo meio de leitura e compreensão do texto que está
sendo exposto em sala. Ele, Tonico, ainda frisa que:
Deste modo, fica perceptível que estas ferramentas artísticas se tornaram
imprescindíveis para o andar da sequência didática. Os contos, crônicas e romances de
Clarice puderam ser compreendidos com mais exatidão por parte dos alunos e os meios
artísticos (documentários, filmes, poemas etc.) aliaram-se aos textos clariceanos para que,
assim, se pudesse chegar a um entendido mais verossímil, com um melhor aproveitamento
dos encontros formulados e aplicados no Estágio Supervisionado – Literatura.
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estágio Supervisionado foi o período que nós pudemos associar as perspectivas
teóricas com as práticas, intercalando-as para obtermos um resultado satisfatório.
Percebemos que se fez mister nos apropriarmos de uma postura crítica e reflexiva de nossa
Sob tal processo o leitor, progredindo de descoberta a descoberta,
ao mesmo tempo avança, e percebe que a compreensão do que é
lido se modifica, na medida em que cada novo elemento imprime
uma nova dimensão aos elementos antecedentes, repetindo-os,
desenvolvendo-os ou os contradizendo. (TONICO, 2013, p. 142)
prática educativa e a partir dela, pudemos buscar uma educação de qualidade. A disciplina
de Estágio Supervisionado nos possibilitou repensar a ação docente através das
experiências vividas por nós e dos conhecimentos adquiridos nas aulas teóricas do
componente curricular, da qual construímos durante o nosso período de estágio que serão
válidos para a aplicação em sala de aula como futuros profissionais. Diante de tudo que foi
exposto, pudemos perceber que, através da leitura, é possível desconstruir estigmas
direcionados aos textos de Clarice Lispector, bastando ao professor empenho, leitura para
que, assim, desperte em seus alunos o prazer que as produções lispectorianas fazem surgir
em nós, leitores.
6- REFERÊNCIAS
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