Download - 2002 Afonso Bandeira Florence
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AFONSO BANDEIRA FLORENCE
ENTRE O CATIVEIRO E A EMANCIPAO:A LIBERDADE DOS AFRICANOS LIVRES NO BRASIL
(1818-1864)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria como requisito parcial para aobteno do grau de mestre em Histria, sob aorientao do Prof. Dr. Joo Jos Reis.
SALVADOR2002
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Agradecimentos
Comecei essa pesquisa h algum tempo e obtive auxlio de muitas pessoas, o quetorna impossvel a tarefa de agradecer a todos.
Agradeo aos funcionrios das diferentes instituies em que pesquisei, semprecom maravilhosa acolhida, em especial aos da Faculdade de Filosofia e Cincia Humanas
da Universidade Federal da Bahia, na pessoa dos funcionrios da secretaria do Programade Ps-graduao em Histria e da biblioteca Soraia Ariani e Marina da Silva Santos.
Agradeo aos colegas do Departamento de Histria da Universidade Catlica doSalvador, em especial a Ventia Braga e Neivalda de Oliveira. Aos estagirios doLaboratrio de Conservao e Restaurao Reitor Eugnio de Andrade Veiga naspessoas de Cludia Trindade, Karina Uchoa e Karina Leo pelo apoio na fase final dotrabalho.
Agradeo a todos os colegas e professores do Mestrado em Histria, em especialao meu orientador Prof. Dr. Joo Jos Reis pelas muitas crticas e sugestes, alm doirretocvel exemplo intelectual.
Finalmente, a todos da minha famlia pelo eterno apoio incondicional, em especial aJeanne.
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Resumo
Este trabalho discute as diferentes vises da liberdade dos africanos livres
atravs de peas de Martins Pena, Memrias, Legislao e Debates Parlamentares ePeties de Liberdade. Defendo a idia de que ela foi, sempre, um terreno em disputa,ganhando diferentes significados.
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Indice
Introduo 01
Captulo 1 06A liberdade vista de cima, ou a liberdade "bem entendida": vises da elitesobre os "africanos livres" no Imprio do Brasil
Captulo 2Disciplina e dominao: os concessionrios e a liberdade dos africanoslivres
Captulo 3A liberdade vista de baixo: um (curto) caminho para "sobresi tratar seos haveres"
ltimas palavras
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Fontes 109
Bibliografia 111
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Introduo
D. Clemncia conversava na sala de sua casa com um homem identificado
pela alcunha de Negreiro, que era um rico traficante de escravos, e com o
sobrinho Felcio, um funcionrio pblico.
Clemncia - ...A propsito, j lhe mostrei o meu meia-cara, que recebi ontem na Casa da Correo?
Negreiro - Pois recebeu um?Clemncia - Recebi, sim. Empenhei-me com minha
comadre, minha comadre empenhou-se com a mulher dodesembargador, a mulher do desembargador pediu aomarido, este pediu a um deputado, o deputado a um ministroe fui servida.
Negreiro - Oh, oh, chama-se isto transao ! Oh, oh!Clemncia - Seja l o que for; agora que tenho em
casa, ningum mo arrancar. Morrendo-me algum outroescravo digo que foi ele.
Felcio - E minha tia precisava deste escravo, tendoj tantos?
Clemncia - Tantos? Quanto mais melhor. Ainda eutomei um s. E os que tomam aos vinte e aos trinta? Deixa-te disso, rapaz. Venha v-lo, Sr. Negreiro.[(saem.)]'
Distinta senhora, comerciante remediada da Corte do Rio de Janeiro, ela pensava
ter ficado viva porque o seu marido, o Sr. Alberto, viajou a trabalho para a
provncia do Rio Grande do Sul e, preso pelos farroupilhas, no voltou nem deu
notcias. Assim, ela que tinha duas filhas, Mariquinha e Jlia, esforava-se para
arrumar casamento para si, pois no se considerava velha e acreditava ainda
possuir "alguns atrativos", e para Mariquinha, a mais velha.
Havia trs pretendentes para Mariquinha, dois deles da sua preferncia,
Negreiro, um traficante de escravos; e um ingls espertalho que pedia
emprstimos para construir uma mquina que transformaria bois em beef, roast-
' Este um dilogo da primeira cena de "Os dous ou o ingls maquinista", pea em um ato de Martins Pena,Comdias de Martins Pena, Ediouro, s/d, p. 67.
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beef, fricand, sapatos e botas, pentes, cabos de facas, etc.. 0 terceiro, de quem
ela desconhecia as pretenses, era o seu sobrinho Felcio, por quem Mariquinha
era apaixonada.
Esta trama transcorre no ano de 1842, quando o trfico internacional de
africanos para o Brasil j tinha sido proibido pela lei de 7 de novembro, de 1831.2
Esta lei determinava que os africanos traficados ilegalmente e confiscados dos
traficantes deveriam ser entregues a instituies pblicas ou a particulares,
preservado o seu "status" legal de homens e mulheres livres.3 Africanos em
situao semelhante daquele que D. Clemncia chamou de "meia cara" tinham,
portanto, sua situao legal definida como "ai -icanos livres".4 Estimativas apontam
para a existncia de cerca de 11.000 deles no imprio.5
Se havia uma legislao que atribua queles africanos a condio de livres
e, mesmo assim, D. Clemncia dispunha-se a proceder daquela forma fica a
pergunta: quais eram os significados desta liberdade? Que liberdade era
experimentada pelos diferentes sujeitos daquele processo? A definio da
liberdade daqueles africanos deu-se num processo de intensas disputas polticas
em torno da construo do Imprio e, simultaneamente, do destino da escravido
2 Colleo de Leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878. 1831, Lei de 7 deNovembro de 1831, pp. 182-184; para uma coletnea da legislao, ver Da R. Feneln, "Levantamento eSistematizao da Legislao Relativa aos Escravos no Brasil", Revista de Histria, n2 (1973), pp. 199-307.3 Vale observar que inicialmente as apreenses eram feitas pela marinha inglesa ainda no mar, ou em terraaps o desembarque, por representantes do governo imperial.4 Sobre o tema, ver Agostinho Marques de Perdigo Malheiro, A escravido no Brasil,- Ensaio Histrico-Jurdico-Social, So Paulo: Cultura, 1944, pp. 222 e passim; Robert Conrad, Tumbeiros: o trfico escravistapara o Brasil, So Paulo: Brasiliense, 1985; Jaime Rodrigues, "Ferro, trabalho, e conflito: os africanos livresna Fbrica de Ferro de Ipanema", Histria Social, 4-5 (1998), pp. 29-42; Luis Henrique Dias Tavares, "Oprocesso das solues brasileiras no exemplo da extino do trfico negreiro", Revista de Histria, 72 (1967),pp. 523-537; Jorge Luiz Prata de Sousa, Africano livre: trabalho, cotidiano e luta, Tese de Doutorado,Universidade de So Paulo, 1999; Luciano Raposo de A. Figueiredo, "Uma jia perversa", in Marcas deCM rui us li.stu.s dc escravos emancipados vindos a bordo de navio negreiros (1839-1841), Rio de janeiro:Arquivo Nacional: CNPq, 1989, pp. 1-28; Afonso Bandeira Florence, "Nem escravos nem libertos: osafricanos livres na Bahia", Revista do CEAS, 121(1989), pp. 58-69; Luiza Helena Schmitz Kliemann,"Novas fontes de pesquisa sobre escravos e africanos livres no acervo do Centro de Documentao ePesquisa da Irmandade da Santa Casa de Misericrdia de Porto Alegre", Sociais e Humanas, 3-1 (1989), pp.51-64; Beatriz Galloti Mamigonian, "Do que o `preto mina' capaz: etnia e resistncia entre africanoslivres", Afio-sia, 24(2000), pp. 71-95.s Souza, Africano livre, p. 132; Conrad, Tumbeiros, p. 174.
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em geral e do trfico de escravos em particular. Como corolrio surgiu tambm o
debate a propsito do destino dos africanos livres. Este debate, travado no seio
da elite poltica imperial, esteve sempre circunscrito pelas discusses sobre
outros temas mais gerais que o contextualizavam, como a concesso da
cidadania para os forros e a insurgncia africana.
A historiografia sobre os africanos livres tem abrangido temas variados
desde os aspectos legais at sua distribuio por instituies pblicas e
particulares, seu trabalho, suas condies de vida e suas lutas. Quanto sua
liberdade, tem sido muito comum a afirmao de que no existia ou,
parafraseando uma expresso popular sobre a lei de 1831, teria sido "para ingls
ver". Tavares, quando tratou deste assunto, o fez enfatizando a dicotomia entre a
escravido e a liberdade, e retomou uma expresso popular perspicazmente
apropriada por Martins Pena, chamando-os de "meia cara".6
Conrad, que os chamou de "emancipados", construiu uma formulao mais
matizada para expressar a contradio da situao em que estavam colocados:
"os emancipados, pode-se concluir, foram um grupo estranho na sociedade
brasileira, vivendo em uma espcie de purgatrio legal (e ilegal) entre a
escravido e a liberdade".' Aqueles africanos estariam, portanto, entre o inferno
da escravido e o paraso da liberdade. Metforas discutveis se considerarmos a
recente historiografia social das experincias de vida de africanos e crioulos no
Imprio.8
Luis Henrique dias Tavares, "O processo brasileiro".Conrad, Tuinheiro.s, p. 186.Joo Jos Reis. "$laves as agents of history: a note on the new historiography of slavery in Brazil", Cincia
c Cultura, 51(5/6), 1999, pp. 437-445.3
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Alguns autores, na inteno de condenar a negligncia do governo para
com seu compromisso de garantir a liberdade dos africanos livres, acabaram
carregando nas tintas. Luciano Raposo, por exemplo, afirma que eles "no
encontravam a liberdade. O som da palavra `livre', no momento em que a
Comisso pronunciava a sentena dos navios condenados, apenas anunciava
uma liberdade que estava a anos luz dali".9 Mesmo Souza, que produziu a mais
recente e detalhada abordagem sobre os africanos livres, incorreu nesta
ambigidade confundindo-os com os traficados ilegalmente e escravizados ou,
simplesmente, com os emancipados.10
Para discutir o assunto, interessante comear destacando que, se de um
lado identific-los como livres pode significar a reproduo do discurso de
importantes parcelas das elites polticas, vendo na sua condio uma realidade da
qual no desfrutavam; por outro identific-los como escravos pode significar a
reproduo da viso que outra parte, tambm considervel, da elite proprietria
possua dos africanos livres, a partir da associao de africanos com escravos.
Seria o caso de D. Clemncia
No desejvel que a propenso crtica, inteiramente pertinente,
situao em que esses africanos se encontravam acabe por simplificar demais a
abordagem da diversidade e relevncia das disputas polticas no interior das elites
imperiais no momento em que sua liberdade foi legalmente definida. Ou seja,
razovel colocar em discusso os termos atravs dos quais a elite poltica
Cf. Raposo, "Uma jia perversa", pp. 1910 Souza, Africano livre, pp. 11, 18, 19, 21-22.
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construiu os significados para a liberdade daqueles africanos , o que tentei fazer
no primeiro captulo . Como a aplicao das leis se reveste de novas disputas
polticas , considero importante discutir , tambm , as vises dos concessionrios
sobre a liberdade daqueles africanos , o que tento fazer no segundo captulo. No
captulo final , busco discutir as diferentes leituras de liberdade construdas pelos
prprios africanos livres, assim como por escravos que, ao saberem que foram
importados ilegalmente, lutaram para serem reconhecidos como africanos livres.
Norteei a elaborao deste trabalho a partir da idia geral de que , no transcurso
das suas existncias, nenhuma destas representaes construdas sobre a
liberdade dos africanos livres foi esttica , ou possuiu o mesmo significado para os
diferentes sujeitos desta histria.Para isto , alm das peas de Martins Pena utilizo, principalmente, os
debates parlamentares, a legislao e as memrias escritas por representantes
das elites imperiais , no caso do primeiro captulo ; e processos de emancipao de
africanos livres originados nas peties com que eles solicitavam sua
emancipao, nos dois outros.
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Captulo 1A liberdade vista de cima, ou a liberdade "bem entendida":vises da elite sobre os "africanos livres" no Imprio do Brasil
A primeira determinao legal sobre o destino a ser dado aos africanos,
traficados ilegalmente e confiscados dos traficantes julgados e condenados, foi
estabelecida na Conveno Adicional s Resolues do Congresso de Viena
(1815), quando os governos portugus e ingls, alm de concordarem em limitar
o trfico de escravos para o Brasil ao sul da linha do Equador, e regulamentar as
comisses mistas, estabeleceram que, quando condenados os navios flagrados
no trfico ilegal, os africanos neles apreendidos deveriam receber das Comisses
Mistas uma "carta de alforria". Aps o que seriam empregados como "criados" ou
"trabalhadores livres".' Com o Alvar de 1818, D. Joo VI estabeleceu novas
medidas punitivas para os traficantes condenados, determinando o confisco de
bens e o degredo para os donos capites e "oficiais" de navios, alm dos
compradores de escravos, condenados por trfico ilegal, e vetando o direito ao
seguro de embarcaes negreiras. Quanto aos traficados ilegalmente como
escravos, determinava sua entrega aos juizes da Ouvidoria da Comarca ou, na
falta desses, Conservadoria dos ndios, e estabelecia que eles deveriam
trabalhar quatorze anos para a Coroa ou para particulares. 2
J neste documento pode-se identificar uma significativa ambigidade.
Numa sociedade organizada em torno da escravido africana, determinar que
aqueles africanos poderiam ser empregados na condio de criados daria
APEB, Mao 626, Conveno Adicional ao Tratado de 22 de janeiro de 1815 entre o Rei de Portugal e o daGr-Bretanha, 22 de Janeiro de 1817. Para uma abordagem dos tratados internacionais, ver Pierre Verger,Fluxo e refluxo do trfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos sculos XVIIe XIX, So Paulo: Corrupio, 1987, pp. 300-317.2 Colleo de Leis do Imprio, 1816-1819, Alvar de 26 de janeiro de 1818, p. 7.
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margem a um tipo de insero social que os aproximaria significativamente da
condio escrava, mesmo trabalhando em regime de contrato. Uma alternativa,
que seria empreg-los na condio de trabalhadores livres, implicaria em uma
insero mais distinta. No encontrei evidncias que me permitam discutir com
mais preciso a matriz desta armadilha legal, mas a prpria especificidade da
delicada situao poltica, em que tais decises foram tomadas nos d um sinal
de que, se o contedo do Tratado Adicional no correspondia s expectativas da
maioria dos senhores de escravos, possivelmente, tambm o Alvar no refletia
uma posio amadurecida por eles sobre o status dos africanos confiscados dos
traficantes.
Assim, a convenincia daquela definio prevendo a sua permanncia dos
africanos na Colnia e sua insero no mundo do trabalho na condio de
trabalhadores livres, trabalhando tanto para reparties como para particulares,
foi posta em dvida logo aps a independncia. Seja em decorrncia da iminncia
da extino do trfico internacional de escravos, seja em decorrncia do propsito
de se construir uma nova nao, com um determinado grau de homogeneidade,
travou-se no seio da elite poltica imperial, majoritariamente referenciada num
iderio poltico liberal, um importante debate sobre como e porque abolir o trfico
de africanos e a prpria escravido, sobre qual deveria ser o destino da
populao afro-brasileira e as novas condies desta significativa parcela da
populao, em particular os africanos livres.3
A propsito desta conjuntura, ver: Jos Murilo de Carvalho, Teatro de Sombras: a elite poltica imperial,S'o Paulo Vrtice, 1988: do mesmo autor, tambm, A Construo da ordem: rr elite poltica imperial,Braslia: [d. D'a Universidade de Brasilia, 1981; Caio Prado Junior, Formao do Brasil Coantempornzeo, 18ed. So Paulo: Brasiliense, 1983; Paulo Mercadante, Conscincia Conservadora no Brasil, Rio de Janeiro,Ed. Saga, 1965; Sergio Buarque de Holanda, Brasil Monrquico, tomo II, vol. 2, Disperso e Unidade -Histria Geral da Civilizao Brasileira, So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1964; Emlia Viotti daCosta, Da Monarquia Repblica: momentos decisivos, 3a Ed. So Paulo Brasiliense, 1985, pp. 119-138;Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial, jurisconsultos e escravido no Brasil do sculo XIX, Tese deDoutorado, Universidade Estadual de Campinas, 1998; Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema. Afrmao do estado Imperial, So Paulo: Hucitec, 1987; Antonio Candido de M. Souza, "Dialtica da
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Prova de que a soluo apresentada pelo Alvar de 1818 no significava
um consenso no seio da elite imperial pode ser o fato de que, com a aprovao
da lei de 7 de novembro de 1831, ficou determinado que os africanos deveriam
ser reexportados para a frica, com o custeio das despesas sendo atribudo,
como mais uma penalidade, aos traficantes condenados. Esta soluo apontava
em sentido absolutamente contrrio ao anterior.4
Entretanto, muito antes da lei de 31, um importante debate travado no
interior da Assemblia Nacional Constituinte demarcou claramente as posies
majoritariamente existentes no interior da elite poltica imperial sobre as chances
de africanos encontrarem espao para viver tranqilamente na condio de livres.
Este debate tratou da proposta de concesso do direito de cidadania para os
libertos, contida no pargrafo 6 do artigo 5 da proposta de texto constitucional,
apresentada quela Assemblia.5
O deputado Pedro Jos da Costa Barros, vociferou toda a sua indignao
com a proposta, afirmando que,
nunca poderia conforma-me a que se d o ttulo de cidadobrasileiro indistintamente a todo escravo que alcanou carta dealforria. Negros boais, sem ofcio, nem benefcio, no so, nomeu entender, dignos dessa honrosa prerrogativa; eu osencaro antes como membros danosos sociedade 'a qual vmservir de peso, quando no lhe causam males6
Malandragem", Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 8 (1970), pp. 67-89; Richard Graham,Escravido, reforma e imperialismo, So Paulo: Perspectiva, 1979; Marcus J. M. de Carvalho, Liberdade:rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850, Recife: Ed. Universitria da UFPE, 1998; Ana RosaCloclet da Silva, Construo da nao e escravido no pensamento de Jos Bonifcio, 1783-1823;Campinas: Ed. da Unicamp/Centro de Memria da Unicamp, 1999; Antonio Penalves Rocha, A economiapoltica na sociedade escravista, So Paulo: USP/ HUCITEC, 1996.a Colleo de Leis do Imprio, Lei de 7 de novembro de 1831 pp. 182-184; no artigo 2 determinava oenquadramento dos que reduzissem pessoas livres a escravido no artigo 179 de cdigo penal e estipuloumulta de um mil ris por cada africano importado; para a presena da proposta de deportao da populaonegara na primeira metade do sculo XIX ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros. Os escravos/ibe-rio.s e Sua volta 6 frica, So Paulo: Brasiliense, 1985, p. 8 1.
Jos Ilonrio Rodrigues, A Assemblia Constituinte, 1823, Petrpolis: Vozes, 1974.Anais da 4.s.seniblia Constituinte, V, p. 255.
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Ele apresentou uma emenda propondo a restrio da concesso de cidadania
brasileira, limitando-a aos que tivessem emprego ou ofcio. Houve objees a esta
proposta sob o argumento de que s os crioulos poderiam ser beneficiados.
Opondo-se a isto, outro deputado, o Padre Alencar, argumentou que no se
poderia conceder cidadania a todos os "brasileiros" por ferir a lei de proteo do
Estado,
esta lei que nos inibe de fazer cidados aos escravos, porquealm de serem propriedade de outras, e de se ofender por issoeste direito se o tirssemos do patrimnio dos indivduos a quepertencem, amorteceramos a agricultura, um dos primeirosmananciais da riqueza da nao, abriramos um foco dedesordens na sociedade, introduzindo nela um bando dehomens que, sados do cativeiro, mal poderiam guiar-se porprincpios de bem entendida liberdade?
Jos Honrio Rodrigues comentou as posies do Padre Alencar, observando
que "no podia haver princpios mais ordeiros e conservadores que estes que
Alencar defendia: a propriedade, a economia escravocrata, a liberdade bem
entendida".8
Francisco Muniz Tavares preferia que a proposta passasse sem
discusso, no que ele acreditasse tratar-se de uma proposta consensual, mas
porque temia o risco de haitianizao do pas. Temor que o fazia acreditar na
inconvenincia de se tratar tal assunto abertamente,
Talvez entre ns alguns senhores deputados arrastados deexcessivo zelo a favor da humanidade, expusessem algumasidias (que antes conviria abafar), com o intuito de excitar acompaixo da Assemblia sobre essa pobre raa de homens, queto infelizes so s porque a natureza os criou tostados9
Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 255.mangues, A Assemblia, Y. 131.
'Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 265.
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Sua opinio era, portanto, que deveriam "abafar" as opinies que alguns
deputados, por seu "excessivo zelo" a "favor da humanidade", poderiam acabar
por divulgar. Merecem ateno, tambm, os termos com os quais se referiu
queles a quem se cogitava conceder o ttulo de cidadania, "pobre raa de
homens" que eram "to infeliz" apenas porque "a natureza os criou tostados".
Parece que ele no via motivos que legitimassem, ou explicassem, a escravido
dos africanos alm do fato de no serem brancos. Seu uso do termo raa ainda
no possua um significado exatamente "racista", ao menos nos termos mais
notrios pois neste momento ainda no se utilizava a noo de raa numa
perspectiva estritamente "cientfica".10
Jos da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, defendeu posies das
mais liberais entre os parlamentares. Apoiando a concesso da cidadania aos
libertos, argumentou que no seria aceitvel que a nova Constituinte
estabelecesse regras mais retrgradas do que aquelas at ento vigentes.
Posicionou-se contra a distino de direitos entre africanos e crioulos, e entre os
com e sem ofcio." Ciente das questes polticas colocadas para a formao do
pas que se estava construindo, Lisboa j expressava sua preocupao com a
existncia de uma "lei suprema" de "salvao do povo" que, concebido sem a
participao dos libertos, os teria como inimigos: "o que era impossvel e
iniqussimo, alm de ser contra a lei suprema da salvao do povo".12
Mais do que medir suas palavras, Lisboa abordava o tema desde uma
perspectiva de quem acreditava discernir quais seriam os passos necessrios
para que se construsse uma nao socialmente estvel, a partir dos princpios
10 Cf. Lilia Moritz Schwarcz, O espetculo das raas: cientistas, instituies e questes raciais no Brasil(1870-1930), So Paulo: Companhias das Letras, 1993, pp. 47-54 e 67-69.11 Anais da Assemblia Constituinte , V, p. 255." Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 260.
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gerais da liberdade e da igualdade entre os seus membros.13 Assim, ele chegou a
argumentar, muito claramente, que "temor justo deve ser o de perpetuarmos a
irritao dos africanos e de seus oriundos, manifestando desprezo e dio, com
sistema fixo de nunca melhorar-se a sua condio",14
Maciel da Costa achava que s aps casar-se e ter um trabalho que os
libertos poderiam obter o direito cidadania. Os outros continuariam como
estrangeiros no Brasil e, mesmo assim, considerava prefervel para eles ficar aqui
do que retornare frica, "onde vivem sem leis, sem asilo seguro, com elevao
pouco sensvel acima dos irracionais".
Ele defendia o condicionamento do direito de cidadania a uma situao em
que estivesse evidente uma insero do liberto na sociedade atravs do
casamento e do trabalho. Acreditava que o fato de no obterem a cidadania
brasileira no seria necessariamente ruim, porque ainda que estrangeiros, aqui
estariam em melhores condies do que na frica, onde estriam ameaados de
serem escravizados e vendidos por seus "brbaros compatriotas".
Aos argumentos daqueles para os quais a concesso da cidadania era
como uma reparao pelos danos causados pela escravido no Brasil, ele rebatia
afirmando que os senhores no tinham qualquer responsabilidade com o trfico.
Alm do que, acreditava que o fato dos africanos possurem "sociedades
regulares" no os fazia civilizados:
Ns no somos hoje culpados dessa introduo do comrciode homens; recebemos os escravos que pagamos, tiramosdeles o trabalho que dos homens livres tambm tiramos,dando-lhes o sustento e a proteo compatvel com o seuestado; esta fechado o contrato. Que eles no so brbaros,porque, segundo relaes histricas, h entre eles j
Hlio Viana, Coniribuido histria da imprensa brasileira, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional , 1945, p.18.14 Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 265.
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sociedades regulares, como diz o meu ilustre amigo, apelopara o testemunho e a experincia dos que recebem aqui osnavios que os transporta M15
Por outro lado, uma das preocupaes do padre Venncio Henrique de Resende
era encontrar uma forma de amalgamar o novo tecido social que se formava em
uma nao dividida por longa histria de cativeiro e dominao. Por isso, ele via
na extenso do direito de cidadania aos libertos uma forma de mitigar esta
situao. Ele acreditava ser imperioso "curar essa averso que eles [os
escravos]" tinham pelos senhores, fazendo com que passassem a interessar-se
em ligar-se aos senhores pelos laos de cidados, podendo "neutralizar assim o
veneno". 16
Se alguns parlamentares consideraram a idia de concesso de cidadania
factvel, muito provvel que a proposta defendida por Silva Lisboa, que
diferenciava a concesso de cidadania da concesso de direitos polticos, tenha
sido vista como uma forma de viabiliz-la. Neste sentido, ele enfatizava que
ter a qualidade de cidado brasileiro , sim, ter humadenominao honorfica, mas que s d direitos cvicos e nodireitos polticos, que se no tratam no captulo em discusso eque so objeto do captulo seguinte, em que se trata docidado ativo e proprietrio, considervel, tendo as habilitaesnecessrias eleio e nomeao dos empregos polticos doImprio17
Assim, propunha-se a separao entre os direitos "honorficos" de cidadania, a
serem concedidos aos forros, dos direitos polticos, reservados para os
proprietrios. Alis, merece aluso o fato de que, se de fato implementada, esta
proposta no atingiria apenas aos libertos, estendendo-se s parcelas
15 Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 264."' Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 265.17 Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 260.
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empobrecidas da populao branca. o que se pode depreender desta outra fala
de Silva Lisboa: "a propriedade do pobre est nos seus braos e fora do seu
corpo; ele prestando as suas obras e servios pessoais; como jornaleiro e criado
no campo e cidade, vem ser membro til da sociedade".18
certo que as intervenes de Silva Lisboa, pela articulao verbal e
consistncia ideolgica, destacavam-se consideravelmente da mdia dos
parlamentares e, justamente por suas proposies progressistas, podemos
deduzir que, alm de ocasionar eventuais surpresas entre os seus pares,
possivelmente se chocavam com a opinio de um setor muito amplo de
proprietrios de escravos. Entretanto, que no fique a imagem de que se tratava
de um homem que estivesse fora da realidade, alm "do seu tempo" e dos
padres polticos estabelecidos pelos limites de classe estabelecidos pela
escravido.
Prova disso que mesmo defendendo a abolio da escravido,
diferentemente da maioria dos proprietrios, no pretendia v-Ia aplicada de
forma abrupta e sem controle. Ele acreditava que esta era uma lio que se
poderia tirar dos acontecimentos que antecederam a revoluo no Haiti; e
vaticinava: `onde o cancro do cativeiro est entranhado nas partes vitais do corpo
civil so mui paulatinamente se pode ir desaraigando".19
Ele era, assim, um dos primeiros defensores de um processo de abolio
gradual da escravido, atravs da qual a classe proprietria manteria o controle
social e poltico da situao, de forma a conduzir a nao que se formava
18 Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 262.19 Anais da Assemblia Constituinte, V, p. 260.
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constituio de um "corpo civil" purificado do "cancro" da escravido, preservando
assim a "lei suprema da salvao do povo". Lisboa acreditava que a escravido
era um obstculo formao de um "corpo social homogneo e compacto", com
agravante de tratar-se de escravido de negros. Ele os associava barbrie e os
brancos civilizao, superpondo as contradies entre senhores e escravos e
brancos e negros. Apesar disso, apoiado na economia poltica, acreditava na
necessidade da existncia da escravido, e na inconvenincia de extingui-la de
repente.20
possvel que a particularidade do pensamento liberal neste perodo
explique a aprovao desta proposta, mas o debate exps o fato de que a
emancipao de um nmero significativo de escravos, na sua maioria africanos,
era vista com muita reserva, e que, quando defendida, o era numa perspectiva de
aplacar as suas insatisfaes sem conceder-lhes, realmente, prerrogativas
polticas. Parece que neste perodo Antonio Pereira Rebouas teria sido uma das
raras excees no seio da elite poltica a associar, realmente, liberdade e
igualdade.21
Voltemos lei de 31. Parece que nem mesmo ela significava um acordo
tranqilo entre os protagonistas do referido debate. Na sesso de 15 de junho de
1831 do Senado do Imprio, entrou em segunda discusso o projeto que marcavapena para os traficantes ilegais.22 A partir de uma demorada exposio sobre as
"vantagens" da abolio do trfico de africanos para o Imprio, assim como sobre
,o Cf. Antonio Penalves Rocha, A economia poltica, pp. 123-126.21 Viotti da Costa chama o liberalismo deste perodo de herico, Da Monarquia a repblica, pp. 119-138.Sobre Rebouas, ver Keila Grinberg. "O fiador do brasileiros ". cidadania, escravido e direito civil notempo de Antonio Pereira Rebouas, Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2000, pp. 206-208.22 Projeto este que aprovado transformou-se, em 7 de novembro de 1831, na lei anteriormente mencionada.
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o carter "humanitrio" dessa medida, o Marqus de Inhambupe, ento senador,
ops-se possibilidade de se estender o direito de liberdade tambm para os
africanos traficados aps o Alvar de 1818 e justificou que "as desavenas que
podem nascer de tal generalidade, so incalculveis, e o que pode resultar de se
apresentar repentinamente livres 40 a 50 mil pretos, de estremecer!".23
Em to poucas palavras, apresentou argumentos que, como
veremos, realmente sensibilizavam os seus pares. Merece ateno especial o fato
de que uma estimativa de "40 a 50 mil" africanos traficados ilegalmente no
sofreu contestao por parte de qualquer outro parlamentar. Nesse sentido,
plausvel supor que fossem nmeros razoveis na opinio dos principais
protagonistas do debate, ou ainda que fosse um exagero acatado por todos.
Opondo-se concesso da liberdade para os africanos que tivessem sido
importados ilegalmente depois do Alvar de 1818, deixava claro seu temor quanto
provvel dificuldade que encontrariam para manter a ordem pblica diante das
possveis perturbaes decorrentes da presena na sociedade de tantos milhares
de africanos repentinamente emancipados. Como veremos, bem provvel que
outros parlamentares e influentes personalidades da vida pblica tenham
partilhado deste temor, cientes das dificuldades encontradas pelo governo e pelos
senhores para manter a unidade poltica do Imprio e contornar o aumento da
resistncia escrava nos anos vinte.
Talvez j aqui possamos identificar o "medo" de uma certa "ondanegra" entre as principais preocupaes de alguns representantes polticos dos
proprietrios de escravos, mas com caractersticas e magnitude distintas das que
viriam a se apresentar nas dcadas de 70 e 80.24
23 Anais do Senado do Imprio, Sesso de 21 de junho de 1831.24 Sobre o "medo" na Segunda metade do sculo XIX ver, Clia Marinho de Azevedo, Onda negra, medohrunco; o negro no imaginrio d(rs clipes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 120 e passim. Sobre as lutas
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Para discutir que medo era este, ou o que estava por traz dele, podemos
continuar a percorrer a disputa, no interior da elite imperial, em torno da liberdade
dos africanos importados ilegalmente. Para isso, convm observarmos as
posies de Jos Bonifcio de Andrade e Silva. Poltico influente, defensor de
posies reconhecidamente liberais, Bonifcio tambm foi tido como voz
dissonante no interior da elite poltica imperial durante os primeiros anos da
dcada de vinte. Desde 1823 defendera a liberdade por indenizao de preo e a
concesso de "pequenas sesmarias de terra" que para os "homens de cor forros",
sem ofcio, pudessem cultiv-las. Posio certamente pouco comum entre os
membros da elite proprietria. Talvez por isto, quando na dcada de 1880
Joaquim Nabuco a ele se referiu, afirmou que suas idias "concorreram para
fechar ao estadista que planejou e realizou a independncia a carreira poltica em
seu prprio pas".25
De outra parte, para matizar sua trajetria poltica, vale destacar que
quando participou do ncleo hegemnico nos primrdios do imprio, e ocupou o
importante Ministrio do Imprio e do Estrangeiro, tomou medidas que ganharam
a oposio decidida de liberais renomados. Foram justamente neste sentido as
crticas de Cipriano Barata a seu ex-colega da universidade de Coimbra. Assim,
quando o assunto era a estabilidade poltica do Imprio, Bonifcio, que segundo
Nabuco tivera a sua carreira poltica prejudicada pela defesa de posies
abolicionistas no titubeou em adotar posies que o distanciavam daqueles que,
escravas na primeira metade do sculo e sua repercusso na conjuntura poltica ver Dale T. Graden "Umalei... at de segurana pblica : resistncia escrava, tenses sociais e o fim do trfico internacional de escravospara o Brasil ( 1835-1856 ), Estudos Afio-Asiticos 30(1996), pp. 113-149; especialmente Joo Jos Reis,Rebelio escrava no Brasil
_ A histria do levante dos mals (1835), So Paulo: Brasiliense , 1986 , pp. 64-83.25 Apud Sidney Chalhoub , Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na corte,So Paulo : Companhia das Letras , 1990, p. 194.
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talvez, pudesse persuadir no debate sobre a escravido, isto , distanciou-se de
liberais, como Cipriano Barata.26
Na sua "Representao Assemblia Geral Constituinte e Legislativa do
Imprio do Brasil sobre a escravatura", Bonifcio defendeu idias que, sem
dvida, fizeram muitos dos seus colegas "estremecerem". Ele defendeu, por
exemplo, que os africanos e seus descendentes possuam caractersticas
humanas semelhantes s dos brancos, opinio alis muito parecida com algumas
idias expressas por Lisboa na Constituinte, e que poderiam ser confundidas
pelos senhores mais exaltados como contrrias ao direito de propriedade: "se os
negros so homens como ns e no formam uma espcie de brutos animais, se
sentem e pensam como ns, que quadro de dor e misria no apresentam eles
imaginao de qualquer homem sensvel e cristo?".27
Esta reflexo de Bonifcio no explicvel apenas como mera escolha
filosfica. Seu propsito era muito claro. A extino do trfico, e a abolio
gradual da escravido tinham por objetivo "formar, em poucas geraes, uma
nao homognea", convergindo neste sentido com Lisboa. Assim, a "populao
heterognea" era um obstculo construo e manuteno da unidade poltica do
Imprio. possvel identificar outras posies de Bonifcio muito distantes
daquilo que era, naquele momento, aceitvel para a maioria dos parlamentares
sempre muito preocupados com os interesses dos proprietrios de escravos. Mas,
quando o assunto era ordem pblica e unidade poltica do Imprio, ele ponderava
suas posies. Ao se posicionar pelo fim do trfico e pela emancipao gradual
'" Cipriano Barata acusava Bonifcio de preterir o princpio da liberdade em beneficio da estabilidadepoltica, Ver Marco Morel, Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade, Salvador: Academia de Letras daBahia/ Assemblia Legislativa do Estado da Bahia, 2001, pp. 151-153; Paulo Garcia, Cipriano Barata, ou aliberdade acima de tudo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 133.27 Jos Bonifcio de Andrada e Silva, "Representao Assemblia Geral e Constituinte e Legislativa doImprio do Brasil sobre a escravatura" in Memrias sobre a escravido, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,Fundao Petrnio Portela, Ministrio da Justia, 1988.
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dos escravos, registrou sua convico de que assim se poderia "converter brutos
imorais em cidados teis, ativos e morigerados".28
Essa transformao serviria como preveno contra a possibilidade de
descontrole social advindo do dio nutrido pelos africanos e cativos em geral
contra os brancos, que ele atribua aos efeitos que a escravido causava sobre os
homens. No entanto, parece que parte dos "males" que ele via os negros
ocasionar aos brancos no tinha origem na escravido. Quando buscava
desqualificar tanto as leis, quanto a experincia da escravido romana
incompatveis com a escravido no Imprio, um dos argumentos por ele
apresentados era o fato de que
como os escravos de ento eram da mesma cor e origem dossenhores, e igualmente tinham a mesma ou quase igualcivilizao que a de seus amos, sua indstria, bonscomportamentos e talentos os habilitavam facilmente amerecer o amor de seus senhores e a considerao dos outroshomens - o que de nenhum modo pode acontecer, em regra,aos selvagens africanos29
Este carter "selvagem" dos africanos teria sido um dos fatores responsveis pelo
fato de que no imprio os senhores no tinham amor por seus escravos,
enquanto os outros homens livres no lhes tinham considerao. Assim, para
alm dos males oriundos do cativeiro, os africanos e seus descendentes teriam
sido portadores de um "mal de origem" que os sobre-marcava na escravido, e
que contribua para o embrutecimento dos homens, tanto escravos como
proprietrios, justificando a tese de que os primeiros no estavam preparados
para uma liberdade repentina. No artigo 7 de seu plano de abolio os senhores
que forrassem gratuitamente seus escravos poderiam ret-los em seu servio por
Idem, p. 69.Idem, p. 65.
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cinco anos, sem qualquer nus, numa espcie de alforria condicional. Apesar
disso, Bonifcio acabou posicionando-se de forma diferente da grande maioria
dos seus contemporneos quanto ao destino a ser dado populao negra.30
Mesmo Barata, que criticara Bonifcio pela prioridade dada estabilidade
poltica, em detrimento da liberdade, no o fez em nome dos escravos. Referira-
se, na verdade, liberdade poltica dos senhores e cidados livres. A propsito
dos africanos e seus descendentes, na conjuntura do movimento baiano de 1798,
ele disse: "temos escapado do grandssimo desastre da rebelio dos escravos,
mulatos e negros; ainda o sangue de todo no se aqueceu, visto o perigo que
temos andado expostos. Meu amigo, cautela com essa canalha africana ,.31
Apesar destas posies, Barata era, sistematicamente, acusado de tentar
promover levantes de escravos, o que ele sempre refutou.32 Mais do que isto,
Barata tambm condenou a escravido, e atribuiu a ela a responsabilidade pelas
dificuldades de manuteno da ordem constitucional nos primeiros anos do
Imprio.33
Houve tambm aqueles que, em momentos especficos e com argumentos
diferentes, defenderam a legitimidade do trfico de escravos reconhecendo,
entretanto, por motivo de segurana, a necessidade do seu fim. Eles, apesar de
matizes prprias, tambm reputavam os africanos e seus descendentes no
Imprio do Brasil como inferiores aos de descendncia europia. Joo Severiano
Maciel da Costa escreveu uma memria, tambm no incio da dcada de 20, onde
se ops continuidade do trfico alegando seu carter desumano e anticristo,
assim como a necessidade de evitar a multiplicao de uma "populao
30 Andrada e Silva, "Representao Assemblia Geral", p. 71.31 Carta de Cipriano Barata ao capito e senhor de engenho Luis Gercent, apreendida em setembro de 1798,Apud. Morel, Cipriano Barata, p. 66.32 Morel, Cipriano Barata, pp. 249-250.33 Morel, Cipriano Barata, pp. 130-132.
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heterognea" e sem "vnculo social". Maciel conseguiu sistematizar a sua viso e
provavelmente de grande parcela da classe proprietria, sobre como deveria ser o
Imprio: "H, em um Imprio, desde a charrua at o trono, uma cadeia bem tecida
de cidados de diferentes classes e condies, os quais trabalhando, para assim
dizer, cada um na sua esfera, concorrem insensivelmente e quase sem o
saberem para o bem geral".34 Trata-se da representao de um Imprio
harmnico onde reinaria a paz social, cada um cumpriria o seu dever e todos
estariam ligados por um "interesse comum". Mas ele prprio considerava que tal
representao no correspondia realidade existente: "s os escravos so
desligados de todo o vnculo social e, por conseqncia, perigosos".35
Eles eram a nica exceo daquele conjunto ordenado e harmnico.
Maciel, ento deixava claro qual seria a composio social mais adequada para
que se atingisse tal situao no Imprio,
verdadeira populao - a que faz a slida grandeza e fora deum imprio - no consiste em grandes manadas de escravosnegros, brbaros por nascimento, educao e gnero de vida,sem pessoa civil, sem propriedade, sem interesse nemrelaes sociais, conduzidos unicamente pelo medo do castigoe, por sua mesma condio inimigos dos brancos, mas sim emgrande massa de cidados interessados na conservao doEstado e prosperidade nacional e nascidos da propagaobsica, favorecidas por leis bsicas e justas e por um governopaterna 136
Enquanto Bonifcio acusava a origem "selvagem" dos africanos, Maciel via na
"manada de escravos negros, brbaros por nascimentos, educao e gnero de
34 Joo Severiano Maciel da Costa, "Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravosafricanos no Brasil, sobre o modo e condies de remediar a falta de braos que ela pode causar", inMemrias sobre a escravido ".3' Idem, Ibidem.36 Idem, Ibidem.
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vida" uma, seno a principal, origem dos "males" que emperravam a
"prosperidade nacional".
Ele considerava os africanos menos aptos ao trabalho mecnico do que os
ndios, j que os considerava destitudos de "talento": "sabemos mesmo, por
experincia, que os da frica so destitudos de talento, no que so inferiores aosnossos ndios, que tm comprovada habilidade para ofcios mecnicos".37 E
esclarecia que, na sua opinio a
falta de talento dos africanos no porque lhes atribuamosuma organizao inferior dos europeus e mais naes, comoalguns tm avanado, mas julgamos ser efeito das causasmorais que os modificam tanto na frica como nos pases ondeso vendidos38
Sob esta tica ele colocava os africanos na condio de nunca poderem
equipara-se aos europeus, atribuindo-lhes uma desqualificao moral que
fundamentava, para alm da desqualificao do seu legado cultural,
"modificaes" que faziam com que os europeus fossem vistos como
incondicionalmente superiores. Isto era muito importante para um discurso que
pretendia apresentar argumentos lgicos para justificar a legitimidade do trfico, e
ao mesmo tempo defender a necessidade do seu trmino com o propsito de
garantir o status quo. Arrolando argumentos que legitimavam o trfico de
africanos, ele afirmou que,
o estado dos africanos em sua triste ptria (se que este nomemerece) horrvel, porque vivendo sem asilo seguro, semmoral, sem leis, em contnua guerra, e guerra de brbaros,vegetam quase sem elevao sensvel acima dos irracionais,
Maciel da Costa, "Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravos africanos", p. 23.Idem, p. 55.
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sofrem cruel cativeiro e so vtimas dos caprichos dos seusdspotas, a quem pagam com a vida as mais ligeiras falta S39
Posio parecida ele defendera na Constituinte, conforme j vimos. Alm da
referida inferioridade moral, Maciel reduzia "o estado dos africanos em sua triste
ptria" a um patamar "quase sem elevao sensvel acima dos irracionais",
justificando assim o trfico e a escravido como mais justos do que as sociedades
africanas. Baseado-se na economia poltica, combinou a defesa dos interesses da
classe proprietria com uma enorme preocupao com a segurana do Estado.40
Outro memorialista que defendeu a legitimidade da escravido foi
Domingos Alves Branco Muniz Barreto. Em sua "Memria sobre a abolio do
comrcio da escravatura", publicada na dcada de trinta, diferentemente de
Bonifcio, defendeu a licitude da escravido, embora reconhecesse a sua
"influncia nociva". E quanto aos povos africanos, ele tinha opinies bastante
peculiares,
Sendo a honra um princpio geral de estmulo que se conheceem todo o mundo, no pode causar admirao que os pretosafricanos gozem tambm deste atributo. Eles, sendo como so,robustos pela sua organizao, muitos tambm se distinguempela riqueza da sua imaginao mostrando assim que no sode diferente massa que os demais homens, mas sim diferentecor.41
3' Maciel da Costa , "Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravos africanos", p. 55.40 Ver Rocha, A economia poltica, pp. 145-149.4i Domingos Alves Branco Muniz Barreto , "Memria sobre a abolio do comrcio da escravatura" inMemrias sobre a escravido , pp. 85.
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Parece que Muniz Barreto no centrava suas opinies na idia de que os
africanos fossem inferiores aos europeus do ponto de vistas das suas tradies
culturais. Para defender o trfico, ele alegava que com ele se evitava o extermnio
dos presos de guerras intertribais e, tambm, que os africanos traficados como
escravos seriam levados ao cristianismo, dando destaque, a sim, ao componente
religioso. Neste ponto sua formulao se aproximava daquela apresentada por
Maciel, embora sem aquela clareza de definio quanto caracterizao dos
africanos, ou com esta defesa enftica da importncia da converso religiosa.
Muniz Barreto escreveu a sua "Memria" em outra conjuntura, quando as
presses inglesas no sentido da extino do trfico internacional de escravos se
tornaram bastante insistentes. Como muitos outros membros das elites polticas,
ele as via como intencionalmente voltadas para privar o pas dos braos
necessrios a sua agricultura, impedindo assim o seu crescimento e
subordinando-o. Parece que, salvo o aspecto religioso, ele foi um dos poucos que
no insistiu numa caracterizao da populao de origem africana como inferior.
Burlamaque tambm escreveu sua "Memria" num perodo bem diferente
daquela dos anos 20, pois j tinha como fato consumado a extino do trfico de
escravos, assim, ele refutava qualquer defesa deste. Na sua argumentao sobre
os "males" da escravido e do comrcio de escravos, apresentada Sociedade
Defensora da Liberdade e Independncia Nacional, ele no conseguiu
desvencilhar-se inteiramente da representao do africano como inferior.
Tambm ele acreditava que os africanos transmitiam certos "males" aos brancos
das classes proprietrias. Apesar de atribuir a estes "males" a brutalidade e vcios
gerados pela escravido esclareceu sua opinio: "ns tiranizamos, escravizamos
homens, reduzimo-los a brutos animais e eles nos inculcam todos os vcios e o
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esquecimento de todos os deveres e assim o mal se compensa com o mal
maior".42
Porque os africanos viviam na "barbaridade" e "estupidez bruta",
Burlamaque os considerava co-responsveis pela prpria escravido. Ao criticar a
forma como mesmo as pessoas do "belo sexo" procediam o exame dos escravos
postos venda em locais pblicos, e quase repetindo na ntegra as palavras de
Bonifcio, o que pode denotar uma matriz das suas idias, afirmava que "se os
negros so como ns e no formam uma espcie de brutos animais, se sentem e
pensam, que quadro de dor e de misria tais espetculos no devem produzir no
corao de todo o ente sensvel!".43
Tambm para Burlamaque os africanos e negros em geral eram seres
humanos iguais aos brancos. O que diferenciava o seu discurso em relao aos
de outros memorialistas era o fato de que ele fundamentava sua posio na
natureza anticrist daquela instituio. Alm disso, argumentava que o regime de
trabalho escravo era antieconmico e que a diviso social estabelecida tornava o
"Estado" vulnervel a possveis agressores externos, ou a opositores da ordem
interna.
As posies destes autores, apesar das nuances e matizes diversas,
tinham uma primeira e bsica identidade quanto caracterizao da origem
cultural e tnica da populao afro-brasileira, representando-a como inferior em
relao dos europeus e seus descendentes. Considerando os africanos
"brbaros" e "selvagens", alguns deles reconheciam uma certa legitimidade no
trfico. Outros atribuam aos escravos co-responsabilidade pelo carter brutal,
antieconmico e anticristo atribudo escravido. Alguns acreditava, verdade,
' Frederico Leopoldo Csar Burlamaque, "Memria analtica acerca do comrcio de escravos e acerca dosmales da escravido domstica" in Memrias sobre a escravido, p. 114.43 Burlamaque, "Memria analtica acerca do comrcio de escravos", p. 117.
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que os negros fossem quase inteiramente semelhantes aos brancos , mas como
vimos, alm de serem poucos tiveram enorme dificuldade para se fazerem
compreender . Finalmente, com relao a uma hipottica libertao macia dos
escravos, cada um se ops a seu modo e no seu momento.
Como vimos, tanto constituintes como memorialistas, ao tratar do destino
dos forros tinham como preocupao central a manuteno da ordem social.
Burlamaque , por exemplo , disse claramente : "No se pense que, propondo a
abolio da escravido o meu voto seja de conservar no pas a raa libertada,
nem isso conviria de sorte alguma raa dominante nem to pouco raa
dominada ". E, julgando os interesses coloniais que teriam inspirado a implantao
da escravido disse: "Se o antigo despotismo foi insensvel a tudo, se ele
protegeu com todas as suas foras a introduo de tantos milhes de africanos,
assim lhe convinha, era essa a sua poltica tenebrosa para de ns formar um
povo mesclado, sem esprito de nacionalidade , sem civilizao "44 Era muito
corrente a proposta de criao de colnias na frica para onde seriam enviados
os escravos que aqui fossem libertados, propiciando a homogeneizao
populacional . Isto tornou -se uma prtica aps a revolta de 35. Propunha-se,
tambm, o acompanhamento pelo Imprio da vida naquelas colnias , idias
inspiradas em experincia semelhante posta em prtica pelos americanos do
norte.
Maciel da Costa , por outro lado , argumentou que a introduo no Imprio,
de forma indeterminada, de escravos africanos era contrria segurana e
"prosperidade do Estado ", e defendendo a necessidade de se tomar medidas
preparatrias extino da escravido , disse que:
aa Burlamaque, "Memria analtica acerca do comrcio de escravos", p. 110.25
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Extinguir a introduo de escravos africanos no o grandeponto que mais incomodou os americanos do norte, mas simabolir a escravido dentro do pas. Mil planos se apresentam e notvel que a opinio do clebre Jefferson era que seexportasse os negros para fora do territrio. Isto serve aonosso propsito45
Assim, Bonifcio, que to veementemente combateu o trfico e defendeu a
igualdade entre a populao afro-brasileira e a descendente da europia, props
medidas que visavam incorporar a primeira vida produtiva, Maciel, que tinha
defendido a legitimidade do trfico, apontou os inconvenientes da presena dos
libertos no imprio, e sugeriu sua deportao. certo que a compreenso destas
diferentes posies est para alm da sua lgica interna, refletindo as disputas
em curso no interior das classes dominantes, e as mudanas de conjuntura.46
Algumas das propostas dos memorialistas poderiam ser vistas como
excees mas, prefervel v-Ias como possibilidades que no se concretizaram.
Bonifcio e Maciel da Costa partilhavam de representaes semelhantes sobre os
africanos, muito provavelmente comuns entre outros membros da elite poltica na
primeira metade do sculo XIX. Em geral os tinham como portadores de "males"
inerentes a sua existncia, fossem oriundos de uma formao cultural inferior, ou
de valores morais invlidos por no serem cristos, considerando-os como co-
responsveis pela brutalidade da escravido, e desqualificando-os para uma
liberdade repentina. Mesmo no se tratando da utilizao da idia de diferenas
raciais, efetivaram uma desqualificao a priori dos africanos.47
Buscavam explicaes racionais e solues compatveis com o iderio
liberal vigente. Quando colocavam a proposta de deportao dos africanos e seus
'S Maciel da Costa, "Memria sobre a necessidade de abolir a introduo dos escravos", p. 56.46 Viotti da Costa faz uma instigante discusso sobre as idias desses memorialistas, ver Emilia Viotti daCosta, DA senzala a colnia, So Paulo: Fundao Editora da UNESP, 1988, pp. 392-415.47 Para como a idia de raa s se efetivou no Brasil num perodo posterior, ver Schwrcz, O espetculo dasraas.
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descendentes, a motivao era a mesma: a construo da nao brasileira e a
constituio do seu povo. Por isto a deportao se justificaria como necessria
construo de uma "nao homognea", onde estivessem minimizadas as
contradies geradas pela escravido, sem o que, acreditavam, nunca
alcanariam um Imprio em que as pessoas fossem, nas palavras de Bonifcio,
"verdadeiramente livres, respeitveis e felizes", superando a condio de "um
povo mesclado e heterogneo, sem nacionalidade e sem irmandade".
Se esta viso no pode ser implementada, ao menos da forma como
aparecia no bojo dos discursos daquele momento, especialmente porque a
extino da escravido no foi colocada com a fora necessria na agenda da
elite poltica imperial, ela contribuiu decisivamente para a circunscrio do debate
sobre o destino dos africanos traficados ilegalmente, confiscados das mos dos
traficantes, e dados como "livres".
O fim do trfico e o destino dos africanos livres: novoproblema, mesmas representaes.
Voltemos a 1831, particularmente ao Senado do Imprio, para avaliarmos o
debate dos senadores em relao ao destino que deveriam ter os africanos
importados ilegalmente. Foi em junho daquele ano que entrou em segunda
discusso o projeto que marcava penas para os traficantes presos e condenados.
O Marqus de Inhambupe acreditava que era fato consumado a proibio do
trfico de escravos e, reconhecendo que ele vinha sendo praticado nas "costas
despovoadas do norte", defendia que fossem tomadas providncias para que ele
cessasse.
Quanto ao destino dos africanos, ele considerava que as determinaes
constantes no Alvar de 18 no mais seriam aplicadas, ou seja, acreditava terem27
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ocorrido mudanas polticas que impunham seu aperfeioamento. Neste sentido,
ele concordava que os africanos deveriam ficar livres e sob a responsabilidade
pblica, empregados a trabalhar por um tempo determinado, j que no admitia
que fossem imediatamente libertos porque "no tem inteligncia nenhuma, para
poder procurar os meios de subsistncia; pelo que parece que dar-lhes a
liberdade, faze-los ainda mais desgraados". Ou seja, por pura filantropia, ele
defendia que os africanos fossem colocados para trabalhar sob controle. A
novidade realmente significativa estava no fato dele defender uma reduo do
perodo de trabalho para sete anos, enquanto o Alvar de 1818 determinava
quatorze anos.48 De qualquer forma, tambm ele os considerava "bisonhos" e
sem inteligncia, entendendo que a necessidade de garantir a liberdade dos
africanos advinha do fato deles precisarem providenciar os "meios de
subsistncia", ao tempo em que, de uma s vez, "se industriassem e
industriassem o pas".
O senador Oliveira defendeu a ampliao do direito de liberdade queles
traficados aps a vigncia do Alvar de 1818. Argumentou que um direito to
"sagrado" como a liberdade assegurava a convenincia desta iniciativa. Foi
apresentada uma emenda que estendia o direito de liberdade para todos os que
chegaram depois do referido Alvar.49
O Marqus de Barbacena divergia das duas posies anteriormente
mencionadas. Era contra a manuteno dos africanos no Imprio na condio de
livres, proposta qual ele contrapunha a idia de que deveriam ser remetidos de
volta frica. Era contra a possibilidade de retroao do direito de liberdade que,na sua opinio, se confirmada, "causaria no Brasil inteiro uma desordem, que
48 Anais do Senado do Imprio, 1831, Torno I, pp. 364-365. Cf. com o Alvar de 1818. Ver Colleo de Leisdo Imprio, 1816-1819, Alvar de 26 de janeiro de 1818.4'' Anais do 5000(1o do Imprio, 1831, Tomo 1, p. 365.
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traria aps de si outras que eu calo, mas que todos ns sabemos".50 Posio
bastante prtica, ele no punha obstculos para a liberdade dos africanos,
contanto que eles fossem remetidos para bem longe. Foi a que o Marqus de
Inhambupe fez aquela colocao que j vimos no incio, na qual expressava seu
temor com a libertao de 40 a 50 mil africanos caso a liberdade apreciada para a
lei de 31, fosse estendida a todos os importados aps o Alvar de 18.51
J o senador Albuquerque ops-se permanncia deles, fosse a pretexto
de benefici-los, fosse a pretexto de evitar maiores males agricultura. Ele dizia
que,
o querer-se que estes homens fiquem no nosso pas porbeneficncia, eu acho muito mal intentada beneficncia aquelaque principia por causar grandes danos a quem a pratica. Omaior bem que nos resulta da abolio da escravatura, e que capaz de contrabalanar a falta que, h de sofrer a nossaagricultura, arredarmos esta raa brbara, que estraga osnossos costumes, a educao de nossos filhos, o progresso daindstria, e tudo quanto pode haver de til e at tem perdido anossa lngua pura!52
A preocupao do Senador Albuquerque transcende o problema do controle
social dos africanos, atingindo parte do que, segundo ele, seriam os "grandes
danos" causados pela presena deles no Brasil , tidos como "raa brbara", que
mesmo na situao de dominao em que se encontravam tinham poderes para
"estragar costumes" e "tudo quanto pode haver de til",53
Barbacena dizia concordar com os sentimentos filantrpicos, mas insistia
que se constituiria uma situao muito crtica se houvesse a emancipao de um
nmero muito grande de africanos importados ilegalmente. Havia um outro
problema legal e poltico de grande vulto: referindo-se a eles disse que estavam,
so Idem, Ibidem.5' Idem, Ibidem.'' Anais do Senado do Imprio, 1831, Tomo 1, p. 365.53 Idem, Ibidem.
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na maior parte, vendidos a quarto e quinto proprietrios. Por isso, "se olhasse
para o passado, causaria no Brazil inteiro uma desordem, que traria aps de si
outras", que preferia calar.54
Parece que a maioria dos parlamentares pode visualizar a "to horrorosa
cena", tanto que a emenda proposta no foi aprovada. A lei de 7 de novembro de
31 estabeleceu que os africanos deveriam ser reexportados para frica, logo aps
a condenao dos traficantes. A determinao, expressa nesta lei, de deportao
dos africanos livres, uma evidncia de que era grande a apreenso, de parte
importante dos membros da elite imperial, diante da possibilidade de quebra da
ordem pblica em decorrncia da libertao, e permanncia no Imprio, de um
nmero muito elevado de africanos. 55
Entretanto, o fato que a aprovao desta lei no encerrou a disputa, e a
reexportao no se concretizou. Alegando evitar mant-los, indefinidamente,
recolhidos o governo resolveu distribu-los, supostamente de forma provisria,
pelos estabelecimentos oficiais, ou confi-los a particulares atravs de
arrematao dos seus servios em praa pblica, responsabilizando os juizes de
rfos por seus cuidados. Alm disso, eles deveriam ser imediatamente
devolvidos assim que nova deciso fosse tomada pelo governo.56
Em 1839 o tema voltou a discusso, agora na Cmara. O deputado
Ferreira Pena apresentou um projeto que priorizava a distribuio dos africanos
livres para Cmara Municipal e as obras pblicas de responsabilidade da Corte,
governos provinciais, e companhias nacionais. Apesar disso admitia que, em
a 1auis do Senado do Iniprio, 1831, Tomo 1, p. 365.;; C ollc no de Leis do Imprio, 183 1 , Lei de 7 de Novembro de 1831, pp. 182-184; Colletanea Resumida detodas as Leis e Decretos do Ministrio dos Negcios Estrangeiros e das Relaes Superiores (1808 1 1809),p.85."' Foram neste sentido as principais disposies das instrues de 29 de outubro de 1834 e 19 de novembrode 1835. Ver Perdigo Malheiro, A escravido no Brasil : ensaio histrico , jurdico social, Petrpolis: Vozes,3a Edio , vol II , 1976, p. 61.
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casos especiais, fossem distribudos com particulares.57 Menos de um ms
depois, o deputados Ribeiro de Andrada apresentou outro projeto, no qual
determinava a distribuio de mulheres e crianas menores de 12 anos,
prioritariamente, para reparties pblicas.58
Com o decreto de 28 de dezembro de 1853 determinou-se que os africanos
livres que trabalhassem por quatorze anos para particulares seriam emancipados,
deciso que resgatava a proposta presente no Alvar de 1818. Entretanto, para
terem direito liberdade, os africanos deveriam requer-la.59 Na verdade uma lei
de 4 de setembro de 1850 j tinha proibido a arrematao dos africanos livres por
particulares, e reafirmado a inteno de deporta-los, evidenciando que mesmo
dezenove anos depois da lei de 31 a deportao dos africanos livres ainda tinha
adeptos influentes.60
interessante observar que, depois dos debates da dcada de 1820-30, as
medidas legais foram criadas sem que deixassem evidncia de debates que nos
permitam discutir as transformaes ocorridas nas vises dos parlamentares
sobre a liberdade dos africanos livres nas dcadas de 30 e 40. possvel que
nesta nova conjuntura suas vises sobre a liberdade dos africanos livres
tenham sofrido poucas alteraes em comparao aos termos utilizados pelos
que os precederam. Evidncia disto que as definies legais deste perodo
reproduziram sistematicamente as alternativas colocadas naqueles primeiros
anos Assim, as disputas em torno da liberdade dos africanos livres estiveram
demarcadas por uma longa conjuntura, cortada pelo debate em torno do fim do
57 Anais da Cmara dos Deputados, 1839, Tomo 1, P. 73.58 Anais da Cmara dos Deputados, 1839, Tomo 1, p. 78.59 Decreto 1303 de 28 de dezembro de 1853 em: Bandechi Brasil, "Legislao bsica sobre a escravido noBrasil", Revista de Histria 89 (72), pp. 207-213; ver tambm em Malheiro, A escravido no Brasil, p. 223;Colleo de Leis do Imprio, 1853, Decreto de 28 de dezembro de 1853, pp. 420-421."'' 1alheiro, A escravido no Brasil, 11, p. 172.
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trafico e da abolio da escravido, da liberdade dos africanos e seus
descendentes, que se iniciou na assinatura do Tratado Adicional, passou pela
Constituinte, foi at o debate sobre a legislao anti-trfico travado mais
intensamente a partir da terceira dcada do sculo, com seu desfecho em 50.
Toda ela esteve marcada pela busca dos polticos para adaptar realidade
imperial suas idias liberais. 61 Neste particular, o direito dos africanos livres a
liberdade nunca foi contestada, ao menos no plano formal. Foi colocada como
alternativa, insistentemente, a proposta de reexport-los para a frica. Quando
aceita a permanncia no Imprio, sua liberdade foi sempre concebida desde uma
perspectiva que a circunscrevia a uma insero social que os colocava como
pessoas a serem civilizadas e preparadas para o trabalho, de forma que
pudessem gozar plenamente dela. A soluo adotada, longe de ser a "melhor"
para os africanos, foi a que se chegou como resultado da correlao de foras
intra-elite.
Neste sentido, o trabalho por um determinado tempo para particulares e
instituies pblicas foi posto em prtica como o mecanismo mais adequado.
Africano livre no Imprio da dcada de 1850 passaria, ento, a ser sinnimo de
uma situao passageira atravs da qual seriam civilizados e, posteriormente,
emancipados.
razovel afirmar que o temor experimentado pelas elites dos "males" que
decorreriam da libertao imediata de um nmero to significativo de africanos
tenha sido somado sua representao como brbaros, o que pesou muito na
61 Ver Emilia Viotti da Costa, "Jos Bonifcio; mito e histria", in da Monarquia Repblica; JurandirMalerba, Os brancos da lei: liberalismo, escravido e mentalidade patriarcal no Imprio do Brasil, Maring:EDUEM, 1994; Joseli M. N. Mendona, Entre a mo e os anis,- a lei dos sexagenrios e os caminhos daabolio no Brasil, Campinas: Editora da UNICAMP, 1999; Carvalho, Liberdade; Eduardo Spiller Pena,Pajens da casa imperial; Jaime Rodrigues, "ndios e africanos: do `pouco ou nenhum fruto' do trabalho criao de `urna classe trabalhadora', Histria Social, 2 (1995), pp. 9-24; Alfredo Bosi, "A escravido entredois liberalismos" Estudos Avanados, So Paulo, v. 2 n 3 (1988), pp. 4-39.
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hora dos parlamentares decidirem o destino dos africanos livres. Por isto as
posies expressas no debate ficaram sempre entre a devoluo frica e suadistribuio entre instituies pblicas e particulares, e nunca entre uma delas e a
emancipao. Neste sentido, para a elite poltica, aqueles africanos eram livres.
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Captulo 2Disciplina e dominao: os concessionrios e a liberdade dosafricanos livres
Voltemos agora o olhar a outra trama da dcada de 30. Domingos Joo,
um pequeno fazendeiro, pretendia casar Quitria, sua jovem filha, com Antnio do
Pau-d'alho, que se encontrava na Corte. Como na histria de Mariquinha, Quitria
j tinha cedido seu corao a um jovem pretendente, o astuto Juca. Num
monlogo, j na primeira cena de uma outra pea de Martins Pena, Domingos
Joo apresentava queixas contra as dificuldades enfrentadas na lavoura,
especialmente a do caf, em decorrncia das enchentes ocorridas naquele ano
de 1837.1
Ele acreditava que a falta de trabalhadores contribua decisivamente para o
aumento das dificuldades que encontrava para tocar sua roa. Mas, se para as
chuvas ainda no via soluo ao seu alcance, para a carncia de mo-de-obra
no tinha a menor dvida sobre qual medida tomar: " preciso ir um destes dias
cidade, pra ver se posso comprar alguns meias-caras. O mal estarem eles to
caros. No importa, o que no tem remdio, remediado est, entende o senhor?".2
Assim, Domingos Joo, outro curioso personagem de Martins Pena, via como
remdio para parte dos impasses que enfrentava na lavoura a "compra" de alguns
africanos livres.
emblemtico que o autor tenha apresentado como mecanismo de
obteno dos africanos a "compra", em evidente contraste com a "transao"
efetivada por Clemncia, como vimos no primeiro captulo. possvel que ele
buscasse representar as diferentes formas de obteno de africanos livres que
(f Martins Pena. "A famlia e a festa da roa", in Comedia ele Martins Pena, Ediouro, s/d, pp. 48-64. Peacscnta cm 18?7.
Pena, "A famlia e a festa da Roa", pp. 48-49.
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testemunhara ou, ao menos, aquelas que condenava: a respeitada senhora
comerciante na Corte, possuidora de importantes contatos com prestigiosas
figuras do mundo poltico fazia "transaes"; enquanto o humilde lavrador
interiorano tinha que ir ao mercado "compr-los".
Confirmao desta hiptese pode ser o fato de Maria Rosa, personagem
de Pena em uma terceira pea, conversando com a amiga Aninha sobre o
acmulo do pai desta, Manoel Joo, lavrador mais humilde que Domingos, logo
ter cogitado a possibilidade deste vir a comprar "meias-caras", porm
comentando: "os meias-caras agora esto to caros! Quando havia Valongo eram
mais baratos".3
Originalmente nome de rua, Valongo passou a identificar a regio onde se
concentravam os estabelecimentos de comercializao de escravos na periferia
do Rio de Janeiro. Com o crescimento deste comrcio nas primeiras dcadas do
sculo, o nmero destes estabelecimentos rodeou a casa das duas dezenas.
Estima-se que neles chegaram a estar expostos a venda algo como dois mil
escravos simultaneamente, o que levava esta regio da cidade a ser uma das
mais movimentadas.4 H evidncias de que, inicialmente, tambm os africanos
livres foram depositados em barraces no Valongo, assim como os da Prainha.
Somente em 1835 que se teria estabelecido, formalmente, que seu depsito
fosse feito na Casa de Correo, onde trabalhavam na manuteno.5 Souza
chega a afirmar que pela freqente presena de africanos livres a Correo virou
"o Valongo dos africanos livres".6
3 " "Martins rena, O Juiz de paz da roa in Comdias de Martins Pena, Ediouro, s/d, p. 23." Mary C. Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), So Paulo: Companhia das Letras,2000, pp. 75 e passim; Figueiredo, "Uma Jia Perversa", p. 8.s AN, Documentao Identificada GIFI 5 B 519, "Estado em que se acha a escipturao da matricula geraldos diversos carregamentos d'africanos livres na Corte e Provncias do Imprio", Rio de Janeiro, s/d." Souza, Africano livre, p. 40.
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A distribuio dos africanos livres para instituies pblicas e particulares
deveria ter obedecido a leis que estabeleciam procedimentos que, mesmo na sua
descrio formal, talvez j permitissem uma associao direta com as transaes
e compras "representadas " por Pena. Desde 1818 o governo portugus havia
determinado que os africanos confiscados fossem distribudos para trabalhar
como "libertos" no "servio pblico de mar, fortalezas, agricultura e officios como
melhor convier", podendo tambm serem "alugados" a " particulares de
estabelecimento e probidade conhecida", obrigando -se estes a os "alimentar,
vestir , doutrinar". Foi neste decreto , ainda , que se estabeleceu o prazo de
quatorze anos de prestao de servios pelos africanos , prevendo-se a
possibilidade de diminuio por "dois ou mais annos" daqueles "libertos" que, pela
qualidade dos seus servios e por seus prstimos , demonstrassem merecer o
"pleno direito da sua liberdade".7
A possibilidade de que fossem colocados para trabalhar como libertos
poderia significar sua submisso a uma srie de mecanismos de controle social,
ento experimentados com os ex -escravos, que limitava sua locomoo,
obrigando-os a portar " passaportes " de vigncia limitada, que para serem
concedidos exigia-lhes conduta exemplar comprovada . Tambm no ambiente do
trabalho os libertos eram submetidos a rigoroso controle. De sada, aplicavam-
lhes pesados impostos anuais dos quais s eram isentos os que trabalhassem
nas fazendas ou delatassem conspiraes escravas.
Depois de 1835 na Bahia, os africanos libertos foram proibidos de acumular
patrimnio , sendo que muitos deles , para burlar a lei, registravam seus bens em
nome de terceiros . Dependiam de autorizao judicial para poder alugar ou
arrendar casas. As alforrias condicionais , muito praticadas, funcionavam como
Colleo de Leis do Imprio, 1816-1819, Alvar de 26 de janeiro de 1818, p. 7.36
-
forma de controle social j que os libertos condicionais, na expectativa de
emanciparem-se, eram obrigados a submeter-se aos interesses de proprietrios
que poderiam revog-la em caso de "ingratido".8 Vale lembrar que Jos
Bonifcio, buscando garantias de manuteno do controle social, havia sugerido a
adoo de um modelo de emancipao escrava muito prxima das alforrias
condicionais.9 A soma destes mecanismos funcionou como um forte instrumento
de experimentao da poltica de sujeio pessoal e de formao de camadas
dependentes.'()
Em 1831, como vimos, tinha sido proibido o trfico de escravos para o
Imprio e, em 1834, o ministro da justia determinou que se procedesse a
"arrematao" dos servios dos africanos livres que no fossem necessrios na
Casa de Correo." Pouco depois, foram baixadas instrues regulamentando os
procedimentos de "arrematao" incluindo a preferncia a quem, entre aqueles
que pleiteassem concesso dos servios dos africanos, "mais oferecer por anno
pelos servios de tais africanos".12 A aluso de Maria Rosa aos altos preos dos
africanos livres seria uma referncia a arremataes pblicas, legalmente
previstas. porm possvel que fosse mais uma associao que o personagem
de Martins Pena fazia entre meias-caras e escravos.
A associao dos africanos livres condio de "libertos", a possibilidade
de serem "alugados", e os procedimentos de "arrematao" dos seus servios
8 Sobre o debate sobre as alforrias condicionais como mecanismo de controle social ver Chalhoub, Vises daliberdade, pp. 135-137; Karasch, A vida dos escravos, pp. 460-462; Carneiro da Cunha, "Sobre os silnciosda lei"; Silvia Hunold Lara, Campos da violncia: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988,pp. 264-268.9 Andrada e Silva, "Representao Assemblia Geral", p. 52."' Para libertos ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta -Ili ico. So Paulo: 1985, pp. 62-63 e passim; Malheiro, A escravido no Brasil, pp. 102-103 e passim; Lara,( rrnrpus da vinlc-ncin, pp. 248-249 e passim; Maria Ins Cortes de Oliveira, O liberto: o seu inundo e osuuMos, So Paulo Braslia: Corrupio/CNPq, 1988.
Colleo de Leis do Inmprio, 1834, p. 258, Aviso Justia n 346, 13 de outubro de 1834.12 Colleo de Leis do Imprio, 1834, Aviso Justia n 367, 29 de outubro de 1834; Agostinho MarquesPerdigo Malheiro, A escravido no Brasil, p. 61, Conrad, Turnbeiros, p. 180.
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circunscreviam a insero social daqueles africanos a limites muito conhecidos
pelos senhores de escravos que pretendessem obter a concesso dos seus
servios.
Liberdade: um atalho para a morte?!, ou muita explorao dotrabalho
A enorme proximidade das representaes construdas por Martins Pena
com a experincia dos africanos livres no se esgota nos termos em que foram
definidos os interesses dos personagens Domingos e Manuel Joo. Lembremo-
nos do propsito declarado por Clemncia em relao ao africano livre que
conseguira junto a um ministro: "morrendo-me algum outro escravo digo que foi
ele" 13
Alm da identificao do africano livre como escravo potencial, a que
voltaremos, merece destaque a inteno de Clemncia de substitu-lo pelo
primeiro escravo morto. Conrad j alertou que este era "um truque costumeiro".14
De fato os africanos livres comearam a ser dados como mortos, em grande
nmero, antes mesmo de serem distribudos. Em 1848 o presidente da provncia
do Rio de Janeiro informou ao ministro da justia que dos africanos que
"receberam cartas declaratrias de que so livres" depois de terem sido
apreendidos no Saco do Jurujuba, vinte j tinham morrido, e que isto continuaria a
acontecer se no fossem tomadas providncias no sentido de transferi-los para a
corte, porque ali no havia onde acomod-los com segurana.15 No podemos
13 Pena, "Os dons ou o ingls maquinista", P. 67.14 Conrad, Tumbeiros, p. 178.15 AN, Oficios, Relaes e Processos sobre africanos livres GIFI 1J6 471. Oficio do presidente da provnciado Rio de Janeiro, ao ministro da justia Euzebio de Queiroz Coutinho Mattoso, Rio de Janeiro, 13 deoutubro de 1848.
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dizer se foram trocados mas, como veremos, tambm no podemos descartar tal
hiptese.
A expectativa de que algumas instituies pblicas poderiam abrigar os
africanos livres, garantindo-lhes a liberdade, mantendo adequadamente seus
registros e preservando sua integridade fsica pode no se confirmar quando
deparamo-nos com certas evidncias sobre os africanos concedidos a instituies
como a Santa Casa de Misericrdia de Salvador. Nela abriu-se um livro de
matrcula em 1852 e outro em 1862. Dos cinquenta e quatro africanos que
estavam relacionados na primeiro documento, vinte no constavam do segundo.
Destes, nada menos do que quinze tinham morrido, o correspondente a 57% do
total, sem dvida um nmero muito alto. E apenas um teve a causa da morte
identificada. Dos outros cinco, dois tinham sido remetidos para outros locais e os
trs restantes simplesmente sumiram sem que fosse feito qualquer registro do
seu destino. Vale destacar que, neste caso, o principal compromisso daquela
instituio era "sustentar, vestir, educar e curar os referidos africanos".16 Na
verdade, tratava-se de um compromisso dos concessionrios, que estava
expressa na legislao que regulamentava a arrematao dos africanos livres.17
Mesmo sabendo que aquelas representaes construdas por Martins
Pena, e sintetizadas nas declaradas intenes de Clennncia, podem ter sido
muito vivas no imaginrio popular, e considerando as evidncias trabalhadas por
Conrad sobre os artifcios utilizados pelos concessionrios para trocar os
africanos livres sob sua guarda por seus escravos mortos ou por um escravo
16 Na abertura do livro de 1852 l-se que, pelo "ajuste feito" pela Mesa Administradora da Santa Casa com aPresidncia da Provncia, a instituio tinha como contrapartida a iseno de qualquer pagamento ao poderpblico, pelos jornais correspondentes aos servios dos africanos. Ver Arquivo da Santa Casa deMisericrdia de Salvador, Livro de matrcula dos Africanos Livres, B-200; tambm, Livro de Assentamentodos Africanos Livres da Santa Casa de Salvador, B - 201.17 Colleo de Leis do Imprio, 1818-1819, Alvar de 26 de janeiro de 1818, p. 7.
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pertencente a algum de seus amigos, e mesmo diante de tantas lacunas nos
registros dos africanos livres, no h qualquer evidncia que sustente uma
suspeita de que aqueles quinze falecidos na Misericrdia de Salvador tenham
sido trocados por escravos mortos, o que no explica como morreram.18 Na Santa
Casa de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a qualidade de vida dos africanos
livres, em comparao com a dos empregados no trabalho da lavoura, era
considerada bem melhor.'9
De outra parte, um indcio de que os africanos livres da Santa Casa de
Salvador podem ter tido morte natural no terem deixado registros de qualquer
tipo de queixa contra maus tratos a que estivessem submetidos. As evidncias
que encontrei para este caso, na verdade, parecem trazer tona as disputa em
torno do controle e explorao do trabalho daqueles africanos. Em 1860 o
africano livre Carlos, que alegava estar servindo na Santa Casa de Salvador
desde 1849, queixou-se ao Imperador do excesso de trabalho a que era
submetido, e deu indcios de que outros africanos livres concedidos quela
instituio estavam sendo submetidos ao mesmo tratamento. Ele queixou-se
tambm da falta de comida e da pouca roupa que lhes era fornecida. Carlos fez
questo de encerrar sua petio afirmando que recorria ao Imperador porque lhe
parecia o meio mais conveniente para garantir "algum descanso para poder
continuar com o servio que estamos encarregado delle."20
Ao queixar-se do excesso de servio a que eram submetidos os africanos
livres, Carlos denunciou no lhes ser permitido descansar nem nos domingos,
nem dias santos, j que eram obrigados a trabalhar para o "reverendo" que os
Conrad, Tumbeiros , pp. 177-178.Luiza Helena Schmitz Kliemann, "Novas fontes de pesquisa sobre escravos e africanos ", pp. 51-64.
20 AN, Documentao Identificada , GIFI 5 B 280 , Petio de Carlos escravo da nao a sua MajestadeImperial, s/d.
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administrava, insinuando que, levados exausto, no podiam desempenhar
adequadamente os trabalhos da instituio.21 Vale lembrar que, somado aos bons
cuidados, o descanso nos domingos e feriados era considerado prtica elementar
daquilo que era conhecido desde o sculo XVIII como governo econmico dos
senhores.22
O argumento apresentado por Carlos, sem dvida bastante perspicaz,
estava muito distante dos diversos descuidos cometidos em relao a aspectos
formais de apresentao da petio. No consta, por exemplo, a data e o local em
que foi redigida, no h assinatura, nem qualquer outro instrumento que, como de
praxe, permitisse a identificao do procurador, ou "benfeitor", de Carlos e demais
africanos da Santa Casa. Pior ainda, o africano livre seria erroneamente chamado
de escravo da nao, o que foi rpida e definitivamente esclarecido porque nos
documentos produzidos no mbito da burocracia daquela instituio, e pelos
prepostos do poder pblico que se envolveram no processo, ele viria a ser tratado
como africano livre, sem que se levantasse qualquer suspeita contraria. A soma
dos descuidos, entretanto, poderia justificar a suspeita daquela petio ter sido
escrita pelo prprio Carlos, o que o colocaria num seleto grupo de africanos livres
que redigiram suas prprias demandas.
Voltando ao pleito de Carlos, parece que ele surtiu algum efeito, pois em 22
de fevereiro de 1860 o administrador da Santa Casa, Jos Maria d'Almeida
Varella, enviou ofcio ao presidente da provncia atravs do qual remetia as
informaes a ele fornecidas pelo administrador do Cemitrio do Campo Santo, o
"reverendo" a que se referia Carlos, sobre lhe "diminuir o servio".23 Naquele
2 Para jornada de trabalho de escravos ver, por exemplo, Carneiro da Cunha, Negros estrangeiros, pp. 37-39.11
force Benci, Economia crist dos senhores no governo dos escravos, So Paulo: Grijalbo, 1977, p. 58.A. Documentao Identificada GIFI 5 B 280, Oficio do administrador da Santa Casa de Misericrdia da
Capital ao Presidente da Provncia da Bahia Desembargador Antonio da Costa Pinto, 22 de fevereiro de1860.
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documento, o mencionado administrador, como era de se esperar, refutou as
afirmaes feitas por Carlos, tanto no que tange a acusao de que os africanos
livres eram submetidos a jornadas de trabalho excessivas e recebiam pouca
comida e roupa, quanto a estarem sendo obrigados a trabalhar para ele.
Ele afirmou que os africanos livres da Santa Casa eram "muito bem
tratados, tendo cada um por semana trs libras e meia de carne muito boa, uma
quarta de farinha e toucinho".24 Seguindo as informaes enviadas pelo
administrador do Campo Santo, Francisco Pereira de Aguiar, para o
administrador da Santa Casa e por este ratificadas junto ao presidente da
provncia, sabemos que cada um daqueles africanos recebia anualmente duas
camisas, duas calas e duas jaquetas a que se somava "a mesma quantidade em
vspera de festas".25
Esta descrio do administrador representa um padro de vida que poderia
ser almejada por muitos africanos livres espalhados pelo Imprio. O que tornaria
aplicvel a Santa Casa de Salvador a concluso feita por Kliemann sobre as
condies de vida dos africanos livres da Santa Casa de Porto Alegre. Enquanto
isto, os africanos livres que se encontravam na Fabrica de Ferro So Joo de
Ipanema, em Sorocaba, na provncia de So Paulo, aparentemente sob a
liderana de escravos, queixaram-se ao presidente daquela provncia da pouca
comida e roupa que recebiam da instituio. Alm disso, engajaram-se em
diversas lutas como o boicote a produo, fugas e formao de quilombos que
marcaram decisivamente a histria da fbrica. Ali tambm ocorreu uma
24 Para uma abordagem sobre a alimentao de escravos e com africanos livres, e como ela pode,eventualmente , ter ganho conotao explosiva , ver Afonso Bandeira Florence , "Resistncia escrava em emSo Paulo : a luta dos escravos da fbrica de ferro So Joo de Ipanema , 1828 -1842", Afio-sia 18 ( 1996),pp. 7-23.2 AN, Documentao Identificada GIFI 5 B 280, Oficio do Mordomo do Campo Santo Francisco Pereira deAguiar ao Capelo Administrador Jos Maria d'Almeida Varella, s/d.
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perseverante busca de vrios dos africanos livres pela conquista da sua
emancipao.26
Quanto a acusao de que estaria obrigando os africanos a trabalhar para
si aos domingos, impedindo-os de descansar e, assim, prejudicando seu
desempenho no trabalho da instituio, o administrador do Campo Santo de
Salvador afirmou que o trabalho a que se referiam era "nenhum mais que a faxina
do Campo Santo, isto , varrerem e aciarem o cemitrio".27 Mas os argumentos
de Francisco de Aguiar no ficaram ai. Ele no perdeu a oportunidade de
ressaltar, neste mesmo documento, a "m conduta" de Carlos, e para prova-l
afirmou que ele tinha "feito vrios furtos", tendo sido flagrado vrias vezes e, por
isto, fora preso mais de uma vez. Assim, a Mesa Administrativa da Santa Cassa
teve, reiteradamente, que interceder para solt-lo. Disse, ainda, que Carlos tinha
por costume dormir fora da instituio.28
Apesar da movimentao de Carlos que, dirigindo-se ao Imperador,
aparentemente, buscou indisp-lo com a administrao da Santa Casa, e esta
com o administrador do cemitrio, suas denuncias foram consideradas
improcedentes, mesmo sem ter sido desenvolvida qualquer investigao, ou
ouvida alguma testemunha, ou outro africano livre alm de Carlos. Prevaleceu a
verso dos administradores da instituio, ou seja, ficou formalmente aceito que
Carlos, como os demais africanos livres da Santa Casa de Salvador, era muito
bem tratado. de se perguntar se o enorme consenso existente na sociedade
imperial a propsito da validade do uso de quaisquer artifcios para melhor
aproveitar o trabalho dos africanos livres levaria os administradores da Santa
` Florence, "Resistncia escrava em So Paulo"; Rodrigues, "Ferro, trabalho e conflito"; Mamigonian, "Doque o `preto mina' capaz"; sobre suas lutas para alm da fbrica Souza, Africanos livres, e Conrad,Tumbeiros.27 AN, Documentao Identificada GIFI 5 B 280, Oficio do mordomo do Campo Santo...
Idem, Ibidem.43
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Casa a apresentar uma verso diferente da realidade. razovel supor, tambm,
que o administrador da instituio possa ter passado a zelar mais pelo tratamento
dos africanos livres, e quem sabe at dos escravos. De fato, nunca saberemos se
isto aconteceu.
Dois anos depois, Sandro e Angela foram at a delegacia de polcia de
So Paulo, em companhia do curador dos africanos livres, queixar-se dos "maus
tratos e offensas fsicas" a que eram submetidos, juntamente com sua filha
menor, pelo feitor do Jardim Pblico daquela cidade.29 Entretanto, de se supor
que muitos tenham sofrido maus tratos sem que tivessem a chance de queixar-se
em uma delegacia.
Houve aqueles que se queixaram a outras autoridades, como juizes de
rfos, ou aos curadores de africanos livres, ou mesmo, recorreram a cidados
comuns. Parece ter sido o caso de Carolina que teria procurado Amalia
Guilhermina de Oliveira Coutinho, filha do seu antigo concessionrio, para pedir
proteo para si mesma e para suas filhas, especialmente a crioula Eva. Carolina
tinha sido concedida a Damsio Antonio de Moura pelo aviso de 12 de