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Exerccios de estilo com sotaque
tupiniquim: Luiz Rezende tradutor
de Raymond Queneau
Mrcia Arbex | UFMG
Resumo: Este artigo prope uma anlise comparativa dos Exercices de stylede Raymond Queneau e sua traduo por Luiz Rezende. Considerando otradutor como um leitor e tambm um mediador cultural, refletiremos sobre aquesto da tradutibilidade dos jogos de linguagem e a das representaes;abordaremos os paratextos que envolvem a traduo brasileira no esboo deuma potica da traduo e observaremos que a traduo exigiu criaes erecriaes, tendo o tradutor por diversas vezes radicalizado e ampliado osefeitos dos jogos verbais do autor.Palavras-chave: Traduo, jogos verbais, representao, Raymond Queneau,Luiz Rezende, Oulipo.
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O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009
Um dtour pelas artes e os nmeros
Proponho iniciar esta reflexo fazendo um breve paralelo entre osExercices de style (1947) de Raymond Queneau (Havre, 1903-1976) e o livro Un
Cabinet damateur (1979), do tambm oulipiano1 Georges Perec, paralelo que
visa sobretudo a nos aproximar da noo de traduo em jogo na verso brasileira.
Un Cabinet damateur narra a histria de um homem de negcios e
colecionador de arte, Hermann Raffke, que solicita a um suposto pintor americano
de origem alem, Heinrich Krz, que faa seu retrato diante de sua coleo de
obras de arte. O pintor americano rene ento em uma nica tela mais de cem
quadros, redues minuciosamente executadas das obras do colecionador. O sucesso
do retrato, entretanto, repousa, diz o narrador, numa surpresa maravilhosa que o
torna mais que a representao anedtica de um museu privado. De fato, o
pintor incluiu o seu prprio quadro no quadro, bem como o colecionador sentado
em seu gabinete, vendo na parede ao fundo, no eixo de seu olhar, o quadro que
o representa no ato de contemplar sua coleo de quadros, e todos esses quadros
novamente reproduzidos, e assim por diante ().2 Cria-se, portanto, como
podemos perceber, um efeito de mise en abyme ao infinito bastante espetacular.
O suposto artista, entretanto, no se limitou a esse jogo de quadros
dentro de quadros, fingindo obedecer s regras do trompe-lil ao copiar, a cada
vez, cpias to fiis quanto possvel de cpias. Ao contrrio, ele se obrigara a
respeitar a seguinte contrainte, bem ao gosto dos oulipianos, ou seja jamais
copiar estritamente seus modelos e parecia encontrar um prazer maligno em
introduzir sempre uma minscula variao.3
1. O Oulipo, Ouvroir de Littrature Potentielle ou Ateli de LiteraturaPotencial, foi fundado em 1960 por Raymond Queneau e Franois Le
Lionnais, com a participao de escritores, matemticos e artistas. A proposta
do grupo era a de inventar novas formas poticas ou romanescas, a partir
de experincias da matemtica e da literatura. No stio do grupo, o
Oulipo def inido como um atel i em que se fabrica l i teratura
potencialmente, ou seja, de la l i t trature en quanti t i l l imite,
potentiellement productible jusqu la fin des temps, en quantits normes,
infinies pour toutes fins pratiques, a partir da inveno de regras ou
contraintes. Cf. .
2. PEREC. A coleo particular, seguido de A viagem de inverno, p. 18.
3. PEREC. A coleo particular, seguido de A viagem de inverno, p. 20.
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Em Exercices de style, Raymond Queneau tambm brinca seriamente
com a noo de simulacro, uma modalidade transgressora de traduo,4 de
multiplicidade e de repetio diferente, ao elaborar com rigor e imaginao uma
srie de 99 variaes de uma mesma e sempre diferente histria, cujo original
abolido. Poderamos dizer ainda, insistindo no paralelo com as artes, que Exercices
de style teria algo em comum com as estampas japonesas de And Hiroshige
(1797-1858), artista que busca traduzir as imagens do mundo movente, captar nas
paisagens o jogo do eterno e do efmero, realizando as Cem vistas de Edo, as
Trinta e seis vistas do monte Fuji ou ainda as Sessenta e poucas vistas das provncias
do Japo.
As variaes de estilo francesas
Na gnese de Exercices de style encontra-se, entretanto, no a pintura,
mas a msica. Segundo o autor, ao sair de um concerto em que assistiu Arte da
fuga, de Bach, em companhia de Michel Leiris, os amigos teriam dito que seria
bem interessante fazer algo naquele gnero no plano literrio, construir uma obra
por meio de variaes proliferando quase at o infinito em torno de um tema
bastante reduzido. O projeto teve incio em 1942 quando o autor escreve uma
srie de 12 exerccios com o ttulo de Le dodcadre (Dodecaedro). Os demais
textos foram escritos aos poucos e somente em 1947 o autor atinge o nmero 99,
dizendo que a preguia e o receio de cansar o leitor o fizeram parar. Acrescenta
ainda que esta seria uma quantidade suficiente: nem muito nem pouco: o ideal
grego.5 So, portanto, 99 textos de tamanho varivel, mas relativamente curtos,
sem ordem lgica aparente, como variaes em torno de uma histria mnima
cujos elementos so: um encontro em um nibus, uma breve discusso entre os
passageiros, um encontro em frente estao, um chapu, um boto. O quase
apagameto da histria parece indicar que Queneau, como sugere Renard, vai ao
4. A mimeses (...) pensada como uma modalidade transgressora detraduo que junta de modo aportico fidelidade (na cpia) e criao
(desvio, diferena). SELIGMANN-SILVA. Elogio da mimesis, p. 22.
5. QUENEAU citado por RENARD. Dossier, p. 171-172. As tradues dostextos crticos cujos originais so em francs foram realizadas pela autora
deste ensaio.
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O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009
encontro de Flaubert quando este afirma que no h assuntos nem belos nem
feios, sendo o estilo por si s uma maneira absoluta de ver as coisas.6
Sem querer prosseguir demasiadamente pela via matemtica,
lembremos que Queneau no deixa nada ao acaso.7 Seu interesse pelos nmeros
pode ser comprovado a cada publicao, a cada testemunho. O nmero 99 aparece,
por exemplo, em 1956, na antologia que ele prope para uma biblioteca ideal,
composta de 99 ttulos. Georges Perec tambm compe a La Vie mode demploi
(1978) em 99 captulos, livro dedicado memria de Queneau. Por outro lado, o
nmero 99 pressupe uma abertura e uma continuao possvel uma
potencialidade, oferecendo a cada um a oportunidade de realizar o centsimo
exerccio, ou a centsima traduo, seja ela interlingual, como o caso da traduo
brasileira, seja ela intersemitica, como o espetculo criado por Yves Robert em
1949, bem como os exerccios de estilo paralelos pintados, desenhados ou
esculpidos por Carelman e os 99 exerccios tipogrficos feitos por Massin.8
Enciclopedismo, paixo pela matemtica, classificaes e
enumeraes, os exerccios so como uma enciclopdia de lxicos, de registros,
de estilos, que vo do concreto ao abstrato, do burlesco ao srio, do vulgar ao
precioso, do familiar ao formal. Um rpido olhar sobre a lista dos 99 ttulos permite
constatar a erudio do autor, que demonstra no apenas seus conhecimentos em
retrica, quanto em linguagem popular, incluindo as grias e o seu neofrancs,
falado por Zazie. Os exerccios incluem ainda o resgate de palavras arcaicas que
conotam historicamente os textos, a criao de neologismos, as manipulaes de
letras e sons; a explorao de campos lexicais como o dos cincos sentidos ou os
reinos vegetal e animal. Alm dos elementos apontados acima, em Exercices de
style h uma grande concentrao de expresses metafricas, trocadilhos, chaves,
6. FLAUBERT citado por RENARD. Dossier, p. 187.
7. Il ma t insupportable de laisser au hasard le soin de fixer le nombredes chapitres de ces romans, diz o autor em Technique du roman, a
respeito de seus romances Le Chiendent, Gueule de Pierre e Les Derniers
Jours. QUENEAU. Btons, chiffres et lettres, p. 29.
8. Renard sugere a consulta da lista dos 122 exerccios de estilo possveisque Queneau props no anexo edio dos exercices de style
accompagns de 33 exercices de style parallles peints, dessins ou sculpts
par Carelman et de 99 exercices de style typographiques de Massin
(Gallimard, 1963). Os 99 exerccios podem remeter ainda, de acordo
com o crtico, assinatura do escritor. RENARD. Dossier, p. 189.
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provrbios e jogos de linguagem em geral que constituem certamente um desafio
suplementar para o tradutor.
As variaes de estilo tupiniquins
Se considerarmos que a traduo s existe no reino da diferena;
melhor dizendo: no espao do contnuo diferenciar, a traduo de Luiz Rezende
constitui ento apenas um elo numa cadeia de novas tradues e de outros
originais.9 Portanto, comporta criaes e adaptaes, tendo o tradutor por diversas
vezes radicalizado e ampliado os efeitos dos jogos de linguagem de Queneau,
optando por lanar mo, sempre que possvel, do repertrio oral e escrito brasileiro,
aproximando-se ora de uma abordagem etnocntrica,10 como a define Antoine
Berman, ora de um processo de transcriao, no sentido de Haroldo de Campos.11
Os paratextos que acompanham a traduo dos Exerccios de estilo
so particularmente instrutivos a esse respeito. Trata-se de uma apresentao
intitulada escrevendo que se vira escrevedor e de um posfcio, Agora que
vocs j leram, assinados pelo tradutor Luiz Rezende, alm de anexos e uma
bibliografia. Os paratextos, de acordo com Danielle Risterucci-Roudnicky, tm a
importante funo de mediao lingustica e intercultural entre a obra original e o
leitor. Segundo a autora, os prefcios chamados de transferncia visam a preparar
o destinatrio estrangeiro a um universo distante do seu, tematizam a passagem
9. SELIGMANN-SILVA. Double bind: Walter Benjamin, a traduo comomodelo de criao absoluta e como crtica, p. 36.
10. A traduo etnocntrica, de acordo com Berman, uma traduo que,do ponto de vista cultural, ramne tout sa propre culture, ses normes
et valeurs. Este tipo de traduo, comum na tradio ocidental, tambm
hipertextual, do ponto de vista literrio e, do ponto de vista filosfico,
platnica. Dois princpios esto na base da traduo etnocntrica: o
primeiro afirma que a obra estrangeira deve ser traduzida em funo do
leitor, ou seja, este no deve sentir que se trata de uma traduo; o
segundo diz que se deve traduzir o texto de maneira a dar a impresso
que foi o prprio autor que o escreveu se ele o tivesse escrito na lngua
alvo. A esse tipo de traduo o autor contrape e defende a traduo
tica, potica e reflexiva. BERMAN. La Traduction et la lettre ou lauberge
du lointain, p. 99.
11. CAMPOS. Da traduo como criao e como crtica, p. 31-48.
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O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009
de uma cultura outra por meio de informaes, esclarecimentos e comentrios
lingusticos, literrios e culturais que veem fornecer pontos de referncia ao leitor.12
A apresentao de Luiz Rezende, corresponde, de fato, ao que prope
a autora. Trata-se de um prefcio que figura como um ato simblico que
testemunha das diversas funes do tradutor,13 como por exemplo a funo de
crtico: Luiz Rezende inicia sua apresentao relatando a gnese dos Exerccios de
estilo de Queneau, situando o autor no contexto histrico literrio, indicando os
pontos fortes de sua obra. O tradutor destaca a defesa e ilustrao do neofrancs,
sua potica estudadamente espontnea, suas atividades no Oulipo, menciona a
tica queneliana do riso e enfatiza que o laborioso plumitivo descasca chaves,
provrbios e lugares comuns, guarda a polpa para o uso renovado e varre os
escombros de um golpe de pena que, forosamente, deixa traos textuais,14
resumindo metaforicamente a prtica de Queneau nesse campo.
Um bom exemplo disso o exerccio intitulado Maladroit, no qual
encontramos uma das frases-chave da arte potica de Queneau: Cest en crivant
quon devient criveron,15 traduzida por escrevendo que se vira escrevedor,
pardia do provrbio francs Cest en forgeant quon devient forgeron (forjando
se faz o forjeiro), afirmando a literatura comme ouvroir e instituindo o escritor
como um eterno aprendiz, cuja tarefa est no contnuo exerccio da literatura.
O tradutor reserva para o posfcio, de carter nitidamente ensastico,
como um labortorio da obra traduzida,16 suas consideraes sobre uma potica
da traduo. Fornece o que ele chama modestamente de dicas de leitura, mas
que so de fato anlises detalhadas de certos exerccios que necessitam, segundo
ele, serem decifrados (aqueles que recorrem por exemplo a artifcios lgico-
matemticos e a figuras de retrica), revelando dessa forma sua concepo de que
a obra estrangeira deve ser traduzida em funo do leitor.
12. RISTERUCCI-ROUDNICKY. Introduction lanalyse des uvres traduites,p. 48.
13. RISTERUCCI-ROUDNICKY. Introduction lanalyse des uvres traduites,p. 52.
14. REZENDE. escrevendo que se vira escrevedor, p. 13
15. QUENEAU. Exercices de style, p. 80.
16. RISTERUCCI-ROUDNICKY. Introduction lanalyse des uvres traduites,p. 52.
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Assim, para construir seu Lipograma, Rezende se inspirou na traduo
italiana de Umberto Eco, optando por radicalizar seus efeitos, por achar que esta
a melhor, e talvez nica, fidelidade a tal sucesso de jogos de linguagem.17Assim
como fez Perec em La Disparition, Queneau optou por eliminar a vogal e de
seu Lipogramme:
Voici.
Au stop, lautobus stoppa. Y monta un zazou au cou trop long, qui avait
sur son caillou un galurin au ruban mou. Il sattaqua aux panards dun
quidam dont arpions, cors, durillons sont avachis du coup; puis il bondit
sur un banc et sassoit sur un strapontin o nul ny figurait.
Plus tard, vis--vis la station Saint-Machin ou Saint-Truc, un copain lui
disait: Tu as ton raglan un bouton quon a mis trop haut.
Voil.18
Rezende, por sua vez, radicaliza produzindo cinco lipogramas sem
as vogais a, e, i, o, u, respectivamente. A ttulo de comparao com o Lipogramme
de Queneau, vejamos as primeiras frases de dois dos cinco lipogramas de Rezende:
2
Um dia, com o sol nos pncaros, subi num nibus da linha S lotado. Ia
l um rapaz com o gog muito comprido, usando um tapa-miolos fofo
cuja fita fora substituda por um fio tranado.
3
Tudo comeou com o sol a pleno prumo, graas aos cus logo chegou
o fresco S, pena que lotado. Dava nos olhos, l dentro, um tresloucado
de pescoo longo em excesso e touca mole decorada com um cordo
tranado.19
A questo da intradutibilidade central nesse tipo de trabalho
colocada no momento em que o tradutor compara a sncope queniana com seu
equivalente em nosso malemolente sotaque tupiniquim, resultando, como ele
17. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 144.
18. QUENEAU. Exercices de style, p. 111.
19. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 103-104.
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diz, numa mistura de capiau e portugus de botequim, difcil de evitar.20 O
tradutor observa esse alto ndice de intradutibilidade tambm em outros exerccios:
nos que tiram partido dos tempos verbais (considerando que as estruturas do
francs e do portugus diferem profundamente21
) e no calembour, por exemplo,
baseado na aproximao de dois enunciados distintos e relativamente complexos
[que] podem possuir rigorosamente o mesmo encadeamento fnico,22 como ocorre
em Homophonique: Ange ouvert my dit sur la pelle deux formes dun haut
obus (est-ce?), jai peine sus un je nomme ( Coulomb!) avec de ladresse autour
du chat beau.(...).23 Luiz Rezende, explica que
a reguralidade prosdica do francs, sistematicamente acentuado no final
de cada grupo sinttico e com suas slabas finais tonas no pronunciadas,
eliminando quase todo trao oral de gnero e nmero, permite jogos de
linguagem praticamente impossveis em outros idiomas.24
Assim, em D (quase) na mesma, o tradutor oferece a bem-
humorada verso Adia pra tudo. Ontem vinha nu fresco esse tal cr Tino
como raramente Jaci viu. Se eu pesco s hmen sou esta vai-s-pau dando seu
coco concha pele em volta ! Enfio esse quesito transa do Eno atira (...)25
, mas
considera que seu prprio texto parte a modesta parafonia que veio substituir a
homofonia do exerccio original (...) ignora uma regra de ouro do calembour: um
texto em aparncia andino remetendo a um duplo sentido.26
A traduo dos trocadilhos e da contrepterie (contrapeidos) dizem
respeito ao mesmo problema. De acordo com Paulo Rnai, as definies mais
correntes do trocadilho no chamam a ateno para o elemento essencial do
conceito, que, segundo ele, a impossibilidade de traduzi-lo para outras lnguas:
impossibilidade s vezes parcial, pois alguns se podem traduzir para algum idioma
20. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 145.
21. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 152.
22. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 146.
23. QUENEAU. Exercices de style, p. 127.
24. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 146.
25. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 119.
26. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 146.
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afim, mas nenhum para qualquer idioma. Mas o fato de que certas lnguas tenham
mais pendor que outras para os jogos de palavras leva o autor a considerar que
um jogo de sentidos (em geral) intraduzvel, pois perde todo o chiste na
traduo.27 O tradutor literrio precisa ter um esprito zombeteiro e se encontrar
em um momento feliz de inspirao, diz Rnai, para resolver tais proezas, qualidades
que no faltaram ao tradutor de Queneau ao transpor o Contre-petteries Un
mour vers jidi, sur la fate-plorme autire dun arrobus, je his un vomme au fou
lort cong et lentapeau chour dune tricelle fesse. (...)28 para o trocadilho:
Dei o mia, prol a sumo. Na flataporma daquesse ele ia um rapa rego de piscoo
de peru, ds mesurado, e uma fichinha no tapu chequevava. (...).29
Os jogos de linguagem, por visarem a explorao da ambiguidade
do sentido e estarem ligados prpria substncia de cada lngua, colocam questes
prximas da traduo potica.30 Diante dos jogos de palavra, o domnio dos
instrumentos lingusticos e a criatividade do tradutor talvez no sejam suficientes
para tir-lo do impasse com o qual muitas vezes se depara, assim como ocorre
com o tradutor de poesia, na apreciao de Mrio Laranjeira.31 Nesse sentido,
observamos no texto traduzido a recorrncia de procedimentos hipertextuais, tais
como a adaptao, a transformao, o pastiche e a pardia, que se caracterizam
por um elo gerativo livre,32 quase ldico, a partir de um original. Nestes casos, as
fronteiras entre uma traduo livre, que recua diante de certas particularidades
27. RNAI. Defesa e ilustrao do trocadilho, p. 50.
28. QUENEAU. Exercices de style, p. 130.
29. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 122.
30. Antoine Berman chama a ateno para o valor atribudo ao intraduzvelna poes ia . Segundo e le , o fa to de a poes ia ser cons iderada
tradicionalemente intraduzvel significa que, por um lado, ela no pode
ser traduzida, devido relao infinita que institui entre o som e o
sentido; por outro, ela no deve ser traduzida, uma vez que sua
intraduzibilidade constitui sua verdade e seu valor. BERMAN. La
Traduction et la lettre ou lauberge du lointain, p. 42.
31. LARANJEIRA. Potica da traduo, p. 43.
32. De acordo com Berman, a traduo etnocntrica necessariamentehipertextual, pois remete a qualquer texto gerado por imitao, pardia,
pastiche, adaptao, plgio, ou qualquer outro tipo de transformao formal,
a partir de um texto j existente. BERMAN. La Traduction et la lettre ou
lauberge du lointain, p. 29 e 36.
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O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009
do texto (e o modifica por conseguinte) e a transformao confessa, segundo
Berman, so pouco ntidas.33
O tradutor Luiz Rezende fala de adaptao quando atualiza certos
exerccios, aproximando-os de ns, histrica e geograficamente, como o caso
de Filosfico, em que os jarges cientficos e filosficos so nacionalizados para
refrescar o interesse do conjunto.34 A consequncia dessa adpatao atualizada
, por exemplo, um esvaziamento completo de todo o contexto do existencialismo
sartriano evocado em pano de fundo no exerccio Philosophique de Queneau.
Da mesma forma, nos casos em que Queneau realizou pardias e
pastiches literrios, o tradutor diz ter tentado restituir com as armas de nossos
plumitivos, julgando prefervel lanar mo da matria escrita nacional.35 Ao
Paysan de Queneau, Rezende responde com um Sertanejo, genial colagem
em que a traduo do autor francs se associa pardia de Joo Guimares Rosa,
como podemos observar nos trechos seguintes:
PAYSAN
Javions pas de ptits bouts de papiers avec un numro dssus, mais jsommes
tout dmme mont dans steu carriole. Une fois que jmy trouvons sus
steu plattforme de steu carriole qui zappellent comma eux zautres un
autobus, jeumsentons tout serr, tout gueurdi et tout racornissou. Enfin
aprs qujeuyons paill, je jtons un coup doeil tout alentour de nott
peursonne et quest-ceu queu jeu voyons-ti-pas? un grand flandrin avec
un dces cous et un dces couv-la-tte pas ordinaires.(...)36
SERTANEJO
Nonada. nibus que o senhor viu foi a gosto no, Deus esteja. Povo prascvio.
Tm de morar longe daqui, na Contrescarpa, Campo Retado, custante viagem
e ainda vo fuzuando nas piores esfregas e com nsias de se travarem com
os viventes em endemoninhamento ou com encosto. De primeiro, ali na
plataforma, eu fazia e mexia, e pensar no pensava. Mas o diabo vige
dentro do homem, e logo a cachorrada em volta pegou a latir. ()27
33. BERMAN. La Traduction et la lettre ou lauberge du lointain, p. 37.
34. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 151.
35. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 150.
36. QUENEAU. Exercices de style, p. 147.
37. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 134.
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Do ponto de vista intercultural, o tradutor tambm julgou apropriado
fazer certas adaptaes. Ele explica que o exerccio chamado Interrogatoire foi
adaptado em Ocorrncia para que o leitor desavisado identifique com mais
facilidade com o planto de delegacia, menos burocrtico do que o espao cultural
francs em que predominaria uma certa indiferena fria e polida.38 Assim, nas
perguntas feitas pelo delegado francs observa-se que o jargo policial se associa ao
emprego do verbo no pass simple, e inverso do pronome, como na frase: Quy
remarqutes-vous de particulier? ou Cest incident eut-il un rebondissement?,39
provocando, a meu ver, mais um efeito cmico de preciosismo deslocado,
destinado, da parte do delegado, a impressionar o interlocutor, do que sinal de
indiferena ou frieza, representaes estereotipadas com frequncia atribudas aos
franceses. Na traduo para o portugus, o jargo policial permanece Algum
elemento particular? ou a atitude do elemento era to suspeita quanto a
indumentria e a anatomia?, seje objetivo, a altercao deixou sequelas?40 ,
mas o registro alterado e o tradutor ope suposta frieza do francs, uma certa
vulgaridade da linguagem do delegado brasileiro.
Na verdade, observa-se que esses processos de adaptao recobrem,
em geral, como explica Berman, formas sincrticas, na medida em que o tradutor
ora traduz literalmente, ora traduz livremente, ora faz um pastiche, adapta:
Le syncrtisme est typique de la traduction adaptatrice, et il se rclame en
gnral dexigences la fois littraires (lgance, etc.) et purement
linguistiques, la non-correspondance des structures formelles des deux
langues obligeant, selon lui, tout un travail de re-formulation. Cest sur
la base de ces exigences que lhypertextualit discrte prend son essor.41
Um exemplo significativo desse procedimento seria o exerccio
Metaforicamente.42 Ao texto francs condensado e breve, o tradutor oferece
uma verso em que o preciosismo alterna com o exotismo, a traduo literal com
a criativa. Para indicar o momento em que se passa a ao: o meio-dia, Queneau
38. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 150.
39. QUENEAU. Exercices de style, p. 65.
40. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 66.
41. BERMAN. La Traduction et la lettre ou lauberge du lointain, p. 38.
42. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 22.
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O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009
utiliza simplesmente au centre du jour, enquanto Rezende recorre a uma longa
metfora, acrescida de uma referncia geogrfica nacional: O astro apolneo parecia
ter imobilizado seu to clere curso em zenital posio e dardejava implacvel no
meridio escaldante como as dunas de Copacabana. A metfora utilizada por
Queneau para indicar o nibus un coloptre labdomen blanchtre foi,
por outro lado, traduzida literalemente, num coloptero de alvo abdomen, bem
como a expresso le tas de sardines voyageuses,43 referindo-se aos passageiros
no nibus, encontrou equivalncia na frase tal sardinhas em lata.
Os exerccios de Queneau, em que predominam as locues, imagens,
provrbios e que dizem respeito sobretudo ao vernacular, permitem observar
outros procedimentos utilizados pelo tradutor. Em Botanique, por exemplo,
Queneau explora todo o campo semntico da botnica, selecionando com cuidado
as expresses metafricas a ele relacionado:
BOTANIQUE
Aprs avoir fait le poireau sous un tournesol merveilleusement panoui,
je me greffai sur une citrouille en route vers le champ Perret. L, je
dterre une courge dont la tige tait monte en graine et le citron surmont
dune capsule entoure dune liane. Ce cornichon se met enguirlander
un navet qui pitinait ses plates-bandes et lui crasait les oignons. Mais,
des dattes! fuyant une rcolte de chtaignes et de marrons, il alla se
planter en terrain vierge. (...)44
Luiz Rezende responde ao desafio com a mesma intensidade,
lanando mo do vernacular local:
BOTNICO
Depois de ficar um tempo esperando ali plantado como um p de
couve na estufa, consegui me enxertar numa abbora que ia voltando
para a horta, lotada s pencas. J tinha l criado razes um aipim deste
tamanho!, com a copa amarrada por um broto de cip. O pepino comeou
quando o banana em questo resolveu descascar umas abobrinhas contra
o maracuj-esquecido-na-gaveta ao lado que, segundo seu coco pouco
43. QUENEAU. Exercices de style, p. 11.
44. QUENEAU. Exercices de style, p. 131.
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adubado, fincava-lhe batatas nos canteiros apenas para deix-los mais
vermelhos que pitanga. Uma salada completa, mas antes que a vaca
tussisse a srio o tal aspargo cortou o abacaxi pela raiz, com medo de
levar uma castanha nos bagos, e lanou os galhos em busca de nova
chacrinha. ()45
Assim, a expresso francesa faire le poireau, que significa esperar
muito tempo de p, foi traduzida por ficar um tempo esperando ali plantado,
garantindo a equivalncia semntica. Nota-se, entretanto, o acrscimo de como
um p de couve, que vem acentuar a conotao nacional e compensar de certa
forma a ausncia do legume alho-por. O repertrio brasileiro de expresses
metafricas rico nesse campo semntico: o personagem de Queneau, designado
de cornichon (pepino), ou seja, niais, imbcile (ingnuo, imbecil), foi traduzido
oportunamente pelo nosso conhecido banana, enquanto a expresso se mettre
enguirlander, que, no registro familiar significa engeuler (xingar, brigar
verbalmente), encontrou equivalncia no pepino, sinnimo de confuso, problema
indigesto, de difcil soluo. O tradutor tambm acrescentou expresses como
lotada s pencas ao se referir ao nibus cheio, uma salada completa ou cortar
o abacaxi pela raiz, e aproveitou para citar nossos mais tpicos espcimens: a
cana-caiana, o aipim, o broto de cip, o maracuj-esquecido-na gaveta, o coco, a
pitanga, em contraponto aos europeus: tournesol, citrouille, navet, chtaignes e
marrons.
Respeitando o estilo e a contrainte animalesca, Luiz Rezende
compe Zoolgico explorando o repertrio nacional e radicalizando mais uma
vez as metforas por meio de acrscimos:
(...) De repente, a vaca foi para o brejo. O girafdeo virou bicho, soltando
os cachorros para cima de um pau-de-arara que peruava por ali e lhe
dava nos cascos mas, antes que o bicudo sacudisse suas plumas, o
galinho fechou o bico e fugiu da rinha, esvoaando feito barata tonta
para um poleiro largado s moscas. (...)46
45. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 123.
46. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 126.
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As grias e expresses idiomticas tambm constituem um domnio
de predileo de Queneau. Para citar apenas alguns exemplos, em
Gastronomique,47 encontramos o type tarte, adjetivo que substitui bobo,
ridculo (sot, ridicule), traduzido por maria-mole. A expresso long comme
un jour sans pain, referindo-se ao pescoo extremamente longo do personagem,
foi eliminada ou condensada em pescoo; a expresso Mais il cessa rapidement
de discuter le bout de gras inspirou uma reformulao mais consequente da
parte do tradutor: No meio do cuscuz, largou a bananosa, apimentada demais a
seu gosto e, para no tomar umas bolachas na receita, foi esfriar a massa numa
frma dando sopa por ali. (...).48
O tradutor assume, por vezes, o papel de um pastichador, uma vez que
a potencialidade criativa dos exerccios quenianos permite sua continuao ad infinitum.
Luiz Rezende, desta vez autor, cria seis exerccios brasileiros, como foram chamados,
e os publica em anexo com os ttulos sugestivos de Papo de botequim, Pisando na
jaca, Brasileirinho, Tupinacara, Samba do crioulo doido e D samba.
E no sem uma ponta de humor que o tradutor sinaliza para a
natureza transgressiva de sua iniciativa, dizendo que inserir exerccios de prpria
lavra o pecadilho do tradutor de Queneau.49
traduzindo que se vira tradutor
Aproveitando esse discreto mea-culpa do tradutor Luiz Rezende,
concluiremos retomando nossa introduo e nos perguntando se, tal qual o artista
falsrio que pintou a espetacular mise en abyme no quadro de Un Cabinet damateur,
de Georges Perec, o tradutor no teria algo de um genial e exmio pastichador? 50
47. QUENEAU. Exercices de style, p. 135.
48. QUENEAU. Exerccios de estilo, p. 125.
49. REZENDE. Agora que vocs j leram, p. 150.
50. Uma afirmao de Berman nos conduz igualmente na direo dessapequena provocao. O crtico avana que a diferena entre o copista e
o falsrio em pintura seria equivalente diferena entre o tradutor e o
pastichador, pois tanto o tradutor quanto o pastichador visam a identificar
o sistema estilstico de uma obra e a reproduzi-lo, mas a inteno do
tradutor se limitaria a reproduzir um texto j existente, enquanto o
pastichador produziria um texto novo. BERMAN. La Traduction et la
lettre ou lauberge du lointain, p. 36.
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Diramos que, da mesma forma que o artista, na histria de Georges
Perec, ao pintar a prpria histria de suas obras atravs da histria das obras
alheias, tivesse conseguido, por um instante, contrariar a ordem estabelecida da
arte e reencontrar a inveno alm da enumerao, a manifestao espontnea
alm da citao, a liberdade alm da memria,51 o tradutor, enquanto leitor de
uma obra, realiza um trabalho de reescrita e cria um outro texto que no cpia
do primeiro, mas sim testemunho do seu original testemunho diferido, como
sempre acontece com as imagens da memria.52
Se, como diz Italo Calvino, cada vida uma enciclopdia, uma
biblioteca, um inventrio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode
ser continuamente remexido e reoordenado de todas as maneiras possveis,53
podemos afirmar que Luiz Rezende busca no repertrio brasileiro a fonte de sua
enciclopdica, renova e reoordena a lngua e recolhe na matria nacional os objetos
dos mais inusitados aos mais banais, sem jamais perder de vista o dilogo com
Raymond Queneau.
Longe de querer finalizar dizendo que tudo no passa de um samba
do crioulo doido, alis, ttulo de um dos exerccios brasileiros de Rezende,
preferimos concluir citando os versos de D samba,54 de autoria do tradutor:
l vem o S das onze, amor,
eu no posso mais fic,
sou feito maracan desplumado,
se no bico longe
fico sem arroz e caramingu (bis)
v de estribo sem pag,
vem do lado um almofada
p de valsa
e voz de fada
mais bom de farra e pescoo (bis)
51. PEREC. Un Cabinet damateur, p. 25.
52. BARRENTO citado por LAGE. Walter benjamin, tradutor de Baudelaire.
53. CALVINO. Seis propostas para o prximo milnio, p. 138.
54. REZENDE. Anexos: Exerccios de Estilo Possveis, Exerccios Brasileiros,Bibliografia, p. 179.
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num espera no (bis)
nis cai na dana sem tard,
vai zabumba no bonde a balan,
reco-reco no coreto, vem ganz
no sei de onde e eu relano o lundu,
mas corta o breque do cara-de-pi (bis)
o vozinha de sissi
diz que o vizinho,
bafo de pinga e caracu,
t afim dusseusp pis
s pra sacane (bis)
mais nis tudo sabe a onda
(boquinha de siri)
que ele vem e vai na ronda
bate caixa d o mi
(refro)
samba aqui, pega no ganz,
t chegando a hora,
o S na avenida vai entr
e na plataforma
S samba comea a rol
Exercising on style with a tupiniquimaccent:Luiz Rezende translator of Raymond Queneau
Abstract: This article proposes a comparative analysis of the Exercices deStyle de Raymond Queneau and its translation by Luiz Rezende. Consideringthe translator as a reader and cultural mediator, we will focus on thetranslatability of language games and representations, discuss the paratextswhich involves Brazilian version in a poetics of the translation, and observethat this translation demanded creations and recreations, having the translatorfor several times radicalized and expanded the effects of verbal games of theauthor.Keywords: Translation, Verbal Games, Representation, Raymond Queneau,Luiz Rezende.
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