donoso cortes- uma filosofia contra-revolucionária da história

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"Donoso Cortes: uma filosofia contra-revolucionária da história", de Luc Tirenne. Número especial 21-22, Extra- Série, abril-junho de 1985, da revista portuguesa 'Futuro Presente'. Donoso Cortes é considerado como um dos mais interessantes analistas da vida politica do seu tempo, aliando um realismo inesperado a um espírito lúcido e conservador. Para além de despertar o interesse do grande politólogo Carl Schmitt. Donoso continua a ser um centro de interesse para os teóricos mais jovens, até pela sua perspectiva futurista. Já tudo havia sido dito, em 4 de Janeiro de 1849. na tribuna do parlamento espanhol, quando um deputado avançou para dar o seu parecer no debate de política geral. A oposição progressista acabava de protestar contra as medidas de autoridade tomadas pelo governo do general Narvaez aquando dos incidentes que se seguiram às revoluções europeias de 48. A malária conservadora, de que esse deputado fazia parte. tinha afirmado o seu liberalismo e simpatia em relação aos progressistas, limitando-se às questões de facto e evitando atacar de frente as posições doutrinais dos seus adversários. comoé já regra estabelecida nas assembleias. O orador. com uma eloquência a um tempo rígida e fogosa, começou por declarar que vinha enterrar aos pés da tribuna - sua sepultura legítima - todas as ideias da oposição, isto é. as ideias liberais, «ideias estéreis e desastrosas. nas quais se resumem os erros inventados há três séculos para abalar e dissolver as sociedades humanas». A publicação desse Discurso sobre a ditadura em que Juan Donoso Cortes anunciava o advento mundial da ditadura e proclamava a legitimidade da «ditadura do alto» contra a «ditadurarevolucionária». valeu ao seu autor uma fama imensa em toda a Europa.

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"Donoso Cortes: uma filosofia contra-revolucionária da história", de Luc Tirenne. Número especial 21-22, Extra-Série, abril-junho de 1985, da revista portuguesa 'Futuro Presente'.

Donoso Cortes é considerado como um dos mais interessantes analistas da vida politica do seu tempo, aliando um realismo inesperado a um espírito lúcido e conservador. Para além de despertar o interesse do grande politólogo Carl Schmitt. Donoso continua a ser um centro de interesse para os teóricos mais jovens, até pela sua perspectiva futurista.

Já tudo havia sido dito, em 4 de Janeiro de 1849. na tribuna do parlamento espanhol, quando um deputado avançou para dar o seu parecer no debate de política geral. A oposição progressista acabava de protestar contra as medidas de autoridade tomadas pelo governo do general Narvaez aquando dos incidentes que se seguiram às revoluções europeias de 48. A malária conservadora, de que esse deputado fazia parte. tinha afirmado o seu liberalismo e simpatia em relação aos progressistas, limitando-se às questões de facto e evitando atacar de frente as posições doutrinais dos seus adversários. comoé já regra estabelecida nas assembleias. O orador. com uma eloquência a um tempo rígida e fogosa, começou por declarar que vinha enterrar aos pés da tribuna - sua sepultura legítima - todas as ideias da oposição, isto é. as ideias liberais, «ideias estéreis e desastrosas. nas quais se resumem os erros inventados há três séculos para abalar e dissolver as sociedades humanas». A publicação desse Discurso sobre a ditadura em que Juan Donoso Cortes anunciava o advento mundial da ditadura e proclamava a legitimidade da «ditadura do alto» contra a «ditadurarevolucionária». valeu ao seu autor uma fama imensa em toda a Europa.

Fama de pouca duração. Donoso Cortes morre quatro anos mais tarde. depois de ter publicado, em 1851. simultaneamente em Paris e em Madrid. a obra que resume o seu pensamento, o Ensaio sobre o catolicismo. o liberalismo e o socialismo. Preconizara com uma exactidão assombrosa as consequências da revolução europeia de 48. da qual surgiram as premissas ideológicas do mundo contemporâneo. No meio do optimismo então reinante entre os liberais e os profetas do socialismo e da tecnocracia, anunciara. 80 anos antes de Spengler, a decadência da civilização. o declínio da Europa, a aparição na cena mundial dos gigantes russo e americano, e a instauração de uma ditadura como o mundo jamais

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conhecera. proveniente. paradoxalmente. da morte de Deus e do novo culto do Homem. Porque aquilo que nos oferece Cortes é uma visão teológica da história, uma visão segundo a qual os factos se ordenam a um plano superior e se esclarecem pela ação da divina Providência.

Mas o homem não é, nem por isso,o instrumento da sua própria queda: foi pelos seus actos que Prometeu se expôs à fúria de Zeus. Donoso Cortes não é um visionário. Com uma lógica perfeita deduz simplesmente as consequências da conduta histórica da humanidade, estuda a perversão moderna do sentimento religioso e as suas consequências políticas. com a convicção. segundo o título do primeiro capítulo do seu Ensaio. que «em toda a grande questão política se encontra sempre uma questão teológica» e que, como ele de resto o diz, "a teologia é a chave mística da História».

Mesmo que não se adopte a visão providencialista de Donoso Cortes, não se pode negar a dimensão religiosa que se liga ao fenómeno político. Proudhonjá o reconhecera nas suas Confessions d' un révoluticionnaire: «É surpreendente que no fundo da nossa política encontremos sempre a teologia». É necessário hoje em dia homenagear a lucidez de Donoso, da qual não cessamos de obter provas. e ouvir de novo a voz dessa Cassandra esquecida durante demasiado tempo.

Honra e fidelidade

Descendente do conquistador, Donoso Cortes nasceu em 1809, quando os seus pais fugiam ao avanço das tropas napoleónicas, nesse momento sombrio da história espanhola que Goya ilustrou, num tempo em que as bases do poder legítimo se achavam abaladas. A dupla fidelidade que caracteriza 00noso Cortes (fidelidade à coroa, fidelidade à religião), afirma-se pouco a pouco e aprofunda-se através das provações da sua vida e as de Espanha. De início impregnado das ideias filosóficas do século XVIII, sob a influência do poeta liberal Quintana, estuda história, filosofia e literatura; muito jovem, escreve uma tragédia, hoje perdida. Assiste aos cursos de jurisprudência em Sevilha e acaba os estudos aos 19 anos, antes da idade requerida para ser advogado ..

Donoso Cortes dedica-se então à literatura. E nomeado para a cadeira de literatura de Cáceres e mais tarde publicará um estudo sobre o Classicismo e o Romantismo, cujas aspiraçoes procura conciliar. Ele conta com o seu espírito para se afirmar no mundo.

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Escreverá a Montalembert: «Tive o fanatismo literário, o fanatismo pela expressão, o fanatismo pela beleza das formas». O .domínio perfeito da língua nos seus escritos políticos confirma realmente esta preocupação pela forma. Mas o destino fere-o pela primeira vez. C~sado em 1830, perde uma filha pequena e depois a sua mulher, em 1833. Enfrenta também tempestades políticas: no momento em que se avizinha uma crise de sucessão dinástica que suscita uma crise política, envia ao velho Fernando VII uma Memória sobre a situaçâo actual da monarquia na qual aconselha o rei a apoiar-se nas classes intermediárias a fim de evitar, a um tempo, a anarquia e o despotismo. Nesse momento, Donoso Cortes é ainda um liberal, da facção moderada, e admirador da razão. O rei nomeia-o oficial do ministério público em Madrid,no Ateneu e, posteriormente, em 1839, nomeia-o presidente da secção das ciências morais e sociais.

Eleito deputado da província de Cádis, afasta-se cada vez mais dos liberais e da filosofia racionalista, como o testemunha um artigo publicado em 1839 sobre A situaçâo das relações diplomáticas entre a França e Espanha: «A filosofia separa-se de Deus, nega Deus, faz-se Deus ... Mas assim como Deus faz o homem à sua imagem e semelhança, a filosofia quis fazer a sociedade à sua semelhança e imagem. À semelhança de Jesus Cristo que proclama o evangelho no mundo, a filosofia quis pregar o evangelho às sociedades, mostrando-lhes, no meio das tempestades da revolução, como Moisés coroado de raios sobre o cimo tempestuoso do Sinai, as novas tábuas da lei sobre as quais estavam escritos os direitos imprescritíveis do homem. Assim, a Revolução francesa devia ser logicamente tanto o comentário sangrento e o termo providencial da emancipação da razão humana como também o último dos seus desvarios».

Cada vez mais hostil às facções pqlíticas, Donoso reafirma a sua aderência à monarquia. E quando em 1840 a regente Maria-Cristina é constrangida ao exílio, Donoso precede-a em Paris. Quando, em 1842, os moderados retomam o poder, a sua fidelidade é recompensada. Secretário particular da muito jovem rainha Isabel lI, desempenha junto dela o papel de preceptor; nomeado duque de Valdegamas, é de novo eleito lias L ortes como deputado de Cádiz. Vai a França negociar os casamentos da Rainha e de sua irmã.

Mais uma vez as provações pessoais juntam-se às provações civis: a morte do seu irmão provoca em Donoso um aprofundamento da fé; pode-se então falar duma conversão à fé que vai, de futuro,

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iluminar e ordenar o seu pensamento. A partir dessa época Donoso Cortes vai desempenhar um papel primordial na diplomacia espanhola em Paris e em Berlim: ocupar-se-á especialmente dos assuntos do casamento de Napoleão III com Eugénia de Montijo, de que será a testemunha.

As suas notas diplomáticas, os seus ensaios sobre a situação da Prússia e da França, os seus quadros de homens políticos, são um modelo de lucidez, de 'concisão e aí dá provas, como em toda a sua obra, da rara aliança do espírito delicado com o espírito de geometria. Aliás, os seus escritos demonstram que Donoso Cortes nada tinha de sonhador: o seu retrato bastante penetrante de Talleyrand trai uma firme admiração pela inteligência política deste genial intrigante. Tendo levado uma vida de mortificações é vencido, em 1853, por uma doença de coração aos quarenta e quatro anos. Tinha tido, no seu famoso discurso de 4 de Janeiro de 49, uma visão igualmente forte tanto do seu próprio destino pessoal como do futuro da civilização ao declarar: «Quando o fim dos meus dias chegar não levarei comigo o remorso de ter deixado sem defesa a sociedade atacada barbaramente, nem a dor amarga e insuportável de ter feito mal a um só homem».

Uma concepção teológica da História

Donoso Cortes situa-se na linha de pensamento de Santo Agostinho e Bossuet; mas também na de Vicoque, no princípio do século XVIII, estabeleceu os princípios de uma .

Sob a influência de Vico. a visão do teólogo inspirada por Bossuet apma-se sobre uma anáhseflreclsa das leis históncas, dOS arcanos dos povos e das civilizações. Vico interroga-se sobre as origens da desigualdade e estabelece os fundamentos de uma luta de classes. A religião, a prática dos casamentos solenes e o enterro dos mortos, constituem um património espiritual de que nasce a civilização e permitem a distinção dos heróis marcados pelo selo divino,dos bestioni, os vagabundos que não têm qualquer acesso aos mistérios. A história não será mais que o esforço tentado pelos plebeus para alcançar os actos da vida religiosa e se ver reconhecida uma natureza humana. As sociedades, segundo Vico, reflectem as «modificações do espírito humano», a preponderância de uma função sobre as outras: a função «poética» ou inventiva, a função organizadora e actuante, enfim, a racionalização e o espírito crítico. Cada função inscreve-se numa classe e cada classe numa élite. Assim, as antigas élites são sucessivamente substituídas por

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novas (vide a teoria de V. Pare to sobre a circulação das élites). Mas a substituição de uma élite por outra provoca abalos, a ruína progressiva das tradições, e o individualismo anárquico precipita a ruína das sociedades.

Para Donoso Cortes é a necessidade de uma expiação divina que faz com que as sociedades passem de um ciclo a outro, de uma barbaridade primitiva a uma nova barbaridade, como resultado de um excesso tanto de racionalização como de espírito crítico. A este respeito, é certo que Donoso tenha sentido, tal como aliás o católico alemão Schlegel e mais tarde Gobineau, a atracção romântica pelo bárbaro primitivo, pelo ariano loiro que vem regenerar os povos envelhecidos.

Donoso Cortes examina a história dos povos à luz dos seus sentimentos religiosos com um poder de síntese e de intuição que faz esquecer as generalizações e as simplificações por vezes abusivas que o seu amigo Montalembert lhe censura. Eis por exemplo como o providencialismo donosiano analisa as relações do poder político e da religião romanos: «Os deuses principais, de família etrusca, eram gregos naquilo que tinham de divino e orientais naquilo que tinham de etruscos: eram numerosos, como os dos gregos, e eram sombrios e austeros, como os dos orientais. Tanto em política como em religião, Roma é ao mesmo tempo o Oriente e o Ocidente. É uma cidade como a de Teseu e um império como o de Cirus. Roma representa Janos: na sua cabeça existem duas cabeças e cada uma tem a sua fisionomia: uma é o símbolo da mobilidade grega. A sua mobilidade é tão grande que a leva até às fronteiras do mundo e a sua duração é tal que o rnundo a proclama eterna. Tendo sido escolhida segundo os desígnios de Deus para preparar o caminho àquele que havia de vir, a sua missão providencial consistiu em assimilar todas as teologias e em dominar todas as nações. Obedecendo a um apelo misterioso, todos os deuses sobem ao capitólio romano, todos os povos tomados por um terror súbito baixam a cabeça. As cidades, umas depois das outras, vêem-se despojadas dos seus templos e das suas cidades. O gigantesco império tem por ele a legitimidade oriental: a multitude e a força; e a legitimidade ocidental: a inteligência e a disciplina; invade tudo e nada lhe resiste; destrói tudo também, e ninguém se revolta. Da mesma maneira que a sua teologia tem ao mesmo tempo algo de diferente de todas as teologias e algo em comum com elas, Roma tem algo que lhe é próprio e muitas coisas que lhe são comuns com as cidades que venceu pelas armas ou que foram eclipsadas pela sua glória: tem a serenidade de Esparta, o

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refinamento e a cultura de Atenas, a pompa de Menfis, a grandiosidade de Babilónia e de Nínive. Resumindo, o oriente é a tese, o ocidente a antítese e Roma a síntese; o império romano não quer dizer outra coisa senão que a tese oriental e a antítese ocidental se foram confundir e perder na síntese romana. Se agora se decompuser esta poderosa síntese nos seus elementos constitutivos, ver-se-á que não há síntese na ordem política e social senão porque há síntese na ordem religiosa. Tanto entre os povos do oriente como nas repúblicas gregas, tanto no império romano como nas repúblicas e entre esses povos, os sistemas teológicos servem para explicar QS sistemas políticos: a teologia é a luz da história». (Ensaio sobre o catolicismo ... )

A visão providencialista funde-se aqui com a análise propriamente histórica. A filosofia encontra a sua realização na história, «ciência que precede as outras», escreve ele à jovem soberana Isabel 11. Como a de Vico, a filosofia de Donoso inscreve-se na história: «Vico não pode aceitar o divórcio entre as ideias e os factos, entre as leis providenciais e os fenómenos contingentes, entre a verdade e a realidade, entre a filosofia e a história. A filosofia e a história, segundo o dogma que Vico estabelece, no limiar da sua Nova Ciência, são irmãs gémeas» (artigo sobre a Nova Ciência, 1838).

A filosofia de Donoso Cortes é uma interrogação cristã sobre a história. A crise do mundo moderno é interpretada como uma crise religiosa sentida através da filosofia e da política. O homem dos tempos modernos foi' desenraízado pelo cristianismo das raízes que julga agora enganadoras. Num mundo que não é senão ilusão, instabilidade e caos, o homem debruçou-se sobre si mesmo em busca do que o anima, num percurso interiorizante de que o cartesianismo constitui o momento filosófico: Descartes, duvidando por um instante da existência do mundo, instaura o ego como critério de toda a verdade, enquanto que Kant confirmará a razão como faculdade do universal.

Se o homem embriagado pelo seu poder pretende prescindir do Deus de que Descartes, segundo Pascal, bem gostaria de ter prescindido, então o espírito crítico mina todas as tradições, subdividindo-se a própria razão universal numa multiplicidade de razões individuais, antes de se reencontrar brutalmente no seio duma razão absoluta que seria a expressão de uma vontade única e tirânica. Quando a religião morre, é o homem que se diviniza e, em seguida, o Estado.

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Estas transformações do sentimento religioso transpareciam tanto no universo político do último século como no nosso. Para Donoso, as ideologias políticas não são mais que armadilhas da religião. Como Saint-Simon e Spengler, tem o sentimento de que a era cristã está a acabar, que o socialismo e o comunismo se instituem em nova religião. As afirmações ou as negações políticas procedem das negações e das afirmações religiosas. Donoso, de resto, adoptou de Bonald o paralelo fecundo entre metafísica e teoria do Estado que expõe assim numa carta a Montalembert:

«A estas 3 afirmações religiosas: um Deus em pessoa existe; Esse Deus em pessoa reina na terra e no céu; esse Deus governa absolutamente as coisas divinas e humanas, correspondem três afirmações políticas: há um rei presente por meio dos seus agentes; o rei reina sobre o seus súbditos; esse rei governa os seus súbditos. Estamos aqui no sistema político da «monarqUia pura.

À negação religiosa: Deus existe, reina, mas é demasiado superior para governar as coisas humanas, que caracteriza o deísmo, corresponde a monarquia constitucional progressista em que o rei existe, reina, mas não governa.

O panteísmo em que Deus existe, mas não tem existência como pessoa, não reina nem governa, identifica Deus à Humanidade e corresponde ao sistema republicano, no qual\"> poder existe sem ser reunido numa só pessoa; o poder é tudo o que existe, isto é, a multidão que se exprime pelo simulácro que é osufrá~i() universal••O ateí ... ll1o Ljue. para [)OIlO ... O Corte .... c cllcarnado CI11 Proudhom é a negação absoluta: Deus não existe e o anarquismo será no plano político a expressão desse ateísmo.

Esta passagem da afirmação à negação explica o movimento da decadência que arrasta as civilizações consigo. A degradação do poder político, a lenta agonia da legitimidade, que reflectem os progressos da irreligiosidade parecem irreversíveis na filosofia profundamente pessimista de Donoso Cortes. Para ele, o mal triunfa naturalmente sobre o bem, não Rodendo o triunfo de Deus sobre o mal ser senão sobrenatural. É preciso reconhecer que a história confirmou mais o diagnóstico de Donoso Cortes que o optimismo utópico dos socialistas e tecnocratas. Como diz Carl Schmitt (2), «Donoso Cortes dá um golpe mortal na filosofia progressista da História com uma força que provém de uma imagem vigorosa e pessoal da História».

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Direita e esquerda'

A análise de Donoso não é superficial, não se detém nos factos mas encaminha factos e opiniões contingentes em direcção a opções primordiais. Donoso eleva o debate ao nível da metafísica implícita que fundamenta toda a prática política. Estabelece assim os verdadeiros termos da controvérsia que opõe, numa luta mortal, o que ele chama de «civilização católica» e de «civilização filosófica», oposição que vai cobrir, mutatis mutandis o antagonismo político de direitaesquerda.

A partir do momento em que a política faz intervir as noções religiosas de bem e de mal, toma-se, quer queira quer não, escrava da teologia. E contornar os termos para se libertar da teologia não é o bastante. Uma prática política é determinada segundo os Seus valores e todo o sistema de valores reintroduz as noções de bem e de mal, conferindo-lhes um novo conteúdo.

É incontestável que a direita, mesmo aquém de qualquer referência religiosa, possui uma concepção pessimista do homem, que Donoso Cortes traduz em leITíios teológicos: «A civilização católica ensina que a natureza do homem está corrompida e enfraquecida, corrompida e enfraquecida de maneira radical na sua essência e em todos os elementos que a constituem». (Carta a Montalembert, 1849). Toda a melhoria social está, antes de mais nada, para o homem de direita, numa transformação interna da iniciativa do próprio homem e supõe nele uma consciência clara dos seus limites e da sua responsabilidade, conforme a tradição filosófica da Antiguidade.

Donoso Cortes coloca em relevo, de uma forma subtil, a concepção implícita do homem dissimulada pela teoria da alienação utilizada pela esquerda. Segundo esta teoria, o homem é virtualmente um Deus ainda prisioneiro das amarras sociais, religiosas e políticas. A história interpreta-se então como o reconhecimento da parte do homem da sua própria divindade, graças à supressão de todas as alienações.

«A civilização filosófica, pelo contrário, ensina que a natureza do homem é uma natureza perfeita e sã: sã e perfeita na sua essência e nos elementos que a constituem. Sendo o homem são, a sua razão pode ver a verdade, discuti-Ia, descobri-Ia. Sendo sã, a vontade quer o bem e fá-lo naturalmente. Supondo isto, é claro que

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a razão, abandonada a si mesma, chegará a conhecer a verdade, toda a verdade e a vontade, por si mesma, terá forçosamente de realizar o bem absoluto. É igualmente claro que a solução do grande problema social está em romper as amarras que comprimem e que sujeitam a razão e o livre arbítrio do homem. O mal reside exclusivamente nessas amarras: não está nem no livre arbítrio nem na razão ... Se é assim, a humanidade tornar-se-á perfeita quando negar Deus, que é a sua amarra divina; quando negar o governo, que é a sua amarra política quando negar a propriedade, que é a sua amarra social, e quando negar a família, que é a sua amarra doméstica. Quem não aceitar todas estas conclnsões coloca-se fora da civilização filosófica» (carta a Montalembert) .

Se a escola filosófica ou racionalista pretente libertar o homem de tudo o que o aprisiona, faz dele uma abstracção, um ser suspenso entre céu e terra, ou mais precisamente entre o paraíso que vai construir e o inferno donde quer sair.

A concepção «filosófica» do homem supõe uma heteronomia entre o humano e o social: o homem virtual asfixia à coleira do social. A emancipação do homem passa então pela abolição utópica de toda a sociedade orgânica: «Na sua profunda ignorância de todas as coisas, as escolas radicalistas fizeram da sociedade e do homem duas abstracções absurdas. Considerando-as em separado, deixam o homem sem atmosfera para respirar e sem espaço para se movimentar, e deixam igualmente o espaço e a atmosfera próprias da humanidade privadas do único ser que se pode movimentar num e respirar noutro» . (Esboços histórico~filósóficos).

Em contrapartida, Donoso Cortes afirma a dimensão social do homem numa perspectiva aristotélica: «A sociedade é a forma do homem no tempo, e o homem é a substância que manrem esta forma no tempo».

Conta-se entre os maiores méritos de Donoso a demonstração.,de como o conceito abstracto do homem, que aparentemente determina uma neutralização geral das diferenças que existem entre os homens, pode engendrar de facto um conceito antitético - o do inumano, ou o de sub-homem - dotado de um terrível potencial mortífero. Além de que, como diz Carl Schmitt, o positivismo dão é senão uma manifestação do niilismo. A exaltação do homem considerado em abstracto conduz ao extermínio do homem concreto - considerado como meio. «A abolição legal da pena de

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morte é sempre um sistema precursor dos massacres em massa».

Foi em nome dos mesmos princípios e da mesma concepção do homem que os burgueses, em Fevereiro de 1848, aboliram a pena de morte em matéria de política, e em Junho de 48, mandaram atirar sobre os operários nas ruas de Paris. A contradição, real ao nível dos factos, é abolida a nível dos princípios: uma concepção errónea do homem está na origem dos grandes massacres da história. «Com uma prontidão fulgurante, escreve C. Schmitt, Donoso Cortes viu ao mesmo tempo a perfeição do começo: a abolição da pena de morte, o resultado final: um mundo em que o sangue brota das rochas, porque os paraísos ilusórios se transformam em realidades infernais». Pascal tinha já dito: «Quem quer fazer de anjo faz de besta».

Análise crítica do liberalismo

Como já observámos, o liberalismo não é mais que uma etapa transitória entre as afirmações soberanas da «monarquia pura» e as negações absolutas do socialismo. Donoso Cortes mostra-se muito mais duro em relação à mediocridade, à estreiteza de vistas do liberalismo que em relação ao socialismo. A sua crítica da ideologia liberal, «posição de dúvida», anuncia a de José António ou, num outro plano, a de J. Evola (3). Eis como Donoso Cortes descreve a escola liberal no seu Ensaio sobre o catolicismo, o liberalismo e o socialismo:

«De entre todas as escolas, esta é a mais estéril, porque a mais ignorante e a mais egoísta. Nada entende da natureza do mal e do bem; mal tem uma noção mínima sobre Deus; e não tem nenhuma sobre o homem. É impotente em relação ao bem, porque lhe falta completamente a afirmação dogmática; impotente em relação ao mal, porque abomina qualquer negação intrépida e absoluta; está condenada, sem o saber, a acabar com a nave em que navega o seu destino, ou no porto do catolicismo ou nos baixios socialistas. Esta escola não domina senão quando a sociedade está a morrer: o período do seu domínio é esse período transitório e fugitivo em que o mundo não sabe se deverá seguir Barrabás ou Jesus, e mantem-se suspenso entre uma afirmação dogmática e uma negação suprema. A sociedade deixa-se então de boa vontade governar por uma escola que nunca diz Eu afirmo nem Eu nego nem Distingo. O supremo interesse desta escola é o de não deixar chegar o dia das negações radicais e das afirmações soberanas; e para isso, por meio da discussão, confunde todas as noções e propaga o

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cepticismo, sabendo perfeitamente que um povo que ouve sem cessar da boca dos sofistas os ptós e os contras de tudo, acaba por não saber para onde se voltar e por perguntar-se a si mesmo se a verdade e o erro, o justo e o injusto, o vergonhoso e o honesto são realmente opostos entre si, ou se não são uma só coisa, considerada sob aspectos diferentes. Seja qual for a duração desse período, ela é sempre curta. O homem nasceu para agir, e a discussão perpétua, inimiga como é das acções, contraria a natureza humana. Chegará um dia em que o povo, levado por todos os seus instintos, se espalhará pelas praças públicas e nas ruas, exigindo resolutamente Barrabás ou exigindo Jesus, arrastando na poeira a cátedra dos sofistas».

Uma escola que, paradoxalmente, faz do cepticismo um dogma, com facilidade se deixa assaltar pela corrupção que ameaça todos os poderes. Donoso Cortes estava certo quando observava que um regime fundamentado no individualismo, em que o poder já não tem um carácter sagrado, facilmente permite o desenvolvimento dos germes da corrupção em governos que não sejam iluminados por uma ideia ou um projecto superiores criando uma situação em que os interesses materiais se tomam predominantes numa civilização decadente: «a corrupção é o deus da escola, e, como Deus, está em toda a parte ao mesmo tempo» (Ensaio sobre o•catolicismo ... ) E ainda neste aspecto o diagnóstico de Donoso foi mais uma vez confirmado.

A escola liberal é essencialmente composta pela classe burguesa, segundo Donoso a classe faladora, aquela que gosta de discutir. Com efeito, Donoso entrevê os pressupostos irracionais que comandam a acção política de uma classe que, contudo, se afirma racionalista. A verdade brota da discussão como a faísca do silex, é esse o dogma dos regimes parlamentares.

«O princípio da liberdade de discussão, base das instituições modernas, nasceu da impossibilidade radical dos poderes humanos de qualificar os erros. Esse princípio não pressupõe que haja na sociedade uma imparcialidade incompreensível e culpável, como poderia parecer à primeira vista, entre a verdade e o erro. Tem o seu fundamento noutras duas suposições, uma verdadeira e outra falsa: na primeira, os governos não são infalíveis, o que é perfeitamente verdade; na segunda, a discussão é infalível, o que é completamente falso. A infalibilidade não pode resultar da discussão se não partir ao mesmo tempo daqueles que discutem; não pode estar naqueles que discutem não estando ao mesmo

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tempo naqueles que governam. Se a infalibilidade é um atributo da natureza humana, está nos primeiros como nos segundos: se não é de natureza humana, não está mais nos segundos que nos primeiros. A questão consiste pois em verificar se a natureza humana é falível ou infalível ou, o que é rigorosamente a mesma coisa, se a natureza do homem é sã ou decadente ou enferma.» (Ensaio).

Esta análise apoia-se no exemplo da monarquia de Julho cuja impotência Donoso Cortes pôde observar. Uma classe que transfira qualquer actividade política, que relegue qualquer decisão para o plano da discussão na Imprensa e no Parlamento, é incapaz de enfrentar uma época de tensões sociais. A discussão permite contornar a responsabilidade e diluir a verdade metafísica: é assim que a batalha decisiva, sangrenta e inelutável é convertida num debate parlamentar; as oposições são resolvidas ilusoriamente no plano ideal da discussão - até ao dia em que o conflito latente estale na rua, deixando o Parlamento impotente no momento em que, como diz Donoso, o povo reclama Barrabas ou Jesus - e, para ele, a vitória de Barrabas é inegável.

O socialismo: «um semi-catolicismo e nada mais»

Donoso Cortes compreendeu que o liberalismo e o socialismo, cujas divergências parecem hoje dividir o mundo, brotam na realidáde da mesma fonte, pertencem à mesma família ideológica: «A escola liberal não fez mais que estabelecer as premissas que levam às consequências socialistas, e os socialistas não fizeram mais que tirar as consequências latentes nas premissas liberais - estas duas escolas não se distinguem entre si pelas ideias, mas sim pela audácia» (Ensaio).

As duas escolas têm, fundamentalmente, a mesma concepção do homem, a mesma visão optimista e progressista da história. Mas os pensadores socialistas deram provas de maior rigor, de «audácia», e de uma visão mais aberta que a da burguesia céptica, timorata e faladora. Donoso não pode deixar de sentir uma certa admiração em relação ao socialismo no qual o catolicismo encontrou um adversário à sua medida: é o combate de Titan contra Zeus, de Lúcifer contra Deus. «As escolas socialistas superam a escola liberal, especialmente porque vão direitas a todos os grandes problemas e a todas as grandes questões, e porque propõem uma resol ução peremptória e decisiva. O socialismo não é forte senão porque é uma teologia satânica» (Ensaio).

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Se o liberalismo é o lugar do cepticismo, das semi-negações, o socialismo leva o processo de divinização às suas últimas consequências: «Partindo do pressuposto da bondade inata e absoluta do homem, este é ao mesmo tempo reformador universal e irreformável: acaba por se transformar de homem em Deus; a sua essência deixa de ser humana para se tomar divina. É essencialmente bom e produz à sua volta, através das suas paixões o bem absoluto» (Ensaio).

O racionalismo filosófico que anima o socialismo e, mais tarde, as pretensões do marxismo a um estatuto científico, não sã,o isentos de pressupostos teológicos. Não foi aliás Nietzsche que demonstrou que a ciência era o último refúgio da religião?

O socialismo, apesar da máscara da objectividade científica de que tenta revestir-se, não pôde abstrair-se das categorias teológicas do bem e do mal. E também tem, como todas as religiões, os seus mistérios. A maneira como Danoso vira a arma da razão e do rigor lógico contra os seus adversários e os prende num dilema está patente, na passagem que se segue:

«Ou o mal que existe na sociedade é essenCial ou é um acidente; se é essencial, não basta para o destruir minar as instituições sociais, é preciso ainda destruir a própria sociedade que é a essência que sustem todas essas formas. Se o mal social é um acidente, então você é obrigado a fazer aquilo que não fez ... explicar-me em que época, qual a causa, de que maneira e sob que forma surgiu esse acidente e em seguida porque série de deduções vai conseguir transformar o homem em salvador da sociedade ... o racionalismo que ataca com furor todos os mistérios católicos proclama em seguida, de uma outra maneira e com um fim diferente, esses mesmos mistérios» (Ensaio).

Segundo a perspectiva essencialmente espiritualista que anima toda a obra de Donoso, é ponto assente que as revoluções têm causas muito mais profundas que simples reivindicações materiais. A crise política e social tem raízes espirituais; o problema encontra-se no homem antes de ser inserido na sociedade; a crise política é inicialmente uma crise religiosa - nesse ponto, a história do sentimento religioso da Europa é susceptível de confirmar as teses de Danoso. No seu discurso sobre a ditadura, tinha anunciado uma proposição que devia então parecer paradoxal, mas cuja evidência nos surge hoje claramente: «as revoluções são a doença dos povos

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ricos. As revoluções são a doença dos povos livres».

Quando Danoso Cortes critica o socialismo é sobretudo em Proudhon que pensa. Mas o facto é que esses ataques se aplicariam sem dúvida muito mais a K. Marx, que acabava de publicar o seu Manifesto Comunista, que a Proudhon, mais revoltado contra as injustiças e o abuso da propriedade do que contra a própria propriedade, tão hostil em relação à ditadura das massas como em relação ao Estado-Moloch, «dragão das mil escamas» como dirá Nietzsche. De resto, a análise que faz do comunismo, que identifica ao panteísmo, aplica-se extremamente bem à visão marxista e em particular à concepção marxista da matéria: '

«Parece-me evidente que o comunismo, por seu lado, provenha das heresias panteístas e das que lhe são vizinhas. Quando tudo é Deus, quando peus é tudo, Deus é, sobretudo, democracia e multidão ... Nesse sistema o que não é o todo não é Deus, embora tome parte na divindade e o que não é Deus não é nada, porque não há nada fora de Deus, que é tudo. Daí o enorme desprezo dos comunistas pelo homem e a sua negação insolente em relação à liberdade humana; daí essas imensas aspirações em relação a uma dominação universal pela futura demagogia que se espalhará por todos os continentes ... daí essa febre insensata que se propõe amalgamar todas as classes, todos os povos, todas as raças, para as macerar juntas no grande mosteiro da Revolução, a fim de que desse caos sombrio e sangrento surja um dia um Deus único, vencedor de tudo o que é particular. .. esse Deus é a demagogia ... A Demagogia é o todo, overdadeiro todo, o Deus verdadeiro, dotado de um só atributo, a omnipotência, triunfador das três grandes fraquezas do Deus católico: a bondade, a misericórdia e o amor. Quem é que não reconhece pelos traços, Lúcifer, deus do orgulho?» (Carta ao cardeal Fornari).

Esta análise do comunismo prefigura e comenta ajuízo definitivo, mas muitas vezes mal compreendido, de Pio XI: «o comunismo é intrinsecamente perverso», isto é, adopta a máscara da religião, explora e perverte a vontade de justiça e pretende mesmo assumir os seus objectivos, quando de facto não contribui senão para a escravidão do homem. Os católicos de esquerda poderiam meditar nestas palavras de Danoso Cortes com algum proveito para si próprios. Uma religião às avessas, é o que é o comunismo. Assim se explica o carácter religioso, muitas vezes sublinhado, do socialismo marxista e das instituições que o reclamam para si. Esta faceta não é superficial mas pertence isso sim à própria essência do

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comunismo. Religião sem transcendência engendra necessariamente a tirania, é esta a grande lição da teologia política donosiana.

Rumo à ditadura mundial

No momento em que Donoso Cortes pronuncia o seu Discurso sobre a ditadura, o optimismo impera nos meios políticos e intelectuais. Portanto, não é de estranhar que passasse por um exaltado, um puro fanático medieval. Com efeito, a crise de 1848 parecia apaziguada e raros foram aqueles que compreenderam a amplitude das forças e dos problemas que surgiram quando da revolu~ão europeia. A prosperidade económica, o progresso técnico e o optimismo progressista fizeram esquecer o «grande medo» de 48. Mas a revolução bolchevista iria confirmar de uma maneira incontestável as mais negras previsões de Donoso.

Para ele, a ditadura toma-se um facto inevitável. O que há que saber é qual a ditadura que prevalecerá: a ditadura do alto, a da autoridade e da legitimidade ou a ditadura revolucionária, a das massas. O totalitarismo é uma consequência lógica, no plano político, da morte de Deus: são os Estados que presentemente irão adoptar as visões messiânicas da religião. Donoso Cortes cristaliza o determinismo desta lei histórica numa imagem tirada do mundo

«Não existem senão duas formas de repressão possíveis: uma interior, a outra exterior, uma religiosa, a outra política.

São de tal natureza que, quando o termómetro religioso está em cima, o termómetro da política está em baixo, e quando o termómetro religióso está em baixo, o termómetro político, a repressão política, a tirania, eleva-se. Esta é uma lei da humanidade, uma lei da história».

O homem mutilado, o homem abstracto, produto desta

« ... A situação está preparada para um tirano gigantesco, colossal, universal; tudo está preparado para tal. Queiram reflectir nisto: agora já não existem resistências, quer materiais quer morais. Já não existem resistências materiais porque, com os barcos a vapor e os caminhos de ferro, já não há fronteiras e porque, com o telégrafo eléctrico, já não há distâncias; e já não existem resistências morais porque todos os espíritos estão divididos e todos os patriotismos mortos.»

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Mais ainda: no próprio momento em que Marx punha todas as suas esperanças revolucionárias nos Estados Unidos e via na Rússia absolutista uma última muralha à revolução europeia (no New York Tribune de 31 de Dezembro de 1853), Donoso Cortes via claramente no despotismo russo um aliado potencial do socialismo. Previu o declínio da Europa, a ascensão dos colossos no este e no oeste, e o reagrupamento dos eslavos atraves do expansionismo russo. Donoso pressente que a humanidade marcha em direcção à centralização e à burocracia, depois das sucessivas destruições dos corpos intermediários. Eis como Louis Veuillot, na sua introdução às obras de Donoso, resume a profecia contida no Discurso sobre a situação geral da Europa: «Quando, por um lado, o socialismo tiver destruído o que deve destruir por si, isto é, o exército permanente pela guerra civil, a propriedade pelas confiscações, a família pelos costumes e pelas leis; e quando, por outro lado o despotismo moscovita tiver crescido e se tiver fórtalecido como deve fortificar-se e crescer por si, então o despotismo vai absorver o socialismo e o socialismo será incamado pelo Czar; estas duas aterrorizantes criações do génio do mal completarse-ão uma pela outra» .

Donoso Cortes ainda foi menos profeta na Europa que no seu próprio país. Os seus avisos, cuja actualidade é flagrante, perderam-se. Não é este o destino de Cassandra? Com efeito, nenhum pensamento foi mais «inactual» no sentido nietzschiano, isto é, tão pertinente e ao mesmo tempo tão contrário em relação às ideologias em ascensão.

Nas Cortes, o seu Discurso sobre a Ditadura provocou risos e vaiadas e não encontrou mais que uma minoria para aprová-lo. Foram-lhe consagrados muitos estudos em Espanha e em Itália e mesmo alguns em França; mas é significativo o facto de o livro escrito por Th. Molnar sobre a Contra-revolução não citar mais que duas vezes Donoso, confundindo-o até com de Maistre e de Bonald. O estudo mais penetrante sobre Donoso continua, sem dúvida, a ser o de Carl Schmitt, que tanto sublinhou a intuição fundamental de toda a filosofia donosiana e a sua originalidade no seio da corrente contra-revolucionária: esta intuição fundamental «deve-se ao facto de ter pensado de uma maneira exacta que a pseudo-religião da Humanidade absoluta é o princípio de um caminho que conduz a um terror inumano. Conclusão nova, mas mais profunda que os numerosos e grandiloquentes juízos sobre a revolução, a guerra e o sangue formulados por de Maistre. Comparado com o espanhol, que sondou admiravelmente os abismos de terror de

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1848, de Maistre continua ainda a ser um aristocrata da restauração do antigo regime, um continuador e pensador do século XVIII.

Donoso Cortés: Uma Filosofia Católica e Contra-Revolucionária da História

NOTAS:

(I) Seguimos aqui o paral elo estabelecido entre Vico e Donoso por J. Chaix-Ruy em Donoso Cortes, teólogo da História e profeta (1956).(2) Interpretacion europea de Donoso Cortes, Biblioteca deI pensamiento actual, Madrid, 1963.(3) J. Evola, L'Homme parmi les ruines, Sept Couleurs.revista Futuro Presente, número especial 21/22, de Abril, Junho de 1985.